Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
635/10.3TYVNG-AF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PINTO DOS SANTOS
Descritores: COMPRA DE IMÓVEL EM INSOLVÊNCIA
DIREITO À RESTITUIÇÃO
ENTREGA DO IMÓVEL
Nº do Documento: RP20250408635/10.3TYVNG-AF.P1
Data do Acordão: 04/08/2025
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O adquirente de um imóvel, por compra verificada em processo de insolvência [no respetivo apenso de liquidação], pode, com base no respetivo título de transmissão, requerer e obter aí [nesse processo] a entrega do mesmo, a tal não obstando o facto de aquele já não pertencer à massa insolvente.
II - O direito à restituição [ou à separação] previsto no art. 146º nºs 1 e 2, 1ª parte, do CIRE só pode ser exercido enquanto puder ser atendido no processo de insolvência, ou seja, enquanto o bem objeto do pedido de restituição não for liquidado no processo de insolvência.
III - Não há motivo para suspender a entrega do imóvel ao adquirente quando, como é o caso, tal entrega não inviabiliza o direito de propriedade que, porventura, vier a ser reconhecido aos recorrentes na ação de reivindicação que, entretanto, intentaram [que se encontra na sua fase inicial], nem a obtenção da respetiva entrega, ainda que o adquirente a transmita a um terceiro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 635/10.3TYVNG-AF.P1 – 2ª Secção

Relator: Des. Pinto dos Santos
Adjuntos: Des. Raquel Lima
Des. Rui Moreira






Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:



1. Relatório:

No apenso de liquidação relativa à insolvência de A..., SA, a credora habilitada B..., LDA., apresentou, em 19.04.2024, o seguinte requerimento:
«1. Em 29 de Setembro de 2022, por escritura de compra e venda lavrada no Cartório Notarial de AA e junta aos autos, a B..., Lda adquiriu nos autos à Massa Insolvente de A..., SA, entre outras, a fração “AX” do prédio descrito sob o nº ...03, freguesia ..., na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira (verba 326 do auto de apreensão).
2. A aquisição a favor da B..., encontra-se devidamente registada na Conservatória do Registo Predial pela Ap. ...82 de 2022/09/29, conforme doc 1 ora junto.
3. A aquisição encontra-se também averbada a favor da B..., na matriz predial, conforme doc 2 ora junto.
4. A referida fração encontra-se ocupada, não tendo a B... logrado obter a sua posse e as respetivas chaves, até à data.
5. A B... desconhece a identificação dos ocupantes, a fim de comunicar ao Tribunal para efeitos da sua notificação.
Face ao exposto e nos termos do disposto no artº 17º nº 1 CIRE e 828º CPC requer:
- a entrega judicial da fração adquirida nos autos, atendendo a que o Sr Administrador de Insolvência também não é possuidor das chaves,
- requerendo desde já que seja concedido ao Sr Administrador de Insolvência o auxílio da força pública para o efeito.».

Notificado para o efeito, informou o Sr. Administrador da Insolvência [abreviadamente, AI] que:
«(…) Sobre a (já vendida) fração AX do prédio descrito sob o nº ...03 da freguesia ... (verba 326 do auto de apreensão)
Recordando o que constava já do plano de insolvência (liquidação) aprovado e homologado sobre a situação desta fração: «estará supostamente ocupada por BB (não reclamante) sem título que legitime a sua ocupação (mera detenção - situação que ainda não se conseguiu inequivocamente apurar), sendo que este terá sido notificado pela A... para outorga de escritura e nunca compareceu».
Sendo ainda que, tal situação de ocupação foi devidamente publicitada no anúncio de venda (também) deste bem imóvel, que a credora proponente e adquirente B... conhecia, tendo aceitado adquirir e adquirido (também) esta fração no estado físico e jurídico em que se encontrava.
O ora exponente não tem qualquer outra informação adicional sobre o suposto ocupante deste imóvel para além do nome já anteriormente informado nos autos e agora supra relembrado, não lhe tendo por isso enviado qualquer interpelação para entrega,
(…).».
Em 26.06.2024, foi proferido o seguinte despacho:
«Notifique BB, na Rua ..., Urbanização ..., ... ..., para, em 10 dias, comprovar neste processo que desocupou esse imóvel e entregou as chaves do mesmo à B..., Lda. que adquiriu esse imóvel neste processo, com a advertência que não o fazendo se determinará a entrega coerciva desse imóvel com recurso a arrombamento.».

Em 02.07.2024, os alegados ocupantes da referida fração, BB e mulher, CC, apresentaram a seguinte resposta:
«Somos a informar ao Sr. Dr Juiz que habitamos a fração ‘AX’ do art. ...87, de ..., CONCELHO ..., em virtude de o ter adquirido por contrato de promessa de compra e venda mediante o pagamento do preço, com entrega da fração e respetivas chaves. Estamos em posse, uso e fruição da mesma, nela habitando, tendo inclusive ao longo dos anos realizado obras a nossas expensas, realizamos as obras no interior da nossa fração para que a mesma estivesse como está. Mais comunico que estamos no posse da nossa fração há mais de vinte anos e todas as gentes sabem que somos os verdadeiros donos da fração. O vendedora e construtora do apartamento (C...) nunca fez a escritura, e segundo consta os mesmos não são localizados.
Ora, como somos os efetivos donos da fração não temos que sair daquilo que é nosso. (…)».

Em 04.07.2024, foi proferido o seguinte despacho:
«Por despacho de 26/6/2024 foi determinada a notificação de BB, na Rua ..., Urbanização ..., ... ..., para, em 10 dias, comprovar neste processo que desocupou esse imóvel e entregou as chaves do mesmo à B..., Lda. que adquiriu esse imóvel neste processo, com a advertência que não o fazendo se determinará a entrega coerciva desse imóvel com recurso a arrombamento.
O mesmo, devidamente notificado, veio aos autos dizer que habita esse imóvel em virtude de o ter adquirido por contrato-promessa de compra e venda, com entrega das chaves, estando na sua posse há mais de 20 anos, pelo que como é dono do imóvel não tem que sair do que é seu.
Ora, resulta dos presentes autos que o imóvel em questão foi apreendido para a massa insolvente e foi já vendido à B..., Lda., sendo certo que a propriedade do imóvel não se transmite pelo facto de ter sido outorgado qualquer contrato-promessa de compra e venda.
Assim, determina-se que seja novamente notificado BB para, em 10 dias, comprovar neste processo que desocupou esse imóvel e entregou as chaves do mesmo à B..., Lda. que adquiriu esse imóvel neste processo, com a advertência que não o fazendo se determinará a entrega coerciva desse imóvel com recurso a arrombamento, devendo ser-lhe remetida cópia do presente despacho.».

