Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2051/21.2T8AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
RECUSA A DEPOR
Nº do Documento: RP202506042051/21.2T8AVR-A.P1
Data do Acordão: 06/04/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O depoimento de parte deve incidir sobre factos relevantes para a discussão da causa que sejam factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento e que não constituam factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
II - Enquanto corolário do direito constitucional à não autoincriminação, ainda que a parte não haja sido constituída arguida, é legítima a respetiva recusa a depor sobre factos suscetíveis de a incriminar ou que possam ser classificados como torpes.
III - O depoimento prestado na ação cível não deve ser entendido como estanque e insuscetível de extravasar para o âmbito penal.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2051/21.2T8AVR-A.P1



Relatora: Teresa Maria Fonseca
1.ª adjunta: Maria Fernanda Almeida
2.ª adjunta: Maria de Fátima Andrade





Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I - Relatório


AA, BB, CC, DD e EE intentaram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra FF, GG e “Banco 1..., S.A.”.
Pedem que:
a - o R. FF e o R. BB sejam solidariamente condenados a pagar aos dois primeiros AA. € 104 931,71 a título de enriquecimento sem causa, acrescidos de juros de mora até pagamento, relativos a cheque;
b - o R. FF seja condenado a pagar aos dois primeiros AA. €15.499,85 a título de enriquecimento sem causa, acrescidos de juros de mora até pagamento, relativos a levantamento em numerário;
c - o 3.o R. seja condenada a pagar, solidariamente ou não com os dois primeiros RR., nos termos do pedido referido em a), €95.540,00, acrescidos de juros de mora desde a citação até pagamento, a título de indemnização por responsabilidade civil;
d - o 1.º R. FF seja condenado a pagar aos AA. € 15.000,00 a título de danos morais, na proporção de €3.000,00 para cada um dos AA..
Alegam que o R. FF manteve com eles uma relação de prestação de serviços de consultoria e gestão financeira. No âmbito dessa relação, o R. ter-se-á apropriado de quantias pertencentes aos AA., inclusive de um cheque no montante de €95.540,00. Tê-los-á ludibriado com recurso a meios ardilosos, nomeadamente comprovativos de pagamento adulterados. Um funcionário do R. “Banco 1...”, em comunhão de esforços com os demais RR., teria permitido que o depósito do cheque fosse indevidamente feito na conta bancária destes últimos.
O R., ora recorrente, e o R. GG contestaram, pugnando pela total improcedência da ação. Deduziram pedido reconvencional com vista ao reconhecimento de um crédito sobre os AA..
Em sede de audiência prévia foi requerido o depoimento de parte do R. à matéria vertida nos artigos. 10.º a 19.º, 25.º a 39.º, 42.º a 50.º e 52.º a 54.º da petição inicial e nos artigos 5.º, 8.º, 9.º, 11.º a 24.º, 32.º a 41.º e 47.º a 51.º da réplica
Corridos os demais termos processuais, em 6-2-2025 iniciou-se a audiência de julgamento.
O mandatário do recorrente apresentou, então, o seguinte requerimento:
“1.º
Conforme despacho proferido em sede de audiência prévia, foi admitida a prestação de depoimento de parte dos Réus à matéria vertida nos artigos 10.º a 19.º, 25.º a 39.º, 42.º a 50.º e 52.º a 54.º da PI, bem como à matéria vertida nos artigos 5.º, 8.º, 9.º, 11.º a 24.º, 32.º a 41.º e 47.º a 51.º da réplica.
2.º
Dispõe o art.º 454.º, n.º 2, do C.P.C. que não é admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
3.º
A ratio desta norma, além de evitar que o direito à não autoincriminação seja ludibriado mediante uma obrigatoriedade de prestação de depoimento em sede civil, é o de impedir o depoimento sobre matéria em que o depoente seria tentado a mentir.
4.º
Os Autores apresentarem uma queixa-crime contra os Réus, dando origem a um processo criminal atualmente a correr termos, em fase de inquérito, no DIAP ..., sob o n.º ....
5.º
Os factos que sustentam tal processo criminal são os mesmos que consubstanciam a causa de pedir dos Autores nos presentes autos: sumariamente, a alegada apropriação ilegítima de quantias pertencentes aos Autores, comportamento esse passível de consubstanciar, em abstrato, crime de abuso de confiança, de burla e de falsificação de documentos.
6.º
No âmbito do processo criminal supra identificado, pelo menos o Réu FF terá sido constituído arguido, sendo que este pediu a emissão da competente certidão ao DIAP ... por requerimento de 4 de fevereiro de 2025, não tendo a mesma sido ainda emitida.
7.º
Dúvidas não poderão subsistir que existe uma coincidência factual entre o objeto do depoimento que fora requerido pelos Autores, conforme delimitado em sede de audiência prévia, e o objeto do processo criminal atualmente em curso.
8.º
Em todo o caso, uma vez que a recusa de depoimento não se afere na globalidade mas perante matéria concretamente identificada, a fim de se aquilatar da legitimidade da recusa dos Réus em depor nestes autos, requer-se que o presente Tribunal oficie o DIAP ... para juntar aos presentes autos certidão narrativa do objeto do processo-criminal a correr sob o n.º ....
9.º
Mais se requerendo o reagendamento de nova data para o eventual depoimento dos Réus após a junção aos autos da referida certidão.
10.º
Em todo e qualquer caso, o art.º 454.º, n.º 2, do CPC, sendo uma declinação do direito constitucional ao silêncio, sempre terá de ser interpretado sistematicamente, em conformidade com a Constituição da República Portuguesa e o Código de Processo Penal.
11.º
E, nesse sentido, não se poderá ignorar que o direito ao silêncio não é apenas uma prerrogativa do sujeito formalmente constituído como arguido, mas também do mero suspeito.
12.º
Esse mesmo entendimento encontra-se chancelado no art.º 7.º da Diretiva 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, que dispõe que “Os Estados-Membros asseguram que o suspeito ou o arguido têm o direito de não se autoincriminar”.
13.º
Aliás, dificilmente se entenderia que, incidindo o objeto do depoimento sobre factos com iminente relevância criminal cuja prática é imputada ao depoente, o direito deste a recusar depoimento estivesse dependente da sua situação processual noutro procedimento.
14.º
Nesse sentido, sem prejuízo do acima requerido, sempre deverá ser julgada legítima a recusa de depoimento dos Réus à matéria dotada de relevância criminal, o que se requer para todos os devidos efeitos legais”.
*

