Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3216/06.2TJVNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AMÉLIA AMEIXOEIRA
Descritores: SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
REQUISITOS DA DECLARAÇÃO EM CONTRÁRIO
Nº do Documento: RP201007013216/06.2TJVNF.P1
Data do Acordão: 07/01/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – São, hoje, requisitos fundamentais da existência de servidão por destinação do pai de família:
a) – Que os prédios em causa tenham pertencido, unitária ou fraccionadamente, ao mesmo proprietário, de cujo tempo provenha a servidão;
b) – Que, quando da separação predial, nada se tenha estipulado em contrário;
c) – Que existam sinais visíveis e permanentes que revelem a servidão: exigindo a lei sinal ou sinais, exige elementos incontroversos, a analisar crítica e qualitativamente pelo julgador e não, necessariamente, completo caminho, se de passagem se trata;
II – A declaração em contrário constante do documento há-de ser feita de forma especialmente clara e terminante, não bastando dizer-se que o prédio se encontra livre de qualquer encargo, quando se aliena o prédio serviente;
III – O simples desaparecimento do sinal antes do acto jurídico que motiva a separação não tem, ou pode, pelo menos sempre, ter como efeito não poder constituir-se a servidão, havendo que ver, designadamente, em que circunstâncias se fizeram desaparecer esses sinais e qual a sua verdadeira motivação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3216/06.2TJVNF.P1
Desembargadora Relatora: Amélia Ameixoeira
Desembargadores Adjuntos: Carlos Portela
Joana Salinas

Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto


RELATÓRIO.
B……….., divorciado e C…………, divorciada, residentes na …., …, …, freguesia de …., concelho de Vila Nova de Famalicão, intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra D……… e mulher E………., residentes na Rua …., nº…., freguesia de …., concelho de Vila Nova de Famalicão, pedindo a condenação dos RR.:
a) A reconhecerem os AA. como donos e legítimos proprietários do prédio descrito no art.1º da p.i.;
b) A restituírem aos AA. a parte do prédio que detêm livre de quaisquer bens, designadamente, os mecanismos que lhes permitem obter a água do poço;
c) A indemnizarem os AA. pelos prejuízos que lhes estão a causar, cuja liquidação se relega para execução de sentença, tudo nos termos e com os fundamentos constantes da petição inicial e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
Os RR. contestaram, por excepção invocando a existência de uma servidão constituída por destinação de pai de família, invocando, ainda a usucapião e por impugnação, nos termos e com os fundamentos constantes da contestação, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
Concluem dizendo que:
A) Deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, em relação ao invocado e nunca questionado direito de propriedade dos Autores sobre o aludido prédio;
B) Serem julgadas procedentes, por provadas, as excepções peremptórias invocadas, absolvendo os Réus, do pedido nas alíneas b) e c), da Petição Inicial, julgando-se a acção improcedente, e, em consequência:
- Serem os Autores condenados a reconhecer que sobre o prédio de que são proprietários foi constituída uma servidão predial, por destinação de pai de família, que legitima os Réus, a usar, para consumo doméstico, a água do poço, sito nesse mesmo imóvel de que são proprietários;
- Serem os Autores condenados a reconhecer que os Réus possuem título que lhes legitima o uso, para consumo doméstico, da água do poço, sito no imóvel, propriedade dos Autores;
- Ainda que assim não se entenda, serem os Autores condenados a reconhecer que os Réus usam e usufruem da água do dito poço há 10, 20, 30 anos, e, consequentemente, reconhecer que foi constituída por usucapião, a servidão predial, sobre o bem imóvel, melhor identificado no artigo 1°, da Petição Inicial;
- Serem os Autores igualmente condenados a abster-se da prática de quaisquer actos que diminuam ou impeçam o normal uso da água, do mencionado poço;
C) Ser a acção ser julgada improcedente, por não provada, quanto ao demais peticionado pelos Autores.
*
Os AA. responderam, pedindo a improcedência das invocadas excepções.
*
Elaborou-se despacho saneador e nos termos do disposto no art.787º, nº3, do C.P.C., dispensou-se a organização dos factos assentes e a elaboração da base instrutória.
Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, como consta da respectiva acta.
Respondeu-se à matéria de facto, não tendo havido reclamações.
*
A final, foi proferida sentença que decidiu julgar parcialmente procedente a presente acção, e em consequência:
- Condenar os RR. a reconhecerem os AA. como donos e legítimos proprietários do prédio descrito no art.1º da p.i.
-Absolver os RR. do demais peticionado.
Julgar a reconvenção procedente e em consequência:
-condenar os AA. a reconhecer que sobre o prédio de que são proprietários e id. em 1 (supra) foi constituída uma servidão predial, por destinação de pai de família, que legitima os Réus, a usar, para consumo doméstico, a água do poço, sito nesse mesmo imóvel de que são proprietários;
- condenar os AA. a reconhecer que os Réus possuem título que lhes legitima o uso, para consumo doméstico, da água do poço, sito no imóvel, propriedade dos Autores;
- condenar os AA. a reconhecer que os Réus usam e usufruem da água do dito poço há 10, 20, 30 anos, e, consequentemente, reconhecer que foi constituída por usucapião, a servidão predial, sobre o bem imóvel, melhor identificado no artigo 1°, da Petição Inicial;
- condenar os AA. a absterem-se da prática de quaisquer actos que diminuam ou impeçam o normal uso da água, do mencionado poço.
*
Inconformados com o teor da decisão dela recorreram os AA/recorrentes, concluindo as alegações de recurso da forma seguinte:
………
………
………
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
*
QUESTÕES A DECIDIR:
- Da admissibilidade da reconvenção.
- Saber se os apelantes devem ser absolvidos da instância reconvencional.
- Da verificação dos pressupostos para a constituição de servidão por destinação de pai de família e por usucapião.
- Da existência de abuso de direito.
*
FUNDAMENTAÇÃO:
A) - DE FACTO:
É a seguinte a decisão de facto:
1- Os AA. são donos e legítimos possuidores, em comum e sem determinação de parte ou direito, de um prédio urbano, designado “Lote n.° 1”, constituído por um terreno para construção, sito no Lugar de ….., freguesia de ….., concelho e comarca de Vila Nova de Famalicão, com a área de 647 m2, inscrito na matriz respectiva sob o artigo 1062° urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 00431/050199 — Oliveira S. Mateus e nela registado a favor dos AA. pela inscrição G-1.
2- O prédio descrito no artigo anterior foi adquirido pelos AA. a E…….. e F………, por escritura de compra e venda de 06/05/1999, celebrada no 2° Cartório Notarial de V. N. Famalicão e exarada de fls. 28 s 29 do Livro n.° 35-F.
3- Nos docs. nºs.1, 2 e 3, juntos com a p.i., aquando da aquisição do referido prédio pelos AA. não constavam quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades sobre o mesmo.
4- Os anteriores proprietários do prédio acima identificado permitiam que os RR. usassem para consumo doméstico, a água de um poço existente no mesmo prédio.
5- Para procederem ao consumo da água do poço, os RR. tinham instalado um motor eléctrico.
6- Em Março de 2006, os AA. notificaram, por carta, os RR. para que estes deixassem de se servir do poço, uma vez que o fornecimento de água nessa zona já se encontrava assegurado pela rede pública e, ainda, porque era sua intenção vender o referido prédio, conforme cópia da carta registada com aviso de recepção junta.
7- Os RR., apesar de notificados pelos AA. para deixaram de fazer uso da água do referido poço, recusam-se a cumprir essa ordem.
8- Os RR. não cumpriram a ordem.
9- O bem imóvel em questão fazia parte do acervo de patrimonial de G………. e mulher H………, constituído por vários prédios, entre os quais o prédio urbano melhor identificado no artigo primeiro da Petição Inicial, conforme consta da relação de bens que faz parte integrante da escritura publica de partilha respectiva.
10- Com vista a abastecer de água sete dos oito imóveis de que eram proprietários, os pais do aqui Réu marido, construíram o mencionado poço de água, no prédio de que ora são proprietários os Autores.