Em 31.07.2024, os referidos BB e mulher, CC, apresentaram novo requerimento:
«1º Como já foi comunicado aos autos os aqui intervenientes são donos únicos e exclusivos da sua habitação e identificado como sua morada supra.
2º Os intervenientes comunicaram ainda que não abandonam a sua casa pelos motivos também indicados.
3º Sucede que, nesta data os intervenientes já propuseram junto do Tribunal Judicial Da Comarca De Aveiro - Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira - ..., AÇÃO DE PROCEDIMENTO CAUTELAR com o n.º de processo ... e cujos pedidos são, entre outos, os seguintes:
A) RECONHECIMENTO DOS AQUI INTERVENIENTES COMO ÚNICOS E EXCLUSIVOS PROPRIETÁRIOS DA FRAÇÃO “AX” COM O LUGAR DE GARAGEM TAMBÉM “AX”, INSCRITO NA MATIZ FISCAL SOB O ART. ...87º- “AX”, SITA URBANIZAÇÃO ..., ... ..., CONCELHO ...;
B) DETERMINAR A SUSPENSÃO DO ARROBAMENTO INDICADO NO DESPACHO REGISTADO SOB A REFERÊNCIA 461681389 E PROFERIDO PELO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO – JUÍZO DE COMÉRCIO DE VILA NOVA DE GAIA - JUIZ 2, SOB O PROC Nº 635/10.3TYVNG-AC, ATÉ À DECISÃO FINAL PROFERIDA E TRANSITADA, NO PROCESSO PRINCIPAL A PROPOR;
4º Ora, entendem os aqui Intervenientes que a execução do despacho acima identificado, sem que esteja definido e dirimido o litígio em questão, e cuja resolução já se encontra em andamento junto dos tribunais judiciais, não poderá ser determinada, já que, a operar-se, implicará graves prejuízos e irreparáveis para os aqui intervenientes.
Termos em que, atendendo a que a questão a dirimir no procedimento cautelar indicado contende de forma direta e contundente com a questão em litígio neste apenso e que diretamente afeta os intervenientes acidentais, encontram-se preenchidos os pressupostos legais para que seja determinada a suspensão da execução dos despachos com a REFERÊNCIA 461681389 e ref: 461968817 proferido pelo Tribunal de Comércio, nos termos do art 272º e 232º do Código Processo Civil, o que desde já se requer.
Espera deferimento.».

A credora adquirente da fração, o AI e a Comissão de Credores foram notificados para se pronunciarem sobre o requerimento acabado de transcrever.

A B..., LDA. apresentou, em 23.09.2024, a seguinte resposta:
«• a B... adquiriu por Escritura Pública junta aos autos, em 29-9-2022, a fração ocupada pelos Requerentes (fração AX do prédio descrito sob o nº ...03, freguesia ...) nos presentes autos de insolvência da sociedade A..., SA – Doc 1.
• o registo de aquisição da propriedade da fração foi registado na Conservatória do Registo Predial, a favor da B... em 2022, pela Ap ...82 de 2022/09/29 e também averbado nas Finanças a seu favor – Docs 2 e 2-a – (descrição predial e caderneta predial);
• anteriormente à aquisição pela B..., a fração estava hipotecada à B... (Ap ...7 de 1999/10/26, Ap ...1 de 1999/09/20 e Ap ...3 de 1999/07/15) e era propriedade da A... (registada pela ap. ...1 de 2006/07/17), tendo sido objeto de apreensão a favor da Massa Insolvente da A... e registada a respetiva apreensão a favor da Massa Insolvente pela Ap ...73 de 2012/10/24, no ano de 2012 - Docs 3, 4 e 4-a – (auto de apreensão e registo predial);
Por requerimento junto aos autos pela B... em 5-8-2024, esta informou que foi citada para a referida providência cautelar nº ..., tendo apresentado Oposição à mesma em 1-8-2024.
De facto, os Requerentes instauraram a referida providencia cautelar, reagindo a despachos proferidos no processo de insolvência da A..., no qual a B... adquiriu o imóvel ocupado pelos mesmos:
(…)
Sobre este requerimento recaiu o despacho proferido nos presentes autos em 4-7-2024 (transitado em julgado) ordenando que fosse novamente notificado o ora Requerente para, em 10 dias comprovar no processo que desocupou o imóvel e entregou as respetivas chaves à B...:
(…)
Face ao exposto, não existe fundamento legal para a requerida suspensão dos despachos proferidos nos autos e transitados em julgado.
De qualquer modo, a B... não se opõe a que a desocupação seja diferida, com um prazo adicional a fixar pelo Tribunal (admitindo-se como razoável 60 dias), a somar aos 10 dias anteriormente fixados.».

O AI também apresentou resposta, em 25.09.2024, nos seguintes termos:
«Sobre a requerida suspensão de entrega da (já vendida) fração AX do prédio descrito sob o nº ...03 da freguesia ... (verba 326 do auto de apreensão)
A Massa Insolvente não é (nem poderia ser) parte no procedimento cautelar a que os ocupantes deste imóvel fazem referência no requerimento que apresentaram neste apenso em 31/07/2024,
Imóvel esse que foi adquirido neste processo de insolvência pela (também) credora B..., que será sua legítima proprietária e que como tal consta do registo, naturalmente salvo decisão judicial transitada em sentido diverso, que não atualmente existe.
Pelo que e embora os ocupantes desta fração se arroguem proprietários dela, nenhuma prova fizeram nestes autos - até porque parece que não a têm - dessa alegada qualidade,
Sendo certo ainda que, não recorreram dos despachos judiciais anteriormente proferidos neste apenso,
Tendo aliás alguma dificuldade em compreender-se como poderá o Tribunal de Santa Maria Feira «determinar a suspensão do arrombamento indicado no despacho» que foi proferido por este Tribunal - como pretendem os referidos ocupantes com a providência cautelar que ali apresentam.
Assim e ainda que com a devida equidistância - pois, recorda-se, esse bem imóvel foi vendido nestes autos no estado físico e jurídico em que se encontrava, que a credora proponente e adquirente B... conhecia e aceitou,
O AI considera então que, a não ser que este Tribunal entenda estar pendente questão / causa prejudicial, não se vislumbra fundamento para a requerida suspensão de entrega do imóvel à B...,
Sem prejuízo de nada ter a opor ao deferimento de desocupação por mais sessenta dias nos termos indicados pela própria B... no seu requerimento de 23/09/2024 (refª 49921483).».

Em 07.10.2024, os identificados BB e mulher insistiram pela suspensão dos despachos determinativos da entrega da referida fração à adquirente B..., LDA., voltando a afirmar que:
«(…) bem sabe a Credora (que) os aqui interessados ocupam/moram/usufruem/cuidam/mantém tal fração há mais de vinte e dois anos, de forma pacifica, à vista de todos e ininterruptamente o que constitui desde logo uma aquisição originária, (…) tal aquisição originária sobrepõe-se à aquisição da Credora, (…) não é o despacho que ordena a desocupação do imóvel, que confere direitos de propriedade à Credora, (…) cumpre dirimir de forma ajuizada e plena o litígio que opõe a Credora aos aqui Intervenientes (…), tal questão não se resolverá no âmbito de uns autos de insolvência já após liquidação, mas sim em ação própria com todos os meios de defesa e prova a que as partes têm direito, (…) foi já intentada a respetiva ação declarativa comum, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – Juiz ... com o n.º de processo ....».