Pelo Mandatário dos Autores foi dito:
Os Autores opõem-se ao requerido pelos Réus, por duas ordens de razão: a primeira, nenhum dos factos constantes da petição inicial tem que ver, sequer de modo reflexo, com os factos de que o Réu FF está a ser investigado no processo crime. Nesse processo crime, apenas lhe é imputado o crime de abuso de confiança ou outros relativamente ao desvio de dinheiro de HH. Ora, este senhor não é sequer parte nesta ação, não é Autor ou Réu. Os factos de que foi requerido o depoimento de parte e admitido reportam a um outro assunto completamente diferente, com outros intervenientes, pelo que não era legítima a recusa do depoimento de parte dos aqui Réus. Mesmo em relação aos factos vertidos em 15 a 18. Já em fase anterior, o Réu admitiu que agilizou que os créditos mencionados em 17 fossem contraídos, esses sim, por pessoas que são os Autores nestes autos, confissão essa que foi aceite pelos Autores, para não mais ser retirada, e reportam a matéria que não é objeto daquele processo crime, porquanto estes créditos foram contraídos, no que a esta ação reporta, com o conhecimento, sabendo os Autores o que é que estavam a fazer, não havendo aqui, nesta parte da contratação dos créditos, qualquer responsabilidade criminal imputada aos Réus, no entanto ela é imputada aos Réus. Coisa diferente é o que o Réu terá feito, alegadamente, com os dinheiros que entraram na conta do referido HH, que, repete-se, não é parte nesta ação e cujos factos também não são objeto desta ação, pelo que carece de fundamento fáctico e jurídico, o peticionado pelos Réus. Mais, não querem ser confrontados com os factos que lhes são imputados nesta ação.
A este propósito foi proferido o seguinte despacho:
Os ora Réus alegam que os ora Autores apresentaram contra os mesmos uma queixa crime, dando origem a um procedimento criminal, atualmente a correr termos em fase de inquérito no DIAP ..., sob o número .... Não apresentaram qualquer prova do alegado, apesar de o referido inquérito ter o número do ano de 2022 e de esta audiência de julgamento estar marcada desde 14/05/2024. Os ora Autores referem que a referida queixa crime respeita a um desvio de dinheiro de uma conta de HH, que não é parte na presente ação.
Sendo assim, uma vez que, efetivamente, nesta ação, nenhuma referência é feita à conta do referido HH e nenhuma outra prova ter sido apresentada, entendemos que não há qualquer justificação para os Réus não prestarem depoimento de parte neste Tribunal.
Relativamente aos factos que são objeto da presente ação, os ora Autores optaram por pedir uma ação cível em vez de apresentar uma queixa crime e nada, se bem vemos, os impedia de o fazer.
Indefere-se, pelo exposto, o ora requerido.
*

Inconformado, o R. FF interpôs o presente recurso. Rematou com as conclusões que em seguida se transcrevem.
I. O Recorrente não se conforma com o teor do Despacho proferido pelo Tribunal a quo, que julgou ilegítima a sua recusa de depoimento com fundamento na potencial relevância criminal da matéria sobre a qual iria versar o depoimento.
II. O art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, refere não ser admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
III. Trata-se de uma norma destinada à proteção da parte obrigada à prestação do depoimento, evitando que seja exposta, dado o dever de verdade que sobre si incide, a confessar factos criminosos por que está a ser investigada.
IV. A norma tem de ser interpretada de forma a legitimar a recusa do depoimento sempre que a matéria sobre a qual recaia o depoimento tenha relevância criminal, independentemente da instauração de um concreto procedimento - criminal no qual o depoente tenha sido formalmente constituído como arguido.
V. Existe um princípio hermenêutico geral de interpretação das normas infraconstitucionais em conformidade com a Constituição, dado o lugar de vértice superior que ela ocupa em qualquer sistema jurídico democrático e a necessidade de assegurar a sua unidade e coerência.
VI. A norma sub judice está intimamente comprometida com a tutela do direito ao silêncio que assiste ao arguido (e ao suspeito) em processo penal - art.º 61.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal.
VII. A proteção do direito ao silêncio do arguido em processo penal é um princípio constitucional não escrito, conforme o admite tanto a generalidade da doutrina como a jurisprudência do Tribunal Constitucional.
VIII. A fim de se salvaguardar a sua conformidade constitucional, o art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil carece de ser interpretado no sentido de que a recusa de depoimento é legítima sempre que o objeto do mesmo incidir sobre matéria da qual possa resultar a responsabilidade criminal do depoente, independentemente da qualidade processual que o depoente assuma num eventual procedimento criminal.
IX. O direito ao silêncio não é uma prerrogativa que assiste apenas ao sujeito formalmente constituído como arguido, mas também ao suspeito, o que resulta, aliás, do art.º 7.º da Diretiva 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016.
X. A matéria sobre a qual iria incidir o depoimento do Recorrente tem uma inequívoca relevância criminal, uma vez que os Autores lhe imputam a prática de atos passíveis de consubstanciar, em abstrato, abuso de confiança qualificada, burla qualificada e falsificação de documentos.
XI. Todos esses crimes são públicos, pelo que o simples facto de os Autores não terem pretendido uma ação penal contra o Recorrente não impede o Ministério Público de promover oficiosamente a ação penal.
XII. Caso, porventura, o art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, não seja passível de ser interpretado num sentido que o resgate de um juízo de inconstitucionalidade material, teremos, então, de concluir que a norma resultante do art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual a recusa de depoimento apenas é legítima caso o depoente tenha sido formalmente constituído como arguido, é materialmente inconstitucional por violação inter alia dos artigos 20.º, n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2, 5 e 8, da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se alega expressamente para os devidos efeitos legais.
XIII. Sem prejuízo, a verdade é que corre contra o Recorrente um inquérito criminal no DIAP ..., sob o n.º de processo ..., ao abrigo do qual foi formalmente constituído como arguido.
XIV. Pelo que o Tribunal a quo sempre deveria ter suspendido a prestação de depoimento até emissão da certidão e, se necessário, ter pedido a emissão de certidão narrativa do objeto do processo.
Tudo compulsado,
XV. através da decisão recorrenda, o Tribunal a quo violou, entre outros, o art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e os artigos 20.º, n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2, 5 e 8, da Constituição da República Portuguesa.
XVI. Por isso, corrigidos que estejam os erros que aqui se enunciam, estará o Tribunal em condições de, por imperativo legal e de justiça, se pronunciar pela legitimidade da recusa de depoimento por parte do Recorrente, se necessário declarando inconstitucional a norma resultante do art.º 454.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual a recusa de depoimento apenas é legítima caso o depoente tenha sido formalmente constituído como arguido, assim revogando o douto despacho em crise, o que se requer para todos os devidos efeitos legais.
XVII. Revogando-se o despacho proferido, e substituindo-o por decisão que julgue procedente a recusa de depoimento, assim se fará, como é apanágio deste Tribunal, a sã e costumeira justiça.
*