11- Tendo sempre esse mesmo poço, de forma permanente, abastecido todos os prédios de que eram proprietários os pais do Réu marido, com excepção do imóvel descrito na verba número cinco, da referenciada relação de bens.
12- Assim, à vista de todos foi feito o dito poço de água, foi o mesmo vedado na área de sessenta metros quadrados e a água conduzida através de caminho existente de Poente para Nascente, sendo que o era para um tanque e de lá para os referidos prédios.
13- Não existindo em nenhum dos outros imóveis qualquer outro poço.
14- Os sinais eram visíveis e permanentes.
15- A separação dos prédios ocorreu por escritura de partilha — por óbito dos progenitores do Réu marido —, outorgada 5 de Agosto de 1994, exarada a fls. Quatro verso a oito verso, do Livro de Escrituras Diversas n° 44-E, do Primeiro Cartório da Secretaria Notarial de Barcelos.
16- Atento o teor do parágrafo 2°, da fl. numerada de 5, da cópia da escritura de partilha, imediatamente supra identificada, constata-se que através deste instrumento notarial se procedeu à partilha dos bens que constituíam as heranças de G………. e mulher H………, pais de E………. e do ora Réu marido, D……...
17- Prevendo no parágrafo seguinte que, os bens a partilhar seriam os constantes de uma relação devida e legalmente elaborada, fazendo esta parte integrante da dita escritura de partilha.
18- Nessa relação de bens, o imóvel, objecto da presente querela, foi relacionado sob a verba número um, o qual foi adjudicado a H……….
19- Ao aqui Réu D……… foram-lhe adjudicadas as verbas relacionadas sob os números sete e oito, da mencionada relação de bens.
20- Ademais, lê-se na parte final da dita Relação de Bens que “no prédio da verba descrita sob o número um e na extrema Sul-Poente, existe um Poço de Agua que se destina a consumo doméstico de todos os prédios urbanos atrás descritos, com a excepção da verba número cinco, estando o mesmo vedado na área de sessenta metros quadrados, sendo a água conduzida através do caminho existente de Poente para Nascente. As despesas de conservação do Poço ficam a cargo dos proprietários dos referidos prédios urbanos.”
21- Por força do previsto e estatuído na Relação de Bens, anexa à Escritura de Partilha, os ora Réus, desde a data de 5 de Agosto de 1994 até aos presentes dias, de forma pacifica, cordial, e ininterruptamente, consomem a água proveniente do poço sito no prédio, ora propriedade dos Autores.
22- A água do mencionado poço sempre foi usada em proveito dos prédios, anteriormente, reunidos na posse e propriedade dos falecidos progenitores dos Réus.
23- Donde, há mais de 10, 20, 30 anos, os Réus, por si e ante possuidores, sem interrupção temporal, vem usando e fruindo da água proveniente do poço em questão, nele fazendo obras de conservação, instalando mecanismo, mais concretamente motor que permite a extracção da água, dele retirando todas as utilidades.
24- Usufruindo da água, destinada ao uso doméstico.
25- Sem oposição de quem quer que seja, com conhecimento de todas as pessoas, com ânimo de quem exerce direito próprios, no próprio nome e na plena convicção de o fazer seu.
26- Com sinais aparentes que consistem na existência de um poço de dimensões visíveis, vedado na área de sessenta metros quadrados, com a condução da água para os prédios, através de canos, tubos, que percorrem o caminho existente de Poente para Nascente e também pela extracção feita através do motor colocado no poço pelos Réus, sendo que essas condução e extracção, existem desde pelo menos a data da partilha.
27- À vista de todos, de forma a poder ser de todos conhecida tal posse.
28- Sem qualquer violência e que ao longo do tempo vem exercendo, deste modo, sobre tal prédio.
29- Os AA. não tinham conhecimento da celebração da referida escritura de partilha.
30- Os AA. também desconheciam que na relação de bens anexa à referida escritura de partilha, existia uma declaração, assim como um poço de água se destinava a consumo doméstico dos prédios urbanos aí partilhados, conhecimento que só agora tiveram.