Finalmente, a 09.10.2024, foi proferido o seguinte despacho:
«Inexiste fundamento legal para que se suspenda a entrega coerciva do imóvel já vendido nestes autos.
Aderimos, na integra, aos argumentos dos credores e do Sr AI, sendo que a alegada providência cautelar intentada noutro tribunal – que até ao momento não respondeu nem nos indicou o estado do mesmo – não faz caso julgado relativamente à massa insolvente.
Alega-se também que já há sentença de absolvição do pedido, mas nada foi junto.
Independentemente disso, qualquer ação para defesa de direitos teria de ser intentada por apenso a estes autos e não o foi.
Por conseguinte, determino que se entregue o imóvel à compradora, livre e devoluto de pessoas e bens, recorrendo aos meios coercivos necessários para tal, com recurso a força policial e arrombamento, por aplicação subsidiária das regras do CPC, na parte do processo executivo.
Notifique.».

Irresignados com este despacho, os referidos BB e mulher, CC, interpuseram o presente recurso de apelação [que foi admitido com subida imediata, em separado e efeito suspensivo], cujas alegações culminaram com as seguintes conclusões:
«1.º As presentes alegações de recurso versam sobre o despacho (ref.ª 464235050 de 09/10/2024) que indeferiu o peticionado pedido de suspensão de entrega de bem imóvel, considerando inexistir fundamento legal para que se suspenda a entrega coerciva do imóvel já vendido nestes autos.
2.º Ora, entendem os Recorrentes que este Tribunal ‘a quo’ efetua uma errada interpretação e aplicação das normas legais que se ajustam ao presente caso.
3.º Os Recorrentes foram notificados 28/06/2024 pelo Tribunal a quo (ref.ª 461681389), de um despacho no qual intimava os mesmos a desocupar a sua habitação e entregar as chaves da mesma no prazo de 10 dias, o prédio sito no BLOCO 2/BLOCO C, da Rua .../Rua ... da Urbanização ..., freguesia ..., fração AX e correspondente LUGAR ..., inscrito na matriz fiscal sob o art. ...87–urbano de ... e no predial sob o nº ...03.
4.º Os Recorrentes por mote próprio, através de carta a 02/07/2024 (ref.ª 39505038), deram a conhecer a sua surpresa, uma vez que, desconheciam por completo que a sua habitação se encontrava apreendida numa massa insolvente, desconhecendo por completo a existência de tais autos, mais informando os autos que viviam em tal habitação há mais de 22 anos, e que tal habitação era sua.
5.º Os Recorrentes intentaram ainda providência cautelar, no Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 3 - Proc. n.º ... (Tribunal Judicial da Comarca do Aveiro) (tribunal do foro do bem), na qual peticionavam além do reconhecimento provisório da propriedade dos Recorrentes, a suspensão da execução da entrega do imóvel.
6.º Destes factos deram conhecimento ao Tribunal a quo a 31/07/2024 com a ref.ª 39770335, requerendo nestes autos a suspensão da entrega do bem, até decisão.
7.º Mais, intentaram a competente ação principal, ação declarativa em processo comum, por forma a ver o seu direito de propriedade reconhecido de forma definitiva, ação que corre termos no Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 3 – Proc. n.º ... (Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro), e também desse facto deram conhecimento ao Tribunal a quo requerendo a suspensão da entrega do bem até decisão definitiva.
8.º Tais ações foram intentadas no tribunal do foro do bem em causa, já que, no momento em que se encontram os autos de insolvência, não havia como lançar mão do art. 146º do CIRE, isto porque,
9.º Conforme demonstram os autos, e bem sabe o Tribunal ‘a quo’ e a “compradora”, é que apenas com a notificação do despacho com a ref.ª 461681389 tomaram os Recorrentes conhecimento de que a propriedade formal do seu imóvel teria sido transmitida para a B... Lda..
10.º Até então, nunca os Recorrentes foram notificados de nada dos presentes autos, nunca, nunca foi notificado no processo de insolvência para reclamar os seus direitos sobre o bem em causa nos presentes autos.
11.º Ainda que, resulte claro dos presentes autos, compulsados os mesmos, que a B... LDA., terá comprado a fração já em 29/09/2022, há mais de dois anos, e da escritura resulta que a mesma se encontrava ocupada e habitada, conforme escritura que se encontra nestes autos a 17/11/2022 com a ref.ª 33903527, documento n.º 65.
12.º Ou seja, que há muito que tal imóvel que o mesmo já não se encontra na esfera jurídica da massa insolvente, pelo que, aos Recorrentes está já vedado o recurso ao mecanismo do art.º 146.º do Código de Insolvência.
13.º Ora, e salvo devido respeito, a partir do momento em que o imóvel não se encontra mais na esfera da massa insolvente, tendo sido vendido – há mais de dois anos, a ação de defesa dos direitos dos Recorrentes não tem de ser intentada nos autos de insolvência, mas sim numa ação declarativa de processo comum, fora do âmbito da insolvência.
14.º Pelo que, e ao contrário do entendimento do Tribunal ‘a quo’, não é fundamento de não suspensão da referida entrega do imóvel o facto de ação para a defesa dos direitos dos Recorrentes não ter sido intentada por apenso aos autos de insolvência, pois não tem de o ser.
15.º Por outro lado, também a decisão que surgir em tal ação, ao contrário do que refere o Tribunal ‘a quo’ faz caso julgado relativamente à massa insolvente, pois a provar-se a aquisição por usucapião dos Recorrentes, a mesma consubstancia uma aquisição originária que se sobrepõem à aquisição derivada da B... Lda.
16.º Acresce que, e relativamente aos argumentos dos credores e do Senhor Administrador de Insolvência, os Recorrentes desconhecem os mesmos porquanto não foram notificados de tal.
17.º Contudo, sempre se dirá que, se este Tribunal tinha dúvidas sobre o alcance da prova dos Recorrentes, poderia ter solicitado desde logo o acervo documental junto com a ação declarativa comum intentada aos Recorrentes
18.º Contudo, este Tribunal a quo não esperou sequer pela resposta que pretendia do Tribunal onde se encontrava intentada a providência cautelar, pelo que também não é fundamento para o indeferimento da peticionada suspensão.
19.º Por último, sempre se dirá que, há mais de dois anos que a venda do imóvel foi realizada nestes autos, pelo que, a entrega do bem imóvel, há muito que deixou de poder ser peticionada no âmbito dos autos de insolvência, pois com a compra de tais imóveis, a credora não tem nenhum outro crédito nestes autos, pelo que, materialmente, a liquidação para esta credora terminou seis meses após a compra que efetuou, tal qual, uma ação executiva que se extingue.
20.º Por outro lado, a discussão da propriedade em causa é essencial e deverá ser efetuada antes da entrega do bem, e uma vez que, a compradora B... Lda., sempre soube que o imóvel em questão estava ocupado e habitado, e assim sabia o estado em que comprava o mesmo, e durante dois anos após a aquisição nunca se preocuparam em saber quem habitava a fração e a que título.
21.º Pelo que, entendem os Recorrentes, que atendendo a tudo o exposto, tanto a providencia cautelar como a ação declarativa comum já identificadas, são sim causa prejudiciais que deverão ser decididas antes do deferimento da entrega do bem imóvel, sob pena de, não suspendendo tal decisão de entrega, causar prejuízos gravíssimos e irreparáveis aos Recorrentes que se vêm despejados do imóvel que habitam há mais de 22 anos e onde tem instalado o seu agregado familiar.
22.º Sendo certo que, a compradora B... Lda., sempre soube que o imóvel em questão estava ocupado e habitado, e assim sabia o estado em que comprava o mesmo, e durante dois anos após a aquisição nunca se preocuparam sem saber quem habitava a fração e a que título.
23.º E, por último, entendem os Recorrentes, que tendo a escritura sido realizada há mais de dois anos, não poderia a Compradora peticionar nestes destes autos a entrega do bem, por se encontrar esgotado o poder jurisdicional do Tribunal ‘a quo’, e deveria sim instaurar o competente requerimento executivo para entrega de coisa certa cujo processo segue forma única (artigos 550.º, n.º 4 e 859.º e sgs., ambos do CPC), porquanto o art. 150º do CIRE tem apenas aplicabilidade em fase de apreensão dos bens para a massa insolvente, e não após venda, nem se trata da casa de habitação do insolvente, mas sim dos Recorrentes – intervenientes acidentais.
24.º Por tudo o exposto, deverá tal decisão de não suspensão do Tribunal ‘a quo’ ser revogada, e substituída por outra, que decrete a suspensão da entrega do bem em causa, até decisão da ação declarativa comum que corre termos no Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 3 – Proc. n.º ... (Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro).
Assim, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou os artigos 70º, 91º, 272º, n.º1, 275º, 550.º, n.º 4, 827º, 839º, 861º, 840º, 841º, 859.º e sgs., ambos do CPC aplicáveis ex vi art. 17 do CIRE, e arts. 7º, 8º, 56º, 59º, 89º, 128º, n.º2, 141º, 142º, 144º e 146º, 149, n.º 1º, 150º, 156º, 158º, 160º, n.º1 e 2, 233º, 272º e 273º todos do CIRE, e artigo 1312 do Código Civil.
TERMOS EM QUE, DEVEM AS PRESENTES ALEGAÇÕES DE RECURSO SER RECEBIDAS, JULGADAS PROCEDENTES POR PROVADAS, E CONSEQUENTEMENTE SER A DECISÃO DO TRIBUNAL ‘A QUO’ REVOGADA, E SUBSTITUÍDA POR OUTRA, QUE DECRETE A SUSPENSÃO DA ENTREGA DO BEM EM CAUSA, ATÉ DECISÃO DA AÇÃO DECLARATIVA COMUM QUE CORRE TERMOS NO JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE SANTA MARIA DA FEIRA – JUIZ 3 – PROC. N.º ... (TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE AVEIRO).».

