Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | RUI MOREIRA | ||
Descritores: | PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO CONTAS BANCÁRIAS INSTITUIÇÃO BANCÁRIA SATISFAÇÃO DE CRÉDITOS DÉBITO UNILATERAL DE VALORES | ||
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Nº do Documento: | RP202504082199/24.1T8STS-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/08/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA A SENTENÇA | ||
Indicações Eventuais: | 2. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | Por interpretação extensiva do disposto no nº 1 do art. 17º-E do CIRE, são ilegítimas actuações de credores bancários que, depois do momento em que é nomeado o administrador judicial provisório em processo especial de revitalização requerido pelo devedor, intervêm espontânea e unilateralmente sobre contas de depósito desse devedor, ali debitando valores para satisfação dos seus próprios créditos. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 2199/24.1T8STS.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 1 REL. N.º 949 Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira 1º Adjunto: Juiz Desembargador Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira 2º Adjunto: Juíza Desembargadora Anabela Andrade Miranda * ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO 1 – RELATÓRIO No âmbito do processo especial de revitalização requerido pela devedora A..., S.A., veio esta pretender que os credores Banco 1... e Banco 2... fossem instruídos para lhe restituírem, depositando nas contas bancárias que mantém junto deles, os valores de €59.470,48 e €16.984,28, respetivamente, que ali debitaram sem o seu consentimento, para amortizarem parte dos seus créditos, aliás relacionados nos autos. Invocou o disposto no nº 12 do art.º 17º-D e art.º 17º-E n.º 1 e 10º do C.I.R.E. e alegou que a finalidade da suspensão das medidas de cobrança impostas aos credores no âmbito do PER, se destina a viabilizar a continuidade da laboração da empresa que se encontra em situação económica difícil, permitindo-lhe desse modo fazer face às suas responsabilidades correntes. Porém as requeridas, aproveitando-se da possibilidade de actuação sobre as suas contas bancárias, cobraram tais valores para irem satisfazendo os seus créditos, o que resulta em prejuízo da sua viabilidade, bem como dos interesses dos restantes credores. Ouvidos, ambos os credores se opuseram. O Banco 2... alegou a falta de fundamento legal de tal pretensão, bem como que o PER não suspende o vencimento das prestações e nem as autorizações de débito das mesmas, bem como que o despacho de nomeação de administrador judicial provisório não produz qualquer efeito sobre os contratos vigentes, os quais se mantêm nos termos anteriormente acordados, podendo inclusivamente o devedor continuar com o respetivo cumprimento até, pelo menos, ao despacho de homologação do plano de recuperação, uma vez que as obrigações do devedor só se modificam com o despacho de homologação do plano de recuperação. Por sua vez a Banco 1... alegou que a Sra. AJP foi nomeada por despacho de 31/7/2024, que o efeito que resulta do despacho de nomeação do AJP, é de obstar à instauração de ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos e de suspender as acções em curso, não tendo qualquer incidência nos negócios em curso da devedora. Mais afirmou que o valor de 59.470,48€, cuja devolução a devedora reclama, foi cobrado pela Banco 1... entre 22/7/2024 e 30/9/2024, sendo que a Sra. AJP foi nomeada por despacho de 31/7/2024, data a partir do qual, como anteriormente aduzido, se inicia o efeito decorrente do PER, pelo que o valor cobrado entre 22/7/2024 e 31/7/2024, no montante global de 28.889,32€, não tem de ser devolvido, por ter sido cobrado antes da data de nomeação da AJP. De seguida, o tribunal proferiu decisão sobre a pretensão da devedora, concluindo pelo seu indeferimento, em termos que se podem sintetizar no seguinte excerto: “(…) Resulta, ainda, que a partir desta mesma admissão liminar e durante o mesmo período de tempo, “(…) os credores não podem recusar cumprir, resolver, antecipar ou alterar unilateralmente contratos executórios essenciais em prejuízo da empresa, relativamente a dívidas constituídas antes da suspensão, quanto o único fundamento seja o não pagamento das