31- Os AA., dos lotes disponíveis para venda, escolheram precisamente, o que disponha de um poço de água (lote n°1, em causa nos presente autos) e o lote n° 2, contíguo ao primeiro).
32- Os AA. sabem que todos esses prédios têm actualmente abastecimento público de água.
33- O uso da água do poço por parte dos RR. dificulta o destino do lote, uma vez que o mesmo dificulta a construção de qualquer edifício.
*
CUMPRE DECIDIR:
- Das questões suscitadas relativas á reconvenção.
Os apelantes vêm suscitar diversas questões relativas á reconvenção, alegando nas conclusões que:
17- Não existiu Reconvenção, porquanto os RR./Recorrentes contestaram a acção, por excepção e por impugnação, concluindo com um pedido de condenação dos AA., o qual não tem qualquer fundamento legal, dada a forma como a contestação foi articulada.
18- Acresce que não foi atribuído valor à alegada “Reconvenção”, nem foi paga a taxa de justiça correspondente.
19- O Tribunal “a quo”, considerou existir Reconvenção, e ordenou o registo do pedido Reconvencional, a fls. 91 dos autos.
20- O registo predial da Reconvenção nunca foi realizado pelo Reconvinte, pelo que, caso existisse Reconvenção, o que não se concede, a falta de registo implicava a absolvição da instância do Reconvindo (art. 501º, nº 3 do C.P.C.).
Carece totalmente de sentido a sua alegação.
Desde logo, porque o recurso foi interposto da sentença final, inexistindo nos autos qualquer recurso reportado a questões de natureza processual relativas à reconvenção, razão porque o até agora decidido se deve ter por transitado em julgado.
Mas ainda que assim não fosse, também os apelantes não tinha razão.
Com efeito, o pedido reconvencional foi expressamente admitido a fls.102, foi indicado o respectivo valor a fls.102 e fixado o valor à causa a fls.105.
As questões relativas ao pagamento, ou não, da taxa de justiça, nesta fase processual, apenas terão reflexo em sede de regra de custas.
Quanto à indicada falta de registo da reconvenção, entende-se não ser caso de aplicação da cominação de absolvição da instância prevista no nº3 do art.501º do CPC, já que não se verificou o pressuposto básico ao funcionamento de tal cominação, qual seja a fixação de prazo para o efeito, e o decurso desse prazo sem a parte lograr efectuar o registo.
No mais, implicitamente o tribunal a quo entendeu não ser o registo condição essencial ao prosseguimento da acção, ao elaborar o despacho saneador, com fixação dos factos e elaboração da base instrutória, e ulterior realização da audiência de julgamento com elaboração da sentença final.
As questões suscitadas carecem assim de qualquer apoio legal, improcedendo o recurso com os fundamentos assim indicados.
*
- Da existência de servidão por destinação de pai de família:
A principal questão suscitada nos presentes autos consiste em apurar se a factualidade provada permite concluir que foi constituída uma servidão predial, por destinação de pai de família, que legitime os Réus, a usar, para consumo doméstico, a água do poço, sito imóvel de que são proprietários os AA.
A servidão predial, como resulta do seu conceito legal dado pelo art.º 1543, é um encargo que recai sobre um prédio (o prédio serviente), em proveito exclusivo de outro prédio (o prédio dominante), devendo os prédios pertencer a donos diferentes.
A servidão é um direito real com o conteúdo de possibilitar o gozo de certas utilidades de um prédio em benefício de outro prédio.
A constituição da servidão por destinação do pai de família tem como pressupostos:
1) Os dois prédios devem pertencer ao mesmo dono, verificando-se respectivamente a destinação do antigo proprietário e a destinação do pai de família;
2) Existência de sinais visíveis e permanentes postos em um ou em ambos reveladores de serventia de um para outro.
3) Existência de separação.
- A constituição de servidão por destinação de pai de família, além de existência de sinais, assenta numa manifestação de vontade do transmitente e mesmo do transmissário, que se presume se nada for dito em contrário.