A credora adquirente da referida fração contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
* * *

2. Questão a apreciar e decidir:

Em atenção à delimitação constante das conclusões das alegações dos recorrentes – que fixam o thema decidendum deste recurso [arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 als. a) a c) do CPC] –, as questões a apreciar e decidir consistem em saber:
- Se a credora adquirente da fração em apreço podia requerer a entrega desta no âmbito destes autos de insolvência e, mais concretamente, no apenso da liquidação;
- Se os recorrentes deviam ter exercido o direito à restituição da fração nos termos estabelecidos na 1ª parte do nº 2 do art. 146º, com referência ao art. 148º do CIRE;
- E se deve suspender-se a entrega da fração em questão nos autos, até ser decidida a ação de reivindicação por estes intentada.
* * *

3. Factualidade a ter em conta:

Além da que decorre do relatório deste acórdão, importa, ainda, ter em conta a seguinte factualidade [que assenta no auto de apreensão do AI de 17.05.2012, junto ao apenso F (apreensão de bens) e certidão do registo predial que o acompanha, na informação do AI de 17.11.2022, constante do apenso AC (liquidação) e doc. 65, junto com essa informação e na certidão predial junta pela recorrida em 19.04.2024, constante do apenso AC]:
- A fração «AX» do prédio descrito sob o nº ...03, freguesia ..., na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira e inscrito na respetiva matriz sob o art. ...87, foi apreendida para a massa insolvente em 17.05.2012, integrando a verba nº 326 do auto de apreensão, estando esta apreensão registada a favor da Massa Insolvente pela Ap ...73 de 2012/10/24.
- Na mesma urbanização em que está integrada aquela fração – Urbanização ..., Rua ..., ... e Rua ..., ..., em ..., ..., foram apreendidas para a massa insolvente, além daquela, mais seis frações com as letras «A», «C», «F», «M», «T» e «U».
- Tal fração estava hipotecada à B... (Ap ...7 de 1999/10/26, Ap ...1 de 1999/09/20 e Ap ...3 de 1999/07/15) e era propriedade da insolvente A... (registada pela ap. ...1 de 2006/07/17).
- Em 29.09.2022, por escritura de compra e venda lavrada no Cartório Notarial de AA, a B..., Lda. adquiriu nos autos, à Massa Insolvente, além de outras, a referida fração «AX», estando esta aquisição registada a favor da adquirente na competente Conservatória do Registo Predial pela Ap. ...82 de 2022/09/29.
- Na escritura acabada de referir, a representante da adquirente B..., Lda. declarou que «recebeu neste ato as chaves dos imóveis, exceto no tocante à fração autónoma “AX”, pelo facto da mesma se encontrar ocupada e habitada, conforme é do conhecimento da sociedade adquirente».
* * *

