Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | TERESA FONSECA | ||
| Descritores: | LEVANTAMENTO DE SEGREDO PROFISSIONAL DE ADVOGADO | ||
| Nº do Documento: | RP202510135219/17.2T8VNG-C.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | INCIDENTE DE LEVANTAMENTO DE SIGILO PROFISSIONAL | ||
| Decisão: | IMPROCEDÊNCIA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - O sigilo de advogado tem como fundamento a tutela das relações de confiança que se estabelecem com os clientes e com outros colegas de profissão e o interesse público da boa administração da justiça, que exige uma advocacia livre e independente II - Para aferir da existência de fundamento para levantar o sigilo hão de se verificar os requisitos da atualidade (visa a demonstração de factos objeto do litígio, afastando-se as utilizações hipotéticas), da exclusividade (o depoimento do advogado é único meio para a demonstração dos factos em causa) e da imprescindibilidade (trata-se de um meio absolutamente necessário). III - Tendo o advogado representado A. e R., o seu depoimento destina-se a favorecer uma das partes sobre a outra, o que o torna inadmissível. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo: 5219/17.2T8VNG-C.P1 * Sumário……………………………… ……………………………… ……………………………… Relatora: Teresa Maria Fonseca 1.ª adjunta: Teresa Pinto da Silva 2.º adjunto: José Eusébio Almeida * Acordam no Tribunal da Relação do PortoI - Relatório AA, advogado titular da cédula profissional n.º ... pediu ao Presidente do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados a dispensa de segredo profissional com vista a depor, na qualidade de testemunha, no âmbito do processo n.º 5129/17.2T8VNG, a correr termos no Juízo Central Cível do Porto, Juiz 7, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto. Foi indeferida a dispensa de segredo profissional para o Requerente depor, na qualidade de testemunha, sobre os factos constantes dos pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 20 dos temas de prova fixados no despacho saneador. O A., BB, notificado da decisão do Conselho Regional da Ordem dos Advogados que indeferiu o pedido de dispensa de sigilo profissional da testemunha AA, Ilustre Advogado veio dizer e requerer o seguinte: 1. O AUTOR mantém interesse na comparência em audiência de julgamento da testemunha, Senhor Dr. AA, não prescindindo do seu depoimento. 2. Em face da decisão proferida pelo Conselho Regional da Ordem dos Advogados que indeferiu à referida testemunha a dispensa de sigilo profissional para depor nos presentes autos sobre os factos constantes dos Pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 20 dos temas de Prova, e porque o seu depoimento é essencial à descoberta da verdade material, impõe-se que o Tribunal suscite junto do Tribunal da Relação do Porto o necessário INCIDENTE DE QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL, nos termos do disposto no n.º 3, do art.º 135.º do CPP, aplicável ex vi art.º 417.º, n.º 4 do CPC, Porquanto: I. Os pedidos formulados pelo Autor no final da petição inicial, concretamente, os das alíneas A), A.1), A.2) e B), têm por fundamento, em síntese, os seguintes factos essenciais: (i) O AUTOR, por sua exclusiva iniciativa, conta e risco, desenvolveu uma série de contactos junto da detentora da marca internacional de restauração “A...”, a empresa americana “A... (USA), Inc.”, com sede em ..., ..., Estados Unidos da América, representada na Europa pela sua subsidiária “A... Limited”, com sede em ..., ..., e com esta negociou e obteve em 2015, a concessão da franquia “A...” para abertura e exploração, na cidade do Porto, de um estabelecimento comercial de café-restaurante e loja de merchandising dessa famosa marca internacional. (ii) Para implementação desse projeto, o AUTOR constituiu uma equipa de colaboradores, encontrou e negociou o arrendamento de um imóvel, contratou arquitetos e empreiteiros e, uma vez licenciada pela Câmara Municipal ..., promoveu, geriu e conduziu até à inauguração completa do estabelecimento, todo o processo de obras de reabilitação e reconversão do edifício para a instalação e exploração do “A... do ...” (doravante “A...-Porto”). (iii) Para assumir a franquia “A...” e a exploração do respetivo estabelecimento comercial, o AUTOR, constituiu em 20/10/2015, a dita “B...”, que, por sua vez, celebrou em 28/12/2015, com o “A... Limited” o competente “Contrato de Franquia”. (iv) O projeto de instalação do “A...-Porto” foi orçamentado em cerca de € 3.400, que o AUTOR planeou realizar da forma seguinte: a) € 2.250.000,00, através da candidatura de um projeto de investimento submetido pela “B...” ao programa “Portugal 2020”; b) € 1.000.000,00, pela entrada imediata de capital na “B...” a realizar por um investidor que o AUTOR viesse a recrutar, com a contrapartida da cedência de uma participação de 34% no capital social da sociedade. (v) Entretanto, para, por um lado, suprir a morosidade da conclusão do processo de aprovação e libertação dos fundos por parte do “Portugal 2020”, e, por outro lado, fazer face às necessidades prementes de capital que a sociedade precisava para promover e executar o projeto de instalação do “A...-Porto”, o AUTOR iniciou conversações com o Banco 1..., SA para a concessão de um empréstimo à “B...”, no montante de € 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil euros). (vi) Definido este plano de ação, o AUTOR convidou o RÉU, médico-cirurgião, então seu amigo e pessoa de confiança de longa data, para, como Investidor, integrar o projeto societário da “B...”, o que o RÉU aceitou, assegurando ter disponibilidades financeiras para entrega imediata de € 800.000,00 nos cofres da sociedade, que o AUTOR concedeu em vez dos € 1.000.000,00 inicialmente previstos e pretendidos. (vii) As condições acordadas e assentes entre AUTOR e RÉU foram as seguintes: a) Cedência ao RÉU, sem qualquer pagamento, de uma quota de € 1.700,00, representativa de 34% do capital social da “B...” (que era de € 5.000,00); b) Realização imediata pelo RÉU de uma prestação suplementar ao capital da “B...”, no montante de € 800.000,00; c) Uma vez obtidos os fundos do “Portugal 2020”, o empréstimo do Banco 1... seria amortizado, após o que a “B...” iniciaria um plano de reembolso integral ao RÉU da prestação suplementar de € 800.000,00. (viii) Com a entrada do RÉU para sócio da “B...”, o capital social de € 5.000,00 deveria ficar distribuído por quatro sócios na forma seguinte: a) 55%, correspondente a uma quota de € 2.750,00, em nome de CC; b) 34%, correspondente a uma quota de € 1.700,00, em nome do RÉU; c) 10%, correspondente a uma quota € 1.700,00, em nome de Eng. DD; d) 1%, correspondente a uma quota de € 50,00, em nome de EE. (ix) De referir que: ─ O sócio CC é filho do AUTOR e, no final de todo o processo, seria o detentor da totalidade da participação de 55%; ─ O sócio Eng. DD foi a pessoa que, a título gracioso, tratou da montagem e submissão da candidatura do projeto de investimento ao “Portugal 2020”, e de toda a parte financeira da “B...” no decurso da execução do projeto, a quem o AUTOR, em reconhecimento e gratidão, se propôs ceder uma participação de 10% sem qualquer pagamento de preço; ─ O sócio EE é um amigo do AUTOR que, por mera conveniência de circunstância, foi sócio constituinte da “B...” com a subscrição de uma participação de 1%; (x) Todavia ¯ mas sem prejuízo do referido na alínea (viii) ¯, por razões atinentes às condições da franquia do “A...” e, ainda, para dar tranquilidade ao RÉU, que iria entrar com os tais € 800.000,00 e constituir-se garante do empréstimo do Banco 1..., o AUTOR propôs, e o RÉU concordou e aceitou, o seguinte procedimento: a) numa primeira fase, a título transitório e até que o empréstimo do Banco 1... fosse amortizado, o RÉU ficava formalmente com a titularidade de 91% do capital social da “B...”; b) após a amortização do empréstimo do “Banco 1...”, o RÉU praticaria todos os atos necessários para que a participação de 57% que detinha no interesse e por incumbência do AUTOR, fosse transferida para o filho deste, CC (51%), e o Eng. DD (6%), por forma a que a distribuição do capital social da “B...” ficasse conforme aludido na alínea (viii), supra. (xi) Assim, dando satisfação ao acordado entre AUTOR e RÉU, foi celebrado em 22/02/2016, um contrato de divisão e cessão de quotas pelo qual o capital social da “B...” ficou distribuído da seguinte forma: a) Uma quota de € 4.550,00, representativa de 91%, em nome do RÉU, dos quais 34%, seriam detidos no seu próprio interesse, como titular efetivo, e os restantes 57%, seriam detidos no interesse do AUTOR e por incumbência deste, para, posteriormente, no momento próprio, serem transferidos para o filho, CC, e para o Eng. DD, na proporção de 51% para o primeiro e de 6% para o segundo; b) Uma quota de € 200,00, representativa de 4%, em nome do filho do AUTOR, CC; c) Uma quota de € 200,00, representativa de 4%, em nome do Eng. DD; d) Uma quota de € 50,00, representativa de 1%, em nome de EE. (xii) O RÉU assumiu a gerência singular e o AUTOR passou a atuar como procurador da gerência da “B...”, continuando a ser o responsável exclusivo pela organização, gestão e condução de todo o projeto (obras de remodelação do edifício, recrutamento, seleção e formação de pessoal, ações de publicidade e divulgação, etc.) de instalação do “A...-Porto” até à sua conclusão. (xiii) O RÉU não realizou a prestação suplementar ao capital de € 800.000,00 a que se obrigara e que fora condição essencial para a sua entrada como sócio da “B...”, o que, ao longo de todo o ano de 2016, gerou graves dificuldades de tesouraria à sociedade, provocando enormes atrasos na conclusão das obras e na inauguração do “A...-Porto”, por falta de verbas para pagar aos empreiteiros e fornecedores. (xiv) Foram várias as reuniões realizadas entre o AUTOR, o RÉU, o Eng. DD e o advogado da “B...” para se encontrarem soluções alternativas que permitissem de algum modo suprir a falta dos € 800.000,00 que o RÉU pura e simplesmente não entregou na caixa social. (xv) Finalmente, depois de muitas vicissitudes e dificuldades, sempre resolvidas e ultrapassadas por exclusiva ação e intervenção do AUTOR, a loja de merchandising foi inaugurada e aberta ao público em 30/09/2016, e o restaurante-café, foi inaugurado e aberto ao público em 20/11/2016. (xvi) De notar que: a) a loja de Merchandising, entre a sua inauguração, em 30/09/2016, e a data de 13/12/2016, gerou uma faturação bruta de € 172.517,00; b) o restaurante-café, entre 20/11/2016 e a data de 13/12/2016, gerou uma faturação bruta de € 233.114,00. (xvii) Enfim, em 20/11/2016, ficou finalmente concluído todo o projeto de promoção, instalação, inauguração e funcionamento regular do “A...-Porto”, que rapidamente se afirmou aos olhos de todos como uma belíssima aposta de negócio, como decorre dos elevados níveis de faturação nos primeiros dois meses e meio de abertura da Loja de merchandising e nos primeiros vinte e três dias de funcionamento do restaurante-café. (xviii) O “A...-Porto” passou a ser alvo de todos os encómios e reconhecimento por parte da imprensa especializada e do público em geral, como um ponto de referência da gastronomia e espaço de música na cidade do Porto. (xix) O AUTOR via, finalmente, o seu sonho realizado e o seu enorme esforço compensado, assim como o de todos os que com ele se envolverem na montagem e implementação desse seu projeto. (xx) Desde sempre e até então, o AUTOR era reconhecido por todos os sócios da “B...”, sem exceção, assim como pelos seus trabalhadores e todas as entidades, públicas e privadas (Câmara Municipal ..., fornecedores, prestadores de serviços, etc.) que de algum modo estiveram envolvidas na implementação e execução do projeto “A...-Porto”, como o “Pai” do projeto e o sócio maioritário da sociedade, pese embora a sua participação de 61% no respetivo capital social estivesse formalmente titulada, por incumbência do AUTOR, em nome do RÉU, quanto a 57%, e em nome do seu filho CC, quanto a 4%. SUCEDEU, PORÉM, QUE: (xxi) Agora que tudo, por fim, estava feito e concluído, agora que estavam reunidas todas as condições para o funcionamento estável e regular do “A...-Porto”, o AUTOR, no dia 01/12/2016 ¯ dez dias depois da inauguração do restaurante-café ¯, foi surpreendido com o afastamento compulsivo do “A...-Porto”, decidido unilateralmente pelo RÉU, da Gerente-Geral FF, pessoa esta que desde o longínquo ano de 2001, colaborara e acompanhara o AUTOR nas muitas diligências e ações que desenvolveu para conseguir a “Franquia A...”, montar, abrir, gerir e explorar o “A...- ...”; (xxii) Invocando a sua condição real de sócio maioritário da “B...”, ainda que não formalmente, o AUTOR opôs-se terminantemente a esta decisão unilateral do RÉU, pelo que a dita FF continuou ao serviço do “A...-Porto”; (xxiii) Todavia, 14/12/2016, sem qualquer justificação ou conversa prévia, o RÉU, com o apoio conivente do sócio Eng. DD, comunicou verbalmente ao AUTOR que, como legal detentor de 91% do capital social da sociedade, assumia a partir de então a gerência exclusiva da “B...” e que ele, AUTOR, e a FF estavam fora do projeto, proibindo-os desde então de entrar nas instalações do “A...-Porto”. (xxiv) Desta forma, o AUTOR viu-se arredado do projeto do “A...-Porto”, que ele próprio criara e promovera, com que sonhara durante tantos anos e no qual muito havia investido do seu tempo e das suas economias. (xxv) Sucederam-se, sem sucesso, reuniões entre as partes, o advogado do RÉU e a testemunha arrolada pelo Autor, Senhor Dr. AA, então advogado da “B...”, para tentarem anular ou por alguma forma resolver o afastamento compulsivo do AUTOR da gestão do estabelecimento “A...-Porto”. II. EM SUMA: o AUTOR fundamenta o seu direito (que suporta os referidos pedidos formulados na ação) (i) na celebração com o RÉU de um contrato de mandato sem representação, mediante o qual o RÉU ficou detentor, no interesse do AUTOR e por incumbência deste, de uma participação de 57% do capital social da “B...” para, posteriormente, ser transferida para quem o AUTOR viesse a designar, (ii) no afastamento compulsivo do AUTOR, pelo RÉU, do “A...-Porto”, (iii) bem como no incumprimento, pelo RÉU, da obrigação que assumira aquando das negociações para a sua admissão como sócio, de entregar à sociedade a quantia de € 800.000,00 (oitocentos mil euros), entrega essa que constituíra condição essencial da sua admissão como sócio e contrapartida da cessão, pelo AUTOR, de uma quota representativa de 34% no capital social da “B...”; III. O RÉU contestou, negando, entre outros factos, as condições que o AUTOR com ele estabelecera e ajustara para, por um lado, lhe ceder uma quota representativa de 34% do capital social da “B...”, e, por outro lado, assumir transitoriamente, em nome e por conta do AUTOR, a titularidade formal da participação de 57% a este pertencente (cf. art.ºs 75.º, 87.º, 92.º 100.º, 104.º, 119.º a 139.º da contestação). Ora, IV. A testemunha, Senhor Dr. AA, na qualidade de advogado da “B...”, acompanhou diretamente ambas as partes, AUTOR e RÉU, no ajuste do referido acordo, tendo intervindo, nessa qualidade, nas negociações entre ambos realizadas no seu escritório, na sua presença e sob sua direção, quanto ao modo de concretização desse acordo; V. De igual modo, o Senhor Dr. AA, mais tarde, promoveu e geriu reuniões entre os dois, AUTOR e RÉU, para se discutir e encontrar soluções alternativas de financiamento à “B...” que colmatassem a falta da realização da prestação suplementar de € 800.000,00 a que o RÉU se obrigara, como ainda, no final, tomou parte em reuniões entre ambos e o advogado do RÉU para anular ou por alguma forma solucionar o afastamento compulsivo do AUTOR da gestão do estabelecimento “A...-Porto” imposto pelo RÉU. VI. Para além dos próprios intervenientes, AUTOR e RÉU, e do sócio Eng. DD (de que a seguir se dará nota), o Senhor Dr. AA foi a única pessoa que esteve presente no ajuste do referido acordo e que, por isso, tem conhecimento direto das razões que estiveram por trás desse acordo e das condições acertadas entre as partes para a admissão do RÉU como sócio da “B...”, o que é essencial para a defesa da posição do AUTOR nesta ação. VII. De referir que, não obstante o que vai mencionado no art.º 59.º da petição inicial, na verdade, o Eng. GG não tomou parte nessas reuniões, pelo que não tem qualquer conhecimento direto do acordo feito entre as duas partes. VIII. Apenas, isso sim, esteve presente nessas reuniões o Eng. DD, enquanto sócio da “B...”, o qual, porém, foi absolutamente conivente com o RÉU no afastamento do AUTOR do “A...-Porto”, sendo, por isso, uma testemunha declaradamente hostil e parcial, que tem dado sobejas provas de que negará tudo quanto vá contra a narrativa do RÉU, como aconteceu já noutros processos judiciais laterais que este, como meio de pressão, moveu contra o AUTOR. IX. Tal significa que, para além do depoimento do Senhor Dr. AA, como testemunha, o AUTOR não dispõe de qualquer outra prova testemunhal que lhe permita fazer provar do acordo que fizera com o RÉU para ser admitido na sociedade, nem das discussões posteriores sobre soluções alternativas ao financiamento da “B...” decorrente do facto de o RÉU não ter cumprido a obrigação da realização da prestação suplementar de € 800.000,00, nem das circunstâncias do afastamento compulsivo do AUTOR da gestão do estabelecimento. X. Daí que seja absolutamente crucial que o Senhor Dr. AA possa depor, como testemunha, em audiência de julgamento, pelo conhecimento direto, equidistante e imparcial que possui sobre os alegados factos essenciais. XI. Os factos a que o AUTOR pretende que o Senhor Dr. AA preste depoimento são os por si alegados e que estão relacionados com os Pontos n.ºs 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 20, dos TEMAS DE PROVA, que se transcrevem: “(…) 6. Das condições acordadas entre o Autor e o Réu, relativamente à sua admissão como sócio da “B...”; 7. Da proposta efetuada pelo Autor ao Réu, numa primeira fase e a título meramente transitório, para que a quota de 99% do Eng.º GG ficasse distribuída e titulada da forma descrita no art. 68.º da petição inicial; 8. Do acordado entre Autor e Réu no sentido de, após a amortização integral do financiamento do Banco 1... com os fundos do Portugal 2020, o Réu praticar todos os atos necessários para que a participação de 57% que detinha no interesse e por incumbência do Autor, fosse transferida para o filho do Autor (51%) e o Eng.º DD (6%); 9. Do contexto em que ocorreu o contrato de divisão e cessão da quota de € 4.950,00 do Eng.º GG; 10. Do contexto que levou o Autor a sair transitoriamente da gerência e a passar a atuar como procurador da mesma; 11. Do incumprimento, pelo Réu, da condição a que se obrigara para a sua admissão como sócio da “B...”, de entregar € 800.000,00 para reforço de capitais próprios da “B...”; 12. Das consequências que de tal incumprimento advieram para a “B...”; 20. Da razão do afastamento compulsivo do Autor da gestão do estabelecimento.” XII. O depoimento do Senhor Dr. AA sobre os aludidos TEMAS DE PROVA torna-se, assim, essencial e imprescindível à integral descoberta da verdade material e, por conseguinte, à própria defesa dos legítimos direitos e interesses do AUTOR, sem o qual este não conseguirá demonstrar e fazer prova dos factos e circunstâncias em que tudo se passou, razões pelas quais deverá ser autorizada a quebra do segredo profissional. Nestes termos, Requer-se a V. Ex.ª se digne suscitar superiormente, junto do Tribunal da Relação do Porto, o incidente de quebra de segredo profissional relativamente ao Senhor Dr. AA, advogado, em conformidade com o disposto no n.º 3, do art.º 135.º do CPP, aplicável ex vi art.º 417.º, n.º 4, do CPC, a fim de a mesma poder depor como testemunha em audiência de julgamento a todos os factos relacionados com os Temas de Prova elencados sob os n.ºs n.ºs 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 20. * O R. HH aduziu não restarem dúvidas de que os factos sobre os quais o A. pretende que o advogado testemunhe estão abrangidos pelo sigilo profissional, uma vez que tomou deles conhecimento no exercício das suas funções de Advogado e por causa delas. Bem assim, que ponderados os interesses em causa, não se justifica a prestação de depoimento com quebra do segredo profissional.* II - Questão a dirimir: se o sigilo do advogado arrolado como testemunha deve ser levantado.III - Fundamentação de facto a) O Requerente foi mandatário da sociedade por quotas “B..., Lda.” ("B..."), tendo, na qualidade de advogado e no exercício da sua profissão, prestado serviços à referida entidade, bem como, neste contexto, a BB e a HH. b) Os serviços prestados pelo Requerente, no exercício da sua profissão, estiveram relacionados com questões relativas à organização, ao funcionamento e ao financiamento da aludida empresa. c) Ter-se-á verificado um litígio entre BB e HH que deu origem à presente ação declarativa de condenação, em que o primeiro figura como A. e o segundo como R.. d) Na referida ação, o A. peticiona o seguinte: A) ser declarado pelo Tribunal a execução específica do contrato de mandato celebrado entre o AUTOR e o RÉU\ proferindo-se sentença que produza os efeitos da declaração negocial do RÉU faltoso com a consequente transferência para o AUTOR da propriedade de uma quota com o valor nominal de € 2.850,00, representativa de 57% do capital social da sociedade comercial por quotas denominada "B...LDA" (doravante "B..."), e respetivo registo oficioso na Conservatória do Registo Comercial; ou, caso assim, não se entenda, A.l) ser o RÉU condenado a dividir a quota que detém em seu nome, com o valor nominal de € 4.550,00, representativa de 91% do capital social da "B...", em duas quotas de € 1.700,00 e de € 2.850,00, e a transferir esta última para o AUTOR, no prazo de 30 dias após trânsito em julgado da sentença, e a pagar ao AUTOR uma sanção pecuniária compulsória de € 100,00 (cem euros) por cada dia de atraso no cumprimento dessa obrigação; ou, caso ainda assim, não se entenda, A.2) ser o RÉU condenado a pagar uma indemnização ao AUTOR, a título de lucros cessantes que perspetivava obter pela distribuição de dividendos da "B…" até ao termo do prazo inicial do contrato de franquia A...-Porto, no montante mínimo de € 5.000.000,00 (cinco milhões de euros), acrescida de juros à taxa legal a partir da data da citação; B) ser ainda o RÉU condenado a cumprir a obrigação em falta para com o AUTOR, de realizar à "B..." a prestação suplementar de capital no montante de € 800.000,00 (oitocentos mil euros), no prazo de 30 dias após trânsito em julgado da sentença, com a cominação admonitória de, não sendo a obrigação satisfeita nesse prazo, ser declarada a resolução do contrato de cessão da quota de 34%, e restituída a mesma ao AUTOR. e) 0 Autor fundamenta a sua pretensão na alegação da existência de um contrato de mandato sem representação outorgado com o Réu, mediante o qual o segundo (o Réu) ficou detentor, no interesse do Autor e por incumbência deste, de uma participação de 57% do capital social da "B..." para, posteriormente, ser transferida para quem o Autor viesse a designar, e no afastamento compulsivo do Autor, pelo Réu, do A...-Porto, bem como no incumprimento, pelo Réu, da obrigação que assumiu, aquando das negociações para a sua admissão como sócio, de entregar a quantia de € 800.000,00 (oitocentos mil euros), entrega essa que constituía condição essencial da sua admissão como sócio e contrapartida da cessão, pelo Autor, de uma quota representativa de 34% do capital social da "B...". f) Finda a fase dos articulados, foi proferido Despacho Saneador que teve por objeto, nomeadamente, a fixação dos temas de prova. g) O Requerente foi arrolado como testemunha do Autor e afirma ter conhecimento pessoal e direto das circunstâncias que rodearam o mencionado negócio, tendo, "na qualidade de advogado da "B...", acompanhado diretamente ambas as partes, Autor e Réu, no ajuste do referido acordo, tendo intervindo, nessa qualidade, nas negociações entre ambos realizadas no seu escritório, na sua presença e sob a sua direção, quanto ao modo de concretização desse acordo". h) O Requerente terá ainda participado em reuniões entre as partes, tendo em vista a definição de formas de financiamento da sociedade "B...", bem como, numa fase final, na resolução do litígio entre as mesmas. i) O Requerente pede a dispensa de sigilo profissional para poder depor, na qualidade de testemunha do Autor, sobre os pontos 6,7,8,9,10,11,12 e 20 dos temas de prova fixados no despacho saneador acima mencionado, a saber: 6. Das condições acordadas entre o Autor e o Réu, relativamente à sua admissão como sócio da "B..."; 7. Da proposta efetuada pelo Autor ao Réu; numa primeira fase e a título meramente transitório, para que a quota de 99% do Eng. GG ficasse distribuída e titulada da forma descrita na petição inicial; 8. Do acordado entre Autor e Réu no sentido de, após a amortização integral do financiamento do Banco 1... com os fundos do Portugal 2020, o Réu praticar todos os atos necessários para que a participação de 57% que detinha no interesse e por incumbência do Autor, fosse transferida para o filho do Autor (51%) e o Eng. DD (6%); 9. Do contexto em que ocorreu o contrato de divisão e cessão da quota de €4.950,00 do Eng. GG; 10. Do contexto que levou o Autor a sair transitoriamente da gerência e a passar a atuar como procurador da mesma; 11. Do incumprimento, pelo Réu, da condição a que se obrigara para a sua admissão como sócio da "B...", de entregar € 800.000,00 para reforço de capitais próprios da "B..."; 12. Das consequências que de tal incumprimento advieram para a "B..."; 20. Da razão do afastamento compulsivo do Autor da gestão do estabelecimento." j) O conhecimento dos mencionados factos pelo Requerente adveio, como o mesmo afirma, "do exercício das suas funções de advogado e como consequência dos serviços que prestou à "B..." e, nessa sede, ao Autor e ao Réu no âmbito dos diferentes circunstancialismos e contextos referidos". k) O Requerente afirma que o seu depoimento é absolutamente essencial para a defesa dos direitos e interesses legítimos do Autor e que o mesmo (Requerente) é o único, para além das partes e do Engenheiro DD, que esteve presente na negociação do acordo e que, por isso, tem conhecimento direto dos factos. I) Pede a dispensa do sigilo profissional para poder depor, como testemunha arrolada pelo Autor, sobre os factos elencados nos pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 20 dos temas de prova fixados no despacho saneador, transcritos na alínea i) do presente relatório. * III - Fundamentação jurídicaO segredo profissional do advogado, aliás à semelhança do sigilo previsto para outras categorias profissionais, visa a tutela das relações de lealdade e confiança que se estabelecem com os clientes. Está ainda em causa a tutela das relações estabelecidas com outros colegas de profissão. Mais genericamente, importa acautelar o público interesse da boa administração da justiça, que exige uma advocacia livre e independente. A confiança só não é posta em crise quando os factos sejam alheios ao estrito exercício da advocacia. As razões de ser assinaladas impõem que que só em casos excecionais o sigilo possa ser quebrado. De acordo com o art.º 92.º/1 do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, assinaladamente: a - A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. Segundo o n.º 2 do mesmo art.º 92.º, a obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. O segredo profissional abrange os factos a alegar e os "documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo" (n.º 3). O n.º 4, por seu turno, preceitua que o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento. Tal significa que o segredo profissional não é absoluto, podendo, excecionalmente, ser afastado através da dispensa do sigilo profissional a que se refere o art.º 92.º/4 do EOA e o Regulamento n.º 94/2006, de 25 de junho (Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional). O art.º 4.º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional dispõe o seguinte: 1 - A dispensa do segredo profissional tem carácter de excepcionalidade. 2 - A autorização para revelar factos abrangidos pelo segredo profissional apenas é permitida quando seja inequivocamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado, cliente ou seus representantes. 3 - A decisão do presidente do conselho distrital, nos termos do EOA e do presente regulamento, aferirá da essencialidade, atualidade, exclusividade e imprescindibilidade do meio de prova sujeito a segredo, considerando e apreciando livremente os elementos de facto trazidos aos autos pelo requerente da dispensa. A atualidade da dispensa do segredo verifica-se quando tenha sido requerida ou determinada para a demonstração de factos objeto do litígio, afastando-se as utilizações hipotéticas. A exclusividade verifica-se quando para a prova de determinada factualidade não exista outro meio disponível senão por apelo aos factos sujeitos a sigilo. A imprescindibilidade constata-se quando a necessidade de proteção dos bens jurídicos do cliente ou do advogado prevaleça na valoração dos interesses preponderantes em conflito. A essencialidade exige que a dispensa do segredo se destine à demonstração de factos determinantes para a procedência ou improcedência da ação cujo pedido conforma o interesse legítimo do cliente a tutelar. O tribunal deve decidir a questão em função da ponderação que faça dos interesses em litígio por forma a fazer prevalecer o interesse preponderante. Não é suficiente que o depoimento possa vir a ser útil. O tribunal há de concluir pelo carácter absolutamente necessário do depoimento sujeito a segredo profissional - porque mais ninguém tem conhecimento daquilo de que o advogado tem conhecimento e porque se essa prova não for produzida a pretensão improcederá. O pedido do A. consiste no levantamento do segredo profissional de advogado para prestar depoimento, na qualidade de testemunha por si arrolada. De acordo com o gizado, o depoimento a prestar incidirá sobre factos conhecidos no exercício da função de advogado e por causa dela e tem em vista a defesa de posições jurídicas subjetivas do A.. Os factos são concretamente identificados. Segundo consta da alegação, o advogado terá prestado à sociedade "B..." serviços de advocacia que consistiram, nomeadamente, na análise e definição de soluções jurídicas no que respeita à organização, funcionamento e financiamento da referida empresa. No contexto da realização das mencionadas tarefas, o advogado terá prestado serviços ao A. e ao R.. O conhecimento dos factos sobre quais se pretende a produção do meio de prova advém, necessariamente, do exercício das funções de advogado, ou seja, os factos sobre os quais o A. pretende que a testemunha deponha foram por si conhecidas no exercício das suas funções de advogado e por causa delas. Tais factos encontram-se, assim, abrangidos pelo dever de guardar segredo profissional. Veja-se que o advogado afirma que nas reuniões, diligências, negociações que conduziram ao negócio estiveram presentes, para além dos intervenientes (A. e R.), e do próprio, o engenheiro DD. Ora, não só o A. requereu o depoimento de parte do R., como o R. arrolou como testemunha DD. Acresce que as partes podem prestar declarações Pelo exposto, no caso dos autos o pedido sempre teria que ser indeferido por o meio de prova não ser o único para a demonstração dos factos em causa, nem ser absolutamente necessário. Não se verificam, por conseguinte, os requisitos da exclusividade e da imprescindibilidade. O sucesso da pretensão não está condicionado pela quebra do sigilo, já queaAs atuações em causa comportam outros meios de prova. O depoimento do Ilustre advogado não obedece, por conseguinte, aos requisitos aludidos. Da alegação emerge, outrossim, que o advogado prestou serviços, quer ao A., quer ao R.. O levantamento do sigilo profissional destina-se a que preste depoimento a favor do A. contra o R.. Destinando-se o depoimento do advogado à prova da tese do A., destinar-se-á forçosamente a contrariar a tese do R.. Estão em causa interesses antagónicos de clientes do advogado. Como se lê no parecer desfavorável do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados: tem sido jurisprudência deste Conselho que o Advogado não deve ser autorizado a prestar depoimento desfavorável à "tese" defendida pelo seu cliente. Melhor dizendo, e na esteira do nosso Bastonário, Sr. Dr. II, "por um lado, mal se compreenderia que a revelação do segredo se destine à defesa de alguém, sabido que, por exemplo, um depoimento testemunhal, ainda que solicitado por uma determinada parte, não se destina à defesa dessa parte, mas à contribuição, a mais possível objetiva, para a descoberta da verdade. Mas com a aludida expressão quis-se de maneira impressiva significar um objetivo determinado para a revelação de factos sigilosos: contribuir com ela para a demonstração de uma tese, a tese do "cliente". Por isso o Advogado só poderá ser autorizado a depor sobre factos objetivamente "favoráveis" àquele, e nunca, pois, a factos "desfavoráveis" (…) considerando que o Requerente, enquanto advogado da sociedade, também prestou serviços, com ou sem mandato/procuração (o que é indiferente à luz do disposto no n.º 2 do artigo 92.5 do EOA), ao Autor e ao Réu e tendo os mesmos confidenciado com o seu advogado, à data e naquele especifico assunto (o Requerente), temos de concluir que o Requerente foi advogado de ambas as partes, do Autor e do Réu e que, nessa qualidade, foi confidente dos mesmos, tendo acesso a informações transmitidas pelos mesmos no quadro de relações de confiança e de confidência advogado-cliente. Pelo que, se fosse autorizado o levantamento do sigilo profissional no caso em análise, estaria a permitir-se que o advogado pudesse prestar depoimento em benefício de um antigo cliente contra outro antigo cliente, algo que, como vimos, não é permitido. Também com este fundamento não deverá haver lugar ao levantamento do sigilo profissional. O pedido formulado deverá ser indeferido. * V - DispositivoNos termos sobreditos, acorda-se em julgar improcedente o presente incidente de levantamento do segredo profissional de advogado. * Custas pelo A., por ter decaído na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).* Porto, 13-10-2025Teresa Fonseca Teresa Pinto da Silva José Eusébio Almeida |