Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
210/25.8T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
LIMITE MÍNIMO ABSOLUTO
Nº do Documento: RP20250930210/25.8T8STS.P1
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O artigo 239.º, n.º 3, al. b) - i), do CIRE determina que se exclua do rendimento disponível a ceder ao fiduciário o valor que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o qual terá sempre como limite mínimo absoluto o valor correspondente a uma RMMG e como limite máximo o valor correspondente a 3 vezes a RMMG (sem prejuízo deste poder ser excedido, por decisão fundamentada do juiz), devendo aquele valor concreto ser fixado neste intervalo tendo em conta a singularidade da concreta situação do devedor e do seu agregado familiar, sem perder de vista o equilíbrio dos interesses conflituantes dos devedores e dos credores, constitucionalmente garantidos.
II – O referido limite mínimo absoluto deve englobar os valores dos subsídios de férias e de Natal, pois estes integram aquele conceito de RMNG.
III – Isso não significa que o valor a excluir do rendimento disponível tenha de ser fixado por referência à retribuição anual mínima garantida, podendo sê-lo por referência ao valor do SMN, desde que seja respeitado o limite mínimo absoluto antes referido, como sucede quando se fixa aquele rendimento indisponível em um SMN e meio vezes 12 meses, e desde que o mesmo corresponda ao valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 210/25.8T8STS.P1





Acordam no Tribunal da Relação do Porto




I. Relatório

AA, residente na Praceta ...., ... ..., veio apresentar-se à insolvência e requerer a exoneração do passivo restante.
A requerente foi declarada insolvente por sentença proferida em 06.02.2025.
O administrador da insolvência (AI), no relatório que apresentou ao abrigo do artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), propôs o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente e pronunciou-se favoravelmente à concessão da exoneração do passivo restante.
Por decisão proferida em 05.07.2025 foi declarado encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente, nos termos do disposto nos artigos 230.º, n.º 1, al. e), do CIRE, admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, nomeado fiduciário o AI e fixado como rendimento disponível anualmente todo aquele que exceder o valor de um SMN e meio multiplicado por 12 meses.
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Inconformada, a insolvente apelou desta decisão, concluindo assim a sua alegação:
«1. O presente Recurso tem por objecto o despacho inicial de exoneração do passivo restante, que fixou 1 (um) salário mínimo nacional e ½, como montante necessário ao sustento digno da Insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.º 2 e 3, al. b) e i) do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
2. Na decisão em crise ficou consignado expressamente que a devedora tem a obrigação de entregar à Sr.ª Fiduciária em cada ano do período de cessão, os montantes que anualmente receba ou que venha a receber e que excedam 12 vezes o valor acima fixado, durante os 3 (três) anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, sendo o rendimento disponível que a devedora venha a auferir cedido à Fiduciária ora nomeada.
3. Estatui o n.º 3 do artigo 239.º do C.I.R.E que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão a) dos créditos a que se refere o art. 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) de que seja razoavelmente necessário para: (i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; (ii) o exercício pelo devedor da sua actividade profissional; (iii) outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”
4. O rendimento excluído da cessão, igualmente denominado de “rendimento indisponível” é caracterizado como a parte suficiente e indispensável para suportar economicamente a existência do devedor.
5. Assim, o mínimo legal concretiza-se na ideia de sustento minimamente condigno e um máximo legal correspondente a 3 vezes o salário mínimo nacional.
6. Consagra-se, assim, uma cláusula aberta de “sustento digno”, com a fixação prévia de um tecto máximo.
7. Tem-se entendido que o “sustento minimamente digno” convoca a ideia de “dignidade da pessoa humana” consagrada, entre outros afloramentos, nos artigos 1.º, 2.º, 13.º, n.º 1, 59.º, e n.º 1, 67.º da Constituição da República Portuguesa, normas que esta, relativamente a direitos fundamentais, manda interpretar e integrar de harmonia com a Declaração.
8. Decorrendo daqui que, o valor do rendimento indisponível terá de ser fixado, assegurando o sustento mínimo indispensável para uma sobrevivência com dignidade e atendendo às circunstâncias de cada caso concreto, encargos e despesas do devedor, passivo e bens apreendidos, mas sempre sem perder de vista que se trata de um período de contenção e sacrifício, a fim de se atingir o referido equilíbrio com os interesses dos credores.