4. Apreciação jurídica:

4.1. Se a credora adquirente da fração em apreço podia requerer a entrega desta no âmbito destes autos de insolvência e, mais concretamente, no apenso da liquidação.
Os recorrentes defendem, nas conclusões 19 e 23 das alegações, que, tendo a venda da fração em questão ocorrido há mais de dois anos, a credora que a adquiriu não podia peticionar a sua entrega nos autos de liquidação, «por se encontrar esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo» e que, por via disso, «deveria sim instaurar o competente requerimento executivo para entrega de coisa certa (…).».
Apesar de estarmos perante questão nova, na medida em que não foi invocada nos diversos requerimentos que os ora recorrentes apresentaram nos autos, descritos no ponto 1 (relatório) deste acórdão, importa, ainda assim, dela conhecer em virtude de, na sua génese, poder estar uma eventual nulidade processual, por erro no meio processual escolhido pela recorrida [ao requerer a entrega da fração nos autos de liquidação], que é de conhecimento oficioso, como decorre da conjugação do disposto nos arts. 193º nº 1, 196º, 608º parte final e 663º nº 2 do CPC.
Trata-se de questão que já foi apreciada por esta Relação [Acórdão da Relação do Porto de 20.11.2012, proc. 677/09.1TYVNG-F.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp], tal como dá conta a recorrida nas suas contra-alegações, pelo que, por concordarmos com a solução nele proclamada, seremos breves na sua apreciação.
Na origem de tal aresto esteve questão similar à presente: um credor adquiriu, no âmbito de processo de insolvência [e seus apensos] uma determinada fração autónoma, tendo sido lavrado o respetivo título de transmissão desta a seu favor; mais de 3 anos depois, esse adquirente, também no âmbito daquele processo [no apenso onde se tinha procedido à venda], requereu que fosse investido na posse daquela [ou seja, que a mesma lhe fosse efetiva e materialmente entregue]; a 1ª instância indeferiu a pretensão do adquirente com os argumentos de que a fração em causa já não pertencia à massa insolvente e que o tribunal [no âmbito do processo de insolvência e seus apensos] já não tinha «legitimidade para atuar», pelo que aquele teria de «lançar mão da ação e no tribunal competentes, para obter a restituição da fração».
O acórdão desta Relação a que estamos a reportar-nos revogou tal decisão com a seguinte fundamentação no segmento que para aqui releva [transcreve-se a parte mais significativa]:
“(…) é sabido que a venda executiva, independentemente da modalidade que revista, transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida (cfr. art.º 824.º, n.º 1, do Código Civil), pelo que o direito daquele se filia no direito deste, dependendo dele quer quanto à sua existência quer quanto à sua extensão.
Procedendo às necessárias adaptações, é evidente que aqui as funções do agente de execução são exercidas pelo Administrador da Insolvência, a quem compete proceder à apreensão, com arrombamento e auxílio da força pública, se necessário, nos termos do art.º 150.º, n.º 4, al. c), do CIRE, e subsequente entrega efetiva do imóvel apreendido; que, no lugar do exequente, surge o adquirente da fração, no caso o banco recorrente; e que, no lugar do executado, estaria a sociedade insolvente, a quem pertencia, antes da venda, a mesma fração, a qual se mostra ocupada por terceiros que se recusam entregá-la ao seu legítimo comprador.
Tratando-se de uma venda feita num apenso ao processo de insolvência, e no âmbito desse mesmo processo, cremos não haver dúvidas de que lhe são aplicáveis, nos termos supra referidos, as disposições do processo de execução.
Por isso, tem aqui inteira aplicação o disposto nos art.ºs 901.º e 930.º, ambos do CPC [atuais arts. 828º e 861º do CPC].
Assim, o credor adquirente, ora recorrente, podia requerer e obter a entrega da fração que comprou, no próprio processo de apreensão de bens apenso à insolvência, com base no respetivo título de transmissão.
A tal não obsta o facto de a fração já não pertencer à massa insolvente, como é por demais evidente, pois a venda implica a transferência do direito de propriedade sobre a mesma para o adquirente e foi feita no âmbito do processo de insolvência, onde foi requerida a respetiva entrega, mantendo o tribunal recorrido a competência para apreciação dessa pretensão e prolação da correspondente decisão [cfr. art.ºs 7.º do CIRE e 89.º, n.º 1. al. a) e n.º 3, da LOFTJ (Lei n.º 3/99, de 13/1, na redação dada pelo art.º 14.º do Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17/1) [art. 128º nºs 1 al. a) e 3 da atual LOSJ, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26.08]].
Deste modo, não podia aquele tribunal ter remetido o adquirente para os meios comuns, como remeteu, antes devendo ter apreciado tal requerimento (…).” [no mesmo sentido decidiu o Acórdão da Relação de Guimarães de 13.06.2019, proc. 641/18.0T8VNF-C.G1, disponível in www.dgsi.pt/jtrg, com o seguinte sumário: “Tal como no processo executivo (art.º 828º do CPC), também na liquidação em insolvência, mesmo que esta já se encontre finda, é de admitir que o adquirente venha aos autos exigir a entrega da coisa adquirida contra quem a detenha.”].
Esta solução, à falta de norma expressa que a preveja e regule diretamente no CIRE [que não a há], é a única que se mostra conforme com o que decorre, conjugadamente, do disposto nos arts. 17º nº 1 do CIRE [que manda aplicar aos processos regulados neste diploma as normas do Código de Processo Civil que não contrariem as suas disposições], 828º [que dispõe que «[o] adquirente pode, com base no título de transmissão a que se refere o artigo anterior, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no artigo 861.º, devidamente adaptados»], 861º nºs 1 e 3 [que estabelece que são subsidiariamente aplicáveis à efetivação da entrega da coisa, embora com as necessárias adaptações, as disposições referentes à realização da penhora] e 757º [que define como se processa a entrega de imóveis], estes do CPC.
Não há, assim, dúvidas de que a B..., Lda., ora recorrida, podia ter requerido a entrega da dita fração – que anteriormente havia adquirido e de cuja venda foi emitido o respetivo título de transmissão – quando o fez [cerca de um ano e sete meses depois da celebração da escritura de compra e venda] e nos autos [apenso] em que resolveu fazê-lo [no âmbito deste processo de insolvência, onde a referida fração foi, em devido tempo, apreendida e depois foi vendida àquela].
Por conseguinte, o recurso improcede nesta parte.

