Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
21588/20.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO CARNEIRO DA SILVA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NO VEÍCULO
REPARAÇÃO
EXCESSIVA ONEROSIDADE
Nº do Documento: RP2025041021588/20.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 04/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA PARCIALMENTE A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A simples desconsideração de um meio de prova não traduz omissão de pronúncia;
II - A aplicação da primeira parte do nº 3 do artigo 503º do Código Civil exige a demonstração de factos demonstrativos de uma relação de comissão;
III - O preenchimento do conceito «excessiva onerosidade» consagrado no nº 1 do artigo 566º do Código Civil não se basta com a simples demonstração de o custo de reparação de um veículo automóvel ser superior ao seu valor de venda à data do acidente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 21588/20.4T8PRT.P1

Acordam os Juízes que integram a 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto

Relatório:
AA, residente na rua ..., nº ..., bloco ..., rés-do-chão esquerdo, Vila Nova de Gaia, intentou, perante o juízo central cível do Porto (J6), a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “A..., SA”, com sede na rua ..., Lisboa.
Alegou o autor, em súmula, na petição inicial, que foi interveniente em acidente de viação ocorrido por culpa exclusiva do condutor de veículo automóvel segurado pela ré.
Afirma que de tal acidente resultaram para si danos patrimoniais e não patrimoniais que quantifica no valor global de € 53.357,91.
Conclui pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 53.357,91, acrescida de juros de mora contados, à taxa legal, desde a citação e até integral reembolso.
Citada, a ré apresentou contestação, na qual, em súmula, principia por excepcionar a prescrição do direito do autor, pelo decurso do prazo fixado no artigo 498º do Código Civil.
Invoca, também, não ser o autor o proprietário do veículo que conduzia no momento do sinistro, defendendo falecer-lhe legitimidade substantiva para em juízo formular pedido de indemnização pelos danos por aquele sofridos.
Aceita a verificação do sinistro invocado na petição inicial, bem como o contrato de seguro aí referido.
Impugna, por desconhecimento, as circunstâncias do acidente invocado pelo autor, bem como a verificação e extensão dos danos pelo mesmo alegados.
Invoca que o valor da reparação do veículo automóvel exigida pelo autor é superior ao seu valor venal.
Conclui pedindo a improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido.
O autor apresentou articulado de resposta às excepções invocadas pela ré, no qual, em súmula, recorda que o prazo de prescrição foi suspenso devido à situação excepcional vivida na sequência da epidemia do Sars-Cov2.
Afirma que na data do sinistro era proprietário do veículo automóvel que conduzia.
Conclui como na petição inicial.
Foi dado cumprimento ao disposto no Decreto-Lei nº 59/89, de 22 de Fevereiro.
A audiência prévia foi dispensada.
Foi proferido despacho saneador, no qual o valor da acção foi fixado em € 53 357,91, e a excepção de prescrição foi julgada improcedente, decisão de que não foi interposto recurso.
Procedeu-se à indicação do objecto do processo e à enunciação dos temas da prova, não tendo sido apresentada qualquer reclamação.
Já em plena fase de instrução, por despacho de 21 de Setembro de 2023 [referência nº 451863905], foi determinada a apensação a estes autos da acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, nº …, que corria termos pelo juízo local cível do Porto (J1), instaurado por “B... – Companhia de Seguros, SA”, com sede na rua ..., Lisboa, contra a aqui ré “A..., SA”.
Nessa acção, a aí autora alegou ter celebrado contrato de seguro de acidentes de trabalho com a entidade patronal do autor AA, tendo nesse âmbito assumido, no âmbito da relação laboral, a obrigação de indemnizar os danos para o mesmo decorrentes do sinistro em causa nos autos, simultaneamente de viação e de trabalho, em consequência tendo pago àquele autor a quantia global de € 15 859,41.
Afirma que o acidente em causa ocorreu por culpa exclusiva da condutora do veículo automóvel de matrícula ..-EZ-.., segurada pela ré.
Invoca, ainda, que a condutora desta viatura no âmbito e no exercício das suas funções, por conta e no interesse da proprietária do veículo, de acordo com instruções e trajecto definido por esta, entendendo em qualquer caso dever aplicar-se a presunção de culpa consagrada no artigo 503º do Código Civil.
Defende ter ficado sub-rogada nos direitos do autor AA perante a aqui ré, nos termos do artigo 17º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.
Conclui pedindo a condenação da ré “A..., SA”, a pagar à autora “B... – Companhia de Seguros, SA”, a quantia de € 15 859,41, acrescida de juros de mora contados desde a citação e até integral pagamento, bem como na condenação da mesma ré a pagar todos os valores que a autora “B... – Companhia de Seguros, SA”, venha a suportar, designadamente com pensões, despesas médicas e medicamentosas e outras que venham a ser liquidadas a, e por conta, do trabalhador AA, cuja liquidação pretende relevar para decisão ulterior.
Citada, a ré apresentou contestação, na qual, em súmula, começa por excepcionar a ineptidão da petição inicial e a prescrição do crédito invocado.
Reconhece ter celebrado contrato de seguro destinado a garantir a obrigação de indemnização por danos causados a terceiro com a utilização do veículo automóvel de matrícula ..-EZ-...
Defende que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo automóvel de matrícula ..-CT-...
Concluiu pedindo a procedência das excepções invocas, e, em qualquer caso, a improcedência da acção.
A audiência prévia foi dispensada.
O valor da acção foi fixado em € 15.859,41.
Foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a nulidade decorrente de ineptidão da petição inicial, e relegou para final o conhecimento da excepção de prescrição.
Procedeu-se à fixação do objecto do processo e à enunciação dos temas da prova, não tendo sido apresentada qualquer reclamação.
Instruídas as duas causas, realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção principal e da acção apensa, condenou:
a) a ré “A..., SA”, a pagar ao autor AA a quantia € 11.915, 75, quantia acrescida de juros de mora, contados desde a data da sua prolação quanto à quantia de € 7.500,00, e desde a citação quanto ao remanescente;
b) a ré “A..., SA”, a pagar à autora “B... – Companhia de Seguros, SA”, a quantia de € 7 929,71, quantia acrescida de juros de mora contados, à taxa de 4%, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento.