Os AA. contra-alegaram, finalizando nos moldes que se seguem.
1. Basta verificar a contestação do Réu para verificarmos que este sustenta a sua defesa num suposto empréstimo, no valor de €85.000,00 (oitenta e cinco mil euros) que refere ter prestado em mão, em dinheiro, aos AA. DD e BB.
2. Empréstimo que foi expressamente impugnado pelos AA., que alegaram na réplica não ter existido.
3. Em sede de requerimento probatório os AA requereram que o Ré FF prestasse depoimento, a este respeito, ao vertido nos artigos 28. a 30. da réplica.
4. É, pois, aqui que falta a coragem ao Réu para prestar depoimento de parte.
5. Que não teve bravura para manter a sua alegação perante a Meritíssima Juiz em sede de audiência de julgamento, ciente também da possibilidade de vir a ser confrontado em sede de acareação.
6. Este facto – alegado empréstimo - em nada está relacionado com o processo-crime pendente, cuja queixa foi apresentada por pessoa que não é parte nesta ação e por factos distintos dos julgados nesta ação.
7. Os factos da petição inicial (10º a 19º, 25º a 39º, 42º a 50º e 52º a 54º) e da réplica (5º, 8º, 9º, 11º a 24º, 32º a 41º e 47º a 51º) sobre os quais o Ré iria prestar depoimento nada têm que esteja relacionado, sequer de modo reflexo, com os factos de que está a ser investigado no processo-crime.
8. Pois que, nesse processo-crime é-lhe imputado um crime de abuso de confiança ou outros relativamente ao desvio de dinheiro de HH que não é parte nesta ação.
9. Factos há até - 15 a 18 da réplica – que o Réu FF já confessou nos articulados, mormente que agilizou a celebração dos créditos mencionados em 17. da réplica, contraídos em nome de pessoas que são os Autores nestes autos e que reportam a matéria que não é objeto daquele processo-crime, porquanto estes créditos foram contraídos, no que a esta ação reporta, com o conhecimento dos Autores, não havendo aqui qualquer responsabilidade criminal que tenha sido imputada ao Réu.
10. O que o Réu terá feito, alegadamente, com os dinheiros que entraram na conta do referido HH, que, repete-se, não é parte nesta ação e cujos factos também não são objeto desta ação, é que estão a ser investigados no processo-crime.
11. Nem no requerimento de recusa de prestação de depoimento de parte, nem agora nas alegações de recurso o Réu indica que facto ou que factos cujo depoimento foi requerido estão ou podem estar relacionados com os presentes autos.
12. Esta falta de alegação impede a análise da bondade dos fundamentos invocados, pois que não basta que exista um processo-crime, é necessária uma conexão com os factos cuja recusa é feita!
13. A prestação de declaração de parte foi requerida e admitida na audiência prévia realizada em 19 de abril de 2023, os AA desconhecem em que data o Réu foi constituído arguido no processo-crime e este também não o indica, sendo que a audiência de julgamento teve início apenas em 6/20/2025.
14. Pelo que não demonstrou o Ré que o seu requerimento era tempestivo.
15. Por tudo o exposto, bem andou a Meritíssima Juiz a quo ao indeferir o requerimento em crise, cuja fundamentação do douto despacho é irrepreensível.
Termos em que, nos melhores de direito e sempre com mui douto suprimento de Vossas Excelências, por não ter violado qualquer norma jurídica, deverá o douto despacho recorrido ser confirmada em toda a sua extensão, negando-se provimento ao presente recurso e assim se fazendo inteira e objetiva Justiça.
*

II - A questão a dirimir consiste em aferir se o 1.º R. deve prestar depoimento de parte quanto à matéria indicada pelos AA..
*