4.2. Se os recorrentes deviam ter exercido o direito à restituição da fração nos termos estabelecidos na 1ª parte do nº 2 do art. 146º, com referência ao art. 148º do CIRE.
No despacho recorrido diz-se que «qualquer ação para defesa de direitos teria de ser intentada por apenso a estes autos e não o foi»; isto referindo-se à providência cautelar e à ação de reivindicação que os recorrentes instauraram depois de terem sido notificados para procederem à entrega da fração à adquirente.
Os recorrentes põem em causa tal entendimento nas conclusões 11 a 14 das alegações, defendendo que não estando a dita fração, há mais de dois anos, na esfera jurídica da massa insolvente, por ter sido vendida, estava-lhes vedado o recurso ao mecanismo previsto no art. 146º do CIRE e, por isso, tinham que instaurar a providência cautelar a que fazem referência na conclusão 5 e ação de reivindicação [para defesa do direito de propriedade de que se arrogam sobre ela], indicada na conclusão 7, fora do âmbito do processo de insolvência [e seus apensos].
Vejamos.
É sabido, di-lo o nº 1 do art. 1º do CIRE, que o processo de insolvência «é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores».
Esta característica universal “manifesta-se ainda na atracão que ela exerce sobre as ações em que estejam envolvidas questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, que tenham sido propostas contra o devedor ou mesmo contra terceiros, desde que a decisão que neles venha a ser proferida possa influenciar o valor da massa” [Luís Carvalho Fernandes, in Efeitos Substantivos Privados da Declaração da Insolvência, Coletânea de Estudos sobre a Insolvência, 2009, Quid Juris, pg. 201].
À universalidade, acresce, ainda, outra característica: a natureza urgente do processo de insolvência e de todos os seus incidentes, apensos e recursos, como estabelece o nº 1 do art. 9º do CIRE, o faz com que os mesmos sejam processos e procedimentos céleres [no Acórdão desta Relação do Porto (e Secção) de 08.04.2014, proc. 1168/12.9TBOAZ-N.P1, disponível no sítio da dgsi já indicado, escreveu-se, citando Menezes Cordeiro, in Introdução ao Direito da Insolvência, O Direito, 137.º, 2005, III, pág. 479, que “o objetivo da celeridade adquire, no processo de insolvência, uma dimensão de primeiro plano, que se justifica por duas ordens de razões: i) em primeiro lugar, devido à situação de incerteza que caracteriza o estado do património envolvido durante o processo de insolvência; ii) em segundo lugar, devido à natureza do próprio processo de insolvência, que é uma execução universal que envolve inúmeros interesses contrapostos: o do insolvente, porventura interessado em retardar ou evitar a insolvência, os dos diferentes credores, marcados por objetivos concorrentes e muitas vezes antagónicos e, ainda, o interesse de terceiros, que aspiram à normal prossecução da sua atividade, sem serem afetados por operações falimentares que venham a ocorrer no futuro”].
Não é, por isso, de estranhar que o CIRE consagre, por ex., em vários artigos e relativamente a diversos momentos, a possibilidade de terceiros possuidores em nome próprio ou titulares de direitos reais de gozo sobre bens apreendidos para a massa insolvente defenderem os seus direitos requerendo, designadamente, a respetiva restituição ou propondo a necessária ação de restituição [ou de separação] de bens.
Tal possibilidade está prevista nos arts. 141, 144º e 146º daquele Código.
O primeiro diz respeito aos casos em que ainda está a decorrer o período da reclamação de créditos, permitindo que os terceiros que sejam possuidores em nome próprio ou titulares de direito de propriedade ou de outro direito real de gozo sobre bens apreendidos requeiram a restituição [ou a separação] dos seus bens [apesar da al. a) do nº 1 daquele art. 141º aludir apenas a «donos», é consensual que abarca não só os proprietários, como também os titulares de outros direitos, nomeadamente de direitos reais de gozo menores e até os possuidores em nome próprio, como sustentam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, Quid Juris, pg. 475, anotação 5].
O segundo abarca os casos em que a apreensão dos bens se realizou depois de findo o prazo fixado para a apresentação das reclamações, podendo aqueles terceiros requerer a restituição [ou a separação] dos seus bens no prazo e termos previstos no art. 144º nºs 1 e 2.
No terceiro permite-se que mesmo depois de esgotadas as possibilidades e os prazos previstos nos dois referidos artigos, aqueles titulares possam, ainda assim, defender os seus direitos, instaurando a competente ação de restituição [ou de separação], lavrando-se termo no processo principal de insolvência que equivale a termo de protesto, conforme decorre dos nºs 1, 2, 1ª parte, e 3 do art. 146º]. Neste caso, a ação corre por apenso aos autos da insolvência e segue os termos do processo comum – art. 148º do CIRE.
Estes são, pois, os únicos meios que o CIRE permite aos indicados terceiros para defesa da sua posse em nome próprio ou dos seus direitos de propriedade ou de outros direitos reais de gozo menores sobre bens apreendidos, já que está expressamente proibida [não é admitida], no nº 2 do art. 342º do CPC, «a dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens realizada no processo de insolvência» [assim, Acórdãos da Relação de Coimbra de 18.03.2014, proc. 472/11.8TBTMR-L.C1 e de 23.11.2021, proc. 1376/13.5TBACB-D.C1, disponíveis in www.dgsi.pt/jtrc].
No caso sub judice, a questão que se coloca é a de saber se, tendo a fração em apreço nos autos sido já vendida no âmbito do processo de insolvência [foi adquirida pela aqui recorrida], os recorrentes deveriam, ainda assim, ter exercido o direito de propriedade que invocam sobre ela através da ação de restituição e nos termos do citado art. 146º.
Aparentemente a resposta até tenderia a ser afirmativa ante o teor literal da 1ª parte do nº 2 deste preceito, já que aí de proclama que «[o] direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo».
Mas não é assim.
A maioria da jurisprudência dos tribunais superiores – com a qual também concordamos – interpreta a expressão «a todo o tempo» em termos restritivos, em atenção à finalidade visada pelo normativo em questão.
Com efeito, por o direito à restituição previsto no art. 146º constituir um mecanismo a favor do terceiro para poder reagir contra a apreensão de bens a favor da massa insolvente de que ele seja possuidor em nome próprio, proprietário ou titular de outro direito real de gozo incompatível com a apreensão, vem-se entendendo que aquela expressão - «a todo o tempo» - deve ser interpretada, por referência ao que decorre do nº 1 do mesmo normativo, no sentido de o direito à restituição [ou à separação] só ser admissível [possível] enquanto tal direito possa ser atendido no processo de insolvência, ou seja, enquanto os bens objeto do pedido de restituição não forem liquidados no processo de insolvência. Isto porque a propositura da referida ação tem como efeito deixar de se proceder à liquidação dos bens enquanto não houver sentença transitada em julgado, salvo nos casos de anuência do interessado, venda antecipada efetuada nos termos do nº 2 do art. 158º, ou se o adquirente for advertido da controvérsia acerca da titularidade e aceitar ser da sua conta a álea respetiva, em atenção ao que dispõe o art. 160º nº 1, ambos do CIRE [assim decidiram, i. a., os Acórdãos desta Relação do Porto (e Secção) de 25.01.2022, proc. 3772/15.4T8AVR-E.P1 e da Relação de Coimbra de 23.11.2021, proc. 1376/13.5TBACB-D.C1, disponíveis nos sites da dgsi já mencionados; no mesmo sentido, ainda, Acórdão do STJ de 22.06.2021, proc. 6886/17.2T8VNG-E.P1-A.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, que refere que “a propositura da referida ação tem como efeito deixar de se proceder à liquidação dos bens enquanto não houver sentença transitada em julgado, salvo nos casos de anuência do interessado, venda antecipada efetuada nos termos do nº 2 do art. 158º, ou se o adquirente for advertido da controvérsia acerca da titularidade, a aceitar ser da sua conta a álea respetiva”].
Ora, no caso dos autos a liquidação já se mostra efetuada relativamente à fração em apreço, uma vez que já foi vendida, em 29.09.2022, pelo AI à aqui recorrida, com emissão do respetivo título de transmissão [só não foi feita então a entrega efetiva à adquirente por aquela se encontrar ocupada/habitada].
E também não está aqui em questão a aplicabilidade do que prevê o art. 160º nº 1 al. c) do CIRE [nem, muito menos, a previsão das als. a) e b), por não ter havido anuência da adquirente, nem venda antecipada da fração], quer porque à data da referida venda [e respetiva aquisição pela aqui recorrida] não estava pendente qualquer ação de reivindicação, pedido de restituição ou de separação intentados pelos ocupantes/habitantes da fração, quer porque a adquirente não foi então [nem estava antes] advertida de qualquer controvérsia acerca da titularidade sobre a mesma fração, já que, tão só, sabia [disso o AI lhe havia dado conhecimento e ela reconheceu na escritura de compra e venda] que esta estava ocupada/habitada, desconhecendo a que título.
Como tal, não estando já em tempo, por não poder obstar à liquidação relativa à aludida fração autónoma, os recorrentes não podiam instaurar ação de restituição desta ao abrigo do citado art. 146º nºs 1 e 2, 1ª parte.
Inexiste, assim, impedimento legal à propositura da ação, para defesa do direito de propriedade de que se arrogam, fora do presente processo de insolvência e seus apensos.
Nesta parte não acompanhamos a decisão recorrida, antes se reconhece razão aos recorrentes.