É desta decisão que, inconformado, o autor AA interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1- A Decisão recorrida enferma de Erro de Julgamento na Apreciação da Prova Testemunhal e Documental, não atendendo à dinâmica do acidente apurada em Audiência de Julgamento, nomeadamente à demonstração de que o veículo segurado pela Ré mudou de faixa de rodagem, sendo essa a causa exclusiva do sinistro;
2- A sentença ora impugnada desconsiderou a prova produzida, ao ignorar depoimentos coerentes e articulados, bem como os danos visíveis nos veículos, que confirmam a mudança de faixa por parte do veículo da Ré, resultando numa decisão contrária à Prova e à Experiência Comum;
3- Ao não se pronunciar sobre o Relatório médico junto pelo Autor, que atesta um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica diferente daquele apurado pelo Instituto de Medicina Legal, o Tribunal incorreu em nulidade por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC);
4- A sentença não aplicou corretamente o regime da Responsabilidade pelo Risco, previsto no art. 506.º do Código Civil, ao não reconhecer que o veículo sinistrante, propriedade de um comitente, era conduzido por uma comissária, agindo no interesse e sob a direção desse comitente, impondo-se a Responsabilização objetiva da Ré;
5- No que respeita aos danos materiais, a sentença considerou indevidamente o veículo do Autor como não reparável, descurando prova documental (orçamento da oficina especializada) e a própria admissão do perito da Ré de que a reparação seria possível, ainda que economicamente menos favorável à seguradora, o que configura falta de fundamentação e contradição com a prova produzida;
6- A correta aplicação do regime legal impõe que se conclua pela reparabilidade do veículo do Autor, sujeita a procedimentos técnicos adequados, e pela devida indemnização correspondente aos custos reais de reparação, não podendo a Ré escudar-se em critérios puramente económicos para afastar a obrigação de reparar;
7- A omissão de pronúncia sobre o relatório médico apresentado pelo Autor e a falta de fundamentação quanto à irreparabilidade do veículo evidenciam a necessidade de reponderação da matéria de Facto e de Direito, impondo ao Tribunal da Relação a correção dos vícios da sentença.
Termos em que, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça a exclusiva responsabilidade da ré, aplique corretamente a responsabilidade pelo risco, considere a reparabilidade efetiva do veículo do autor e atenda ao relatório médico apresentado, fixando a indemnização devida de forma justa e equitativa, nos termos da lei e da jurisprudência.
Assim se fazendo Justiça.
A ré “A..., SA”, apresentou contra-alegações, nas quais, em súmula, entende não terem sido produzidos meios de prova que imponham decisão diversa da proferida.
Defende não haver fundamento para aplicação das normas consagradas no artigo 503º do Código Civil, e que, não obstante o afirmado pelo recorrente, o tribunal a quo adequadamente aplicou as regras da responsabilidade pelo risco.
Considera acertada a conclusão pela inconveniência da reparação do veículo automóvel pertença do autor, por força dos danos estruturais que sofreu.
Entende não ocorrer omissão de pronúncia.
Conclui pedindo a improcedência do recurso.
O recurso foi admitido [despacho de 13 de Fevereiro de 2025, referência nº 468695121] como de apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
No exame preliminar entendeu-se nada obstar ao conhecimento do objecto do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Fundamentação:
Como é sabido, o teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta, onde sintetiza as razões da sua discordância com o decidido e resume o pedido (nº 4 do artigo 635º e artigos 639º e 640º, todos do Código de Processo Civil), delimita o objecto do recurso e fixa os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente.
Assim, atentas as conclusões do recorrente, mostram-se colocadas à apreciação deste tribunal as seguintes questões, enunciadas por ordem de precedência lógico-jurídica:
A) A nulidade da decisão por omissão de pronúncia;
B) A impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
C) O fundamento e extensão da responsabilidade da ré pelos danos decorrentes do acidente de viação ocorrido a 12 de Dezembro de 2017, em concreto:
a. a exclusiva responsabilidade da ré fundada nos artigos 500º e 503º/3, ambos do Código Civil;
b. o cálculo da indemnização dos danos correspondentes às lesões físicas sofridas pelo autor - tendo por base a avaliação que resulta do relatório médico junto aos autos a 23 de Agosto de 2024 [requerimento com a referência nº 39892345], ou o relatório pericial elaborado neste processo principal;
c. o cálculo da indemnização por danos patrimoniais relativos à viatura de matrícula ..-CT-.. - por referência ao valor venal do veículo ou ao valor da sua reparação.
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Delimitado o objecto do recurso, importa conhecer a factualidade em que assenta a decisão impugnada.
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Factos Provados (transcrição):
1- No dia 12 de Dezembro de 2017, pelas 8:50h, na VCI, sentido ...-..., o Autor -nascido em ../../1982 - conduzia a viatura VW ... de matrícula ..-CT-...
2- Veículo cuja propriedade lhe havia sido transmitida, verbalmente, pelo seu pai.
3- Sendo que o direito de propriedade se mantinha inscrito em nome deste, BB.
4- Este seguia na faixa da esquerda.
5- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar circulava a carrinha de marca BMW de cor preta, com a matrícula ..-EZ-.., que seguia na faixa do meio, atento o mesmo sentido de marcha.
6- Veículo propriedade de “C..., Lda”.
7- Quando o CT passava pelo EZ deu-se um embate entre a roda da frente esquerda deste, e o lado direito daquele.
8- Em circunstâncias e em local da faixa de rodagem não concretamente apuradas.
9- Em consequência do embate a roda dianteira da esquerda do EZ ficou com a jante empenada, partindo-se o amortecedor da mesma roda.
10- O embate provocou ainda o despiste da viatura do Autor (...).
11- Que foi bater com a lateral esquerda da sua viatura na traseira de um veículo pesado que estava na faixa do meio.
12- Veículo de matrícula ..-NX-.., propriedade de “D..., Lda.” e, à data, conduzido por CC.
13- Embatendo depois no veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-ZM, propriedade de DD e, à data, conduzido por EE.
14- O embate ocorreu entre a saída de ... e o Nó de ....
15- O autor e sinistrado deslocava-se de casa para o seu trabalho, quando se deu o acidente.
16- O local onde ocorreu o acidente configura uma recta, com ligeira curva à direita, atento o sentido ...-....