III - Fundamentação de facto

A matéria relevante para a decisão é a que consta do relatório que antecede, passando-se a transcrever, para melhor esclarecimento, os artigos da petição inicial e da réplica a propósito dos quais foi admitido o depoimento de parte do R. FF (da petição inicial: 10º a 19º, 25º a 39º, 42º a 50º e 52º a 54º e da réplica: 5º, 8º, 9º, 11º a 24º, 32º a 41º e 47º a 51º).
Da petição inicial
10.
Para obter mais fundos, com a alegação de que tinham que ser pagas dívidas da 3ª, 4ª e 5º AA à segurança social e que os fornecedores da insolvente A... Lda. iriam executar o seu património, convenceu todos os AA na realização do seguinte negócio:
- Como a 1ª e o 2º AA eram proprietários de uma habitação livre de quaisquer ónus, estes vendê-la-iam ao 5º A EE, que, por sua vez, solicitaria um empréstimo de cerca de Eur. 95.000,00 (noventa e cinco mil euros) ao banco aqui 3ºR.
11.
Desta forma, conseguiam um crédito de cerca de Eur 95.000,00 (noventa e cinco mil euros) que logo que recebido pelos 1ª e 2º AA, seria afeto ao pagamento de diversas responsabilidades dos 3ª, 4ª e 5º AA, bem assim, da herança de que são interessados.
12.
Sendo que, na verdade, a 1ªA AA se manteria a residir naquela habitação que desde sempre foi a sua casa morada de família e, bem assim, a continuar a ser a proprietária - meramente de facto - da mesma.
13.
Pois que, estando o 5ºA (suposto comprador) a viver e a trabalhar no Reino Unido, nenhuma intenção tinha de adquirir ou residir naquela moradia.
14.
Não passando tal esquema engendrado pelo 1º R de uma forma de conseguir mais crédito.
15.
Nessa sequência, os AA. aceitaram a proposta apresentada pelo 1º R, convencidos que seria a melhor forma de resolver os problemas da família.
16.
Face, inclusive, a um cenário dantesco criado pelo 1º R que, na verdade, nunca existiu;
17.
Mais concretamente a afirmação de terem que pagar vários milhares de euros a fornecedores da empresa insolvente da família “A..., Lda.”, que sabem agora os AA. que não são, nem nunca foram, da sua responsabilidade (pessoal).
18.
Bem como avultadas dívidas à segurança social, que na verdade, sabem agora os AA., que nunca existiram.
19.
Com efeito, o 1º R foi pressionando os AA. no sentido de fazerem o mais rapidamente tal operação, afirmando insistentemente que estava por dias a execução pelos fornecedores de todo o património que ainda restava à família.
25.
O primeiro cheque, no valor de Eur 19.460,00, sabem os AA. que nunca foi depositado em qualquer conta, porquanto serviu apenas para constar da escritura, bem assim, presumem os AA., que o banco apenas para constar da escritura emprestaria uma percentagem do valor da compra e venda e não a sua totalidade.
26.
Ou seja, um cheque que apenas serviu para “dar a aparência” de um pagamento que nunca aconteceu
27.
Mera presunção, porquanto todos os procedimentos relativos ao negócio, mormente quanto ao empréstimo bancário, foram promovidos e realizados pelo 1º R FF, encontrando-se o 5ºA (mutuário) a viver em Inglaterra.
28.
Após ter terminado a escritura, o 1º R FF pressionou de imediato a 1º A. no sentido de lhe entregar o cheque para que o fosse depositar na sua conta (da 1ª A) e para após serem feitos os supostos pagamentos urgentes aos credores, nos termos dos acordos vantajosos afirmava já ter apalavrados.
29.
Assim, a 1º A entregou o cheque ao 1º R logo após a escritura, bem assim, à porta do Cartório onde se realizou a escritura e onde se encontrava o ansioso 1º R a aguardar que a mesma terminasse.
30.
Ao contrário do combinado e do que esperavam os AA., tal cheque nunca veio a ser depositado na conta da 1º A.
31.
Sendo que tal cheque apenas poderia, em tese, ser depositado na conta da 1ª A. por se tratar de um cheque bancário e emitido à sua ordem, conforme cópia do cheque que adiante se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (Doc n.º 3).
32.
Questionado o 1.º R. pelos AA sobre o destino dado ao cheque, nunca deu qualquer informação, foi dizendo que tinha pago dívidas, enviando inclusive comprovativo ao 5º A EE, de uma transferência no valor de Eur 32.635,56, que referiu ter servido para pagamento como outros, se veio a descobrir que nunca existiu, conforme documento que adiante se junta e se dá por integralmente reproduzido (doc. nº 4).
33.
Com efeito, como o 1º R sempre que se falava do cheque usava de ameaças e subterfúgios e nada informada de concreto, os AA. começaram a desconfiar e, após, descobriram que nenhuma dívida tinha sido paga pelo 1º R.
34.
Razão que os levou cessar as relações com o 1ºR, operando a competente revogação das procurações que lhe tinham outorgado.
35.
Nessa sequência, quebrada a relação de confiança, tentaram os AA. saber onde teria sido depositado o cheque e descobriram, através do banco 3ªR, que o mesmo tinha sido depositado pelo 1ºR., na conta de que o pai deste, o aqui 2ºR., é titular na 3ªR Banco 1..., com o n.º ...01.