4.3. Se deve suspender-se a entrega da fração em questão nos autos, até ser decidida a ação de reivindicação por estes intentada.
A decisão recorrida desatendeu esta pretensão dos ora recorrentes.
Estes insurgem-se contra o entendimento da 1ª instância e consideram que «tanto a providência cautelar como a ação declarativa comum já identificadas, são (…) causas prejudiciais que deverão ser decididas antes do deferimento da entrega do bem imóvel, sob pena de, não se suspendendo tal decisão de entrega, causar prejuízos gravíssimos e irreparáveis aos Recorrentes que se veem despejados do imóvel que habitam há mais de 22 anos e onde têm instalado o seu agregado familiar» [conclusão 21].
Apreciando a questão, começaremos por dizer que inexiste norma alguma, no CIRE ou no CPC, que preveja expressamente a possibilidade de suspensão da entrega ao adquirente de um bem que ele adquiriu por via judicial – seja, como no caso, no âmbito de um processo de insolvência ou, até, no de um processo executivo – e relativamente ao qual lhe foi passado o competente título de transmissão.
Não está aqui em causa a suspensão da instância prevista no art. 272º do CPC que, no seu nº1, prevê que «[o] tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado». O que está em questão é a suspensão de um determinado ato: a entrega da dita fração autónoma à adquirente, que, apesar de a ter comprado ao AI no âmbito da liquidação dos bens apreendidos no processo de insolvência, não tomou imediata e efetiva posse dela.
Não releva, por isso, para aqui o que está previsto em tal preceito, particularmente para a existência de relação de prejudicialidade, já que não se trata de aferir se existe nexo ou relação de prejudicialidade entre duas causas, ou melhor de uma causa em relação a outra, por a decisão de uma poder destruir o fundamento ou a razão de ser da outra [como se diz no Acórdão da Relação de Lisboa de 07.11.2023, proc. 8309/21.3T8LSB.L1-7, disponível in www.dgsi.pt/jtrl, citando Alberto dos Reis [in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, pgs. 268 e segs.] e um Acórdão do STJ de 09.05.2023, “[o] nexo de prejudicialidade define-se assim: estão pendentes duas ações e dá-se o caso de a decisão de uma poder afetar o julgamento a proferir noutra; a razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial é a economia e a coerência de julgamentos; uma causa é prejudicial em relação à outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda (…), quando a decisão naquela pode prejudicar a decisão nesta”, ou, de acordo com o Acórdão da Relação do Porto de 11.01.2024, proc. 1273/23.6YLPRT.P1, disponível in www.dgs.pt/jtrp, “[c]ausa prejudicial é aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir com a decisão da causa dependente, influenciando essa decisão através da destruição ou modificação dos fundamentos em que esta se baseia. Haverá essa relação quando na ação prejudicial se discute em via principal uma questão essencial para a decisão da ação dependente. (…) a prejudicialidade a que se refere o citado art. 279º, nº 1, verifica-se quando a dependência entre objetos processuais é acidental e parcialmente consumptiva e pode definir-se como a situação proveniente da impossibilidade de apreciar um objeto processual (o objeto processual dependente) sem interferir na análise de um outro (o objeto processual prejudicial)”].
Por não estar em questão a suspensão da instância nos termos previstos no citado art. 272º, não analisaremos sequer, caso estivesse verificado o fundamento do seu nº 1 – relação de prejudicialidade por parte da providência cautelar e da ação de reivindicação intentadas relativamente ao ato em apreço –, se, ainda assim, seria de ordenar a suspensão, face ao que está previsto no nº 2 do mesmo preceito legal. Isto por ser evidente a existência de fundadas razões para crer que aquelas foram intentadas unicamente para os recorrentes requererem [e, se possível, obterem] a suspensão do referido ato, já que, ante o que alegam no sentido de habitarem a fração autónoma, como verdadeiros donos e de boa fé, há mais de 22 anos e bastando, em tal situação, para a aquisição do direito de propriedade uma posse continuada de 15 anos [cfr. arts. 1260º, 1268º, 1287º e 1296º do CCiv.], tivessem ficado à espera de serem notificados [por determinação do tribunal a quo] para entregarem a mesma à adquirente para, só então, proporem a dita providência cautelar e, sobretudo, a referida ação de reivindicação. E apresenta-se muito duvidosa e de difícil aceitação a afirmação que fazem de que só tiveram conhecimento da apreensão da dita fração quando foram notificados para a entregar à adquirente, na medida em que não foi a única fração que foi apreendida na zona, antes foram com ela apreendidas para a massa insolvente outras seis frações autónomas integradas na mesma urbanização em que aquela se situa – Urbanização ..., Rua ..., ... e Rua ..., ..., em ..., ... –, mais concretamente as frações com as letras «A», «C», «F», «M», «T» e «U», o que torna difícil que o assunto [a apreensão por insolvência da construtora] não fosse falado e comentado pelas pessoas do lugar/zona e não tivesse chegado ao conhecimento dos recorrentes.
Como quer que seja, da conjugação do disposto nos arts. 824º, 1288º e 1317º al. c) do CCiv., 2º nº 1 al, a) e 5º nº 2 al. a) do CRegPred e 839º nº 1 al. d) do CPC, este aplicável à venda de bens apreendidos em processo de insolvência ex vi do estabelecido no art. 17º nº 1 do CIRE, não decorre que o ato de entrega da fração à adquirente possa ou deva ser suspenso.
Com efeito, está em causa, na ação de reivindicação, o reconhecimento do direito de propriedade de que os recorrentes se arrogam. Caso tal direito venha ali a ser-lhes reconhecido, produzirá efeitos contra terceiros – logo, contra a referida adquirente – independentemente do respetivo registo [arts. 2º nº 1 al. a) e 5º nº 2 al. a) do CRegPred]. Fundando-se no instituto da usucapião [como acontece, segundo a alegação dos recorrentes], a aquisição do direito de propriedade coincidirá com o momento do início da posse [dos recorrentes] que a sustenta – arts. 1288º e 1317º al. c) do CCiv.. Caso essa posse seja anterior ao registo da hipoteca a favor da adquirente, sobre a mesma fração [o registo da hipoteca a favor desta data de 1999], aquele direito de propriedade não se considerará caducado por efeito da venda do bem à aqui recorrida, em conformidade com o que prescreve a parte final do nº 2 do art. 824º do CCiv. [cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ediç. revista e atualizada, 1986, Coimbra Editora, pgs. 98-99]. Não caducando tal direito, daí decorrerá que a adquirente adquiriu um bem alheio [que não pertencia à insolvente, nem, após a apreensão, à massa insolvente que lho transmitiu através do administrador da insolvência] e que a venda daquela, feita no âmbito do processo de insolvência, será para os ora recorrentes um ato ineficaz – e não um ato nulo, como proclama o art. 892º do CCiv., já que a nulidade neste prevista só funciona nas relações entre o vendedor e o comprador da coisa, pois, no que concerne ao verdadeiro proprietário, a venda, como res inter alios, é verdadeiramente ineficaz [cf. Pires de Lima e Antunes Varela, obra e volume acabados de citar, pg. 189; idem, Rui Pinto, in A Ação Executiva, 2023, reimpr., AEFDL Editora, pgs. 768-771 e Fernando Baptista de Oliveira e outro, in Contratos PrivadosDas Noções à Prática Judicial, vol. III, 2ª ediç., 2015, Coimbra Editora, pgs. 756-757]. Daí resultará que os recorrentes poderão depois requerer a anulação da venda feita à adquirente porque, como refere o art. 839º nº 1 al. d) do CPC, a mesma ficará sem efeito em função do reconhecimento do direito de propriedade daqueles na ação de reivindicação. E, por causa da sequela inerente ao direito de propriedade, os recorrentes poderão obter a restituição da fração até de algum terceiro a quem a adquirente venha a transmiti-la.
Como se vê, a entrega da fração à adquirente [que, como já se disse, possui título de transmissão da venda judicial] não inviabilizará o direito de propriedade que, porventura, venha a ser reconhecido aos recorrentes na dita ação de reivindicação, nem, na sequência disso, de obterem, da adquirente ou de outro terceiro, a respetiva restituição.
Inexiste, pois, fundamento legal para a suspensão da entrega da fração autónoma à adquirente, improcedendo, em consequência, a pretensão dos recorrentes.