9. Isto posto, in casu a Apelante foi declarada Insolvente a 07.02.2025,
10. E proferiu o Tribunal de 1.ª instância, no despacho inicial de exoneração do passivo restante, fixar 1 (um) salário mínimo nacional e ½, como montante necessário ao sustento digno da Insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.º 2 e 3, alínea b) e i) do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
11. Acontece que, o Tribunal ad quo [sic] mal andou a proferir Despacho nos termos supra referidos,
12. Porquanto, a retribuição mínima nacional garantida (doravante RMMG), enquanto conceito indeterminado, consiste na remuneração básica estritamente indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e, concebida como um patamar mínimo, não pode ser, reduzido seja qual for o motivo.
13. E o tribunal de 1.ª instância considerou apenas “12 vezes o valor acima fixado”
14. Porém, e nos termos e para os efeitos dos artigos 263.º e n.º 1 do artigo 264.º do Código do Trabalho, a RMMG é recebida 14 vezes no ano,
15. Ou seja, o seu valor anual é composto pelo montante mensal, multiplicado por 14,
16. Logo, o mínimo necessário ao sustento digno da insolvente, aqui Apelante, não deverá ser inferior à remuneração mínima anual.
17. Razão pela qual os subsídios de férias e/ou de Natal são parcelas de retribuição do trabalho relevantes e imprescindíveis, e não podem nem devem ser considerados extras para umas férias ou um Natal melhorados.
18. De relevo, para o efeito, deve ser também ter-se em consideração a conjuntura económica, a nível nacional, relacionada com a inflação e o custo de vida, associado à incerteza de empregar pessoas
19. Assim sendo, a retribuição mínima nacional anual é constituída pela RMMG multiplicada por 14,
20. Pelo que a RMMG mensalmente disponibilizada corresponde aquela, multiplicada por 14 e dividida por 12.
21. É este o valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento e que o Estado fixou como o mínimo necessário ao sustento de qualquer trabalhador.
22. Em igual sentido, pugnaram os Acórdãos desta Relação, de 27.02.2018, de Higina Castelo, Processo n.º 1809/17.1T8BRR.L1 e datado de 22.05.2019, Processo n.º 1756/16.4T8STS-D.P1.
23. E os Acórdãos da Relação de Lisboa de 11.10.2016, Processo n.º 1855/14.7CLRS-7, e datado de 11.10.2016, Processo n.º 1855/14.7CLRS-7.
24. Em face do que antecede, mal andou o Tribunal ad quo [sic] desconsiderando os subsídios auferidos pela Apelante, enquanto desempregada, em total desrespeito pelo conceito de Retribuição Mínima Nacional Anual (RMNA).
25. Devendo, por via disso, ser revogado o Despacho em crise e proferido Despacho a fixar valor da RMMG 1 salário minino nacional e 1/2, multiplicado por 14 meses num ano, em respeito pelos n.º 2 e 3, alínea b) e i) do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e dos artigos 263.º e n.º 1 do artigo 264.º do Código do Trabalho».
Não foi apresentada resposta à alegação da recorrente.
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II. Fundamentação

A. Objecto do recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, corresponde à determinação do valor necessário para o sustento minimamente digno da devedora e do seu agregado familiar, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 239.º, n.ºs 2 e 3, al. b) - i).
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B. Os Factos

O Tribunal a quo julgou demonstrados os seguintes factos:
1. A requerente apresentou-se à insolvência por petição inicial de 19.1.2025 e por sentença de 6.2.2025 veio a mesma a ser declarada.
2. Na indicada petição inicial, a requerente deduziu pedido de exoneração do passivo restante e juntou em 17.2.2025 a declaração a que alude o art. 236º, n.º 3 do CIRE.
3. A requerente apresenta um passivo, reconhecido por sentença já transitada em julgado, no montante de € 29.180,16.
4. Não foram apreendidos para a massa insolvente quaisquer bens.
5. A requerente é divorciada e tem um filho menor a seu cargo.
6. A requerente encontra-se desempregada e aufere a quantia de € 591,26 a título de subsídio de desemprego.
7. A insolvente recebe ainda a prestação de alimentos do pai do seu filho, no valor mensal de 150€.
8. A requerente reside em casa arrendada, ascendendo a renda mensal a 400€.
9. Com a insolvente e o seu filho residem ainda uma outra filha daquela, bem como os dois filhos desta, com 3 anos de idade.