36.
Ora, não percebem os AA, em especial a 1ª A, como se mostrou possível um cheque bancário, à sua ordem, ter sido depositado em conta de terceiro.
37.
A verdade é que, a expensas desse ato ilícito tolerado ou consentido pelo banco 3º R, os 1º e 2º RR enriqueceram, sem causa justificativa, à custa do empobrecimento dos 1ª A e 2º A.
38.
A verdade é que o 1º R e o 2º R em comunhão de esforços pretenderam, como conseguiram, enganando os AA., apropriar-se de Eur 95.540,00 que pertencem aos 1ºA e 2ºA.
39.
Para tanto, necessitaram da ajuda ou incompetência de algum funcionário da 3º R Banco, porquanto em caso algum podia ter sido aceite um depósito de um cheque bancário à ordem da 1º A na conta do 2º R.
42.
Negócio este que que apenas serviu para enriquecer ilícita e indevidamente os 1º e 2º RR, causando o empobrecimento injusto e indevido dos AA.
43.
Em especial da 1ªA, pessoa de idade avançada que apenas quis ajudar o filho, nora e mãe e irmão desta e vê-se agora com a sua casa onerada ao banco por uma dívida que os demais AA não podem, a expensas das condutas dos 1º e 2º R, honrar.
44.
Ou seja, arrisca-se a ficar sem a sua única habitação por uma dívida que não é sua, de cujo valor os 1º R. e 2º R se apropriaram e que a oneram.
45.
O 1º R FF, ainda antes da escritura supra, no dia 14 de maio de 2018, com pretexto de que tinha que ser paga uma dívida ao Banco 2..., usou a procuração que o 2º A BB lhe havia outorgado e levantou em numerário da conta de que a 1º A e 2º A são titulares no Banco 3..., com o n.º ...01, o valor de Eur. 13.800,00 (treze mil e oitocentos euros), conforme documento que adiante se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (Doc. n.º 5).
46.
Sucede que, tal montante não foi utilizado pelo 1ºR FF para pagar tal dívida do 2º A.
47.
Na verdade, o 1º R, mais uma vez, fez seu o dinheiro, dele se apropriando contra a vontade dos 1º A e 2º A, proprietários do dinheiro.
48.
Não lhe dando o destino para qual foi mandatado pelos 1ª e 2º AA.
49.
Pois que, como se provará, tal dívida, ao contrário do que o 1º R havia garantido ao 2º A. nunca chegou a ser paga.
50.
O 1º R locupletou-se, assim, mais uma vez, à custa do empobrecimento dos 1ª A e 2º A.
52.
Os 1º R e o 2º R locupletaram-se à custa dos AA, em especial no que aqui releva, dos 1º A e 2º A.
53.
Sendo que o cheque de avultado valor Eur. 95.450,00 foi depositado pelo 1º R na conta do seu pai 2º R, pessoa que nenhum dos AA sequer conhece.
54.
Aliás, nenhuma relação tinham com o 2º R que fizesse justificar atribuir-lhe um qualquer valor, muito menos 95.540,00 Eur. !!
*
Da réplica
5.
Contrariamente ao alegado pelos RR. em 28º, nenhum pagamento existiu para “evitar o agravamento da solvabilidade da “A..., Lda.”
6.
Pois que, esta empresa há muito se encontrava insolvente, cuja sentença foi pulicada em 23/12/2011.
7.
Após foi para liquidação, tendo o respetivo processo encerrado em 28/4/2014, conforme documento que adiante se junta (Doc n.º 1).
8.
Ou seja, dão-se os RR., mais concretamente o R. FF, ao desplante de vir tentar convencer o Tribunal que a sua atuação visava “evitar o agravamento da solvabilidade da A..., Lda.”, há vários anos extinta!!
9.
Essa era, de facto, a conversa do Réu FF para com os AA. para os convencer a contrariem inúmeros créditos ao consumo e, por final, para os convencer a vender simuladamente a casa morada de família da A. AA, pessoa já de avançada idade.
11.
É certo que com a insolvência de “A..., Lda.” existiram alguns processos intentados por credores a quem tinham sido prestadas garantias pessoais pelo AA.
12.
Apenas estes - só esses - tinham que ser resolvidos.
13.
Sendo manifestamente falso que os AA. tivessem qualquer dívida com o Banco 2..., mormente no que respeita ao processo n.º ..., do juízo de Execução ..., indicado no artigo 20º da contestação/reconvenção.
14.
Tal processo efetivamente existiu, tendo a dívida sido paga pelos AA no longínquo ano de 2012, bem assim, muito antes de sequer conhecerem o R. FF, conforme documentos que adiante se juntam (doc n.º 2 e n.º 3).
15.
Ademais, encontravam-se pendentes, na altura em que conheceram os R. FF, o processo n.º 2158/11.4T2AGD, do juízo de Execução ..., em que era exequente do Banco 4..., SA. e o processo n.º 4280/12.0T2AGD, do mesmo juízo, em que era exequente contra a A. DD, o credor B..., S.A., também indicados no artigo 20º da contestação.
16.
Todavia, para a resolução dos problemas existentes, o Réu FF aconselhou os AA. CC, DD, BB e EE na realização de um procedimento, com os seguintes passos:
1 - Os AA. CC e BB contraírem vários créditos ao consumo rápidos, via net, de aprovação automática;