Pelo decaimento, incorrem estes nas custas do recurso – arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC.
*
*

Síntese conclusiva:
…………………………………………………
…………………………………………………
…………………………………………………

* * *





5. Decisão:

Pelo exposto, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em:

1º. Julgar improcedente o recurso e confirmar, embora com fundamentação diversa, a decisão recorrida.

2º. Condenar os recorrentes nas custas deste recurso, pelo decaimento [sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que, eventualmente, venha a ser-lhes concedido, atento o anúncio por eles feito no requerimento de interposição do recurso].





*



Porto, 2025.04.08

Des. Pinto dos Santos

Des. Raquel Lima [com voto de vencida, conforme declaração infra]*
[Declaração de vencida:
Concordo que não é caso de aplicação do artigo 160º do CIRE – que pressupõe um momento prévio à liquidação (impedindo-a) de bens apreendidos para a massa insolvente se estiver pendente uma ação de reivindicação, pedido de restituição ou de separação – nem do disposto no artigo 146º do CIRE cujo limite temporal máximo é a liquidação.
O adquirente do bem – fracção AX – sabia que o mesmo estava ocupado, desconhecendo a que título. Passados dois anos da compra e por força do impulso do adquirente desta fracção no sentido da entrega, os ora recorrentes são notificados para procederem à mesma (entrega) e aí informam o processo que desconheciam por completo que a sua habitação se encontrava apreendida numa massa insolvente, a existência de tais autos, mais informando que viviam em tal habitação há mais de 22 anos e que tal habitação era sua.
Nessa sequência intentaram uma acção declarativa com vista à afirmação definitiva do seu direito - a acção não será constitutiva, mas meramente declarativa da aquisição da propriedade da mesma por usucapião.
Parece evidente que esta acção só deu entrada alavancada por este processo. Mas esta actuação não nos parece uma manobra dilatória. Os recorrentes sabiam, por certo, da existência da insolvência, mas não tinham qualquer interesse em tomar uma atitude. Até aí, corria a seu favor o decurso do tempo que lhes permitiria adquirir a fracção por usucapião que seria de 20 anos uma vez que a posse não era titulada, logo, presumida de má fé. (cfr. artigo 1260º nº 2, 1259º nº 1, 1296º) contados a partir do início da inversão do título de posse (ainda por determinar), uma vez que os recorrentes começaram por ser meros detentores da fracção com base na celebração de um contrato-promessa com traditio.
Ter exigido, ou tentado, durante este período, a realização da escritura, significaria, a nosso ver, a aceitação de que eram meros detentores precários e não verdadeiros possuidores. A diligência teria sido, passo a expressão “um tiro no pé”
Além disso, uma vez que, pese embora haver traditio, não havia sido atribuída eficácia real ao contrato, ainda que tal pedido fosse atempado, nos termos do artigo 106º do CIRE o administrador podia, sempre, recusar o cumprimento do mesmo.
Aqui chegados, e sabendo-se que existe uma acção em que os recorrentes pretendem ver declarada a aquisição da propriedade por via originária, haverá fundamento para suspender a entrega da fracção ao adquirente no âmbito da insolvência?
Somente «podem motivar a suspensão com esse motivo ações que tenham sido instauradas anteriormente à ação em causa, a não ser que se verifique uma relação de prejudicialidade relativamente a um processo da competência dos tribunais criminais ou dos tribunais administrativos e fiscais (art. 92.º), em que o juiz pode decretar a suspensão (…) até que o tribunal competente se pronuncie. » Todavia, a doutrina não é unânime a este respeito, havendo quem defenda – com respaldo em diversa jurisprudência – ser «irrelevante que a causa prejudicial já pendesse à data da propositura da ação em que se formula o pedido dependente»
- Cfr., neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anot., vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 551, bem como a jurisprudência ali aludida.
Mas mesmo que assim não se entendesse porque não estão em causa duas acções, mas um acto – entrega - e uma acção, parece-nos que a suspensão haveria de ser concedida ao abrigo da parte final do n.º 1 do dito art.º 272.º: do Código de Processo Civil existência de “motivo justificado”. É sabido que a suspensão da instância “não está necessariamente dependente da iniciativa da parte, podendo ser oficiosamente determinada se acaso o juiz for confrontado com uma situação que mereça esse tratamento”, sendo tal suspensão “avaliada pelo juiz em função das circunstâncias que se verificarem”. Aliás, além da relação de prejudicialidade, a “suspensão da instância em geral pode encontrar outros motivos cuja justificação é sujeita ao escrutínio do juiz, o qual, neste campo, goza de uma larga margem de discricionariedade, devendo aquilatar se efetivamente se justifica tal medida. Nesses casos, o juiz deve sempre fixar o prazo de suspensão …” cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 26-11-2024, retirado no processo 1538/23.7T8GRD.C1
Por motivo justificado deve entender-se, neste âmbito, um motivo/circunstância que, em concreto, torne adequada, à luz de um critério de razoabilidade, a paralisação temporária do processo, posto dever deixar-se logo fixado o prazo de duração da suspensão.
Parece que, sopesando os valores em jogo, de um lado um comprador/investidor que se manteve inerte durante dois anos e, do outro, um pretenso proprietário da fracção que a terá adquirido por usucapião, constituindo aquela a casa de morada de família e perspetivando-se um desfecho positivo na acção intentada, entendo haver motivo para suspender a entrega pelo prazo de 1 ano.].

Des. Rui Moreira