É o que acontece quando, como é usual e de lei, os dois prédios, na ocasião da separação e portanto de constituição da servidão, se encontravam sob o domínio do mesmo proprietário, do mesmo transmitente.
As servidões por destinação do antigo proprietário só se constituem no momento da separação; no entanto, para efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 824, do CC, deverá atender-se à data em que foram postos os sinais reveladores da serventia, pois são eles que comprovam a servidão e a vontade presumida do proprietário, e não apenas à data de separação dos domínios.
A separação dos domínios pode dar-se por qualquer título de transmissão mesmo que não envolva uma manifestação de vontade tácita do proprietário, como acontece na expropriação e na arrematação.
Os sinais reveladores da serventia devem ser tidos como elementos bastantes para, aos olhos da lei, se presumir ao antigo dono dos imóveis a vontade de constituir a servidão correspondente, só podendo obstar a essa constituição uma declaração escrita contrária e não a falta de uma relação negocial no momento da separação, que não se exige, entre o antigo e o novo proprietário.
São, hoje, requisitos fundamentais da existência de servidão por destinação de pai de família:
a) que os prédios em causa tenham pertencido, unitária ou fraccionadamente, ao mesmo proprietário, de cujo tempo provenha a servidão;
b) que, quando da separação predial, nada se tenha estipulado em contrário;
c) que existam sinais visíveis e permanentes que revelem a servidão.
Exigindo, a lei, sinal ou sinais, exige elementos incontroversos, a analisar crítica e qualitativamente pelo julgador e não, necessariamente, completo caminho, se de passagem se trata.
(No sentido dos requisitos expostos, cfr. Ac da RL de 7/2/2000, e da RP de 21/04/2005, proc. nº 0531982, publicado in www.dgsi.pt, a cuja fundamentação se adere no presente Acórdão)
Sufraga-se a posição exposta neste último aresto no sentido de que, da análise do art.1549º resulta desde logo que enquanto a situação de propriedade se mantiver não surge nenhuma consequência jurídica. Só quando um dos prédios for alienado, ou o único prédio se dividir, a manutenção dos aludidos sinais visíveis e permanentes que revelem aquela serventia é havida como prova de servidão. Presume-se desses sinais a constituição da servidão. A não ser que as partes declarem coisa em contrário – tudo fica na sua disponibilidade, mas tal declaração tem de fazer-se no respectivo documento.
Em consequência, enquanto os prédios forem do mesmo dono, logo enquanto não for feita a partilha dos bens, existe apenas uma situação de dependência imobiliária e não qualquer servidão.
Não se olvida que o art.2274º do Código de 1867 falava em servidão. Mas fazia-o em sentido impróprio, já que não se podia falar em servidão entre prédios ou partes de prédios pertencentes ao mesmo dono. A lei actual é mais precisa e fala em “serventia”, exigindo apenas que se trate de sinais que clara e inequivocamente sejam demonstrativos de terem sido postos com a intenção de se transferirem utilidades de um prédio para o outro ou de uma fracção para a outra do mesmo prédio.
Referia a propósito o artigo 523º do Cód. Civil Espanhol, que tem de se tratar de um sinal externo, permanente e visível que revele um uso ou aproveitamento determinado.
Neste sentido, escreveu Carlos Gonçalves Rodrigues, in “Da Servidão Legal de Passagem (Separata do volume XIII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), Almedina, a pág. 93:
“enquanto os dois prédios ou as duas fracções pertencem ao mesmo dono, não se pode falar, [...], em servidão, existindo apenas uma situação de facto que não tem qualquer significado jurídico, pois o proprietário ao gozar as utilidades usa do direito de domínio e não do direito de servidão, só o podendo vir a ter na hipótese dos dois prédios ou das duas fracções se virem a separar [Prof. Pires de Lima, Lições de Direito Civil (Direitos Reais), publicadas pelo Dr. David Fernandes, 4ª ed., a pág. 332], pois é neste momento que a servidão latente e causal, passa a ser aparente e formal [Prof. Dias Ferreira, Cód. Civil Português Anotado, IV, 229]”.