17- A estrada tem dois sentidos de trânsito, cada um dos quais com três hemi-faixas de rodagem, separadas entre si por um separador central, e entre elas por linha longitudinal descontínua.
18- À data do sinistro o piso era asfaltado e encontrava-se em bom estado de conservação e seco.
19- No local, a velocidade máxima instantânea limitada a 90 kms/h.
20- O veículo CT seguia na ..., no sentido ...-..., pela hemi-faixa de rodagem mais à esquerda.
21- Em ultrapassagem dos demais veículos que seguiam na hemi-faixa de rodagem central.
22- O condutor do CT imprimia-lhe uma velocidade não concretamente apurada.
23- Por seu turno, os veículos NX, e EZ seguiam, igualmente, na ..., no identificado sentido, mas na hemi-faixa de rodagem central.
24- E o ZM seguia no mesmo sentido, mas na hemi-faixa mais à direita.
25- E deste embate resultaram os danos na viatura ....
26- O Autor teve que ser assistido pelo INEM, tendo perdido os sentidos após o embate, e foi transportado para o Hospital ....
27- Tendo resultado para o mesmo fractura diafisária distal do úmero esquerdo, trauma torácico com fractura do 2.º ao 5.º arcos costais esquerdos e 1.ª costela bilateral e 4.ª costela com fractura dupla, entre outras.
28- E, nessa sequência, foi transferido para o Hospital ..., onde foi sujeito a diversos exames.
29- E, após foi transferido para o Centro Hospitalar ..., onde ficou internado ate ao dia 14 de Dezembro de 2017.
30- E, posteriormente, para os serviços clínicos da B....
31- Em virtude do descrito acidente, o autor / encontrou-se em situação de Incapacidade temporária absoluta (I.T.A.) entre 13.12.2017 a 29.03.2018, de Incapacidade Temporária Parcial de 40% entre 30.03.2018 a 26.04.2018 e de 20% entre 27.04.2018 a 06.09.2018, data em que lhe foi atribuída alta, com uma IPP de 2%.
32- E durante todo o tempo em que se manteve em recuperação necessitou de medicamentos e produtos farmacêuticos.
33- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 06/09/2018.
34- Período de Défice Funcional Temporário Total fixável num período de 9 dias.
35- Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável num período de 260 dias.
36- Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável num período total de 108 dias.
37- Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial fixável num período total de 161 dias.
38- Quantum Doloris fixável no grau 4/7.
39- As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas podem implicar esforços suplementares.
40- Dano Estético Permanente fixável no grau 2/7.
41- Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 3/7.
42- O valor de reparação do CT, após o acidente, ascendia ao valor de 28.357,91 €.
43- Sendo que a sua reparação não permite que o mesmo circule de forma segura, uma vez que o embate atingiu a sua estrutura.
44- À data do acidente, o valor do CT era de cerca de 9.631,50 €.
45- E os salvados tinham o valor de 800,00 €.
46- Por contrato de Seguro titulado pela apólice nº ..., o proprietário do veículo BMW transferiu para a Ré, A..., a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da sua circulação.
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47- A Autora B... é uma sociedade que se dedica à actividade seguradora.
48- No exercício da sua actividade, a Autora celebrou com a sociedade “E..., Lda.”, em 31.12.2011, o contrato de seguro, do ramo Acidentes de Trabalho, titulado pela apólice n.º ..., nos termos do qual assegurou a cobertura do risco completo dos danos traumatológicos aos trabalhadores daquela indicados nas respectivas folhas de salário.
49- No dia 13 de Dezembro de 2017, a Segurada da Autora participou o acidente descrito em 1- dos factos assentes.
50- Uma vez que o aqui autor era seu trabalhador.
51- Estando transferido para a B... o salário anual de € 13.483,88 (€ 557,00 x 14 + € 110,00 x 11 (subsídio de alimentação) + € 251,55 x 12 (prémio) + € 21,44 x 12 + € 100,00 x 12 (prémio de comparência).
52- No âmbito de processo de acidente de trabalho, que correu termos no Juízo do Trabalho do Porto – Juiz 1, sob o n.º ..., no qual autora B... era a entidade responsável, e por auto de conciliação, judicialmente homologado por sentença, e julgando-se fixados os períodos de Incapacidade Temporária, a I.P.P. de que o trabalhador ficou a padecer em virtude do acidente – 7,41%, e considerando o salário transferido através do identificado contrato de trabalho, as partes ali intervenientes acordaram no pagamento da pensão anual e vitalícia de € 1.794,42, devida desde 03.07.2020, das despesas de deslocação - € 8,00 – e nas diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária de que o trabalhador se encontrou afectado.
53- A autora B... procedeu ao pagamento do capital de remição da aludida pensão de € 1.794,42, no valor de € 21.997,79.
54- Bem como, até 07.11.2022, da quantia global de € 9.287,65, correspondente às seguintes importâncias parcelares:
a. € 2.408,07, a título de acertos de indemnizações;
b. € 260,00, a título de despesas de ambulatório;
c. € 55,00, a título de despesas com EAD – TAC;
d. € 3.980,90, a título de indemnização pelos períodos de ITA;
e. € 853,05, a título de indemnização pelos períodos de ITP de 50%;
f. € 767,65, a título de despesas com juros;
g. € 30,23, a título de despesas com medicamentos;
h. € 425,00, a título de despesas com medicina física e de reabilitação;
i. € 309,85, a título de pagamento de subsídios;
j. € 40,00, a título de transporte de ambulância;
k. € 15,00, a título de despesas com transporte colectivo;
l. € 126,36, a título de despesas com transporte próprio; e
m. € 420,00 a título de transporte de táxi.
55- Na sequência do acidente descrito, a ora Ré assumiu a responsabilidade pela sua regularização, na proporção de 50%.
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Factos Não Provados (transcrição)
Não resultou provado que:
a) o embate entre o CT e o EZ tenha ocorrido quando a condutora desta procurou passar a circular pela faixa mais à esquerda, atento o seu sentido de marcha;
b) a condutora do EZ estivesse desatenta ao trânsito;
c) o embate tenha ocorrido na hemi-faixa mais à esquerda, atento o sentido de marcha dos veículos;
d) o autor não tivesse possibilidade de evitar o embate;
e) a condutora do EZ circulasse por conta e no interesse da sua proprietária, “C...”,
f) o veículo CT, que circulava na faixa da esquerda, tenha embatido na traseira do veículo NX que o precedia, tendo, em consequência desse embate, sido projectado contra o veículo EZ;
g) o CT circulasse, antes do embate, a mais de 100km/h;
h) a condutora do EZ e o autor conduzissem atentos ao trânsito que circulava no local do acidente;
i) a condutora do EZ e o autor conduzissem distraídos ao trânsito que circulava no local do acidente.