mesmas.” Todas estas medidas se inserem no estabelecimento de um período de “standstill”, o qual tem como propósito proteger temporariamente o requerente contra eventuais actuações judiciais contra o seu património e, ao mesmo tempo, impelir os credores a adoptarem uma actuação cooperante nas negociações. Assim, sendo estes os efeitos processuais e substantivos fixados na lei, a pendência de um PER não determina, que a devedora deixe de ter a administração dos bens e direitos de que é titular, nem que o exercício de direitos e o cumprimento de obrigações a que está adstrita, designadamente nos termos contratualmente definidos, fiquem suspensos ou sejam modificados. Ou seja, no período de negociação do PER mantêm-se as obrigações recíprocas e sinalagmáticas entre o Requerente do processo e os seus credores, nos termos acordados, sem qualquer modificação ou suspensão. A alteração de um contrato só é admissível por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos previstos na lei, conforme se retira do art. 406º, nº1 do Código Civil. (…) Sucede que, diversamente da declaração de insolvência, o cumprimento dos contratos em curso não se suspende, não existindo, pois, opção de cumprir ou não cumprir. (…) Face ao exposto, indefere-se a pretensão da devedora de reaver os valores referentes ao cumprimento de contratos em curso celebrados com os credores Banco 2... e Banco 1....” Desta decisão, vem a A... interpor o presente recurso, que terminou formulando as seguintes conclusões: 1.ª A decisão recorrida errou ao entender que o facto das Credoras Banco 1... e Banco 2... debitarem na conta à ordem que a Devedora mantinha junto de cada uma delas se inseria no âmbito do cumprimento regular das obrigações resultantes dos contratos em curso e, por via disso, indeferiu a pretensão da Devedora de reaver os valores que o Banco 2... e a Banco 1... tinham debitado da conta à ordem da Devedora, por referência aos valores das prestações vencidas em data anterior ao da apresentação ao PER. 2.ª A decisão interpretou de modo errado o pedido que lhe foi formulado pela Devedora no requerimento de 18/10/2024 com a referência Citius 40421368, uma vez que a aqui recorrente não fundamentou o seu pedido de reposição dos valores debitados pelas instituições bancárias credoras na suspensão do cumprimento dos contratos em curso celebrados com as credoras e, muito menos, requereu a modificação unilateral desses contratos, em violação do 406.º, n.º 1 do Código Civil. 3.ª A fundamentação do pedido da Devedora assentou, isso sim, na violação dos Princípios que devem orientar o PER e na violação do período/efeito standstill que, consequentemente, gorou a finalidade do referido processo. 4.ª O efeito standstill tem como finalidade proteger temporariamente o requerente de eventuais atuações judiciais contra o seu património e, ao mesmo tempo, impelir os credores a adotarem uma atuação cooperante nas negociações. 5.ª Ora, tendo os débitos realizados pelas Credoras Banco 2... e a Banco 1... servido como puros atos de cobrança de dívida, o que, materialmente, equivale à instauração de uma ação executiva, pois a sociedade devedora veria o seu ativo ser reduzido do mesmo modo, estão também eles proibidos pelo efeito standstill. 6.ª Fazendo todo o sentido que, por respeito à mais elementar regra de igualdade, os bancos onde a Devedora tem conta não possam fazer seus os saldos bancários daquela, pois que estando as execuções suspensas também a generalidade dos credores não pode, ainda que detentores de títulos executivos, prosseguir com a satisfação do seu crédito. 7.ª Assim, do ponto de vista material, conclui-se que é aplicável aos atos de cobrança de dívida praticados pelas Credoras Banco 2... e a Banco 1... a ratio legis do efeito standstill, que obsta a tal agressão. 8.ª O mesmo se reclama quando se tem em conta a finalidade do PER, pois para que se permita às empresas que se encontram em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas ainda suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização, é necessário que lhes seja assegurada uma certa tranquilidade necessária ao bom curso das negociações. 9.