Sobre esta matéria, pode ver-se ainda, com interesse, a Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 80º-186 ss.
Por outro lado, é, de todo, irrelevante os sinais visíveis e permanentes terem sido produzidos no prédio pelo proprietário antecedente, ou por outro ainda anterior a este, ou ainda por um usufrutuário ou locatário—sendo certo, porém, que as coisas não eram assim tratadas no Código de 1867, pois um dos requisitos para que se verificasse a servidão por destinação de pai de família (ut art.º 2274º) era que os sinais visíveis e permanentes fossem postos “por ele”—dono—“ou pelos seus antecessores” [Cfr., v.g., Prof. Mota Pinto, Direitos Reais, a pág. 323 e RDES n.º 21, a pág. 137 e Ac. STJ in Col./STJ 1996, 3º, a pág. 101].
De especial relevo para a questão sub judice é, ainda, o facto de estar na base da figura ou do modo de constituição da servidão de que ora nos ocupamos (destinação do pai de família) a presunção de acordo tácito—uma presunção de intenções imputáveis tanto ao alienante como ao adquirente.
“Releva, assim, a existência, no momento da transmissão, desses sinais, nada sendo dito em contrário no documento de transmissão. Tanto basta para a lei presumir que tanto a pessoa que comprou como a que alienou quiseram constituir uma servidão” [Direitos Reais - segundo as prelecções do prof. Doutor Mota Pinto ao 4º Ano Jurídico de 1970-71-, por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Almedina, a pág. 323].
Os sinais aparentes e permanentes serão havidos como prova de servidão, se ao tempo da separação outra coisa se não houver declarado no respectivo documento. Trata-se de uma declaração (a que se refere a última parte do art.º 1549º do CC vigente e que já era referida na última parte do art.º 2274 do CC de 1867) de capital importância, pois, como já ensinava o Prof. Guilherme Moreira [As Águas no Direito Civil Português, vol. II, a pág. 102, citado por Carlos Rodrigues, ob. cit., a pág. 100], a mesma “pode ser [....] quanto à não subsistência dos encargos atestados por sinal ou sinais aparentes e permanentes, expressa, determinando-se que directamente ficam extintas determinadas servidões, ou consistir em alterações que no modo de ser do prédio sejam feitas ou tenham de efectuar-se em virtude desse título e que pressupunham a supressão de determinados encargos”—sublinhado nosso [Na obra e local acabados de citar se refere, como exemplo de alteração da servidão a fazer no referido documento, o caso de haver uma servidão de passagem de um prédio para outro pertencente ao mesmo proprietário e no referido título de separação declarar-se que a servidão será exercida sobre o mesmo prédio, mas por outro local].
Aliás, é importante realçar que a declaração em contrário constante do documento há-de ser feita de forma especialmente clara e terminante, não bastando dizer-se que o prédio se encontra livre de qualquer encargo, quando se aliena o prédio serviente.
Curioso é que o código civil espanhol referia que os citados sinais não eram havidos como prova da servidão no caso de se verificar a aludida separação do domínio dos dois prédios ou fracções, não só quando outra coisa fosse declarada em contrária no título de alienação, como também no caso de se fazer desaparecer o sinal antes de realizar-se a separação.
Entre nós, porém, tal não se fez constar na lei (cit. art.º 1549 CC). E temos sérias reservas sobre a bondade do entendimento de que o simples desaparecimento do sinal antes do acto jurídico que motiva a separação tivesse, ou pudesse, pelo menos sempre, ter como efeito não poder constituir-se a servidão... Haveria que ver, por exemplo, em que circunstâncias se fizeram desaparecer esses sinais e qual a sua verdadeira motivação.
No caso dos autos, a análise da factualidade provada nos pontos 9) a 28) permite concluir com evidente clareza, que se mostram verificados os pressupostos legais exigidos pelo art.1549º do CC, já que, os dois prédios pertenceram ao mesmo dono (inicialmente os progenitores do apelado marido e depois aos seus herdeiros, em comum e sem determinação de parte ou direito), existem sinais visíveis e permanentes que revelam a serventia de um prédio para outro, e, por escritura pública de partilha outorgada em 05/08/1994, ocorreu a separação dos prédios ora pertencentes aos Apelantes e Apelados, inexistindo no documento respectivo declaração oposta à constituição do encargo.