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A)
A decisão judicial que põe fim a um litígio jurídico-privado não só deve limitar-se pelo que foi pedido ao tribunal, como se impõe que esgote a análise e decisão sobre tudo o que foi pedido, porque apenas assim se garantirá que a força socialmente pacificadora do caso julgado se estenda sobre a totalidade da questão trazida a juízo.
E por isso expressamente se impõe ao juiz [nº 2 do artigo 608º do Código de Processo Civil] que resolva todas as questões pelas partes colocadas à sua apreciação, obviamente com excepção daquelas cuja decisão se mostre prejudicada pela solução dada a outras.
O recorrente defende que a não apreciação [ou, talvez melhor, ponderação] de determinado meio de prova pelo tribunal a quo [concretamente, o relatório médico com o requerimento de 23 de Agosto de 2024 (referência nº 39892345) – pontos 67 a 73 das alegações de recurso; conclusão 3ª] traduz omissão de pronúncia.
Mas, naturalmente, sem qualquer razão.
Conforme jurisprudência dos nossos tribunais superiores [cfr, por todos, o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 19 de Março de 2022, processo nº 19655/15.5T8PRT.P3.S1, disponível em www.dgsi.jstj.pt/] e doutrina [cfr, por todos, o ensinamento do Prof. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, 1946, volume V, página 143 – “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão"] absolutamente pacíficas, as questões processuais cujo conhecimento se impõe seja feito na sentença [artigo 608º do Código de Processo Civil] não se confundem com os argumentos [de facto (designadamente meios de prova) ou de direito] aduzidos pelas partes, ou oficiosamente considerados pelo Tribunal, na resolução de tais questões.
E questões, para este efeito, serão todas as controvérsias de natureza processual ou substantiva que, ou obstam ao conhecimento do mérito da causa [as excepções dilatórias], ou se reconduzem ao próprio mérito da causa [os limites da causa de pedir, do pedido, e das excepções].
Da falta de ponderação de um argumento, de um facto ou de um meio de prova invocados no processo, ou da utilização inovadora de outros, poderá decorrer fundamentação deficiente ou medíocre susceptível de gerar erro de julgamento ou mesmo invalidade nos termos do artigo 662º do Código de Processo Civil, mas não nulidade por omissão ou excesso de pronúncia.

No caso em apreço, o autor colocou à consideração do Tribunal de primeira instância a questão da responsabilidade civil da ré, com determinado fundamento e extensão, designadamente na parte do dano biológico.
Para prova de parte dos factos que, na tese do autor, fundam tal responsabilidade, apresentou determinado meio de prova.
Na sentença recorrida, o tribunal a quo apreciou, afirmou e quantificou a responsabilidade civil da ré, indicando o seu fundamento e fixando a sua extensão, embora sem se socorrer do relatório médico junto por iniciativa do autor – ou seja, apreciou a questão jurídica colocada, independentemente de não se ter socorrido, ou de ter desvalorizado, o meio de prova apresentado pelo autor.
O recorrente entende que para a adequada apreciação dessa mesma questão jurídica deve ser valorizado um específico meio de prova.
Do que facilmente resulta, repete-se, que o próprio recorrente entende que a questão jurídica colocada foi apreciada e decidida, embora, na perspectiva do recorrente, de forma errada – o que evidentemente basta para constatar não ocorrer omissão de pronúncia.
Nesta parte improcede o recurso.

B)
A discordância do recorrente quanto à decisão sobre a matéria de facto reconduz-se ao juízo de demonstração que esteve na base da inclusão dos pontos 8-, 43- e 44- na matéria de facto provada [8- Em circunstâncias e em local da faixa de rodagem não concretamente apuradas; 43- Sendo que a sua reparação não permite que o mesmo circule de forma segura, uma vez que o embate atingiu a sua estrutura; 44- À data do acidente, o valor do CT era de cerca de € 9 631,50], e ainda [embora não o diga expressa e frontalmente, como o deveria ter feito] ao meio de prova que fundou a conclusão pela gravidade do défice funcional de que ficou afectado [2 pontos, conforme fixado pelo relatório elaborado pelo IML e foi vertido no ponto 31- da matéria de facto provada; ou 8 pontos, conforme proposto no relatório médico pelo autor junto a 23 de Agosto de 2024 (referência nº 39892345) ?].

O ponto 8- dos factos provados
Pretende o recorrente que os meios de prova produzidos impõem o juízo de demonstração de o embate ter ocorrido em plena via de trânsito por onde circulava o veículo que conduzia; isto porque, na sua alegação, a viatura de matrícula ..-EZ-.. inopinadamente iniciou a manobra de mudança de via de trânsito, invadindo a via de trânsito mais à esquerda atento o sentido de marcha dos dois veículos [ou seja, implicitamente, a impugnação dirige-se, também, à inclusão dos pontos a) a c) na matéria de facto não provada].
E, como meios de prova que na sua visão impõem a alteração pretendida, invoca as suas declarações de parte e o depoimento das testemunhas FF [condutora do veículo de matrícula ..-EZ-..] e EE [condutor do veículo de matrícula ..-..-ZM, que se encontrava imobilizado na via mais à direita, atento o sentido de marcha ... – ..., parado numa fila de acesso à saída da VCI], em conjugação com o que retira da normalidade do acontecer, quer face ao declarado quanto aos destinos que o autor e a testemunha FF tomavam e pretendiam seguir [os dois não pretendendo sair da VCI naquele específico ponto; o autor provindo da ponte da ...; a testemunha FF tendo acedido à VCI no acesso da rua...], quer face aos danos que os veículos apresentam [o de matrícula ..-EZ-.. apresentando a direcção partida com as rodas viradas para o lado esquerdo; o veículo do autor com danos essencialmente no seu lado direito].