ª A atuação das Credoras Banco 2... e a Banco 1... em nada foi cooperante com o bom curso do processo e das negociações, nas quais manifestaram o seu propósito de nelas participar, antes tendo retirado todo o sentido à negociação do pagamento da dívida, negociação esta que é da mais alta importância no Processo Especial de Revitalização. 10.ª Ao procederem à auto cobrança dos seus créditos, as instituições bancárias Banco 2... e a Banco 1... passaram à frente dos outros credores e parte substancial dos créditos relacionados nos autos do presente PER ficou paga, não tendo, pelo menos no valor dos montantes debitados, essas Credoras de se sujeitar ao pagamento prestacional da dívida acordado no âmbito do processo. 11.ª Atuando as Credoras, desta forma, à revelia, quer do compromisso que assumiram para as negociações do PER, quer do compromisso que os outros réus estavam também a assumir. 12.ª Cremos ter demonstrado, sem margem para dúvidas, os motivos pelos quais as instituições bancárias não podem, até que o Plano de Revitalização seja aprovado e homologado, amortizar dívidas vencidas em datas anteriores à data da entrada em Processo Especial de Revitalização, devendo os créditos sobre a Devedora ser amortizados nos termos que vierem a ser definidos no âmbito do plano supra referido. 13.ª Pelo que a decisão recorrida ao decidir diferentemente, pecou por errada interpretação e aplicação do art.º 17º-D n.º 12, 17º-E n.º 1 e 194º todos os CIRE e art.º 604º do Cód. Civil. Termos em que, e nos demais de Direito que V.ªs. Ex.ªs doutamente suprirão, deve o presente recurso ser: i. Recebido e julgado procedente e, consequentemente, ii. Ser revogado o despacho recorrido, determinando-se a restituição dos valores referentes aos débitos indevidamente realizados na conta de depósitos à ordem da Devedora, que encobrem um verdadeiro ato executivo privado, Com o que assim se fará inteira Justiça.” * A Banco 1... veio apresentar resposta ao recurso e requerer a ampliação do respectivo objecto. Promoveu a confirmação da decisão recorrida, sem prejuízo de, no caso da sua revogação, e em sede de tal ampliação, se decidir que a sua obrigação de restituição do capital debitado na conta da devedora será só o que foi debitado após a nomeação da AJP, disso ficando salvaguardado o montante cobrado entre 22/7/2024 e 31/7/2024, no montante global de 28.889,32€. São as seguintes as correspondentes conclusões: “Sem conceder, por cautela, no caso de recurso interposto pela recorrente vir a ser julgado procedente, o âmbito do recurso deverá ser ampliado, o que requer, ao abrigo do disposto no artigo 636º do CPC, para conhecimento e decisão das seguintes conclusões: 1. A douta decisão recorrida, ao indeferir o pedido da recorrente de 18/10/2024 (refª 40421368), não se pronunciou, por prejudicada, sobre se o valor cobrado pela recorrida entre 22/7/2024 e 31/7/2024, no montante global de 28.889,32€, antes da nomeação do AJP, deve também ser devolvido à recorrente. 2. Tendo a senhora Administradora Judicial Provisória sido nomeada por despacho de 31/7/2024, publicitado no portal Citius no dia 1/8/2024, o valor cobrado pela recorrida entre 22/7/2024 e 31/7/2024, no montante global de 28.889,32€, não tem de ser devolvido à recorrente, por este montante ter sido cobrado antes do início da produção dos efeitos decorrentes do PER, previstos no nº 5, do artigo 17º C o nº 1 do artigo 17º E do CIRE. * O tribunal recorrido admitiu o recurso como apelação, com subida em separado e efeito devolutivo. Não se tendo pronunciado sobre o pedido de ampliação do objecto do recurso, é todavia cristalina a sua admissibilidade, nos termos do nº 1 do art. 636º do CPC. Cumpre decidir. * * 2- FUNDAMENTAÇÃO O objecto do recurso é circunscrito pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da decisão de questões que sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC. Cumpre, neste caso, decidir se na pendência de um PER é licito a credores bancários, com acesso a contas de depósito do devedor, cobrarem sobre elas os respectivos créditos. No caso de resposta negativa a esta questão, haverá de apreciar-se a questão suscitada pela recorrida Banco 1..., definindo a partir de que momento o PER deve obstar a tal actuação. * A decisão a proferir convoca a seguinte factualidade, que resulta dos termos do processo: 1- Em 19/7/2024, A..., SA veio requerer processo especial de revitalização. 2 - Por despacho proferido em 31.07.2024 foi o mesmo admitido liminarmente e nomeado administrador provisório. 