Alegam os Apelantes que “os factos provados não permitem concluir pela existência da servidão por destinação de pai de família”.
O certo é que resultou provado que a água do mencionado poço sempre foi usada em proveito dos prédios, anteriormente, reunidos na posse e propriedade dos falecidos progenitores dos Réus” cfr. ponto 22 dos Factos Provados.
Assim, a utilização da água nos dois prédios foi iniciada, pelo menos, pelo dono comum desses prédios (progenitores do Apelado marido), enquanto estiveram na sua titularidade, mantendo-se tal utilização estável a partir daí, pois a água continuou a abastecer os dois prédios.
Os Apelantes vêm também alegar, no tocante aos sinais visíveis e permanentes, que os mesmos “existem desde pelo menos a data da partilha”.
No ponto 26) dos factos provados refere-se “com sinais aparentes que consistem na existência de um poço de dimensões visíveis, vedado na área de sessenta metros quadrados, com a condução de água para os prédios, através de canos, tubos, que percorrem o caminho existente de Poente para Nascente e também pela extracção feita através do motor colocado no poço pelos Réus, sendo que essas condução e extracção, existem desde pelo menos a data da partilha.
Resulta desse facto que a condução e a extracção, com as provadas características, existem desde pelo menos a data da partilha.
Mas, os demais sinais visíveis e aparentes referenciados existem desde sempre, e foram colocados pelo mesmo dono, como flui dos factos dados como provados nos pontos 10., 11., 12., 13. e 14, a saber:
- “Com vista a abastecer de água sete dos oito imóveis de que eram proprietários, os pais do aqui Réu marido, construíram o mencionado poço de água, no prédio de que são proprietários os Autores” (sublinhado nosso) – Ponto 10. dos Facto Provados;
- “Tendo sempre esse mesmo poço, de forma permanente, abastecido todos os prédios de que eram proprietários os pais do Réu marido (...)” (sublinhado nosso) – Ponto 11. dos Facto Provados;
- “Assim, à vista de todos foi feito o dito poço de água, foi o mesmo vedado na área de sessenta metros quadrados e a água conduzida através de caminho existente de Poente para Nascente, sendo que o era para um tanque e de lá para os referidos prédios.” (sublinhado nosso) – Ponto 12. dos Facto Provados;
- “Não existindo e nenhum dos outros imóveis qualquer outro poço” – ponto 13., dos Factos Provados;
- “Os sinais eram visíveis e permanentes” (sublinhado nosso) – ponto 14., dos Factos Provados.
Tal factualidade permite assim concluir que aquando a outorga da escritura pública os sinais visíveis e permanentes já existiam, mesmo quanto à condução e à extracção, ainda que inicialmente em moldes diferentes (água conduzida…para um tanque…de lá para os referidos prédios) e, como tal, foram postos pelo mesmo dono.
Os apelantes alegam ainda que a água era conduzida de forma oculta, através de um tubo subterrâneo e não visível.
Ora nada ficou provado acerca da forma como a água é conduzida, a saber se os tubos estão à superfície ou se são subterrâneos, antes se provando, com especial relevo, que a posse era pública e conhecida, pois à vista de todos.
Mas mesmo que se entenda que os tubos são subterrâneos, a servidão é aparente e ainda assim passível de ser constituída quer por destinação de pai de família, quer por usucapião.
Assim, carecem em absoluto de razão os argumentos utilizados pelos apelantes, improcedendo nesta parte o recurso que interpuseram.
*
Do Abuso de direito:
Não obstante os apelantes virem pela primeira vez em sede de recurso invocar a existência de abuso de direito, a circunstância de ser possível o seu conhecimento oficioso leva este tribunal a apreciar a questão suscitada, até porque a parte contrária exerceu já o contraditório respectivo nas suas contra-alegações.