Em primeiro lugar parece-nos óbvio que, à parte os danos que os veículos sofreram com o embate, inexistem dados objectivos [rastos de travagem; vestígios no pavimento; etc] que nos permitam sopesar e aferir da credibilidade intrínseca dos depoimentos prestados – e aqueles danos, será evidente, são compatíveis, seja com a possibilidade de o embate ter ocorrido na via de trânsito mais à esquerda, seja com a hipótese de se ter dado na via de trânsito central.
Pensa-se razoável ponderar, como pretende o recorrente, que, tendo para o veículo de matrícula ..-EZ-.. resultado do acidente a quebra da direcção apresentando as rodas viradas para o lado esquerdo, no momento do embate as rodas já se encontrassem nessa posição, e que, por isso, a sua condutora pelo menos possuía a intenção de aceder à via mais à esquerda, por onde já circulava o veículo pertença do autor – o que é obviamente compatível com o facto de aquele primeiro veículo ter acabado de aceder à VCI provindo do acesso de ... e pretender seguir em frente [como se retira do depoimento da testemunha FF], mas tendo perante si o veículo pesado de matrícula ..-NX-.. [identificado como veículo b) no esboço do acidente vertido na participação junta com a petição inicial como documento nº 3], que a testemunha EE refere ter-se imobilizado na via central pretendendo «entrar» na fila veículos que então existia na saída para o ... – ....
Só que, constituindo facto evidente e notório o elevado volume de veículos que habitualmente circulam na VCI no dia e hora em que o acidente ocorreu [cerca das 09h de uma terça-feira de Dezembro], cruzando-se a entrar e a sair pelos acessos existentes na zona do embate em causa nos autos, com toda a certeza o veículo de matrícula ..-EZ-.. não foi naquele momento o único veículo que, provindo da rua..., pretendeu aceder à via de trânsito mais à esquerda por forma a seguir em frente e contornar o pesado de matrícula ..-NX-.. ainda antes de este se imobilizar.
A gravidade dos danos que o veículo pertença do autor e o veículo de matrícula ..-EZ-.. sofreram, bem como as concretas lesões físicas que para o autor decorreram do embate, notoriamente indiciam que pelo menos um dos veículos seguia a elevada velocidade, independentemente de respeitar ou não o limite de velocidade instantânea fixada para o local – e esse com toda a certeza terá sido o veículo pertença do autor, que há pelo menos várias centenas de metros circulava na via em questão, e não o veículo de matrícula ..-EZ-.., que acabava de nela entrar.
Na zona do embate a VCI descreve uma curva à direita, atento o sentido de marcha ... – ... [como decorre do esboço do acidente junto à participação que constitui o documento 3 da petição inicial].
Como é por todos sabido, o tempo de reacção do condutor diminui exponencialmente na razão do aumento da velocidade instantânea.
E não temos absolutamente nenhuma forma de saber como reagiu o autor quando, seguindo a pelo menos várias dezenas de quilómetros por hora, foi confrontado com a imobilização do pesado de matrícula ..-NX-.. na via central, e se apercebeu da provável intenção dos condutores de outros veículos de invadirem a via de trânsito mais à esquerda por onde nesse momento seguia, mesmo antes de qualquer um desses veículos efectivamente entrar nessa via de trânsito mais à esquerda – manteve-se com o volante firme para seguir em frente; ou instintivamente guinou para a esquerda e, perante a ameaça do separador central, guinou novamente para a direita, acabando por entrar na via de trânsito central onde se encontravam outros veículos; ou na travagem bloqueou as rodas do seu veículo, levando a que a inércia acentuasse a inflexão à direita que necessariamente estava a realizar para acompanhar a curva da VCI, invadindo a via central ?
Repete-se, não temos qualquer forma de, com a segurança necessária a uma decisão judicial, afirmar o efectivamente ocorrido – até porque, após o embate, nenhum dos carros ficou imobilizado na via de trânsito mais à esquerda [o que, reconhece-se, pode ser devido a um sem número de factores – mas aqui se incluindo, obviamente, a possibilidade de o embate ter ocorrido na via central].
Pelo que a dúvida insanável na matéria plenamente justifica a redacção dada ao pontos 8- da matéria de facto provada, e a inclusão dos pontos a) a c) no elenco dos factos não provados.
Também aqui improcede o recurso.

O ponto 43- dos factos provados
A testemunha GG [engenheiro mecânico, colaborador da ré, por ordem desta tendo realizado uma peritagem ao veículo de matrícula ..-CT-..] em audiência de julgamento referiu-se aos extensos danos que o veículo de matrícula ..-CT-.. sofreu em consequência do acidente em causa nos autos, clara e frontalmente afirmando que várias peças estruturais do veículo ficaram afectadas, e, por isso, razões de segurança aconselhavam a não reparação [07m55s a 09m15s], em concreto por ter sido afectado o monobloco [designadamente as longarinas] da viatura [13m00s a 17m05s].
E foi neste meio de prova que o tribunal a quo fundou a sua decisão de incluir o ponto 43- na matéria de facto provada.
Apenas sucede que esta matéria simplesmente não foi alegada por nenhuma das partes no processo.
Obviamente nada consta a este propósito das petições iniciais [tanto destes autos como do processo apenso] ou do articulado de resposta apresentados.
E a ré, na sua contestação, limita-se a alegar a flagrante discrepância entre o valor venal do veículo de matrícula ..-CT-.. e o seu valor de substituição antes do acidente, de um lado, e o custo de reparação, de outro, como fundamento da conclusão pelo cálculo do valor de uma eventual indemnização por referência ao valor venal do veículo deduzido do preço dos salvados [artigos 54º a 59º da contestação].
Ora, como é sabido, estando ainda o processo civil em grande medida na disponibilidade das partes, sobre estas continua a recair o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas [nº 1 do artigo 5º do Código de Processo Civil].
Além destes, deve o tribunal ter ainda em consideração os factos notórios, os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, e os factos que constituem complemento ou concretização de factos expressamente alegados pelas partes [nº 2 do artigo 5º do Código de Processo Civil].