10. Para custear as despesas deste conjunto de cinco pessoas, a filha da insolvente contribuiu com o seu vencimento, que se reconduz ao salário mínimo nacional.
11. É com os rendimentos auferidos pela insolvente e a sua filha, bem como com a prestação de alimentos do seu filho, que são custeadas as despesas inerentes à sobrevivência das mesmas e dos filhos menores, nomeadamente a renda da casa, a alimentação, os consumos de energia elétrica, água, gás, o vestuário / calçado, a educação, as deslocações, as despesas médicas e medicamentosas não comparticipadas, etc..
12. A insolvente foi proprietária de um veículo automóvel, com a matrícula ..-..-FL, desde 2011-06-02 até 2023-06-02.
13. A requerente não beneficiou da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência.
14. A requerente não forneceu, por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, com dolo ou culpa grave, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza.
15. Não constam do processo nem foram fornecidos até ao momento elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa da devedora na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º.
16. Não resulta dos autos nem foi alegado e provado que a devedora, com dolo ou culpa grave, violou os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do CIRE, no decurso deste processo.
17. A insolvente não tem antecedentes criminais registados no seu CRC relativos a crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data.
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C. O Direito

1. O instituto da exoneração do passivo restante – inspirado na discharge britânica e norte-americana, mas que chega a nós por influência do direito alemão e que tem paralelo em quase todas as leis de insolvência europeias – foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo CIRE, que entrou em vigor em 2004.
Como ensina Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra, 2021, p. 610), à semelhança do alemão, «o regime português consiste, em traços gerais, na afectação, durante certo período após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não tenha sido possível cumprir, por essa via, durante esse período».
A lei portuguesa não seguiu, portanto, um modelo puro de fresh start, em que a liquidação do património e o pagamento das dívidas têm lugar no processo de insolvência, findo o qual o devedor é libertado das dívidas que não tiverem sido satisfeitas.
O regime legal português aproxima-se mais do modelo do earned start, em que o devedor, findo o processo de insolvência, passa ainda por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamentos das dívidas remanescentes, só então podendo beneficiar de um fresh start, se ficar demonstrado que o merece. Na súmula de Pedro Pidwell (Insolvência das Pessoas Singulares. O “Fresh Start” – será mesmo começar de novo? O Fiduciário. Algumas Notas, in Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, 2016, p. 197), a exoneração do passivo restante «vigente no nosso ordenamento jurídico tem como finalidade precípua facilitar a recuperação/integração socioeconómica do insolvente de boa fé (“honest but unfortunate debtor”), através de um procedimento que, em primeiro lugar, passa pela liquidação do seu acervo patrimonial (art. 156.º e ss), e em segundo lugar pressupõe a cessão ao fiduciário (art. 240.º) da parte considerada disponível do seu rendimento (art. 239.º) e, a final, se o insolvente tiver cumprido com as obrigações de conduta a que está adstrito [art. 239.º, n.º 4, alíneas a) a e)], é-lhe perdoado o remanescente da dívida que ainda subsistir (art. 245.º, n.º 1)». Nas palavras de Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra 2022, p. 401, «[a] exoneração do passivo restante é aplicável exclusivamente aos devedores pessoas singulares (titulares de empresa ou não, titulares de uma grande ou de uma pequena empresa) que se tenham “portado bem”, desde que não tenha sido aprovado e homologado um plano de insolvência».
O aludido período de prova, que a nossa lei designa como período de cessão, tem início com a prolação do despacho inicial, isto é, o despacho em que, por não haver motivos para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz declara que esta será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º do CIRE (cfr. artigo 237.º, al. b), do mesmo código).
2. De harmonia com o disposto neste artigo 239.º do CIRE, o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a um fiduciário escolhido pelo tribunal.