Como fundamento para a sua pretensão, alegam os apelantes que, caso se verificasse a existência de uma servidão para o uso de água a favor dos Apelados, os AA/Recorrentes muito dificilmente vão poder construir uma habitação no lote que compraram, pelo que se verifica uma desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelos RR./Recorridos e o sacrifício imposto pelo exercício aos Apelantes, o que constituiria um manifesto abuso de direito.
Vejamos.
A figura do abuso de direito que funciona como válvula de segurança do nosso ordenamento jurídico, vem regulada no artº 334º do C.Civil, ao referir que "É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costume ou pelo fim social ou económico desse direito."
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil anotado", vol. I, pág. 299, "o exercício de um direito só poderá ser ilegítimo quando houver manifesto abuso, ou seja, quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma clamorosa ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante."
Segundo o Prof. Menezes Cordeiro, in "Tratado de Direito Civil Português", I, Parte Geral, Tomo 1, pág, 241 e segs., "o abuso de direito representa a fórmula mais geral de concretização do princípio da boa fé, constituindo um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e as habilidades das partes, mas com aplicação subsidiária, desde que não haja solução adequada de Direito estrito que se imponha ao intérprete aplicar".
E segundo o Prof. Baptista Machado, in "Obra dispersa" vol I, págs. 415 a 418, "o efeito jurídico próprio do instituto só se desencadeia quando se verificam três pressupostos:
1. Uma situação objectiva de confiança; uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;
2. Investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a ser frustrada;
3. Boa fé da contraparte que confiou: a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé e tenha agido com cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico".
A figura do abuso de direito pode apresentar-se, na prática, em quatro formas-padrão ou modalidades de violação do princípio da boa fé, traduzidas: 1. na proibição de tomar, dolosamente, posições processuais ou "exceptio doli"; 2. a proibição de "venire contra factum propprium"; 3. a proibição de abuso de poderes processuais e 4. a dupla formada pela "surrectio" e pela "suppresio".
E mais em pormenor:
O "venire contra factum propprium" acontece, por exemplo, quando uma situação de aparência jurídica é criada, em termos tais, que cria nas pessoas a legítima confiança ou expectativa de que a posição jurídica contrária não será actuada.
A "surrectio" ou surgimento, como oposto que é da "suppresio" ou neutralização, acontece quando uma pessoa, por força da boa-fé da outra parte, vê surgir na sua esfera jurídica uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria, cfr. Menezes Cordeiro, in obra citada, pág. 241 e segs.
A "suppresio" consiste na situação em que uma pessoa incorre quando, tendo suscitado noutra, por força de um não exercício prolongado, a confiança de que a posição em causa não seria actuada, não pode mais fazê-lo, por imposição da boa fé, implicando a demonstração, ainda que mínima, que da inactividade do lesado resultou uma expectativa fundada de que o direito não seria exercido.
Nenhuma das situações atrás descritas se enquadra no âmbito da factualidade provada.
Aliás, a desproporcionalidade invocada pelos Apelantes entre a vantagem auferida pelos recorridos e o sacrifício imposto pelo exercício aos apelantes, a existir, reconduzir-se-ia a uma situação de colisão de direitos, cujo regime normativo se encontra expresso no art.335º do Código Civil e não de abuso de direito.
Mas ainda assim se entende que também essa situação se não verifica.
Apenas se provou que o uso da água do poço por parte dos RR dificulta o destino do lote, uma vez que o mesmo dificulta a construção de qualquer edifício.
A prova da dificuldade não significa impossibilidade, carecendo por isso da apontada tutela jurídica.
Por tal, entende-se dever improceder também nesta parte o recurso interposto pelos Apelados.
*
DECISÃO:
Nos termos vistos, Acordam os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.

(Este Acórdão foi elaborado pela Relatora e por ela integralmente revisto)

Porto, 1 de Julho de 2010
Maria Amélia Condeço Ameixoeira
Carlos Jorge Ferreira Portela
Joana Salinas Calado do Carmo Vaz