2 - Procederam à abertura de uma conta bancária, no Banco 3..., em nome de HH, filho dos AA DD e BB;
3 - Após recebidos os dinheiros dos créditos contraídos por CC e BB, os dinheiros eram imediatamente transferidos para a nova conta do HH.
4 - A conta do HH, devidamente provisionada, era exclusivamente movimentada pelo Ré FF para resolver toda e qualquer pendência, sendo apenas este que tinha os acessos online da conta, bem assim as respetivas passwords.
17.
Assim, no período compreendido entre 26/09/2018 e 23/10/2018, em menos de um mês, o Ré FF agilizou a celebração, em nome dos AA. CC e BB, os seguintes créditos:
A) Em nome do A. BB:
- em 26/09/2018, no Banco 3..., 22158,44 Eur
- em 28/09/2018, no Banco 5..., 32437,66 Eur
- em 02/10/2018, na C..., 28036,27 Eur
(conforme documento que adiante se junta (Doc n.º 4)
B) E nome da A. CC:
- em 08/10/2018, na C..., 24102,32 Eur;
- em 17/10/2018, no Banco 5..., 25.021,65 Eur;
- em 23/10/2018, na D..., 10985,63 Eur
(conforme documento que adiante se junta (Doc n.º 5)
18.
Ou seja, o Réu FF, agilizou, como refere, com consentimento dos AA., créditos ao consumo, às taxas que se conhecem, cujo valor ascendeu, pasme-se, a 142.741.97 Eur.
19.
“Agilização” esta que o RR. confessam em 41º da contestação, que se aceita para não mais ser retirada.
20.
Ato contínuo, como se referiu, tais montantes foram transferidos para a conta n.º ...20, do Banco 3..., titulada pelo filho dos AA. DD e BB e apenas movimentada pelo Réu FF, conforme documentos que se protestam juntar (Doc. nº 6 a n.º 10).
21.
Assim, com a conta devidamente provisionada, terá sido paga, no dia 25/10/2018, a quantia exequenda daquele processo intentado pelo Banco 4..., mais concretamente o valor de €22.000,00 (vinte e dois mil euros), conforme documento que adiante se junta (Doc n.º 11).
22.
O que presume pelo descritivo que o R. FF deu à transferência, a saber: 2158/11.4T2AGD
23.
Todavia o R FF, no mesmo dia 25/10/2028, enviou um SMS à A. DD, com a legenda “Adeus Banco 4...”, com um suposto comprovativo de transferência daquela conta, de um valor substancialmente superior - €63.436,82 - conforme documento que adiante se junta (docs. n.º 12 e 13).
24.
Suposto comprovativo porquanto certamente terá sido propositadamente adulterado pelo Ré FF para enganar a A. DD, já que, sabem agora, pela consulta dos respetivos extratos, que nenhuma transferência daquele valor foi efetuada naquela conta.
Ademais,
32.
Nunca, em momento algum, os AA receberam, qualquer quantia do R. FF, mormente os alegados €85.000,00, pasme-se, em numerário!
33.
Ademais, na data a que reporta a fabricada “declaração” – 4 de janeiro de 2018 - o Ré FF confessou aos AA., em especial à A. DD e ao A. EE que os negócios lhe tinham corrido mal em Inglaterra, pedindo-lhe sucessivamente empréstimos de 100,00 Eur, de 200,00 Eur., vários deles transferidos pelo A. EE.
34.
Pelo que, ao que sabem os AA., nessa altura e, bem assim, antes de se apropriar dos vários milhares de euros dos AA., o R FF passava francas dificuldades económicas, vivendo de ajudas!
35.
Ou seja, o R FF não só não emprestou o que não tinha, como, pelo contrário, vários foram os empréstimos de pequenas quantias que solicitou aos AA.
36.
A verdade é que crédito invocado pelos RR., como causa de pedir da reconvenção, com os quais pretendem operar a compensação, não existe, tendo o respetivo pedido de improceder.
37.
O mesmo sucedendo com os supostos “honorários”.
38.
Pois que, o R. FF exigiu aos AA que os seus “serviços” fossem antecipadamente pagos.
39.
Tendo a A. CC pago ao R. FF a quantia total de €13.000,00 (treze mil euros), entregando-lhe, pois, o seu único pé-de-meia, no período compreendido entre meados de 2017 e início de 2018.
40.
O qual correspondeu aos valores solicitados pelo R. FF para proceder tudo quanto tinha prometido à família, composta pelos AA CC, DD, BB e EE.
41.
Sendo que, quanto à A. AA, nenhum serviço ou trabalho foi prestado pelo R FF que lhe pudesse, ainda que abstratamente, dar direito a uma qualquer remuneração.
47.
E manifestamente falso o vertido em 64º e 65º da contestação, bem assim que a A. AA tivesse entregado o cheque a que alude os presentes autos para pagamento de qualquer empréstimo (que nunca existiu) ou pagamento de alegados serviços financeiros prestados pelo R FF.
48.
Nem, aliás, endossou o referido cheque a favor do R. FF.
49.
Não foi, pois, a A. AA que assinou o endossou constante do verso do cheque.
50.
Nunca autorizaria que o cheque fosse depositado na conta do R. FF, nem assumiu que fosse possível um cheque visado/bancário emitido à sua ordem ser depositado em conta que não fosse por si titulada.
51.
A assinatura que consta do verso do cheque –junto como doc. n.º 1 da contestação da R. Banco 1... – não foi aposta pela A. AA, bem assim pelo seu punho.