3 - Desde o dia 22/07/2024, a Banco 1... efetuou operações de débito na conta de depósitos que a Devedora mantém nessa instituição no montante global de € 59.470,48 (cinquenta e nove mil quatrocentos e setenta euros e quarenta e oito cêntimos), que afetou à redução do valor do seu crédito relacionados nestes autos (acordo das partes) 4 – Desse montante, o valor cobrado entre 22/7/2024 e 31/7/2024, ascendeu ao total de 28.889,32€ e o remanescente, de 30.581,16€ foi cobrado entre 1/8/2024 e 30/9/2024 (doc. 2 junto com a resposta ao requerimento da devedora, não impugnado pela devedora) 5 - Desde o dia 30/07/2024 o Banco 2... efetuou operações de débito na conta de depósitos à ordem que a Devedora mantém nesse banco no montante global de € 16.984,28 (dezasseis mil novecentos e oitenta e quatro euros e vinte e oito cêntimos), que afetou à redução do valor do seu crédito relacionados nestes autos (acordo das partes). 6- O PER apresentado foi votado favoravelmente, tendo sido homologado por sentença de 19/2/2025. * São várias as razões invocadas pela apelante, para recuperar os valores que o Banco 2... e a Banco 1... retiraram das respectivas contas bancárias, aproveitando os termos contratuais que o permitiam. Com efeito, a apelante não invoca qualquer violação dos contratos bancários mantidos com os recorridos, em que eles tenham incorrido ao retirarem e fazerem seus tais valores. A questão coloca-se, isso sim, por referência a uma pretendida paralisação das dinâmicas contratuais da relação bancária, em homenagem ao curso e aos fins do processo especial de revitalização iniciado. Podem sintetizar-se tais razões nos seguintes termos: - Não releva se os débitos efetuados pela Banco 1... e pelo Banco 2... na conta à ordem da devedora se enquadravam no cumprimento regular das obrigações contratuais, pois que não está em causa a suspensão do cumprimento dos contratos, mas sim a violação dos princípios do PER e do efeito standstill. - Os débitos constituíram atos de cobrança de dívida que equivalem materialmente à instauração de uma ação executiva, o que é proibido pelo efeito standstill, cuja finalidade é proteger temporariamente o requerente de ações judiciais contra o seu património. - Se a pendência do PER determina a suspensão de execuções contra o devedor e os outros credores também não podem prosseguir com a satisfação dos seus créditos, em respeito ao princípio da igualdade, não devem ter-se por admissíveis quaisquer actos de cobrança praticados unilateralmente pelos bancos. - A cobrança operada pelo Banco 2... e pela Banco 1... não foi cooperante com o bom curso do processo de revitalização e das negociações, pois que com isso se anteciparam a outros credores, não se sujeitando ao pagamento prestacional da dívida que viesse a ser acordado no âmbito do PER, antes devendo aguardar e sujeitar-se ao Plano que venha a ser homologado. * Foi repetidamente referido nestes autos o efeito “standstill”, próprio da abertura e tramitação de um processo especial de revitalização. Tal efeito tem a sua génese na regra do nº 1 do art. 17º-E do CIRE, que prescreve: “1 - A decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C [despacho de nomeação do administrador judicial provisório, subsequente à entrada do processo] obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade. Tal regra visa garantir um período de paralisação do contexto financeiro que aflige o devedor, tal como imposto no art. 6º da Directiva EU) 2019/1023, de 20/6/2019, de 20 de Junho de 2019, em ordem a garantir o que está especificado no respectivo considerando 32º: “O devedor deve poder beneficiar de uma suspensão temporária de ações individuais de execução, quer seja concedida por uma autoridade judicial ou administrativa ou por força da lei, com o objetivo de apoiar as negociações sobre um plano de reestruturação, para poder continuar a operar ou pelo menos preservar o valor do seu património durante as negociações.” No caso, é certo que as acções empreendidas espontaneamente pelo Banco 2... e pela Banco 1..., cobrando créditos anteriores por débito nas contas de depósito da devedora, não constituem acções executivas, que seriam directamente subsumíveis à previsão do nº 1 do art. 17º-E do CIRE. Por outro lado, é igualmente razoável a motivação da sentença