Assim, mesmo sendo certo que o novo paradigma do processo civil tende para a flexibilização do princípio do dispositivo, conduzindo a um reforço dos poderes de gestão processual do juiz por forma a abarcar, no âmbito do apuramento e decisão sobre a matéria de facto, a possibilidade de tomar em consideração factualidade não alegada pelas partes nos respectivos articulados, não pode haver dúvida que, quanto aos factos essenciais [quer integradores da causa de pedir; quer fundamentadores das excepções], a actividade investigatória e decisória do tribunal continua a ser totalmente limitada pela alegação das partes – o artigo 5º do Código de Processo Civil mostra-se «claro no sentido de dele resultar um inequívoco não arredar do ónus de alegação das partes quanto aos factos essenciais (n.º 1), que constituam a causa de pedir em que se sustenta o pedido do autor (cfr. artigo 552.º, n.º1, alínea d), do CPC) ou em que se fundamentem as excepções invocadas pelo réu (cfr. artigo 572.º, alínea c), do CPC). Esta obrigatoriedade que impende sobre as partes de introduzir no processo os factos essenciais não se estende, porém, a outros factos pois, segundo o citado artigo 5.º, do CPC, a lei concede ao juiz a faculdade de, oficiosamente, introduzir no processo quer os factos instrumentais (n.º 2, alínea a)), quer os complementares e concretizadores (n.º 2, alínea b)) que resultem da produção de prova e, bem assim, os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (n.º 2, alínea c)). É, pois, nesta diferenciação de categorização de factos (essenciais, instrumentais, complementares ou concretizadores e notórios) que se circunscreve o âmbito do poder de gestão material do juiz, sendo que, apenas relativamente aos primeiros – os essenciais (que, sublinhamos, quanto ao autor, constituem e individualizam a causa de pedir; quanto ao réu, fundamentam as excepções invocadas), a lei fez permanecer o princípio do dispositivo na sua plenitude, fazendo recair sobre as partes um dever de alegação sob pena de preclusão» [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 2023, processo nº 1205/19.6T8VCD.P1.S1, disponível em www.dgsi.jstj.pt/].
Afigura-se claro que a inviabilidade da reparação de um veículo por se mostrarem comprometidas as condições de segurança da sua circulação absolutamente nada tem que ver com o elevado custo dessa mesma reparação ou com o custo de substituição do veículo – ou seja, a matéria de facto vertida neste ponto 43- não foi alegada pelas partes, e não constitui [na medida em que apenas este se dirige ao preenchimento da hipótese do 2º segmento do nº 1 do artigo 566º do Código Civil] facto instrumental, complemento ou concretização de um qualquer outro efectivamente alegado, nem, muito menos, facto notório.
Do que linearmente resulta que este ponto 43- simplesmente deve ser eliminado.

O ponto 44- dos factos provados
Está aqui em causa a demonstração do valor do veículo de matrícula ..-CT-.. que o seu proprietário razoavelmente poderia esperar obter caso, antes do acidente, o tivesse vendido a terceiro.
Como se referiu, o tribunal a quo fixou-o em pouco mais de € 9.500,00, fundando o seu juízo ainda no depoimento da testemunha GG.
O recorrente ataca a credibilidade deste meio de prova, e considera que o mesmo é insuficiente como fundamento da demonstração do facto em questão porque, na sua perspectiva, a testemunha em causa mentiu ao tribunal quanto à possibilidade de reparação do veículo e à (im)possibilidade de obter informação, bem como quanto ao número de quilómetros por aquele percorridos à data do acidente.
E daqui parte para defender um non liquet quanto ao valor venal da sua viatura.
Com todo o devido respeito, não lhe assiste razão.
Em primeiro lugar, não é verdade que a testemunha GG tenha alterado o seu depoimento quanto à viabilidade da reparação da viatura – aceitando que podia ser tentada a reparação, sempre manteve a posição de não ser razoavelmente possível esperar que colocasse o veículo nas mesmas condições que possuía, designadamente de segurança, anteriormente ao acidente [basta ouvir o declarado para o constatar].
E a testemunha limitou-se a exprimir a sua avaliação sobre uma determinada realidade, não um juízo de facto.
Ora, dificilmente se compreende que um juízo de valor possa configurar uma mentira.
Concretamente quanto ao valor venal do veículo, é preciso não perder de vista que se tratava de uma viatura com cerca de 10 anos.
Segundo o que se considera razoável e normal esperar, a definição do valor de um veículo automóvel com cerca de 10 anos não varia grandemente em função da quilometragem que apresenta.
Como referiu a testemunha GG, e com o que se concorda, poderá assistir-se a uma (des)valorização de € 1.000,00 consoante o veículo apresente uma quilometragem irrazoavelmente alta ou baixa.
E o razoável, neste tipo de veículo, como também declarou a mesma testemunha GG, será que anualmente em média percorra entre 20.000 e 30.000 kms, tendo sido com base neste pressuposto que a referida testemunha efectuou a sua avaliação.
Ora, dos autos consta documento [concretamente o documento nº 6 apresentado pelo próprio autor com o seu requerimento de 13 de Julho de 2021] que regista 178 731 kms percorridos pelo veículo de matrícula ..-CT-.. a 01 de Fevereiro de 2016, ou seja, mais de 1 ano e 10 meses antes do acidente – do que facilmente se retira o acerto da pressuposição tomada pela testemunha como base da sua avaliação.
Pelo que não se vislumbra reparo a fazer a tal avaliação, e, consequentemente, à sua utilização como meio de prova relevante no processo.
Nesta parte improcede o recurso.

O défice funcional permanente que o autor apresenta
O relatório pericial elaborado nos autos [junto ao processo a 24 de Maio de 2023, referência nº 35731451] considerou que o autor se apresenta diminuído por força de braquialgia [que enquadrou no código Mf1202 do anexo II da TNI aprovada pelo Decreto-Lei nº 352/07, de 23 de Outubro] e de subluxação esterno-clavicular [que enquadrou no código Mf1205], valorizando as duas lesões num total de 2 pontos.
O parecer médico apresentado pelo autor confirma que este apresenta as lesões susceptíveis de enquadramento nos códigos Mf1202 e Mf1205 da TNI, mas acrescenta uma outra, decorrente de dores inter-costais subsequentes à fractura dos arcos costais, que enquadra no código Mf1401; e efectua diversa quantificação, valorizando a primeira lesão em 3 pontos, a segunda em 2 pontos e a terceira em 3 pontos.