*


IV - Fundamentação jurídica

A questão sob apreciação consiste na admissibilidade da prestação de depoimento de parte do R. FF à matéria da petição inicial e da réplica indicada pelos AA..
Segundo o art.º 452.º/1 do C.P.C., o juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa.
Prevê o art.º 454.º/1 que o depoimento só pode ter por objeto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.
Nos termos do n.º 2 do mesmo art.º 454.º, não é, porém, admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
Dir-se-á, introdutoriamente, que, ao contrário do pretendido pelos apelados, não se coloca a questão da intempestividade da recusa pelo apelante em prestar depoimento. O facto de o pedido ter sido previamente formulado e deferido, não preclude a possibilidade de, até ao momento da respetiva prestação, o depoente se recusar a responder. Tampouco está afastada a possibilidade de o juiz considerar o depoimento inadmissível. Trata-se de questão que sempre poderá ser avaliada até ao momento da prestação do depoimento.
Está em causa matéria que se prende com direitos fundamentais, com assento constitucional. Até ao momento em que a questão seja concretamente apreciada, um mero despacho formal de admissão não é suscetível de contender com a apreciação casuística do objeto do depoimento sob o ponto de vista do direito da parte a não se autoincriminar.
Retornemos à questão controvertida sob um ponto de vista substancial.
Arguido significa ser um sujeito processual, formalmente constituído como tal, ou contra quem haja sido deduzida uma acusação ou aberta a instrução, sobre quem recaiam, num certo momento processual, fundadas suspeitas de ter praticado ou comparticipado na prática de um crime. Nessa qualidade, goza de um estatuto especial, designadamente um conjunto de deveres e direitos, que lhe são explicados no ato da sua constituição formal (cf. artigos 57.º a 61.º do Código de Processo Penal).
Em termos linguísticos ser arguido significa ter sido repreendido, censurado, condenado, acusado ou qualificado de ser um possível culpado (Dicionário de Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, 2002).
Torpe tem o sentido de contrariar ou ferir os bons costumes, a decência, a moral; revela caráter vil, ignóbil, indecoroso, infame, obsceno, indecente; que causa repulsa, vergonhoso, desonroso, ignóbil; é o contrário de elevado e nobre (Dicionário de Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, 2002).
Está em causa prova ilícita em função do conteúdo do próprio facto ou matéria a demonstrar. A prova não é proibida por causa do respetivo conteúdo intrínseco, mas por relação com quem a produz - a parte, que, a ser o depoimento admissível, se autoincriminaria ou que deixaria a nu a torpeza da sua atuação.
O legislador não colocou na esfera jurídica do depoente a liberdade de escolha de aceitar ou não depor acerca de factos que o possam incriminar ou que sejam torpes. Ao considerar que o depoimento não é admissível, veda a respetiva produção.
Da conjugação destes segmentos normativos retira-se, do ponto de vista positivo, que o depoimento de parte deve incidir sobre factos que interessem à decisão da causa que sejam factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento. Do ponto de vista negativo, que o depoimento não pode incidir sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
O depoimento de parte, integrando-se no capítulo da prova por confissão, constitui um meio processual cujo objetivo fundamental é o de promover e obter de alguma das partes a confissão judicial, enquanto declaração de ciência através da qual se reconhece a realidade de um facto desfavorável ao declarante e favorável à parte contrária (art.º 352.º do C.C.). A teleologia do instituto do depoimento de parte consiste na obtenção de confissão.
Decorre das citadas disposições legais que a parte pode requerer o depoimento de parte, visando uma confissão, que só poderá incidir sobre factos desfavoráveis ao depoente. Estes sempre terão que ser factos em que aquele tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto.
Importa atender aos factos concretos sobre os quais se pretende que recaia o depoimento de parte do R. FF. Isto para determinar se os mesmos constituem factos relevantes para a discussão da causa que sejam factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento. A estes requisitos positivos há de acrescer a circunstância delimitadora de não constituírem factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.
Assim, antes mesmo de aquilatar da medida em que a matéria indicada é suscetível de integrar factos criminosos, importa aferir se pontos da mesma há que, em todo o caso, não integrem factualidade sobre a qual o depoimento deva recair. Tal, nos termos gerais, há de ficar a dever-se à circunstância de a matéria não interessar à discussão da ação, ser repetitiva e/ou conclusiva, ser de natureza jurídica ou carecer de prova documental. A inoportunidade do depoimento de parte poderá ficar ainda a dever-se a estarem em causa factos que não são pessoais do depoente ou factos acerca dos quais o depoente não deva ter conhecimento.
Da matéria da petição inicial:
- os pontos 12, 13, 33 2.ª parte, 43, 53, na parte nenhum dos AA. conhece o 2.º R. e 54 não são factos pessoais ou de que o R. deva ter conhecimento;
- os pontos 14, 16, 26, 31, 33 1.ª parte, 36, 37, 39, 42, 43, 44, 48 e 50 integram matéria conclusiva e/ou de índole jurídica
- os pontos 30, 34, 35, 45, 49, 50, 52 e 53 até na conta do seu pai 2.º R. integram matéria conclusiva e/ou a provar documentalmente;
- o ponto 25 é globalmente incompreensível, não constitui facto pessoal do R. e contém conclusão.
Da matéria da réplica:
- os pontos 48, 49, 50 e 51 não constituem factos pessoais do A. ou de que este deva ter conhecimento;
- os pontos 5, 9 e 34 constituem repetição;
- os pontos 6, 7,11,13, 14, 15, 21, 23 carecem de prova documental;
- os pontos 8, 12, 18, 19, 20, 22, 35, 36, 37 e 40 são conclusivos e/ou repetitivos.
Se bem vemos, restam para apreciação sobre se relativamente aos mesmos deve incidir depoimento de parte do R.:
- da petição inicial, os pontos 10, 11, 15, 17, 18, 19, 27, 28, 29, 32, 38, 46, 47 e 53, na parte relativa a que nenhum dos AA. conhece o 2.º R., pai do 1.º R. e 54.
- da réplica: os pontos 16, 17, 24, 32, 33, 38, 39, 41 e 47.
Expurgada que está a matéria de facto relativamente à qual foi admitido o depoimento de parte do 1.º R. de factos que não são pessoais ou de que não deva ter conhecimento, da matéria jurídica, conclusiva, repetida e que depende de prova documental, analisemos se versa factos criminosos ou torpes de que seja arguido.
Constata-se que não consta dos autos que o 1.º R. haja sido constituído arguido por factualidade relacionada com a da presente ação.
Sustenta, ainda assim, o apelante que o art.º 454.º/2 há de ser interpretado no sentido de que a recusa de depoimento é legítima sempre que o objeto do mesmo incidir sobre matéria da qual possa resultar a responsabilidade criminal do depoente. Isto independentemente da qualidade processual que o depoente em concreto e no momento da prestação do depoimento assuma num eventual procedimento criminal.
Para Isabel Alexandre (in Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, p. 53), a restrição decorrente do n.º 2 do art.º 454.º do C.P.C. consubstancia uma proibição de demonstração de factos criminosos ou torpes, independentemente do meio de prova utilizado.
Preceitua o art.º 61.º/1/d do Código de Processo Penal (C.P.P.) que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, do direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar.