recorrida, para a rejeição da pretensão da apelante, que, na essência, se traduz no seguinte: a devedora continua em actividade e os seus contratos continuam em execução, sem que a pendência do PER constitua fundamento para a suspensão do cumprimento das suas obrigações contratuais. Isto mesmo foi afirmado, por exemplo, num acórdão deste TRP, nos seguintes termos: “I – No PER o estabelecimento de um período de “standstill” tem como propósito proteger temporariamente o Requerente contra eventuais actuações judiciais contra o seu património e, ao mesmo tempo, impelir os credores a adoptarem uma actuação cooperante nas negociações. II – Neste período de negociação do PER a revitalizanda mantém a administração dos seus bens, o exercício dos direitos de que seja titular e o cumprimento das obrigações a que esteja adstrita, sem qualquer suspensão ou modificação. III - Com excepção dos actos de “especial relevo”, o administrador judicial provisório não tem competência para se imiscuir na administração corrente da empresa. IV - Estando um contrato de financiamento em curso e a produzir os seus efeitos, o credor tem legitimidade para, nos termos do próprio contrato, proceder à cobrança das prestações que se vençam após o despacho a nomear o administrador judicial provisório, na data do seu vencimento, debitando a conta identificada no contrato e desde que esta registe saldo disponível. (proc. nº 2644/20.0T8STS-E.P1, Relator: LINA BAPTISTA, 16-05-2023). Todavia, outra jurisprudência vem aplicando o regime legal citado em termos mais amplos, identificando na satisfação unilateral dos respectivos créditos, empreendida pelos bancos, sem necessidade de recurso a qualquer acção judicial, em razão do acesso directo ao património do devedor, ou seja, através da prerrogativa contratual de débito nas respectivas contas bancárias, uma actuação que deve estar sujeita à mesma restrição prevista naquele nº 1 do art. 17º-E. E isso por ser essencial, tal como enuncia a Directiva, garantir um período de tranquilidade favorável às negociações, de conservação e não de agravamento do património e das circunstâncias de funcionamento do devedor e, também, para garantir um tratamento igualitário dos credores, tal como venha a ser definido no plano de Recuperação, caso seja aprovado, sem que uns, por disporem de tal possibilidade, se tenham adiantado na satisfação dos seus próprios créditos, sem sujeição às eventuais condicionantes ulteriormente impostas pela homologação de tal Plano. Neste sentido, dispôs o Ac. do STJ de 13/4/2021 (proc. nº 6521/16.6T8LRS.L1.S1, Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS): “Iniciado um PER, o procedimento bancário extrajudicial consistente na compensação convencional está incluído no “efeito paralisador” (efeito “standstill”) consagrado no art 17.º-E, n.º 1, do CIRE, ou seja, num PER, após a prolação do despacho a nomear o administrador judicial provisório e durante o tempo em que perdurarem as negociações (mais exatamente, até à sentença de homologação do plano de recuperação), está o banco impedido de proceder à compensação das responsabilidades entretanto vencidas do seu cliente com os saldos bancários existentes na conta bancária do seu cliente e requerente do PER.” No mesmo sentido dispôs o Ac. do TRG de 09-03-2023 (proc. nº 1982/22.7T8GMR.G1, Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE): “ 1. No decurso de um processo especial de revitalização (PER), todos os credores da empresa devedora, ainda que não tenham ido aos autos em causa reclamar o seu crédito, estão sujeitos à regra de paralisação (standstill) das acções para cobrança de dívidas, imposta pelo art. 17º-E,1. 2. Esse efeito standstill visa conceder ao devedor um “escudo protector”, que lhe permita negociar com os credores com alguma “tranquilidade”, sem ser interrompido por acções de cobrança de dívidas que continuamente agridam o seu património e que inviabilizem a possibilidade da condução bem-sucedida das negociações com os credores. 3. Não pode uma entidade bancária, que seja um dos credores da empresa em revitalização, valendo-se do facto de ter acesso irrestrito à conta bancária da empresa junto de um dos seus balcões, debitar a mesma do valor que lhe é contratualmente devido, pois isso equivaleria a uma “acção executiva privada”, a qual está tão proibida pela lei como qualquer verdadeira acção executiva a intentar num Tribunal Estadual, e redundaria numa grosseira violação da regra da igualdade dos credores). Em sentido idêntico, ainda, Ac. do TRL de 21-05-2024, no proc. nº 2500/23.5T8BRR-A.L1-1, Relator: ISABEL FONSECA. A explicitação as razões da solução que acaba de se referir, repetida nos acórdãos citados e à qual – desde já se antecipa – se adere sem reservas, consta do Ac. do STJ citado supra: “Discute-se abundantemente, como referimos, quais os procedimentos/ações judiciais que cabem na expressão em causa[13], sendo – é onde se quer chegar – que a ratio, a natureza e a finalidade do PER impõem que, além dos procedimentos/ações judiciais, também certos procedimentos extrajudiciais devam ser incluídos no efeito/período de standstill constante do art. 17.º-E/1 do CIRE[14]. É, claramente, o caso da compensação bancária sub judice. É certo que o devedor em PER mantém a administração dos bens e direitos de que é titular (com a ressalva constante do art. 17.º-E/2 do CIRE)[15], que os seus negócios mantêm o seu iter normal e que ao PER são evidentemente inaplicáveis as regras constantes dos arts. 102.º e ss. do CIRE (respeitantes aos efeitos da insolvência sobre os negócios em curso), porém, importa não esquecer que o PER, norteado por uma ratio de revitalização do devedor em dificuldade, produz efeitos entre o devedor e os credores durante a fase negocial, efeitos esses que têm que ser idênticos para todos os credores, ou seja, durante a pendência do processo (entre o despacho de início do processo e o termo do mesmo), tem que ser respeitado o princípio da igualdade entre os credores. Sendo um desses efeitos, como vimos de referir, o de proibir a instauração ou o de suspender as execuções para cobrança de dívidas (e na nossa interpretação também as ações declarativas para cobrança de dívidas), todos os credores que tenham execuções a correr termos contra o devedor em PER verão, enquanto este pende, as suas execuções suspensas, o que significa, no que aqui interessa (em termos argumentativos), que penhoras de depósitos bancários, ainda que iminentes, não se poderão realizar durante a pendência do PER. E se os depósitos bancários não podem ser penhorados – não podendo a generalidade dos credores, ainda que detentores de títulos executivos, obter a garantia/preferência concedida pela efetivação da penhora – também não poderá, por respeito à mais elementar regra de igualdade, o banco onde o devedor tem conta fazer seus quaisquer saldos bancários do devedor, ao abrigo de compensação convencional que haja sido livre e contratualmente acordada pelas partes (banco e devedor) nos termos da sua autonomia privada (art. 405.º do C. Civil). Ao que tem sido oposto que o art. 17.º-E/1 não tem o alcance do art. 88.º/1 do CIRE (que fala em “quaisquer diligências ou providências”) e que por isso os atos/procedimentos extrajudiciais estarão excluídos do âmbito do efeito consagrado no art. 17.º-E/1, tanto mais que o impedimento de qualquer ato ou procedimento extrajudicial que atinja o património do devedor constitui um “esforço excessivo e desproporcional para os credores”. Não se contesta que a generalidade dos atos/procedimentos extrajudiciais, designadamente quando, por ex., o devedor manifesta, casuisticamente, a vontade de pagar uma sua obrigação, estejam excluídos do efeito Standstill – até por, repete-se, o devedor/revitalizando continuar a sua atividade e a gerir os seus bens – porém, num caso como o presente, de compensação bancária (à custa de saldos credores do devedor, temporariamente impenhoráveis, existentes na instituição bancária que procede à compensação), a solução, até por respeito, repete-se, pelo princípio da igualdade entre credores, deve ser a oposta. O efeito Standstill, concorde-se ou não, é um “escudo protetor” concedido pela lei ao devedor/revitalizando, que, todavia, não fica impedido de dele prescindir e de, caso a caso, cumprir as suas obrigações e movimentar, para tal, as suas contas/saldos bancárias; mas – é o ponto – não pode servir nem pode ser usado como “escudo protetor” a favor dos credores que estão autorizados, sem a casuística manifestação de vontade do devedor/revitalizando, a debitar unilateralmente os seus saldos bancários e que, por isso, durante o período do Standstill, se assim poderem proceder, ficam até em melhor situação do que estavam antes (uma vez que ficam, durante tal período, protegidos do “concurso” da generalidade dos credores). Em síntese, não devendo a interpretação “cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…)” (cfr. art. 9.º/1 do C. Civil), tem que se entender, por interpretação extensiva, que o procedimento extrajudicial de compensação bancária, consistente no unilateral lançamento a débito na conta do cliente duma responsabilidade contratual do mesmo (conforme o acordado na fase estipulativa do contrato que gera tal responsabilidade), é um procedimento que “em substância” é idêntico a um ato executivo – agredindo do mesmo modo que um ato executivo o património do devedor – sendo-lhe assim aplicável a ratio legis do efeito Standstill (que, fora de qualquer dúvida, obsta a tal agressão) consagrado no art. 17.º-E/1 do CIRE. Tanto mais que, face à desigualdade que criaria entre credores, iria contribuir, em elevado grau, para a perturbação e para o insucesso das negociações em curso, na medida em que, procurando usualmente o devedor (em PER) uma reestruturação do passivo (reestruturação financeira), teríamos um credor que, enquanto decorrem as negociações para tal reestruturação do passivo (tendo reclamado os seus créditos, participado nas negociações e votado com todos o votos decorrentes dos seus créditos reclamados, se está a pagar por inteiro dos seus créditos (não atuando, como o impõe o art 17.º-D/10 do CIRE, de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de Outubro, designadamente com a boa fé imposta pelo segundo princípio). Temos pois – é a conclusão – que a compensação bancária operada pelo banco recorrente estava abrangida/impedida pelo efeito standstill constante do art. 17.º-E/1 do CIRE, efeito esse que opera ope legis (prescindindo de qualquer declaração judicial para produzir tal efeito) com a prolação do despacho de nomeação de AJP. Não sendo pois exato dizer – ao contrário do que o recorrente refere de diversas maneiras – que o despacho a nomear o AJP não produz quaisquer efeitos sobre os contratos vigentes e que por isso pode continuar a debitar (de acordo com a compensação convencional constante do programa contratual) as prestações que se forem vencendo; efetivamente, iniciado um PER (ou seja, proferido o despacho a nomear o AJP), todas as obrigações contratuais (vencidas e a vencer-se) ficam sujeitas à “proteção” da negociação/reestruturação em curso, podendo, é certo, os credores votar contra qualquer plano de recuperação que venha a ser apresentado, mas não podendo furtar-se à “espera/dilação” colocada pelo “escudo protetor” concedido pela PER ao devedor/revitalizando, consistindo esta “espera/dilação” justamente um efeito (como, aliás, resulta da epígrafe do art. 17.º-E/1 do CIRE) que a nomeação do AJP produz sobre os contratos em curso. Assim, todos os débitos ((…) efetuados na conta bancária da A. foram indevidos, devendo as respetivas quantias ser restituídas, (…)”. O que vem de transcrever-se é aplicável, nos seus precisos termos, à situação sub judice. Subscrevendo integralmente tais razões, que para aqui se convocam, resta afirmar que, por aplicação extensiva do disposto no nº 1 do art. 17º-E do CIRE, temos por ilegítimas actuações tais como as operadas pelo Banco 2... e pela Banco 1..., debitando a conta da devedora A..., S.A, para a satisfação dos seus próprios créditos, a partir do momento em que foi nomeado o administrador judicial provisório no processo especial de revitalização por ela requerido, despacho esse datado de 31/7/2024. Como sobressai do exposto, além da perturbação do processo negocial próprio de um PER e da potencial capacidade para comprometer a recuperação da empresa, subtraindo-lhe meios financeiros eventualmente essenciais à continuação da actividade e recuperação económica, a cobrança de valores por débito na conta de depósito do devedor, em, aproveitamento da especial natureza da relação contratual (bancária) que tal lhe faculta, permitiria a esse credor, durante a pendência do PER, ir satisfazendo o seu crédito, prevenindo que este – pelo menos na parte assim satisfeita - viesse a ser condicionado pelas soluções ulteriores de um Plano de Recuperação homologado, em termos que constituiriam uma flagrante violação do princípio da igualdade entre credores. Por consequência, caberá impor ao Banco 2... a devolução da quantia de 16.984,28 (dezasseis mil novecentos e oitenta e quatro euros e vinte e oito cêntimos), a qual, necessariamente acrescerá ao valor do crédito que lhe é reconhecido nos autos, na medida em que este já não tenha incluído aquele valor. Em relação ao crédito da Banco 1..., todavia, importa tratar separadamente os montantes por ela debitados antes e depois de 31/7/2024. O que nos transporta para a apreciação da questão que é objecto da ampliação do recurso, requerida pela Banco 1.... Como acima se referiu, dos €59.470,48 (cinquenta e nove mil quatrocentos e setenta euros e quarenta e oito cêntimos) que a Banco 1... cobrou da conta de depósitos da devedora e afetou à redução do valor do seu crédito relacionado nestes autos, o valor cobrado entre 22/7/2024 e 31/7/2024 ascendeu ao total de 28.889,32€; e o remanescente, de 30.581,16€ foi cobrado entre 1/8/2024 e 30/9/2024. Ora, tal como consta expressamente do acórdão supra citado, a extensão do regime do art. 17º-E, nº 1 do CIRE, isto é, a solução de proibição de auto-satisfação dos créditos dos bancos por débito na conta do devedor, só se estabelece a partir do despacho de nomeação do administrador provisório, in casu, proferido em 31/7/2024. Assim, naturalmente, só a partir de 31/7/2024 se mostram ilícitos os débitos operados pela Banco 1... na conta da devedora, num total de 30.581,16€. Assim, à Banco 1... só se poderá determinar a devolução de um tal montante, o qual, subsequentemente, acrescerá ao valor do crédito que lhe é reconhecido nos autos, na medida em que este já não tenha incluído aquele valor. * Resta, em suma, conceder parcial provimento ao recurso interposto pela A..., S.A., bem como julgar procedente a ampliação do objecto de recurso requerida pela Banco 1..., com o que se revogará a decisão recorrida, a substituir por outra que, deferindo parcialmente a pretensão da devedora constante do requerimento de 18/10/2024, determine ao credor Banco 2..., S.A a restituição imediata da quantia que debitou na respectiva conta de depósito, no valor de 16.984,28 (dezasseis mil novecentos e oitenta e quatro euros e vinte e oito cêntimos); e, bem assim, determine ao credor Banco 1... a restituição imediata da quantia que debitou na respectiva conta de depósito, no valor de 30.581,16€ (trinta mil quinhentos e oitenta e um euros e dezasseis cêntimos). Cada um destes valores acrescerá ao valor do crédito reconhecido nos autos a cada um dos credores, respectivamente, na medida em que este já não tenha incluído aquele valor. No restante pretendido em relação à Banco 1..., a que se refere a ampliação do objecto do recurso, se indefere o requerido, conclui-se pelo indeferimento da pretensão da A..., S.A. * Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC): …………………………………. …………………………………. …………………………………. * 3 - DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela A..., S.A., bem como em julgar procedente a ampliação do objecto de recurso requerida pela Banco 1..., com o que revogam a decisão recorrida, que substituem por outra que, deferindo parcialmente a pretensão da devedora constante do requerimento de 18/10/2024, determina ao credor Banco 2..., S.A que lhe restitua da imediato a quantia que debitou na respectiva conta de depósito, no valor de 16.984,28 (dezasseis mil novecentos e oitenta e quatro euros e vinte e oito cêntimos); e, bem assim, determina ao credor Banco 1... que lhe restitua de imediato a quantia que debitou na respectiva conta de depósito, no valor de 30.581,16€ (trinta mil quinhentos e oitenta e um euros e dezasseis cêntimos). Cada um destes valores acrescerá ao valor do crédito reconhecido nos autos a cada um destes credores, respectivamente, na medida em que este já não tenha incluído aquele valor. No restante pretendido em relação à Banco 1..., a que se refere a ampliação do objecto do recurso, se indefere o requerido, conclui-se pelo indeferimento da pretensão da A..., S.A. Custas pelos apelados, na proporção do decaimento, quanto ao recurso da apelante A..., S.A. Custas pela A... S.A.. em relação ao pedido correspondente à ampliação do objecto do recurso, em que decaiu. Reg. e not. Porto, 8 de Abril de 2025 Rui Moreira Artur Dionísio Oliveira Anabela Miranda |