Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3410/21.6T8VNG-Y.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS SUBORDINADOS
PESSOAS ESPECIALMENTE RELACIONADAS COM O DEVEDOR
Nº do Documento: RP202509303410/21.6T8VNG-Y.P1
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIAL
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeitos da insolvência, os créditos são garantidos e privilegiados e são subordinados. Todos os que não caibam nestas classificações são créditos comuns.
II - Os créditos subordinados, são os enumerados no artigo 48 do CIRE, que inclui na alínea a) os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva constituição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência
III - São consideradas pessoas especialmente relacionadas com o devedor, as elencadas no art. 49º do CIRE.
IV - Há porém que ter em consideração que o artigo 47, n.º 4 al. b) do CIRE exceciona dos créditos subordinados previstos no art. 48 do CIRE, aqueles que “beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 3410/21.6T8VNG-Y.P1

Tribunal de origem: Tribunal Da Comarca do Porto - Vila Nova de Gaia - Juízo Comércio - Juiz 1

Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Pinto dos Santos
João Diogo Rodrigues

SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõe este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:
A..., S.A., foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais e transitada em julgado.
Na sentença declaratória da insolvência foi fixado o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos.
Findo o prazo para a reclamação, dentro dos 15 dias subsequentes ao termo do referido prazo, o A.I. juntou aos autos a lista de todos os credores por si reconhecidos, obedecendo a todas as formalidades legais.
A 09.08.2021 o credor AA apresentou impugnação ao credito reconhecido pelo A.I. à credora B..., CRL.
A 10.08.2021 a insolvente apresentou impugnação ao crédito reconhecido pelo A.I. à credora BB.
A 12.08.2021 a credora BB apresentou impugnação aos créditos que lhe foram reconhecidos pelo A.I., bem como à credora C..., S.A e a AA.
Os intervenientes exerceram o direito de contraditório.
Foi proferido despacho saneador.
Procedeu-se a audiência de julgamento e no final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto e em resumo decide-se:
I.Julgar procedente a impugnação apresentada pelo credor Dr. AA e, consequentemente, declara-se o não reconhecimento do crédito no montante de € 4.070,77 à B... em relação à devedora/insolvente, devendo o mesmo ser considerado como credito de BB, qualificado como subordinado dada a sua relação especial (acionista) com a insolvente.
II.Julgar improcedente a impugnação apresentada pela devedora/insolvente A..., S.A., no que respeita ao credito da credora BB e consequentemente reconhecer a esta:
a)Um credito laboral no montante de €2.499,59, qualificado como subordinado.
b)Um credito de suprimentos no montante de €66.380,24, qualificado como subordinado.
III.Julgar a impugnação apresentada pela credora BB:
a)Procedente quanto ao credito à herança de CC, reconhecendo à credora BB um credito no montante de €1.1118,40, como subordinado.
b)Procedente quanto ao credito reclamado pela C..., Lda., não lhe reconhecendo o montante de €452,71.
c) Quanto ao crédito de AA:
i)Reconhecer ao credor AA, o montante de €15.270,83, como subordinado, sendo improcedente a impugnação nesta parte.
ii)Reconhecer ao credor AA, o montante de €21.936,89, como subordinado, sendo improcedente a impugnação nesta parte.
iii)Reconhecer ao credor AA, o montante de €1.341,70, como subordinado, julgando-se, procedente a impugnação apresentada tendo em atenção a alternativa da credora impugnante.”
Inconformada, a impugnante BB, veio interpor o presente recurso de APELAÇÃO, apresentando as seguintes conclusões.
(…)
O credor da insolvente AA, veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo da seguinte forma:
(…)
O recurso foi admitidos como apelação, com subida imediata e em separado, com efeito devolutivo.
Foi atribuído ao recurso o valor de €41.544,10.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
Assim, as questões decidendas são as seguintes:
-re-qualificação dos créditos da recorrente;
-impugnação da matéria de facto quanto aos pontos A) e E) e R) do elenco de factos provados.

III-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
A sentença julgou provados os seguintes factos, com relevância para a boa decisão da causa:
A) O impugnante Dr. AA é sócio da insolvente por via da titularidade de 80.000 ações tituladas e nominativas no capital social da insolvente composto por 155.000 ações, com o valor nominal de 0,33€, cada uma (cfr. pág. 5 do livro de registo de ações da insolvente junto como doc. 1 no requerimento de 09.08.2021).
B) Em 09 de Junho de 2021 a Engª. BB e a B... CRL celebraram contrato de cessão de créditos pela qual a última cedeu à primeira o crédito decorrente das rendas vencidas e não pagas pela Insolvente até à data da declaração de insolvência, no valor de €4 070,77 (quatro mil e setenta euros e setenta e sete cêntimos) (doc. 4 junto ao requerimento de 09.08.2021 e pág. 4 da reclamação de créditos junta em anexo como doc. 2).
C) Através do aludido contrato a B... cedeu à Eng.ª BB o crédito decorrente das rendas vencidas e não pagas pela A... S.A. até à data da declaração de insolvência, no valor de €4.070,77 (quatro mil e setenta euros e setenta e sete cêntimos).
D) Tendo a Engª BB pago à B... a quantia de €4.070,77 como contrapartida pela aquisição do crédito de igual valor (cfr. doc. 4 anexo à reclamação de créditos da BB aqui junto como doc. 3 em anexo).
E) A Engª BB é sócia da insolvente sendo a portadora de 75000 tituladas e nominativas no capital social da Insolvente, composto por 155.000 ações com o valor nominal de 0.33€, cada uma (cf. pág. 3 do “livro de registo de ações” da A... junto em anexo como doc. 2 junto ao requerimento de 10.08.2021).
F) A Engª. BB foi administradora única da insolvente entre Fevereiro 2003 e 12.10.2017, cfr. certidão da CRC junta aos autos, tendo sido destituída em AG de sócios de setembro 2017, cfr. doc 3 junto à impugnação da insolvente.
G) Em 16.10.2017 foi designado administrador único o Sr. Dr. AA, que renunciou em 25.07.2018, cfr. doc. 28 junto ao reqto. de 20.08.2021 e certidão da CRC.
H) Em 02.08.2018 foi designado administrador único DD a 2020, cfr. certidão da CRC .
I) O procedimento cautelar instaurado em 2018 pela Engª BB, por sentença proferida em 27.12.2018, procedeu à nomeação do seu pai EE como administrador provisório da insolvente entre 28.12.2018 e outubro de 2019, cfr. docs 1 e 4 juntos ao requerimento de 10.08.2021 e certidão da CRC cfr.Ap. ..., com registo provisório por dúvidas, cancelado em 17.09.2029 com base em decisão judicial de revogação da designação, cfr. Ap. ..., proferida em 05.07.2019, cfr. doc 4, referido supra.
J) Por sentença proferida em 05.07.2019, foi revogada a nomeação de EE como administrador provisório da sociedade.
K) Na lista de créditos junta pelo A.I. em 03.08.2021 foi reconhecido à credora BB um crédito no valor de €2.499,58 referente a créditos laborais qualificado como subordinado.
L) A credora BB celebrou um contrato de trabalho verbal com o seu pai EE, no período em que este foi nomeado judicialmente administrador provisório, em Abril de 2019 por tempo indeterminado.
M) A credora BB exerceu a sua atividade de enóloga na sociedade A... desde Abril 2019.
N) Auferiu remunerações entre 01.04.2019 a 30.04.2020, de categoria de enóloga, cfr. doc 20 junto ao requerimento de 20.08.2021, ref. 39673547.
O) A credora BB fazia parte da lista de todas as pessoas com quem as A... criou vinculo subordinado ou como membro de órgão estatutário e da mesma consta aquela como órgão estatutário e como trabalhadora por conta de outrem, com vinculo com inicio em 01.04.2019 e fim em 09.04.2020, cfr. doc. junto ao requerimento de 20.08.2021, ref.39673430.
P) A credora encontra-se inscrita na segurança social como trabalhadora, cfr. doc. junto pelo ISS no apenso F em 07.01.2025.
Q) A credora BB recebeu em 2019 €20.000,00 a título de pagamento por conta dos suprimentos de €86.380,24, que foram abatidos na conta ..., deixando um saldo de €66.380,24 a favor da credora, cfr. doc. 22 junto ao requerimento de 20.08.2021.
R) O credor AA realizou suprimentos à sociedade de €15,270,83, prestados à sociedade em 2018, bem como de €21.936,89 e 1.341,70, cfr. docs. 1 a 12 juntos ao reqto. De 26.08.2021 refª 39697252.
E foram julgados NÃO PROVADOS, os seguintes factos:
- Não se provou que a credora BB tenha simulado um acordo verbal de contrato de trabalho consigo mesmo.
- Não se provou a existência do credito da C... no montante de €452,71.

IV-IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
Pretende a Apelante a alteração da redação dos pontos A) E) e R) do elenco de factos provados.
Quanto aos factos A) e E), defende que “têm de ser dali parcialmente retirados por contrários ao decidido no âmbito do processo 23077/17.5T8PRT que correu termos no J5 do juiz local civil do tribunal do Porto, tal como resulta dos documentos 14, 15 e 16 juntos pelo Recorrente em 20.08.2021 no requerimento sob o ref. 39673547. Mas também, dos relatórios do sr. AI sobre o estado da liquidação, desde, pelo menos, 16.10.2024 (apenso L, requerimento 50165512, art 118) ou; do doc. 6 junto com o pedido que deu origem ao apenso P (requerimento de 13.12.2022 sob a ref 44132492).
Os factos impugnados são os seguintes:
A) O impugnante Dr. AA é sócio da insolvente por via da titularidade de 80.000 ações tituladas e nominativas no capital social da insolvente composto por 155.000 ações, com o valor nominal de 0,33€, cada uma (cfr. pág. 5 do livro de registo de ações da insolvente junto como doc. 1 no requerimento de 09.08.2021).
E) A Engª BB é sócia da insolvente sendo a portadora de 75000 tituladas e nominativas no capital social da Insolvente, composto por 155.000 ações com o valor nominal de 0.33€, cada uma (cf. pág. 3 do “livro de registo de ações” da A... junto em anexo como doc. 2 junto ao requerimento de 10.08.2021).
Defende a Apelante que se proceda à alteração da redação constante daqueles factos dados por provados para outra conforme com a decisão já transitada em julgado no processo 23077/17.5T8PRT, que se sugere ser a seguinte:
A) O impugnante Dr. AA é sócio da insolvente desde a sua constituição.
E) A Engª BB é sócia da insolvente desde a sua constituição.
Decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa"
A “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei nº 113/XII salientou o intuito do legislador de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada ao referir que “para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar insuficiente, obscura ou contraditória – são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede á reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material”.
A Relação é pois um Tribunal de 2ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior
Há que atender porém, na tarefa de reapreciação da prova produzida que, a apreciação da modificabilidade da decisão de facto é uma atividade reservada a matéria relevante à solução do caso, devendo a Relação abster-se de conhecer da impugnação cujo objeto incida sobre factualidade que extravase o objeto do processo – sendo propósito precípuo da impugnação da decisão de facto, o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido quanto à interferência na solução do caso, ou seja, fica a impugnação limitada àquela cuja alteração/modificação se mostre relevante para a decisão a proferir.
Assim sendo, sob pena de estar a levar a cabo atividade inútil, infrutífera, vã e estéril, deve a Relação abster-se de apreciar da impugnação da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto relativamente a factualidade que não interfere de modo algum na solução do caso, sendo alheia à sorte da ação.
É que a reapreciação da matéria de facto apenas se justifica quando, se for alterada, essa alteração tiver incidência na questão de direito; se assim não suceder, não tem o Tribunal da Relação de proceder à análise do material probatório tendo em vista saber se a prova produzida justifica ou não justifica que determinado quesito seja dado como provado integralmente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe inútil.
Ora, a prova do facto impugnado mostra-se irrelevante para a decisão a proferir, sendo apenas relevante para a decisão a qualidade de sócios da ora Recorrente e Recorrida e já não o número de ações que cada um seja titular no capital social da insolvente, pelo que, não se conhece da alteração requerida.
Quanto á impugnação do facto R), será apreciada a propósito da apreciação da impugnação feita ao reconhecimento dos créditos do recorrido.

V-QUALIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS DA APELANTE
Declarada a insolvência, todo o património do insolvente passa a constituir a massa insolvente. Esta “ destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data a da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo” – artigo 46.º, n.º 1 do CIRE.
Os créditos sobre a insolvência, de modo simples, são todos aqueles cuja causa seja anterior à data da declaração de insolvência – artigo 47.º, n.º 1 e 3 do CIRE.
Já os créditos da massa insolvente, por contraposição aqueloutros, são todos aqueles que têm causa ou fundamento posterior à data da declaração de insolvência.
Nos créditos sobre a insolvência, são subsumidas as seguintes classes de créditos:
a) os créditos garantidos, ou seja os créditos que beneficiem de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais (artigo 47.º, n.º 4, alínea a) do CIRE);
b) os créditos privilegiados, isto é, os créditos que beneficiem de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente (artigo 47.º, n.º 4, alínea a) do CIRE);
c) os créditos comuns, ou seja, os créditos que não são garantidos, não são privilegiados e não são subordinados (artigo 47.º, n.º 4, alínea. c) do CIRE);
d) os créditos subordinados, ou seja, os créditos que são graduados depois de todos os restantes, mesmo depois dos créditos comuns (artigo 47.º, n.º 4, alínea b) do CIRE).
O presente recurso tem como objeto a sentença que procedeu ao reconhecimento e classificação dos créditos, em face da lista de todos os credores reconhecidos apresentada pelo AI, tendo apreciado e decidido as impugnações de créditos que foram apresentadas pelo credor AA; pela insolvente e pela credora BB.
Esta veio insurgir-se quanto à sentença proferida, discordando desde logo quanto à qualificação dos créditos, que lhe foram reconhecidos, como subordinados, defendendo que os mesmos deverão ser classificados como comuns e quanto ao crédito laboral que lhe foi reconhecido, defendendo que deva ser classificado antes, como priveiligiado.
Vejamos.
Foram reconhecidos na sentença recorrida à ora apelante os seguintes créditos:
- Um crédito no montante de €4.070,77 devido pela Insolvente à B..., por rendas vencidas pela ocupação de um locado até à declaração de insolvência que ocorreu em 13.05.2021, cedido pelo credor à ora Recorrente em 09.06.2021 (ponto B, C, D dos factos provados);
- Um crédito no montante de €1 1118,40 devido pela Insolvente à herança̧ de CC, por rendas vencidas pela ocupação de um locado até à declaração de insolvência que ocorreu em 13.05.2021, cedido pelo credor à ora Recorrente em 09.06.2021;
- Um credito laboral no montante de €2.499,59;
Todos estes créditos foram todos classificados na sentença, como créditos subordinados, classificação com a qual a Apelante não concorda.
Na sentença consta a seguinte fundamentação, relativamente ao crédito que foi cedido à Recorrente BB pela B..., que foi considerado como crédito da BB, por força da cessão de créditos realizada em 9.6.2021: “Quanto à qualificação do crédito, entendemos que o mesmo não pode ser qualificado como comum mas como crédito subordinado dado que a Engª. BB, quer à data da apresentação do processo de insolvência, quer à data da cessão do crédito, é uma pessoa especialmente relacionada com a devedora, cfr. artºs.48º, al. a) e 49º, n.º 2, als. a) e c) do CIRE.”
Quanto ao crédito devido pela Insolvente à herança̧ de CC, por rendas vencidas pela ocupação de um locado até à declaração de insolvência que ocorreu em 13.05.2021, cedido pelo credor à ora Recorrente em 09.06.2021, de € 1.118,40, foi feita a seguinte fundamentação: “Quanto ao crédito relativo à herança de CC, no valor de €1.118,40, nos termos da lista de créditos reconhecidos, apenas foi reconhecido o crédito subordinado no montante de € 1.118,40, resultante da cessão de créditos celebrada entre a impugnante e CC-herança, referente a rendas da adega da ... e, como tal deve ser reconhecido neste valor mas qualificado como subordinado atenta a relação especial da credora com a sociedade insolvente.”
Quanto ao crédito laboral no valor de €2.499,58:que foi reconhecido à ora Apelante, consta a seguinte fundamentação: “Porém, entendemos que, quanto à qualificação do mesmo, divergimos quanto ao entendimento da credora - a credora entende que deve ser qualificado como privilegiado, porém, o tribunal entende que o mesmo será subordinado.
Na verdade, o que distingue os dois tipos de créditos é, entre outros aspetos, a circunstância dos créditos subordinados só poderem ser pagos depois de integralmente satisfeitos os créditos comuns [artigo 177.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)], enquanto que os privilegiados serão pagos em 1º lugar. Daí a relevância desta qualificação.
Consideram-se créditos subordinados, entre outros, “[o]s créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva constituição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência” – artigo 48.º, al. a), do CIRE.
E, sendo o devedor uma pessoa coletiva, como sucede na situação presente, são havidas como especialmente relacionados com ele:
“a) Os sócios, associados ou membros que respondam legalmente pelas suas dívidas, e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
b) As pessoas que, se for o caso, tenham estado com a sociedade insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do artigo 21.º do Código dos Valores Mobiliários, em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
c) Os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
d) As pessoas relacionadas com alguma das mencionadas nas alíneas anteriores por qualquer das formas referidas no n.º 1” – artigo 49.º, n.º 2, do CIRE.
In casu, a credora Engª BB é sócia da insolvente sendo portadora de 75000 tituladas e nominativas no capital social da Insolvente, composto por 155.000 ações com o valor nominal de 0.33€, cada uma (cf. pág. 3 do “livro de registo de ações” da A... junto em anexo como doc. 2 junto ao requerimento de 10.08.2021) e foi administradora única da insolvente entre Fevereiro 2003 e 12.10.2017, cfr. certidão da CRC junta aos autos.
O contrato de trabalho foi celebrado com vinculo com início em 01.04.2019 e fim em 09.04.2020.
Perante isto, consideramos provados os respetivos pressupostos, pelo que, se considera que há uma relação especial com a devedora e, consequentemente, entendemos que o crédito só pode ser qualificado como subordinado.”
Discorda a Apelante desta classificação, defendendo que os dois primeiros créditos deverão ser classificados com créditos comuns, e o crédito laboral, como crédito privilegiado.
Quanto aos dois primeiros créditos mencionados, que adquiriu, mediante cessão, defende que, o Tribunal a quo entendeu ter ocorrido, com a cessão uma “mutação da natureza de créditos cedidos”, pela aplicação à parte que assume a posição de cessionário, no momento da celebração da cessão, ocorrida depois da declaração de insolvência, a natureza prevista para créditos constituídos na esfera de pessoa especialmente relacionada com o devedor, gerados no contexto dessa vinculação especial, nos dois anos anteriores ao da proposição da ação de insolvência, quando as duas situações não são de forma alguma análogas e constitui jurisprudência assente, que o momento relevante para a qualificação do crédito é o da sua constituição e apenas este, sendo o direito autónomo do sujeito que o detém.
Entende por isso que, tendo os créditos lhe sido cedidos por um terceiro, a sua qualidade de sócia, no momento da aquisição dos mesmos, não é suscetível de alterar a sua natureza de “comuns”, para “subordinado”.
Já o Recorrido defende posição contrária, alegando que, os créditos que aquela sócia adquiriu a terceiros, após a declaração da insolvência, e que foram todos constituídos em momento em que a BB era sócia da sociedade devem ser equiparados a créditos por suprimentos, por força do princípio da equiparação previsto no artigo 243.º, n.º 5, do CSC ou, subsidariamente, por mera cautela, mas sem conceder, por interpretação literal, como créditos subordinados, por aplicação da norma do artigo 48.º, n.º 1, al. a) do CIRE em conjugação com o artigo 49.º, n.º 2, al a) do CIRE, por serem detidos por pessoa especialmente relacionada como a insolvente, existindo essa relação quer no momento em que os créditos foram constituídos, quer no momento em que foram transmitidos à sócia.
Vejamos.
Atento o disposto no art. 47º, nº 4 do CIRE, para efeitos da insolvência, os créditos são garantidos e privilegiados e são subordinados; todos os que não caibam nestas classificações são créditos comuns. Os créditos garantidos e privilegiados são aqueles que beneficiam, respetivamente, de garantias reais, incluindo privilégios creditórios especiais e privilégios creditórios gerais sobre os bens integrantes da massa insolvente (até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes). Os créditos subordinados, são os enumerados no artigo 48 do CIRE, salvo (estes) se beneficiarem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais que não se extingam por efeito da declaração de insolvência – artigo 47, n.º 4 do CIRE.
O artigo 48 do CIRE enumera os créditos que se devem considerar subordinados (e que, por isso, devem ser graduados depois dos demais créditos sobre a insolvência), sendo tais critérios taxativos, pois que da letra do corpo do artigo não resulta o contrário o que poderia ser facilmente conseguido pela utilização do adverbio «nomeadamente».
Não interessando ao caso presente o que dispõe o preceito nas suas alíneas b) a f), serão créditos subordinados os créditos por suprimentos (alínea g) e os créditos "detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva constituição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência” (alínea a).
A propósito da definição dos (de quem sejam os) credores que se devem considerar como "especialmente relacionados" com o devedor, pessoa coletiva, o n.º 2 do artigo 49 do CIRE, considera, no que aqui importa, os seguintes: a) sócios, associados ou membros que respondam legalmente pelas dívidas (da pessoa coletiva) e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência; c) os administradores, de direito ou de facto, do devedor, e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Para Maria do Rosário Epifânio[1] a filosofia subjacente à classificação como subordinados dos créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor deve-se «à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor relativamente aos demais credores”, por um lado, e, por outro, ao aproveitamento dessas relações especiais feito pelo próprio devedor para frustrar as finalidades do processo de insolvência» (à semelhança, aliás, de outros mecanismos previstos no CIRE, como seja a resolução de atos em benefício da massa insolvente)
Para Rui Pinto Duarte: “o objetivo desta categoria de créditos consistiu na necessidade de distinguir negativamente certo créditos, “em razão dos seus titulares ou em razão das suas características objetivas”[2]
A classificação de determinado crédito como subordinado representa, com efeito, a sujeição do credor a um regime de desfavor, dado que o pagamento desse crédito só tem lugar depois de integralmente satisfeitos os créditos comuns – artigo 177, n.º 1 do CIRE. Trata-se de uma discriminação negativa[3] fundada em razões objetivas (do próprio crédito) ou atinentes ao seu titular (ligadas à pessoa do credor), que se prendem, estas últimas, com a constatação de ser possível que o credor, direta ou indiretamente, tenha acesso a informação relevante sobre a situação do devedor e que daí possa colocar-se numa posição de superioridade face aos restantes credores.", nas palavras usadas no Ac TRC de 2.2.2010[4].
Isto posto, haverá agora que proceder à qualificação dos créditos que foram cedidos à credora ora Apelante, mediante contrato de cessão de créditos realizada em 09.06.2021.
No caso em apreço, tal como foi considerado na sentença, a credora Engª BB, ora Apelante é sócia da insolvente e foi administradora única da insolvente entre Fevereiro 2003 e 12.10.2017, cfr. certidão da CRC junta aos autos, o que a coloca numa posição e sob um estatuto singular relativamente á insolvência, dada essa ligação.
Essa situação coloca-a na posição de “pessoa especialmente relacionadas com o devedor”, constante do elenco do artº 49º do CIRE, como vimos, pelo tratam-se assim de créditos detidos por pessoa especialmente relacionada com o devedor.
Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[5] “A lei fixou, com efeito, nesta norma “um núcleo de pessoas relativamente ás quais, pela particular natureza dos vínculos mantidos com o devedor ou pela proximidade que dele têm, se justifica colocar numa posição e sob um estatuto singular relativamente á insolvência, fundados, no essencial na presunção do maior risco que as operações com eles praticadas pelo insolvente envolvem para o conjunto dos credores.”[6]
Ou, como se pode ler no Acórdão do STJ de 26.01.2021,[7] “acresce que as justificações/explicações que o legislador apontou para a classificação destes créditos como subordinados - situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, relativamente aos demais credores (…) combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco, especial proximidade, dependência ou outras, para praticar atos prejudicais aos credores - redundam, no caso do devedor/pessoa singular, não propriamente no conhecimento mais provável que têm quanto à situação de insolvência daquele (em termos de poderem ter financiado o devedor de forma mais criteriosa ou exercido sobre ele efetiva influência), mas sim, sobretudo, na posição que as mesmas se encontram para poderem atuar de forma prejudicial relativamente aos restantes credores da insolvência, representando, assim, sempre, uma situação de risco na satisfação destes créditos”.
Acontece que estes créditos não foram constituídos pela apelante, mas por terceiros, que lhos cederam, mediante contrato de cessão de créditos.
O instituto jurídico da cessão de créditos, consistente na transmissão singular inter vivos de direitos de crédito, encontra-se regulado nos 577.º a 588.º do CC.
Segundo a noção dada no indicado artigo 577.º, nas palavras de Antunes Varela[8] “a cessão de créditos pode ser definida como o contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito.»
Assim sendo, tal como defende a apelante, atento o regime jurídico da cessão de créditos, esta resolve-se simplesmente na substituição do credor originário por terceiro, mantendo-se inalterados todos os demais elementos da relação obrigacional. Não há, pois, qualquer substituição da obrigação originária por uma nova obrigação; a obrigação é exatamente a mesma, verificando-se apenas uma simples modificação subjetiva que consiste na transferência daquela pelo lado ativo.
Mas a questão de saber se o crédito (comum) que é cedido a uma pessoa especialmente relacionada com o devedor, deverá ou não ser qualificado como subordinado terá que ser solucionada, no caso em apreço, à luz das normas do CIRE, importando saber qual o momento que releva para a qualificação do crédito como subordinado: o momento da sua constituição, ou o momento da cessão.
A resposta é dada pelo artº48.º do CIRE, alínea a), que sofreu recente alteração pela Lei 9/2022 de 11.01, sendo a nova redação a aplicável por força da norma transitória- artº 10º nº 1, (que a manda aplicar de imediato aos processos pendentes).
Dispõe para tanto esta norma o seguinte:
“Créditos subordinados
Consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência, os créditos que preencham os seguintes requisitos:
a)Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva constituição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência; (…)”
A redação anterior à dada pela Lei 9/2022 de 11.01, era a seguinte: “Consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência:
a)Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Relativamente à anterior redação, escreviam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda,[9] relativamente a esta alínea, “o que está aqui em causa é a presunção de os atos praticados pelo insolvente, para mais num período vizinho de abertura do processo de insolvência, com pessoas que, por uma razão ou outra, lhe são próximas, tenderem a beneficiá-las. Daí que, se de tais atos resultam créditos, estes, em caso de consumação da insolvência devem ficar sujeitos a um regime menos favorável que a generalidade dos demais.
(…) Seria, no entanto, fácil defraudar o objetivo da lei se fosse permitido, sem qualquer consequência, aos beneficiários de tais créditos cedê-los a terceiros. Por tal razão, a transmissão não afeta a qualificação do crédito, o que de resto, está de acordo com o princípio nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet.
Também Alexandre Soveral Martins[10], a propósito desta norma na redação anterior, discorre: “Para combater eventuais fraudes, são considerados igualmente créditos subordinados, os que tenham sido transmitidos a outrem por aquelas pessoas especialmente relacionadas com o devedor, se a transmissão se deu “nos dois anos anteriores ao inicio do processo de insolvência. No art. 49º a lei procura esclarecer quem são as pessoas especialmente relacionadas com o devedor, distinguindo consoante o devedor é uma pessoa singular, uma pessoa coletiva ou um património autónomo. Nuns casos encontramos pessoas que pelo menos estariam em condições de poder conhecer a situação em que se encontrava o devedor. Noutros, sujeitos que de alguma forma teriam podido no mínimo influenciar a atuação devedor. Em todos eles encontramos o risco de atuação em prejuízo dos restantes credores”.
Os créditos em causa são créditos constituídos por terceiros, não tendo sido provado que tais credores originários - B... e herança de CC – na data da constituição existisse qualquer relacionamento especial com a devedora que veio a ser julgada insolvente, que justifique a finalidade da norma em análise - o “combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco, especial proximidade, dependência ou outras, para praticar atos prejudicais aos credores”[11].
Tais créditos foram transmitidos à ora Recorrente em 9.6.2021, nos dois anos anteriores ao processo de insolvência, sendo esta pessoa especialmente relacionada com a insolvente, como vimos.
À transmissão dos créditos constituídos e “detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor”, refere-se a segunda parte da alínea a) do artº 48º, que abrange os credores a quem tenham sido transmitidos, ao dizer “e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao inicio do processo de insolvência”.
Do exposto decorre que não tendo aquela qualificação os créditos originários, também não terão por força do ato de transmissão.
O que a lei pretendeu foi evitar a fraude, fazendo com que, se mantivessem as suspeições que a lei pretende sancionar, sobre um crédito subordinado, que é transmitido a um terceiro, porque na génese do crédito junto da insolvente existe um presumido “risco de atuação em prejuízo dos restantes credores”, que o legislador pretende acautelar.
No caso em apreço, inexiste na constituição do crédito tal risco, já que a transmissão dos identificados créditos que temos de considerar comuns, foi feita a pessoa especialmente relacionada com a insolvente.
Não parece relevar que na data da constituição do crédito existisse uma relação especial da devedora com a futura adquirente do mesmo.[12]
Desta forma, é nosso entendimento, que assiste razão á apelante, devendo tais créditos serem classificados como comuns, por se tratarem de créditos que não se reconduzem a nenhuma das outras categorias (art. 47º nº 4 al c) do CIRE).
Uma palavra apenas para dizer que não colhe igualmente a argumentação do Recorrido, na sua pretensão de ver tais créditos qualificados como subordinados, quando afirma nas contra-alegações que tais créditos deveriam não obstante ser considerados subordinados, por força da aliena g) do art. 48º, por entender tratarem-se de suprimentos.
O contrato de suprimento é um negócio jurídico estabelecido entre a sociedade e o sócio, que vem representando uma das formas mais frequentes de financiamento da sociedade e traduz, efetivamente, um investimento do sócio na "sua" sociedade, através da realização de empréstimos a esta e corresponde à fórmula mais antiga da ambição lucrativa: obter fortuna, sem correr risco empresarial.[13]).
Os factos que impõem a subordinação do crédito, resolvem-se numa exceção perentória, dado que a parte que alega essa subordinação opõe ao objeto definido pelo credor reclamante um outro objeto cuja procedência obsta à produção dos efeitos pretendidos por essa parte: a do reconhecimento do seu crédito tal como o reclamou, portanto, como comum ou como garantido, conforme o caso (artº 576 nºs 1 e 3 do CPC). A prova dos factos de que extrai o carácter subordinado do crédito compete, por isso, indubitavelmente, à parte a quem a subordinação do crédito interessa (artº 342 nº 2 do CPC).
Diz o Apelado que ao abrigo do princípio da equiparação, estabelecido no artigo 243.º, n.º 5, do Cód. Soc. Com. (CSC), teríamos sempre que concluir que os créditos que a apelante adquiriu a terceiros, em maio de 2021, há mais de três anos, passam, por esse facto, a ser qualificados como créditos subordinados.
Afirma para tanto que, não se poderia compreender que as entregas de dinheiro feitas diretamente pelo sócia à sociedade, com carácter de permanência, sejam qualificadas como suprimentos, mas que as entregas feitas pelo sócio de dinheiro a credores para adquirir os créditos destes sobre a sociedade, feitas nessa qualidade de sócio, não sejam equiparadas a suprimentos.
Não se ignorando a heterogeneidade dos diversos modos possíveis de financiamento da sociedade, a verdade é que não vemos como é que a aquisição dos créditos pela apelante, por si só, destituída de qualquer outra factualidade, nomeadamente explicativa desses negócios, possa traduzir-se num investimento do sócio na "sua" sociedade, através da realização de empréstimos.
Inexiste assim qualquer factualidade provada que nos permita concluir que se tratem de suprimentos feito pela Apelante à insolvente, ficando assim afastada também a qualificação dos créditos como subordinados, através da inclusão na alínea g) do artº 48º do CIRE.
Terá pois de ser julgada procedente o recurso nesta parte, devendo os créditos em analise serem qualificados como créditos comuns.
Quanto ao crédito laboral reconhecido à Apelante na sentença, defende esta que ocorre erro de julgamento, já que entende que o mesmo não poderia ser qualificado como subordinado, como foi por se atende à qualidade de pessoa especialmente relacionada com a insolvente, da apelante, pois tal contende com o estabelecido pelos artigos pelo artigos 47.º, nº 4, al. b) e 97.º do CIRE.
Isto porque, tal disposição exceciona dos créditos subordinados previstos no art. 48 do CIRE, aqueles que “beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência”.
Ora, diz a apelante, os créditos laborais beneficiarem de privilégio imobiliário especial previsto no art.333.º, n.º 1, al. b), do CT, sendo por isso crédito privilegiado, pelo que se impõe a alteração da qualificação atribuída àqueles créditos de subordinada para privilegiada.
Vejamos.
O privilégio creditório “é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros” – artigo 733.º do Código Civil – sendo que, no caso que aqui nos interessa, os créditos dos trabalhadores são garantidos por privilégio mobiliário geral por força do disposto no artigo 377.º, n.º 1 do Código do Trabalho, e por privilégio imobiliário especial previsto no art.333.º, n.º 1, al. b), do CT.
Quanto ao crédito laboral, na sentença, escreveu-se:
O contrato de trabalho foi celebrado com vínculo com início em 01.04.2019 e fim em 09.04.2020.
Perante isto, consideramos provados os respetivos pressupostos, pelo que, se considera que há uma relação especial com a devedora e, consequentemente, entendemos que o crédito só pode ser qualificado como subordinado.”
Ocorre, na verdade um error in judicando, uma vez que na sentença não se atentou no disposto no artigo 47º nº 4 al b) do CIRE, que dispõe:
4 - Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são:
a) ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ os créditos que beneficiem, respetivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes;
b) ‘Subordinados’ os créditos enumerados no artigo seguinte, exceto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência;”
Ora os créditos laborais, como bem salienta a recorrente são créditos privilegiados e nessa medida, não podem ser considerados subordinados.
Conforme acórdão do TRP de 29.4.2013. P 8610/10.11TBMAI-L.P1, “um crédito que, pela sua natureza objetiva, beneficie de privilégio não pode ser, por outra via, classificado como subordinado porque o privilégio já define uma relação credor/devedor que afasta, ou, pelo menos desconsidera um eventual «relacionamento especial».
Procede assim também este fundamento de recurso, impondo-se a revogação da sentença nesta parte, reclassificando-se os créditos da seguinte forma:
- Um crédito no montante de €4.070,77 devido pela Insolvente à B..., por rendas vencidas pela ocupação de um locado até à declaração de insolvência que ocorreu em 13.05.2021, cedido pelo credor à ora Recorrente em 09.06.2021, classificado como comum;
- Um crédito no montante de €1.1118,40 devido pela Insolvente à herança̧ de CC, por rendas vencidas pela ocupação de um locado até à declaração de insolvência que ocorreu em 13.05.2021, cedido pelo credor à ora Recorrente em 09.06.2021, classificado como comum;
- Um credito laboral no montante de €2.499,59, classificado como privilegiado.
Analisemos agora os demais fundamentos do recurso:
VI-IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO RELATIVA AOS CRÉDITOS DO APELADO:
Pretende a Apelante por último ver alterar o facto R) dos factos provados invocando erro de julgamento, por entender que não foi feita prova suficiente dos créditos reconhecidos ao credor AA.
O facto impugnado tem a seguinte redação:
R) O credor AA realizou suprimentos à sociedade de €15,270,83, prestados à sociedade em 2018, bem como de €21.936,89 e 1.341,70, cfr. docs. 1 a 12 juntos ao reqto. De 26.08.2021 refº 39697252
Através da impugnação deste factos, pretende a Apelante reagir ao reconhecimento dos seguintes créditos, que entende não terem ficado cabalmente demonstrados, assim reconhecidos na sentença:
“i)Reconhecer ao credor AA, o montante de €15.270,83, como subordinado, sendo improcedente a impugnação nesta parte.
ii)Reconhecer ao credor AA, o montante de €21.936,89, como subordinado, sendo improcedente a impugnaçãõ̧o nesta parte.
iii)Reconhecer ao credor AA, o montante de €1.341,70, como subordinado.
Quanto ao primeiro crédito, no valor de €15.270,83, cuja prova foi baseada nos documentos 1 a 12 juntos ao requerimento de 26.08.2021 (no apenso B de Reclamação de Créditos, consultável via citius), defende a Apelante que apenas deverá ser dado como provado um crédito por suprimentos no valor global de €3.352,38, dos 15.270,83 reclamados, pois só os documentos 3, 4 e 7 documentam uma efetiva saída do património do sócio para pagamento de despesas da sociedade, sendo que os demais documentos desacompanhados de outros documentos não demonstram uma saída do património do sócio em beneficio ou em proveito da sociedade.
Concordamos que os documentos 3, 4 e 7 que comprovam pagamentos feitos à Segurança Social e à Autoridade Tributária e Aduaneira, constituem os únicos documentos que comprovam sem margem para dúvidas os pagamentos feitos pelo apelado de valores devidos pela insolvente àquelas entidades.
Tais valores porém, mostram-se incluídos no extrato contabilístico da insolvente referente a período de 1.1.2018 a 31.12.2018, que contempla os demais valores que foram incluídos no computo geral de €15.270,83 reclamados, valores cuja justificação o apelado apresentou, quanto á origem dos mesmos, os quais se mostram suportados por documentos, algo incompletos.
Não obstante, tratando-se de pagamentos feitos para fazer face a despesas do dia-a-dia da insolvente, entendemos ser suficiente a prova mediante a inclusão dos mesmos no extrato contabilístico da sociedade, pelo que, a nosso ver, não existem razões que imponham decisão diversa da decisão do tribunal de primeira instância, assim como a sua imputação como suprimentos, julgando-se improcedente a impugnação nessa parte.
Quanto ao valor incluído no facto R) de €1.341,70 €, trata-se de crédito reconhecido pelo Sr. Administrador da Insolvência na listagem que apresentou.
Discorda a apelante dizendo que tal valor não pode ser reconhecido como crédito do apelado desde logo porque reportando-se a um valor devido a titulo de custas de parte, pela intervenção no Processo 2385/19.6T8VNG, não foi junta qualquer prova de que o reclamante tenha direito a tal quantia.
O tribunal a quo entendeu suficiente o reconhecimento feito pelo AI e os documentos 13 a 15, que a apelante porém considera não demonstrarem ser devido o pagamento.
Os documentos juntos comprovam não obstante, a qualidade de réu na ação judicial identificada (certidão judicial que identifica o numero de processo, o tribunal, as partes e o transito em julgado da sentença), em que figura como autora a ora insolvente, no âmbito do qual foi proferida sentença transitada em 02.03.2020, incluindo os documentos um e-mail do credor AA da insolvente o valor das custas de parte.
Tendo o crédito sido reconhecido pelo AI, considerando a certidão junta, em que aquele figura como réu, não diferimos do entendimento acolhido na sentença, de que o pagamento seja devido pela insolvente.
Finalmente quanto ao valor inscrito no facto R) de €21.936,89 por suprimentos doados, defende a Apelante que tal crédito não pode subsistir.
Alega que a prova a que o tribunal entendeu suficiente para tal foi:
- contrato de doação de 31.12.2015.
- relatório elaborado pela sociedade D... que procedeu à análise aos movimentos lançados nas contas ... e ....
O tribunal entende que decorre o relatório elaborado pela D... que entre 31.03.2010 e 31.12.2011, EE, pai dos credores BB e AA, fez entrar nas contas bancárias da sociedade €43.873,79 a título de empréstimos e que aplicando àquela premissa os termos da doação de 2015, o valor de €21.936,89 dos €43.873,79 listados pelo relatório da D... são de reconhecer ao Reclamante AA.
Contudo, diz a Apelante, nada diz sobre o facto de antes da entrega da reclamação de créditos no processo de insolvência o reclamante AA nunca se ter assumido credor de tal valor, nem agido junto da sociedade ou da Apelante para ver o seu direito de crédito reconhecido.
E nada diz sobre o facto do reclamante AA já ter recebido, em 2018, da Insolvente o pagamento dos créditos que lhe cabiam nos termos da doação através de uma dação em pagamento pela qual recebeu as terras, as licenças e as vinhas da sociedade.
Vejamos.
Consta da sentença a seguinte fundamentação: “Quanto a este montante foi junto o contrato de doação como comprovativo de que o impugnado, por contrato de doação dos seus pais de 31.12.2015, ficou com metade dos suprimentos que aqueles tinham sobre a sociedade, cfr. documento 16 junto ao requerimento de 26.08.2021, ref. 39607252, o qual complementado com o doc. 17 junto ao mesmo requerimento, relatório elaborado pela sociedade D... que procedeu à análise aos movimentos lançados nas contas ... e ..., da análise do qual se conclui que, entre 31.03.2010 e 31.12.2011, EE, pai dos credores BB e AA, fez entrar nas contas bancárias da sociedade €43.873,79 a titulo de empréstimos, em data anterior à doação, por força da qual €21.936,89 dos suprimentos foram doados ao impugnado.
Pelo exposto, será de reconhecer este montante ao impugnado, qualificado como subordinado e, consequentemente, improcedente, nesta parte, a impugnação apresentada pela credora impugnante BB.”
Relativamente a este crédito, pensamos que assiste razão à impugnante, pois o tribunal não considerou o documento autentico – certidão da escritura pública de dação em pagamento celebrada em 24.8.2018, - junta pela Apelante na resposta que apresentou, nos termos da qual, a insolvente procedeu ao pagamento dos créditos de suprimentos no valor de global de €428.470,00, mediante dação em pagamento.
Inexistem factos, nem razões, para não se considerarem que todos os suprimentos recebidos em doação pelo Reclamante AA não tenham ficado quitados com esta dação em cumprimento.
Diferente tratamento, merecem os demais créditos de suprimentos considerados na alínea R), atenta a data dos mesmos.
Desta forma, procede a impugnação, devendo tal valor ser retirado do facto R).
Em face dos exposto, dá-se parcial provimento à impugnação da matéria de facto, passando o facto R) a ter a seguinte redação:
R) O credor AA realizou suprimentos à sociedade de €15,270,83, prestados à sociedade em 2018, bem como de 1.341,70, cfr. docs. 1 a 12 juntos ao reqto. De 26.08.2021 refº 39697252
Em face da modificação da matéria de facto, a que se procede ao abrigo do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, terá que, em consequência, ser julgada procedente a impugnação deste crédito feita pela ora apelante, não se reconhecendo o mesmo, alterando-se a decisão final em conformidade.

VII-DECISÃO:
Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto, em julgar parcialmente procedente o recurso, com a consequente revogação parcial da sentença, que se altera da seguinte forma:
-Os créditos no montante de €4 070,77 e de €1 1118,40 que foram reconhecidos à credora BB, são qualificados como comuns;
-O crédito laboral no montante de €2.499,59, reconhecido à credora BB é qualificado como privilegiado.
-Não se reconhece ao credor AA, o montante de €21.936,89, julgando-se procedente a impugnação que apresentou, nesta parte.
No demais mantem-se a sentença.
Custas por ambas as partes na proporção do decaímento.

Porto, 30 de setembro de 2025.
Alexandra Pelayo
Pinto dos Santos
João Diogo Rodrigues
____________
[1] In Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 245.
[2] In Classificação dos créditos sobre a massa insolvente no projeto do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Ministério da Justiça, Coimbra, 2004, pág. 55 e 56
[3] Catarina Serra, in O Regime Português da Insolvência, 5.ª edição, Almedina, 2012, pág. 45
[4] Proferido no P nº 171/07.5TBOBR-C.C1 disponível in www.dgsi.pt.
[5] IN Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol I, pg.234.
[6] LABAREDEA, pg 234
[7] Proferido no P nº 908/19.0T8OAZ-B.P1.P1.S1
[8] In Das Obrigações em Geral, Vol. II, Almedina, 7.ª Edição, 1997, p. 295.
[9] Obra citada, pg. 230.
[10] In Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª edição, Almedina, pg 280.
[11] Expressão usada no Acórdão do STJ de 26.01.2021 citado.
[12] Parece-nos defender posição diversa, Alexandre Soveral Martins[12], in Um Curso de Direito da Insolvência, 4.ª ed., 2022, pág. 398. que a propósito da alteração da redação da norma escreve: “São também créditos subordinados (al a)) os que forem » detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor» quando a relação especial existia no momento da aquisição do crédito, na versão anterior a L 9/2022, ou, na redação dada por esta, quando a relação especial já existia no momento da constituição do crédito. A alteração referida permite que um crédito constituído no momento em que a relação especial não existia também não seja considerado subordinado se, depois, é adquirido por quem, entretanto, (ou seja, depois da constituição do crédito), ficou naquela relação especial.”
[13] Código das Sociedades Comerciais, Vol. III, Coordenação de Jorge M. Coutinho de Abreu, Almedina, 2011, pág. 627.