O direito do arguido ao silêncio tem origem no direito à não autoincriminação, corolário do processo equitativo (fair trial), a que se reportam os artigos 20.º/4.º da Constituição, 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
Está em causa o princípio constitucional de proibição da autoincriminação, expresso pelo brocardo nemo tenetur se ipsum accusare.
Segundo este princípio, ninguém é obrigado a auto-incriminar-se ou a contribuir para a sua própria condenação. Todos têm o direito de não testemunhar contra si próprios, de não produzirem prova contra si mesmos ou de fornecer coativamente qualquer tipo de declaração ou informação que os possa incriminar, apresentando elementos que provem a sua culpabilidade.
No fundo, trata-se do princípio segundo o qual, em processo penal, ninguém pode ser coercivamente obrigado a contribuir ativamente para a sua condenação (in ac. da Relação de Coimbra de 24-5-2023, proc. 221/18.0GAMIR.C1, Helena Bolieiro).
O direito do arguido à não auto-incriminação, entendido como o direito de não contribuir para a sua própria incriminação está ligado ao direito ao silêncio. A não ser reconhecido ao arguido o direito a manter-se em silêncio, este seria obrigado a pronunciar-se e a revelar informações que poderiam contribuir para a sua condenação.
O núcleo irredutível do nemo tenetur reside na não obrigatoriedade de contribuir para a auto-incriminação através da palavra, no sentido de declaração prestada no processo e para o processo. A auto-incriminação, a existir, tem de ser livre, voluntária e esclarecida (in ac. da Relação de Évora de 09-10-2012, proc. 199/11.0 GDFAR.E13, Ana Barata Brito).
A jurisprudência tem vindo a consolidar o entendimento de que o depoimento de parte, versando sobre factos favoráveis ao depoente, pode ser valorado à luz do princípio geral da livre apreciação da prova (cf. ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 4-6-2015, proc. n.º 3852/09.5TJVNF.G1.S1, João Bernardo). Nesse caso, o tribunal, não se deverá basear exclusivamente nessas declarações para formar a sua convicção (ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 8-9-2015, proc. n.º 10562/12, Henrique Antunes).
Encontra-se, assim, ultrapassada a conceção restrita segundo a qual o depoimento de parte só pode ser valorado desde que os factos sobre que incide sejam suscetíveis de confissão, sendo antes de admitir a valoração do depoimento de parte, no segmento em que os factos favorecem o próprio depoente, segundo o princípio da livre apreciação da prova por parte do tribunal.
Nada obstando à valoração de factos favoráveis ao depoente que venham a resultar espontaneamente do seu depoimento de parte, a admissão prévia deste meio de prova encontra-se, assim mesmo, sujeita à verificação dos requisitos legalmente previstos para o efeito. E estes encontram-se intrinsecamente ligados ao já explicitado objetivo fundamental do legislador aquando da previsão da possibilidade de as partes prestarem depoimento (que não as declarações previstas no art.º 466.º do C.P.C.): provocar e obter do depoente uma confissão judicial (cf. ac. do S.T.J. de 21-6-2022, proc. 5419/17.5T8BRG.G1-A.S1, Maria João Vaz Tomé).
Em súmula, a proibição contida no art.º 454.º/2 do C.P.C. destina-se à proteção da parte obrigada à prestação do depoimento. Este visa a confissão. O depoente está obrigado a depor com verdade. Obrigá-lo a depor a propósito de factos criminosos equivaleria a um convite à mentira. Tal não pode ter sido querido pelo legislador. O intérprete deve presumir que o legislador adotou as soluções jurídicas mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, conforme se prevê no art.º 9.º/3 do C.C..
Entende-se, assim, que assiste ao R. FF o direito a não depor a propósito da matéria suscetível de o incriminar. Isto apesar de, porventura até à data, não ter sido constituído arguido em função da factualidade invocada. O depoimento prestado na ação cível não deve ser entendido como estanque e insuscetível de extravasar para o âmbito penal. Na verdade, pressupondo-se que o R. FF falasse com verdade, poderia ser o depoimento prestado em tribunal a desencadear o procedimento criminal. O R. tem o direito constitucionalmente protegido a obstaculizar a esse, ao menos em abstrato, possível desenlace.
Em nosso entender, porém, nem toda a factualidade remanescente é de molde a incriminar o R.. Tampouco reveste torpeza para os efeitos do estabelecido no art.º 454.º/2 do C.P.C..
Respigamos a seguinte matéria como penalmente neutra e moralmente inócua:
- da petição inicial:
do ponto 27: todos os procedimentos relativos ao empréstimo bancário foram promovidos e realizados pelo R. FF;
do ponto 29: o 1.º A. entregou o cheque ao 1.º R. após a escritura, à porta do cartório onde se realizou a escritura, onde o 1.º R. se encontrava a aguardar que a mesma terminasse.
da réplica:
16 -, pontos 1, 2 e 3
Ponto 17:
Ponto 33 na parte em que se afirma que o R. FF declarou aos AA. DD e EE que os negócios lhe tinham corrido mal em Inglaterra, pedindo-lhes empréstimos de € 100,00, de € 200,00, transferidos pelo A. EE.
E ainda no que se reporta aos pontos 38, 39, 41 e 47 da réplica.
Ainda assim, a factualidade aludida deverá ser expurgada de repetições, elementos conclusivos e redundâncias.
Em suma, o depoimento de parte do R. FF deverá ser prestado no que se refere à seguinte materialidade:
a - Da petição inicial
do ponto 27: todos os procedimentos relativos ao empréstimo bancário foram promovidos e realizados pelo R. FF;
do ponto 29: o 1.º A. entregou o cheque ao 1.º R. após a escritura, à porta do cartório onde se realizou a escritura, onde o 1.º R. se encontrava a aguardar que a mesma terminasse.
b - da réplica:
do ponto 16: para a resolução dos problemas existentes, o R. FF aconselhou os AA. CC, DD, BB e EE na realização de um procedimento, com os seguintes passos:
1 - Os AA. CC e BB contrairiam vários créditos ao consumo rápidos, via net, de aprovação automática.
2 - Procederiam à abertura de uma conta bancária, no “Banco 3...”, em nome de HH, filho dos AA DD e BB.
3 - Após recebidos os dinheiros dos créditos contraídos por CC e BB, os dinheiros seriam imediatamente transferidos para a nova conta do HH.
Ponto 17: no período compreendido entre 26/09/2018 e 23/10/2018, o R. FF agilizou a celebração, em nome dos AA. CC e BB, dos seguintes créditos:
A) Em nome do A. BB:
- em 26/09/2018, no Banco 3..., 22158,44 Eur
- em 28/09/2018, no Banco 5..., 32437,66 Eur
- em 02/10/2018, na C..., 28036,27 Eur
B) Em nome da A. CC:
- em 08/10/2018, na C..., 24102,32 Eur;
- em 17/10/2018, no Banco 5..., 25.021,65 Eur;
- em 23/10/2018, na D..., 10985,63 Eur
Do ponto 33: o R. FF declarou aos AA. DD e EE que os negócios lhe tinham corrido mal em Inglaterra, pedindo-lhes empréstimos de € 100,00, de € 200,00, transferidos pelo A. EE.
38, 39, 41 e 47.
Do ponto 38: o R. FF exigiu aos AA que os seus serviços fossem antecipadamente pagos.
Do ponto 39: a A. CC pagou ao R. FF a quantia total de €13.000,00 no período compreendido entre meados de 2017 e início de 2018.
Dos pontos 41 e 47: o R. FF não prestou qualquer serviço à A. AA que desse lugar a remuneração

*




V - Dispositivo

Nos termos sobreditos, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso, revogando-se a decisão na parte em que admitiu o depoimento de parte do R. FF a toda a matéria indicada, devendo este ficar circunscrito nos termos que imediatamente antecedem.
*

Custas por apelante e apelados, que se fixam em metade para o apelante e em metade para os apelados, atento o decaimento parcial de cada uma das partes (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).

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Porto, 4 de junho de 2025

Teresa Fonseca
Fernanda Almeida
Fátima Andrade