Tanto a perícia médica realizada no processo [artigo 389º do Código Civil] como o relatório/parecer apresentado pelo autor estão sujeitos à livre apreciação pelo tribunal [primeira parte do nº 5 do artigo 607º do Código de Processo Civil].
No confronto entre as duas avaliações não se vislumbra qualquer motivo para conferir especial prevalência a qualquer delas [afigurando-se ao caso irrelevante que a Srª. perita que elaborou o relatório pericial não possua mínima ligação a uma das partes, ao contrário do que sucede com o médico que elaborou o relatório/parecer junto pelo autor, que foi por este expressamente procurado para lhe prestar um serviço, seguramente sendo por isso remunerado].
Apenas sucede que, tratando-se de avaliações divergentes e não harmonizáveis sobre matéria cuja apreciação requer conhecimentos especiais que o julgador não possui, e não se vislumbrando motivo especial para pôr em causa algum dos juízos feitos, sobre a questão gera-se dúvida insanável que deve ser resolvida contra a parte onerada com o respectivo ónus da prova – e, obviamente recaindo sobre o autor o ónus de demonstrar os factos relevantes à caracterização do défice funcional que o acidente lhe causou, a dúvida insanável sobre essas concretas circunstâncias tem de ser resolvida contra si.
Logo, não se vê que os meios de prova produzidos no processo imponham decisão diversa da proferida, também nesta parte.

C)
a.
Com todo o devido respeito, a confusão do recorrente quanto a este ponto afigura-se notória.
Mas vejamos.
Em primeiro lugar assentamos que, como decorre da matéria de facto provada, simplesmente desconhecemos o facto que verdadeiramente causou o embate entre os 2 veículos – ou seja, não foi possível apurar se a conduta culposa de qualquer dos condutores foi causal ou sequer concausal do acidente.
E não está demonstrada a existência de uma qualquer relação de comissão entre a proprietária do veículo de matrícula ..-EZ-.. e a condutora do mesmo no momento do acidente [matéria exclusivamente alegada pela autora no âmbito do processo apenso] – aliás, o tribunal a quo verteu essa falta de demonstração no ponto e) do elenco dos factos provados [de natureza algo conclusiva, concede-se].
Ora, conforme assento tirado pelo pleno das secções cíveis do STJ de 30 de Abril de 1996 [publicado no Diário da República, 1ª série, de 24 de Junho de 1996], hoje com a força de uniformização de jurisprudência, «O dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se alegue e prove factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500.º, n.º 1, do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo».
Daí que, conforme jurisprudência absolutamente pacífica dos nossos tribunais superiores, «para o estabelecimento da presunção legal de culpa, prevista no art.503 nº3 (1ª parte) CC, impõe-se demonstrar a direcção efectiva do veículo e a relação de comissão entre o titular dessa direcção efectiva e o condutor. A condução por conta de outrem só por si não pressupõe uma relação de comissão, nos termos do art.500 nº1 CC, pois esta não se presume, não podendo resultar da propriedade do veículo uma segunda presunção no sentido de ser comissário do dono quem quer que conduza o veículo, devendo ser alegados e provados factos que tipifiquem essa comissão» [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04 de Junho de 2024, processo nº 1625/19.6T8CBR.C1.S1, disponível em https://juris.stj.pt/1625%2F19.6T8CBR.C1.S1/1LR8BU0zvm650FrLynhwnSpehg?search=ifMEPzDcwB-7BNz4Ap8].
Portanto, manifestamente não resultam demonstrados factos que permitam concluir pela actuação da condutora do veículo automóvel de matrícula ..-EZ-.. no âmbito de uma relação de comissão, e mesmo a genérica e conclusiva referência a essa realidade vertida nos artigos 30º e 31º da petição inicial apresentada pela autora “B... – Companhia de Seguros, SA”, no âmbito da acção apensa, foi pelo tribunal a quo vertida no elenco dos factos não provados.
Do que resulta que, não se tendo apurada actuação culposa de qualquer dos condutores, culpa efectiva ou presumida, e estando em causa um embate entre veículos automóveis, sempre haverá lugar à aplicação das regras da responsabilidade pelo risco, como nos diz o nº 1 do artigo 503º do Código Civil, e consequentemente, das normas vertidas nos nº 1 e 2 do artigo 506º do Código Civil [se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e não se apurar culpa de qualquer dos condutores, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos, presumindo-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos] – que foi precisamente o que o tribunal a quo fez [veja-se fls 17 e 18 da sentença recorrida].
Ou seja, o afirmado pelo recorrente na conclusão 4ª do seu recurso [com o seguinte teor literal: A sentença não aplicou corretamente o regime da Responsabilidade pelo Risco, previsto no art. 506.º do Código Civil, ao não reconhecer que o veículo sinistrante, propriedade de um comitente, era conduzido por uma comissária, agindo no interesse e sob a direção desse comitente, impondo-se a Responsabilização objetiva da Ré], mais do que não corresponder à verdade [porque o regime da responsabilidade pelo risco foi aplicado], é contraditório nos seus próprios termos [já que, a reconhecer-se a actuação da condutora do veículo de matrícula ..-EZ-.. no âmbito de uma relação de comissão, nunca haveria lugar à aplicação das regras da responsabilidade pelo risco].
Também aqui improcede o recurso.

b.
Não havendo motivo para alterar o ponto 31- da matéria de facto provada, não há qualquer dúvida que o cálculo da indemnização devida pelos danos decorrentes das lesões físicas sofridas pelo autor deve ser realizado tendo por base o pressuposto de o autor ter ficado afectado de um défice funcional permanente de 2 pontos na sua integridade físico-psíquica - como, de facto, parece claro que o tribunal a quo considerou, não obstante ter perspectivado estas lesões exclusivamente no plano dos danos não patrimoniais [cfr fls 27 da sentença recorrida].
Seja como for, uma coisa é certa – pelos motivos já acima referidos quando da apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não há que aqui ter em conta o relatório/parecer médico apresentado pelo autor já em fase de instrução.
Também nesta parte improcede o recurso.

c.
O tribunal a quo partiu para a definição do valor da indemnização devida ao autor por danos patrimoniais sofridos pressupondo a inviabilidade da reparação do veículo de matrícula ..-CT-.. – o que, como se disse, é matéria que não se inclui no objecto do processo, não podendo nem devendo ser aqui considerada.