Nos termos do disposto no n.º 3, deste artigo 239.º, o rendimento disponível para cessão engloba todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Alguns autores defenderam que o legislador adoptou um critério objectivo na determinação do valor necessário para o sustento minimamente digno do devedor o do seu agregado familiar, fazendo-o coincidir com o triplo do salário mínimo nacional, sem prejuízo de este valor poder ser excedido por decisão fundamentada do juiz. Nesse sentido vide Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, Lisboa, 2005, p. 194, onde se pode ler o seguinte: «O legislador adopta um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno: 3 vezes o salário mínimo nacional. Merece, pois, aplauso esta solução, que tem ainda a vantagem de assegurar a actualização automática da exclusão».
Contudo, como refere Catarina Serra (cit., p. 620), a jurisprudência propende «para interpretar o critério do “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” como um limite mínimo e o valor correspondente a três vezes o salário mínimo nacional como um limite máximo – que pode ser excedido, mas só em casos excepcionais, por decisão (especialmente) fundamentada do juiz. Não obstante isto – ou por isto mesmo –, o apuramento do montante a excluir envolve sempre uma ponderação casuística por parte do juiz».
Cremos ser mais consentâneo com a letra e com o espírito da norma em apreço afirmar que a mesma se limita a estabelecer um tecto máximo, correspondente a três vezes o SMN, que apenas pode ser ultrapassado por decisão fundamentada do juiz, apelando a uma apreciação casuística do que seja o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o qual não representa, assim, um limite mínimo abstracto, mas antes o valor razoável a fixar pelo tribunal para quele caso concreto. De resto, cremos ser este o entendimento subjacente à jurisprudência maioritária que, como veremos melhor infra, acaba por fazer corresponder aquele limite mínimo abstracto ao valor do SMN, por considerar que abaixo deste valor nunca estará assegurado o sustento minimamente digno do devedor, ainda que, em concreto, o valor razoavelmente necessário para esse sustento minimamente digno possa ser superior.
Na determinação deste valor (razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor) deve atender-se às condições pessoais e de vida do insolvente e do seu agregado, designadamente a sua idade, situação profissional, estado de saúde, rendimentos, composição do seu agregado familiar, encargos essenciais com o seu sustento, habitação, vestuário e despesas de saúde (cfr. ac. do TRL de 12.12.2013, relatado por Vítor Amaral, citado na breve recensão jurisprudencial efectuada por Maria do Rosário Epifânio, Manuel de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra, 2022, p. 409, nota 1303).
Mas, como se afirma no ac. do TRG, de 19.03.1013, relatado por António Santos, igualmente citado por Maria do Rosário Epifânio, tal «não significa que o devedor deva manter “o nível de vida que tinha anteriormente, antes pode/deve mesmo baixá-lo, ainda que tendo sempre como limite o quantum necessário para a salvaguarda de uma sua existência condigna”».
Esta salvaguarda de uma vida condigna assenta directamente no princípio da dignidade humana plasmado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), igualmente aludido no artigo 59.º, n.º 1, al. a), da mesma lei fundamental, cujo reconhecimento exige ao legislador o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna. Neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda (cit., p. 194) escrevem que «[a]s exclusões previstas nas subalíneas i) e ii) [da al. b), do artigo 239, do CIRE] decorrem da chamada função interna do património, enquanto suporte da vida económica do seu titular», que prevalece sobre a sua função externa, enquanto garantia geral dos credores.
Mas o sacrifício desta garantia dos credores deve cingir-se à justa medida do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, para o exercício condigno da sua actividade profissional e para outras despesas que se integrem nesse conceito.
A expressa alusão ao valor razoavelmente necessário para os apontados fins realça, assim, a imprescindibilidade da ponderação dos interesses e dos valores constitucionais em conflito no instituto da exoneração do passivo restante.
Como se afirma no ac. do STJ, de 23.03.2021 (proc. n.º 1155/14.2TBPRD.P2.S1, rel. Ricardo Costa), «a exoneração do passivo restante, na perspectiva do devedor, serve a realização de valores constitucionalmente consagrados, como a liberdade económica (ou, em rigor, a recuperação dessa liberdade) e o direito ao desenvolvimento da personalidade, desde que o devedor não tenha incorrido em condutas culposas e recorrentes relacionadas com a insolvência. Essa tutela, agora na perspectiva do credor, colide naturalmente (ou pode colidir), ao aspirar à liberação, objectiva e subjectiva, das dívidas restantes do devedor, com a tutela constitucional da titularidade dos direitos de crédito de natureza patrimonial, protegidos pela via do art. 62º, 1, da CRP (direito à propriedade privada). Ora, no perímetro da liberdade de conformação do legislador, deve considerar-se que essa conciliação entre valores e direitos constitucionalmente protegidos corresponde a uma ponderação equilibrada de interesses, que não deixa de ter em conta os interesses dos credores (…), ainda que os interesses do devedor insolvente não culposo prevaleçam, tendo em conta o peso do interesse na reintegração na vida económica (e social) e da protecção social do mais fraco (como princípio do Estado Social de Direito)».
A previsão legal da cessão do rendimento disponível a um fiduciário, assim como a própria definição desse rendimento a ceder, traduzem o resultado desta ponderação equilibrada dos interesses em conflito, levada a cabo pelo legislador ordinário no âmbito dos seus amplos poderes de conformação. A este respeito vide Paulo Mota Pinto, Exoneração do Passivo Restante: Fundamento e Constitucionalidade, in III Congresso de Direito da Insolvência, Coord. Catarina Serra, Coimbra, 2015, pp. 175 a 195, que a dada altura afirma o seguinte: «No procedimento conducente à exoneração do passivo restante são também tidos em conta os interesses dos credores, designadamente com a cessão a um fiduciário do rendimento disponível do devedor nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (artigo 239.º, n.º 2, do CIRE), incluindo todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão apenas dos créditos futuros cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz, do que “seja razoavelmente necessário” para o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”, para o exercício pelo devedor da sua actividade profissional, e para outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor» (p. 190).
Tal não significa, porém, que a exoneração esteja condicionada à satisfação, ainda que parcial, dos créditos, tendo em conta a já referida prevalência dos interesses do devedor não insolvente. Mas significa que esta prevalência não é absoluta, impondo-se sacrifícios também ao devedor não culposo para que possa beneficiar da exoneração do passivo restante, nomeadamente uma diminuição do seu nível de vida. A exoneração do passivo restante não se traduz na desresponsabilização do devedor, antes implicando o seu empenho e sacrifício no sentido de comprimir ao máximo as suas despesas, como contrapartida do sacrifício imposto aos credores, tendo em vista o equilíbrio entre dois interesses contrapostos.
Por isso mesmo, a lei não impõe uma correspondência entre o valor a fixar e o montante global das despesas demonstradas pelo devedor insolvente, antes pressupondo um maior rigor no orçamento familiar e uma redução destas despesas ao mínimo indispensável (neste sentido vide Cláudia Oliveira Martins, O procedimento de exoneração do passivo restante, in Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, Abril de 2016, p. 222, onde se citam aos acórdão do TRC de 31.01.2012 e do TRP de 16.09.2014). Dito de outro modo, a lei tem pressuposto que, no período de cessão, o devedor se esforçará por se adequar à especial situação em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida à nova realidade que enfrenta, como é desde logo evidenciado pela modéstia do valor máximo de 3 SMN fixado na lei (cfr. ac. do TRP, de 07.10.2021, proc. n.º 1112/21.2T8VNG-A.P1, rel. Judite Pires).
Cláudia Oliveira Martins, no artigo anteriormente citado, afirma que «[d]e entre os vários critérios possíveis, assentou a jurisprudência base na fixação de um ordenado mínimo nacional (Ac. da R.P. de 15.09.2015), ponderando a composição do agregado familiar, nomeadamente o número de dependentes menores ou em idade escolar (acrescendo àquele montante, em média, ½ ordenado mínimo nacional por cada um dos dependentes), e apenas admitindo que integre o rendimento indisponível despesas de natureza excepcional, nomeadamente, relacionadas com problemas de saúde crónicas».
A mesma autora aplaude esta opção, por dispensar o tribunal de proceder à análise e à ponderação da necessidade de todas despesas do devedor, o que poderia mesmo configurar uma intromissão na vida privada deste. Mas não nega a possibilidade de alterações pontuais, devidas a despesas excepcionais, ou permanentes, devidas ao surgimento de novas despesas, como sucederá no caso de aumento do agregado familiar.
Afigura-se inegável o valor referencial do salário mínimo nacional, assim como do rendimento social de inserção, do subsídio de desemprego e de outras prestações sociais com finalidades similares, que o ac. deste TRP, de 15.05.2015, relatado por José Igreja Matos, igualmente citado por Maria do Rosário Epifânio, considera «noções consolidadas e que reflectem o nosso estado civilizacional relativamente a conceitos como os da dignidade do trabalho».
Também não podemos perder de vista o regime processual civil das impenhorabilidades – que fixa a impenhorabilidade dos «vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado» entre o mínimo de 1 e o máximo de 3 SMN (cfr. artigo 738.º, n.ºs 1 e 3, do CPC) –, cujo paralelismo com a realidade que subjaz à insolvência, enquanto execução universal, é absolutamente inegável e que, por isso mesmo, não pode deixar de ser aí respeitado.
O próprio Tribunal Constitucional já afirmou que «o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos” não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo» (cfr. ac. n.º 177/2002, de 23 de Abril).
De todo o modo, dentro destes limites, cremos que só em concreto se poderá discernir o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, pois é essa avaliação que, em rigor, a lei impõe ao julgador. Aquele valor deverá ser, assim, encontrado em face da situação concreta de cada devedor e respectivo agregado familiar, não obstante as dificuldades que essa ponderação possa encerrar, sem perder de vista que, de harmonia com o disposto no artigo 8.º, n.º 3, do CC, deverão ter-se em devida conta os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, no respeito do principio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP.
Neste sentido se pronunciaram, a título de mero exemplo, os acórdãos: do TRP, de 07.10.2021, já antes citado, do TRG, de 02.03.2023 (proc. n.º 2148/22.1T8GMR.G1, rel. José Carlos Pereira Duarte), do TRC, de 12.03.2013 (proc. n.º 1254/12.5TBLRA-F.C1, rel. Sílvia Pires) e do TRL, de 21.03.2023 (proc. n.º 4479/22.1T8FNC-C.L1-1, rel. Fátima Reis Silva), afirmando-se neste último que «[o] limite mínimo, que não foi objetivado no preceito [do artigo 239.º do CIRE], deve situar-se no montante equivalente a um salário mínimo nacional, valor de referência em sede de penhora, nos termos do art. 738.º, nº3 do CPC, por similitude de razões, sem que isso signifique ser esse valor o critério base de aferição do que seja a quantia razoavelmente necessária para o sustento minimamente digno do devedor».
Tendo em conta tudo quanto ficou exposto, cremos poder afirmar, em síntese conclusiva, que o artigo 239.º, n.º 3, al. b) - i), do CIRE determina que se exclua do rendimento disponível a ceder ao fiduciário o valor que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o qual terá sempre como limite mínimo absoluto o valor correspondente a um SMN e como limite máximo o valor correspondente a 3 vezes o SMN (sem prejuízo deste poder ser excedido, por decisão fundamentada do juiz), devendo aquele valor concreto ser fixado neste intervalo tendo em conta a singularidade da concreta situação do devedor e do seu agregado familiar, sem perder de vista o equilíbrio dos interesses, constitucionalmente garantidos, em conflito.
Nesta operação, é frequente o recurso a uma escala para determinar a capitação dos rendimentos do agregado familiar, nomeadamente a conhecida escala da OCDE ou escala de Oxford, de acordo com a qual se atribui o índice 100 ao 1.º adulto, o índice 0,7 ao 2.º adulto e o índice 0,5 por cada criança, correspondendo o índice 100 ao SMN.
3. Uma outra questão, distinta da anteriormente tratada, mas conexa com ela, tem sido alvo de divergências jurisprudenciais: saber se o limite mínimo da moldura dentro da qual deverá ser fixado o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar corresponde ao valor mensal do SMN, actualmente fixado em 870,00 € (cfr. Decreto-Lei n.º 112/2024, de 19 de Dezembro), ou esse valor acrescido dos subsídios de férias e de natal, isto é, se corresponde, por cada ano de cessão, ao valor da retribuição anual mínima garantida.
Cremos que este último entendimento é o mais consentâneo com a argumentação anteriormente exposta a respeito do valor mínimo necessário para assegurar uma existência digna, tendo em conta que ao considerar, para esse efeito, o valor da RMMG, o legislador não ignora, antes tem em conta, que esta é paga 14 vezes por ano.
Como se afirma no acórdão deste TRP, de 19.03.2024 (proc. n.º 1336/23.8T8AMT-C.P1, rel. Rui Moreira, em que foi adjunto o agora relator), «o legislador considera que o montante do salário mínimo (ou remuneração mensal mínima garantida) correspondendo à remuneração mínima de um trabalhador, há-de ser o minimamente necessário para a sua dignificação enquanto indivíduo, enquanto trabalhador, enquanto membro activo dessa comunidade. Todavia, essa ponderação tem por pressuposto que um tal valor é pago 14 vezes por ano. Ou seja, se tal argumento usa como referência o valor do salário mínimo, para o ter por suficiente, também tem de incluir o pressuposto de que o que é suficiente é o valor mensal pago por 14 vezes. E isso porquanto tal é a medida do salário mínimo, que um trabalhador há-de receber 14 vezes por ano».
Em abono deste entendimento cita-se aí o voto de vencido subscrito pelo Conselheiro João Cura Mariano no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 770/2014 (disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140770.html), no qual a questão é apreciada a propósito da impenhorabilidade de rendimentos, com uma clareza e assertividade que justificam a sua transcrição parcial:
«Para superar as dificuldades da determinação do que é o mínimo necessário a uma subsistência condigna, o Tribunal Constitucional, relativamente aos rendimentos auferidos periodicamente, impôs a impenhorabilidade das prestações periódicas, pagas a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, quando o executado não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda (Acórdão n.º 177/02, acessível em www.tribunalconstitucional.pt) Aproveitou-se, assim, o facto do salário mínimo nacional conter em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos”, para utilizar esse valor, sujeito a atualizações, como aquele, a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica.
No caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao do salário mínimo nacional. E o facto de, nos meses em que são pagos aqueles subsídios, a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsídio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito dos credores, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular.
Não é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência.
Aliás, quando o Tribunal Constitucional escolheu o salário mínimo como o valor de referência para determinar o mínimo de subsistência condigna teve necessariamente presente que o mesmo era pago 14 vezes no ano, circunstância que tem influência na fixação do seu valor mensal, tendo entendido que o recebimento integral de todas essas prestações era imprescindível para o seu titular subsistir com dignidade. Foi o valor dessas prestações, pagas 14 vezes ao ano, que se entendeu ser estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador».
O exposto não significa que o valor a excluir do rendimento disponível tenha de ser fixado por referência à retribuição anual mínima garantida, podendo sê-lo por referência ao valor do SMN ou RMMG, desde que seja respeitado o limite mínimo antes referido, como sucede, por exemplo, quando se fixa aquele rendimento em 1,5 ou 2 SMN vezes 12 meses, e desde que o mesmo corresponda ao valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
4. Foi, precisamente o que sucedeu no caso concreto. Ao fixar o rendimento indisponível para cessão em cada um dos três anos do período de cessão em 12 vezes um SMN e meio, o tribunal a quo excluiu do rendimento disponível um valor anual superior a 14 vezes o SMN, mais concretamente um valor anual de 18 vezes o SMN.
Deste modo, embora a recorrente fundamente o seu recurso, essencialmente, na violação daquele limite mínimo abstracto, facilmente se constata que assim não sucedeu.
Assim, conclusão da recorrente de que o valor a excluir anualmente do rendimento disponível deve corresponder a 14 vezes um SMN e meio – ou seja, a 21 SMN – não encontra fundamento na violação daquele limite mínimo absoluto.
Tal conclusão parece ter implícito o entendimento de que o valor do rendimento indisponível deve ser fixado por referência à RMMG, ou melhor, deve corresponder sempre a 14 vezes um determinado valor mensal, cujo total não pode ser menor que o SMN. Mas já vimos que assim não é. A lei não impõe um critério rígido de indexação, limitando-se a impor um tecto máximo de 3 SMN e, na interpretação que fazemos, um limite mínimo abstracto de 1 RMMG, cabendo ao tribunal determinar, dentro desta moldura, o valor necessário ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, nos termos já expostos.
Nestes termos, a pretensão da recorrente apenas poderá basear-se na consideração de que o valor anual de um SMN e meio vezes 12 (num total de 18 SMN) não é suficiente para prover ao sustento minimamente digno da devedora e do seu agregado familiar, sendo necessário para esse efeito um valor anual correspondente a um SMN e meio vezes 14 (num total de 21 SMN).
Vejamos se assim é.
A respeito das despesas do agregado familiar da insolvente, resulta dos factos provados que aquela é divorciada, tem um filho menor a seu cargo e que com ambos reside uma outra filha da insolvente e os dois filhos desta, com 3 anos de idade.
Mais resulta daqueles factos que a insolvente despende em renda da casa a quantia mensal de 400,00 €.
A recorrente afirma que despende em água, gás, electricidade e telecomunicações a quantia mensal de 230,00 €. Mas tal não resulta dos factos julgados provados pelo Tribunal a quo, nem é inteiramente confirmado pelos documentos juntos pela devedora, os quais apenas comprovam despesas mensais com electricidade no valor de 77,00 €, com a água no valor de 44,00 € e com telecomunicações no valor de 53,55 €, num total de 174,55 €.
Alegou também despesas médicas e medicamentosas no valor de 40,00 € mensais, mas que não se provaram.
As despesas comprovadas, que se reconhece serem indispensáveis ao sustento digno da insolvente e do seu agregado familiar, ascendem assim a um total mensal de 574,55 €.
A estas despesas acrescerão, naturalmente, as relativas a alimentação, vestuário, estudo e transportes, cuja estimativa deverá ter em conta a já apontada necessidade de a insolvente acomodar o seu estilo de vida às exigências decorrentes da admissão da exoneração do passivo restante.
No que concerne aos rendimentos do referido agregado familiar, decorre dos factos provados que a requerente aufere a quantia de 591,26 € a título de subsídio de desemprego e que recebe uma prestação de alimentos do pai do seu filho, no valor mensal de 150,00 €.
Mais decorre daqueles factos que a filha da insolvente contribuiu para as despesas dos cinco com o seu vencimento, que se reconduz ao salário mínimo nacional, sendo com os rendimentos auferidos pela insolvente e pela sua filha, bem como com a prestação de alimentos do seu filho, que são custeadas as despesas inerentes à sobrevivência de todos eles.
Deste modo, durante o período de cessão, ao valor a excluir do rendimento da insolvente disponível para cessão, acrescerá o valor da pensão de alimentos de que beneficia o seu filho menor, no montante mensal de 150,00 €, e o valor do vencimento da sua filha, correspondente ao SMN. Na verdade, por não serem rendimentos da insolvente, nem aquela pensão nem este vencimento integram o rendimento a ceder pela insolvente. Contudo, destinam-se a prover ao sustento dos membros do seu agregado familiar e, por isso, não podem deixar de ser sopesados na determinação daquele valor a excluir do rendimento disponível.
Fixando-se rendimento disponível em 1 SMN e meio vezes 12, o valor máximo que a insolvente, os seus dois filhos e os seus dois netos poderão dispor para prover ao seu sustento será inferior a duas vezes e meia a retribuição anual mínima garantida, o que se afigura insuficiente para prover ao sustento minimamente digno daquelas cinco pessoas.
Fixando-se rendimento disponível em 1 SMN e meio vezes 14, como pretende a recorrente, aquele valor máximo ultrapassará aquele limite de duas vezes e meia a retribuição anual mínima garantida, mas manter-se-á abaixo de três vezes a retribuição anual mínima garantida, valor que se revela necessário ao sustento minimamente digno de dois adultos e três menores (um deles prestes a atingir a maioridade).
Nestes termos procede a apelação. Não obstante, as respectivas custas serão da responsabilidade da recorrente (sem prejuízo do benefício do apoio judiciário), por ser quem retirou proveito da mesma, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão

Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam procedente a apelação e, consequentemente, fixam o valor anual a excluir do rendimento disponível para cessão em 1 SMN e meio vezes 14.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Registe e notifique.





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Porto, 30 de Setembro de 2025

Relator: Artur Dionísio Oliveira

Adjuntos:
Anabela Andrade Miranda (com declaração de voto) [Declaração de voto: - Votei em conformidade com a decisão e respectivos fundamentos, excepto na parte que se refere ao entendimento perfilhado sobre a questão da impenhorabilidade dos rendimentos, em conformidade com a posição por mim assumida em anteriores acórdãos.]

João Proença