O autor parece defender que a notória desproporção entre o valor patrimonial do veículo à data do acidente [€ 9.631,50 – ponto 44- da matéria de facto provada] e o valor da reparação dos danos que o sinistro lhe causou [€ 28.357,91] não deve constituir obstáculo a que a reparação se realize.
É evidente que a regra aqui a aplicar é a enunciada no nº 3 do artigo 566º do Código Civil – a obrigação de indemnização por princípio passa pela reconstituição natural, independentemente do seu custo, a não ser que a reparação não seja possível, não repare integralmente os danos, ou se mostre excessivamente onerosa para o devedor.
Parece claro que o simples facto de o custo da reparação ser meramente superior ao valor patrimonial do veículo sinistrado não preenche o conceito «onerosidade excessiva» - esta tem sido, desde há anos, a jurisprudência pacífica do nosso Supremo Tribunal de Justiça [cfr, por todos, neste sentido, o decidido pelo STJ no seu recentíssimo acórdão de 27 de Fevereiro de 2025, processo nº 743/22.8T8PFR.P1.SI, disponível em https://juris.stj.pt/743%2F22.8T8PFR.P1.SI/-VRDdNQtRBVTKBAhRXxFj1fm7KQ?search=rP0vesX5nOCtcgmeieg, designadamente as extensas referências doutrinais e jurisprudenciais aí constantes], afirmando a necessidade de referir aquele conceito indeterminado, não apenas «(…) em função da diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas também no confronto entre aquele preço e o valor patrimonial do veículo, como o valor de uso que dele retira o seu proprietário, sendo que a um insignificante valor comercial daquele pode corresponder a satisfação, em elevado grau, das necessidades do seu proprietário” [acórdão do STJ de 31-05-2016, proc. n.º 741/03.0TBMMN.E1.S1, disponível em www.dgsi.jstj.pt].
A pedra de toque deve constituir a possibilidade de substituição do veículo por um outro de iguais características, já que, como é sabido, no mercado de objectos usados [designadamente veículos automóveis] normal é que o preço por que pelo consumidor é possível a venda seja inferior ao corrente preço de compra – e por isso, em caso de dano, «deve garantir-se ao lesado a reconstituição da situação que existiria não fosse o acidente, o que operará, em regra, por via da reparação do seu veículo ou, caso a reparação se afigure excessivamente onerosa, por via da atribuição de indemnização a fixar no montante equivalente ao valor da substituição do veículo. A reparação do veículo será excessivamente onerosa se se concluir que o valor da reparação é excessivo face ao valor de substituição do veículo sinistrado e que o valor de substituição é mais do que suficiente para repor a situação que existia antes do acidente, o que ocorrerá sempre que, com aquele valor, seja possível adquirir veículo com utilidade e características idênticas».
E, como será evidente, «(…) é ao devedor (obrigado à restauração natural) que compete demonstrar, através de elementos objetivos, que existe uma manifesta desproporção entre o interesse do lesado (à reconstituição da sua situação patrimonial) e o custo da reparação. Não basta uma simples onerosidade (uma maior ou menor poupança da seguradora), sendo essencial demonstrar que a reparação do veículo impõe ao devedor um encargo desmedido e desajustado, face aos limites impostos pela boa-fé. Tal sucederá, por exemplo, sempre que se conclua que o lesado lograria adquirir no mercado um veículo idêntico ao sinistrado com recurso a uma indemnização calculada com recurso ao critério do valor de substituição e que o valor da reparação é manifestamente desproporcional face a esse valor de substituição» [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 2025, acima citado].
No caso dos autos, o tribunal a quo julgou demonstrado, apenas, que o valor de venda do veículo automóvel pertença do autor, na data do acidente, ascendia a € 9 631,50 [ponto 44- da matéria de facto provada].
Este facto tem a sua origem no artigo 57º da contestação apresentada neste processo.
Mas a ré, nesse artigo 57º, alegou um pouco mais – precisamente afirmou que, disponibilizando-se o valor de € 9.631,50 ao autor, seria a este possível adquirir um veículo com as características do seu, o que, no caso, será determinante para aferir, por um lado, da excessiva onerosidade da reparação, por outro, do valor que, no confronto entre o valor venal do veículo e o custo orçado para a reparação, é adequado a reconstituir a posição patrimonial do autor.
Lamentavelmente, o tribunal a quo omitiu qualquer referência a esta realidade, não se vislumbrando no processos elementos suficientes que permitam a aplicação do princípio consagrado no artigo 665º do Código de Processo Civil.
O Tribunal da Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, quando considere indispensável a ampliação desta [alínea c) do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil].
E, como se disse, afigura-se no caso imprescindível determinar o valor de substituição do veículo de matrícula ..-CT-.. à data do acidente [já que o atraso na disponibilização da quantia necessária a essa substituição constituirá prejuízo indemnizável no âmbito da mora], definindo-se se, como a ré afirma no artigo 57º da sua contestação, com € 9 631,50 ao autor seria possível adquirir um veículo de características idênticas ao seu, ou, na negativa, qual o valor a isso necessário, obviamente com o limite de € 28.357,91.
Esta anulação, obviamente, por lei expressa, não afecta o remanescente da decisão recorrida [alínea c) do nº 3 do artigo 662º do Código de Processo Civil], designadamente os termos da matéria de facto acima fixada.
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Sumário – nº 7 do artigo 663º do Código de Processo Civil:
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III - Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 3ª secção deste Tribunal da Relação do Porto em
I- Julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, determinando-se a eliminação do ponto 43- da matéria de facto provada;
II- Com base no disposto na alínea c) do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil, e com o âmbito definido pela alínea c) do nº 3 do mesmo artigo 662º, decretar a anulação da decisão proferida quanto à matéria de facto, por forma a apurar-se o valor adequado a permitir ao autor, na data do acidente, adquirir uma viatura de características idênticas ao veículo de matrícula ..-CT-.., com o mínimo de € 9 631,50 e o máximo de € 28 357,91, no âmbito da concretização do conceito «excessiva onerosidade» consagrado no nº 1 do artigo 566º do Código Civil, a efectuar pelo tribunal recorrido.
Custas do recurso pela parte vencida a final – artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.

Porto, 10/4/2025
António Carneiro da Silva
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira