Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3998/18.9T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO TAVEIRA
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
DIREITO DE REGRESSO ENTRE DEVEDORES SOLIDÁRIOS
Nº do Documento: RP202509303998/18.9T8STS.P1
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O caso julgado é uma daquelas questões, que é de conhecimento oficioso por parte do Tribunal, qualquer que seja a instância.
II - Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida seja objecto de repetida decisão.
III - É pressuposto do funcionamento do artigo 497.º, n.º 1 do Código Civil, que haja vários agentes causadores do acidente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º[1] 3998/18.9T8STS.P1

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Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 2

RELAÇÃO N.º 256

Relator: Alberto Taveira

Adjuntos: Maria da Luz Seabra

Rodrigues Pires


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I - RELATÓRIO.

AS PARTES


A.: AA.

R.: Companhia de Seguros A..., Sedeada em Espanha (A..., Compañia de Seguros e Reaseguros, S.A.), representada em Portugal por Companhia de Seguros A... Portugal, S.A..

Intervte: B..., agora C..., S.A.


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O[2] A. instaurou declarativa de condenação sob o processo comum contra a R., alegando, no essencial, ter sido vitima de um acidente de viação, ocorrido em Espanha, acidente esse provocado por um veiculo cuja responsabilidade civil decorrente da sua circulação havia sido transferida para a ré.

Mais alegou que tal acidente ocorreu enquanto se encontrava a exercer funções como motorista da sociedade D..., Lda., sob autoridade e no interesse desta, razão pela qual tal sinistro também foi qualificado como acidente de trabalho, tendo a Companhia de Seguros B..., S.A. (anteriormente denominada E..., S.A.) assumido a sua reparação infortunística.

Tendo sofrido limitações para as actividades em geral, por efeito do acidente em causa, que deverão ser ressarcidas a titulo de dano biológico no valor de € 20.000,00, sem prejuízo do pagamento de igual valor a titulo de danos não patrimoniais.

O autor peticionou a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 40.000,00, acrescida de juros moratórios legais desde a citação até integral pagamento e ainda os danos patrimoniais e não patrimoniais que se vierem a liquidar em execução de sentença.

A representante da ré contestou a acção, não colocando em causa a dinâmica do acidente e nem a responsabilidade do veículo seguro na sua representada (veículo com a matricula matrícula ....HSX), na produção do acidente, sem prejuízo de sustentar que tal responsabilidade não se estende aos danos emergentes da circulação do reboque com a matrícula R-...-BBP, também interveniente no acidente, não sendo a ré, nessa medida, integralmente responsável pelo acidente em causa, mas apenas na quota parte da responsabilidade do veículo por si seguro.

Pese embora tenha impugnado os factos relativos aos danos invocados.

A ré invocou ainda prescrição dos direitos invocados pelo autor.

Por outro lado, requereu a intervenção provocada da B... por ser a seguradora de acidentes de trabalho.

Tal intervenção foi admitida.

A sociedade B..., S.A. (que incorporou por fusão a E..., S.A.) apresentou articulado próprio, alegando, no essencial, ter celebrado um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a entidade empregadora do autor, tendo no âmbito do acidente de trabalho que lhe foi participado procedido à reparação do mesmo, suportando, na sequência da respectiva acção judicial, as indemnizações legalmente previstas e suportando todas as despesas necessárias ao restabelecimento do estado de saúde do autor.

Termina formulando os seguintes pedidos:

“Deve presente pedido ser julgado procedente, por provado, e:

a. Ser a Ré condenada a pagar à Interveniente a quantia total de 149.696,49 € (cento e quarenta e nove mil seiscentos e noventa e seis euros e quarenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal aplicável às obrigações civis, vencidos e vincendos, contados da notificação do presente articulado e até efectivo e integral pagamento;

b. Ser a Ré condenada a pagar à Interveniente os valores que esta venha a liquidar futuramente ao Autor a título de pensão anual e vitalícia (parte não remida), a liquidar em posterior incidente de liquidação da sentença;

c. Ser a Ré condenada a pagar à Interveniente todas as demais despesas e indemnizações que esta venha a ter de suportar no futuro em consequência do acidente de trabalho em apreço, a liquidar em posterior incidente de liquidação de sentença.”.

No decurso da acção a interveniente B..., S.A. alterou a sua firma para C..., S.A.

A ré contestou os pedidos formulados pela interveniente C..., S.A., não colocando em causa o contrato de seguro de acidentes de trabalho, que o autor esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho entre 23/12/2015 e 14/03/2017 e que a interveniente lhe pagou a esse titulo o valor de € 23.884,15, bem como que, após consolidação das lesões, o autor ficou a padecer de sequelas determinativas de uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 38,9653%, com incapacidade permanente e absoluta para o trabalho habitual (IPATH), de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, pese embora impugnando os demais pagamentos.

Sem prejuízo de também não ter impugnado que, por sentença proferida no processo de acidente de trabalho, a interveniente foi condenada a pagar ao autor uma pensão anual, vitalícia e actualizável de € 15.639,03, devida desde 15/03/2017, pensão essa actualizada para € 15.920,53, a partir de 01/01/2019, um subsídio de elevada da incapacidade na quantia de € 4.520,46 e despesas de deslocação a Tribunal no valor de € 40,00, quantias acrescidas de juros de mora.

A ré também invocou a prescrição relativamente aos direitos invocados pela interveniente.

Teve lugar a audiência prévia e foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a invocada excepção de prescrição.

No decurso da acção, em 16/01/2023, o autor AA e a ré Companhia de Seguros A... Portugal, S.A. apresentaram termo de transacção, através do qual o autor reduziu o pedido para o valor global de € 30.000,00, que a ré se obrigou a pagar, tendo o autor ainda declarado considerar-se integralmente ressarcido de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, ainda que futuros, decorrentes do acidente em causa nos autos.

A referida transacção foi homologada por sentença, proferida em 18/01/2023, declarando extinta a instância na parte relativa ao litígio entre autor e ré.

A acção prosseguiu para apreciação dos pedidos formulados pela interveniente C..., S.A. Antes da audiência final, a interveniente C..., S.A. veio alegar que, desde 30/05/2019 até 15/02/2025, procedeu ao pagamento ao sinistrado de pensões no montante total de € 56.424,87

Tendo requerido a ampliação do pedido em € 56.424,87, a que devem acrescer os juros legais nos termos já peticionados.

Tal ampliação do pedido foi admitida na audiência final, tendo-se esta realizado com observância do formalismo legal.


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DA DECISÃO RECORRIDA


Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida SENTENÇA, nos seguintes termos:

Pelo exposto:

1) Decido julgar a presente acção parcialmente procedente relativamente aos pedidos formulados pela interveniente C..., S.A. e em consequência condeno a ré Companhia de Seguros A..., Sedeada em Espanha (A..., Compañia de Seguros e Reaseguros, S.A.), representada em Portugal por Companhia de Seguros A... Portugal, S.A. a pagar-lhe:

a) A quantia de vinte e três mil oitocentos e oitenta e quatro euros e quinze cêntimos (€ 23.884,15), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde 06/06/2019 até integral pagamento;

b) As quantias que se vierem a apurar, em sede de liquidação de sentença, correspondentes aos pagamentos referidos em 30) dos factos provados e ainda aos pagamentos já efectuados e a efectuar por decorrência e por efeito da sentença referida em 18), nos termos acima consignados, absolvendo a ré do demais peticionado.

2) Condeno o autor, a ré e a interveniente C..., no pagamento das custas da acção, respectivamente, na proporção de 11%, 23% e 66% para cada.


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DAS ALEGAÇÕES


A R., vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Deve o presente recurso de apelação ser admitido e, consequentemente, ser proferido acórdão que revogue a douta sentença em crise e proferida decisão nos termos supra pugnados, sendo, assim, feita justiça!“.


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A apelante, R., apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

(…)


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A interveniente, agora C..., S.A. apresentou CONTRA-ALEGAÇÕES, pugnando pela improcedência do recurso.

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II-FUNDAMENTAÇÃO.


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

As questões a decidir, são as seguintes:

A) Modificação da decisão da matéria de facto:

i) Dar como não provado o ponto 30) dos factos provados.

Alega que tal decorrerá da ponderação do meio de prova testemunhal, BB, e documental, no sentido de que tais elementos probatórios são insuficientes para que seja dada como provada tal realidade.

B) Aplicação do artigo 4.º, n.º 1 do Regulamento da EU (CE) n.º 864/2007.

Local onde ocorreu o dano; Aplicação da Lei portuguesa.

C) A R. apenas assumiu a responsabilidade o veículo e não do reboque, pelo que a sua responsabilidade deverá ser reduzida a 50%.


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OS FACTOS


A sentença ora em crise deu como provada e não provada a seguinte factualidade.

Factos provados:

1) No dia 22 de Dezembro de 2015, pelas 10 horas, na Estrada ..., ..., em ..., ..., o veículo pesado de mercadorias, marca Mercedes e matrícula ..-OC-.. ao qual estava acoplado o reboque L-... da marca ... foi embatido por trás pelo veículo pesado de mercadorias com a matricula ....HSX, marca Scania, ao qual estava acoplado o reboque com a matrícula R-...-BBP.

2) O veículo de matricula ..-OC-.. é propriedade da sociedade comercial D..., Lda. e nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, era conduzido por AA.

3) O veículo de matricula ....HSX, tinha, à data, apólice de seguro válida, pela qual se encontrava transferida para a ré A..., Compañia de Seguros e Reaseguros, S.A. a responsabilidade civil decorrente da sua circulação, nos termos que resultam da apólice junta com o requerimento de 27/03/2023, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

4) O autor AA conduzia o veículo de matricula ..-OC-.. sob as ordens, direcção e fiscalização da sociedade D..., Lda., desempenhando as funções de motorista internacional.

5) O embate acima referido deu-se quando o veículo de matricula ..-OC-.. estava imobilizado na berma e quando AA estava a descer do camião pela porta do lado direito.

6) Em consequência do referido embate, AA sofreu uma queda contra o solo.

7) Na sequência da participação do sinistro, a Companhia de Seguros A... Portugal, S.A. remeteu ao advogado do autor o email, com data de 11/12/2018, com o teor que resulta do documento nº 3 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido.

8) No âmbito do processo de acidente de trabalho, AA foi submetido a exame pericial no INMLCF, I.P., tendo ali sido fixada uma incapacidade permanente parcial de 38.9653%, com a atribuição factor de bonificação de 1,5, tudo nos termos que resultam do documento nº 6 da petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

9) Em 22/12/2015, AA auferia um salário anual de € 27.060,40 (€ 600,00 x 14 meses + € 93,94 x 11 meses + € 1.468,92 x 12 meses – salário base, subsidio de alimentação e outras remunerações).

10) A sociedade E..., S.A. (posteriormente incorporada por fusão na B..., S.A. que mais tarde alterou a sua firma para C..., S.A.) e a sociedade D..., Lda. outorgaram entre si um contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice n.º ..., nos termos que resultam da apólice junta como documento nº 2 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido.

11) À data de 22/12/2015 o referido contrato abrangia, entre outros, AA e garantia a responsabilidade da entidade empregadora na proporção do salário auferido por este, no total anual de € 27.060,40.

12) Na sequência da participação de sinistro, a E..., S.A. (actual C..., S.A.) declarou assumir a responsabilidade pela reparação do acidente de trabalho.

13) O acidente de trabalho em causa foi participado ao Ministério Público, tendo dado origem ao processo n.º 6287/16.0T8MAI, que correu termos no Juiz 2 do Juízo do Trabalho da Maia.

14) Em consequência do embate e queda acima descritos AA sofreu traumatismos múltiplos, principalmente dos membros superiores, coluna, tórax e cabeça e foi sujeito a tratamentos de recuperação entre a data do acidente e a da consolidação das lesões, em 14/03/2017, esteve internado, foi sujeito a cirurgias, diversos exames complementares de diagnóstico, consultas médicas e sessões de fisioterapia.

15) AA esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho entre 23/12/2015 e 14/03/2017.

16) A interveniente pagou a AA, a título de indemnizações pelas referidas incapacidades temporárias absolutas, a quantia de € 23.884,15.

17) No âmbito do processo de acidente de trabalho, após a consolidação das lesões, foram arbitradas ao autor sequelas determinativas de uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 38,9653%, com incapacidade permanente e absoluta para o trabalho habitual (IPATH), de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, nos termos que resultam do auto de junta médica junto como documento nº 1 do articulado apresentado pela interveniente que aqui se dá por integralmente reproduzido.

18) Por sentença proferida no processo de acidente de trabalho, transitada em julgado, a interveniente foi condenada a pagar a AA uma pensão anual, vitalícia e actualizável de 15.639,03 €, devida desde 15/03/2017, pensão essa actualizada para 15.920,53 €, a partir de 01/01/2018, um subsídio de elevada da incapacidade na quantia de 4.520,46 €, e despesas de deslocação a Tribunal no valor de 40,00 €, quantias acrescidas de juros de mora, tudo nos termos que resultam da cópia da sentença junta como documento nº 2 do articulado da interveniente, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

19) Em cumprimento da sentença, a interveniente C... pagou a AA quantias concretamente não apuradas.

20) AA requereu nos autos de processo de trabalho e foi-lhe deferida a remição parcial da pensão, nas seguintes condições: a remição deveria ser calculada com referência a uma pensão anual parcial de € 5.682,68, com reporte à data de 21/11/2018, conforme decisão cuja cópia foi junta como documento nº 4 do articulado apresentado pela interveniente e que aqui se dá por integralmente reproduzida.

21) O capital de remição acima referido foi de € 65.453,11.

22) Em 2014, AA declarou para efeitos de IRS, rendimentos da categoria A, pagos pela sociedade D..., Lda., no valor de € 12.938,64.

23) Em 2015, AA declarou para efeitos de IRS, rendimentos da categoria A, pagos pela sociedade D..., Lda., no valor de € 17.376,96.

24) Em 2016, AA não declarou rendimentos para efeitos de IRS.

25) AA, em 22 de Dezembro de 2015, tinha 56 anos de idade.

26) As lesões decorrentes do embate e queda acima descritos consolidaram-se em 14/03/2017.

27) Em consequência do embate e queda acima descritos, nos termos que melhor resultam do relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito cível, junto aos autos em 19/08/2024, que aqui se dá por integralmente reproduzido, AA sofreu e ficou a padecer de:

- Período de Défice Funcional Temporário Total fixado num período de 28 dias,

- Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixado num período de 421 dias.

- Período de Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total fixado num período total de 448 dias.

- Quantum Doloris fixado no grau 6/7.

- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixado em 21 pontos.

- Dano Estético Permanente fixado no grau 4 /7.

- Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fiaxda no grau 3/7.

28) As sequelas sofridas, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.

29) Em consequência do embate e queda acima descritos, AA irá necessitar de medicação analgésica para controlo álgico e poderá vir beneficiar de tratamentos de fisioterapia em periodicidade a definir para optimização do quadro álgico e manutenção da amplitude de movimentos que actualmente apresenta, nomeadamente a nível do ráquis e membros superiores.

30) Na sequência da participação do acidente de trabalho, a interveniente C... assumiu e pagou despesas com os tratamentos, com internamentos hospitalares, operações cirúrgicas, exames complementares de diagnóstico, honorários médicos, consultas médicas, sessões de fisioterapia e outras despesas médicas necessárias para a recuperação de AA, bem como deslocações para consultas e tratamentos médicos em montantes concretamente não apurados.


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Com relevância para a boa decisão da causa não se provou o seguinte:

a) Quais os concretos montantes pagos pela interveniente C... em cumprimento da sentença referida em 18).

b) As concretas quantias suportadas pela interveniente C... em consequência do referido em 30).

c) A interveniente C... suportou a quantia de € 377,40 com custas judiciais do processo de acidente de trabalho, € 36,39 pagos ao Fundo de Acidentes de Trabalho e outras despesas no valor de € 307,20..“, realçado os factos objecto de impugnação recursiva.


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DE DIREITO.

A)


Modificação da decisão da matéria de facto:

i) Dar como não provado o ponto 30) dos factos provados.

Alega que tal decorrerá da ponderação do meio de prova testemunhal, BB, e documental, no sentido de que tais elementos probatórios são insuficientes para que seja dada como provada tal realidade.

O facto em discussão é o seguinte:

30) Na sequência da participação do acidente de trabalho, a interveniente C... assumiu e pagou despesas com os tratamentos, com internamentos hospitalares, operações cirúrgicas, exames complementares de diagnóstico, honorários médicos, consultas médicas, sessões de fisioterapia e outras despesas médicas necessárias para a recuperação de AA, bem como deslocações para consultas e tratamentos médicos em montantes concretamente não apurados.

São as conclusões do requerimento de recurso quem fixa o objecto do recurso.

Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.

A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.

Nesta sede, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação à norma supratranscrita importa reter o seguinte.

a) Em primeiro lugar, deve o recorrente obrigatoriamente indicar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;

b) Em segundo lugar, tem o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos (alínea a)) decisão distinta da recorrida;

c) Em terceiro lugar, em caso de prova gravada, terá de fazer expressa menção das passagens da gravação relevantes;

d) Por fim, recai o ónus sobre o recorrente de indicar a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de factos impugnadas (alínea a)).

Com a imposição destes requisitos o legislador faz recair sobre o recorrente o ónus de alegação, de modo reforçado, para que a instância de recurso não se torne aleatória e imprevista, ie, que os recursos possam ter natureza genérica e inconsequente (neste sentido o autor citado, in ob. cit., pág. 166).


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Ponderando e apreciando a instância de recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, a apelante, quanto ao ponto de facto indicados, preenche os apontados requisitos.

A recorrente indica claramente o sentido que pugna por ver alterado por este Tribunal da Relação do Porto.

De igual modo, indica qual ou quais os meios de prova que sustentam a alteração peticionada dos factos – prova documental e testemunhal.

Pelo exposto a recorrente, preenche os apontados requisitos, pelo que se impõe o seu conhecimento.

Vejamos como a primeira instância fundamentou a sua decisão quanto a este ponto de facto.

(…) Por outro lado, relativamente às quantias pagas pela interveniente C... no âmbito da reparação do acidente de trabalho, teve-se presente que a ré impugnou os pagamentos alegados (com excepção do pagamento das quantias referentes a incapacidades temporárias absolutas, no valor de € 23.884,15).

Para prova dos pagamentos efectuados, a interveniente C... juntou aos autos, em 19/09/2022, uma folha com os discriminativos dos pagamentos ali identificados, um denominado resumo financeiro por natureza de pagamento e cópia de facturas relativas a serviços prestados ao autor, mas facturados à interveniente, relativas a tratamentos de reabilitação, fisioterapia e transportes.

Inquirida a testemunha BB, que declarou ser funcionário da interveniente C... (gestor de reembolsos), pelo mesmo foi sendo explicado ter conhecimento dos pagamentos efectuados apenas pela consulta que fez do sistema onde vão sendo registados os pagamentos, sem prejuízo de ter ainda precisado que o pagamento das pensões é automático porque foi decidido pelo juiz.

Não obstante tais esclarecimentos, o que é certo é que a interveniente C... não juntou aos autos quaisquer documentos que titulem os pagamentos que invocou, quer recibos (reportando-se os únicos que juntou com o seu articulado às quantias já reconhecidas), quer cópia de cheques ou comprovativos de transferências bancárias.

Afigurando-se-nos que as meras declarações do seu funcionário, sem conhecimento directo sequer de tais pagamentos, porque não os fez, apenas com base nos registos que consultou, é insuficiente para dar como provados os concretos pagamentos efectuados.

No entanto, não deixou de se ponderar que, conforme resulta do relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito cível (junto aos autos em 19/08/2024), o autor foi sujeito aos tratamentos ali discriminados com seguimento pelos próprios serviços clínicos da interveniente (o que a ré não coloca em causa).

Decorrendo do próprio relatório médico pericial junto pelo autor como documento nº 4 a menção a tal acompanhamento pela interveniente.

Sendo certo que o próprio pagamento que a ré reconheceu (referido em 16) dos factos provados) revela tal acompanhamento e assunção de responsabilidade por parte da interveniente.

Sem esquecer que a testemunha inquirida não deixou de aludir a pagamentos efectuados, pese embora sem suporte em documentos que comprovem com maior rigor e precisão que quantias foram pagas.

Não podendo deixar de se relevar que a interveniente foi condenada a pagar os montantes que foram fixados na sentença proferida no Tribunal de Trabalho e que houve inclusive remição de pensões, não sendo verosímil que o seu pagamento não fosse controlado pelos serviços do Ministério Público. atenta a natureza do processo em causa.

Sem esquecer que as facturas juntas aos autos, pese embora não titulem pagamentos, não deixam igualmente de comprovar o referido acompanhamento por parte da interveniente no âmbito das obrigações que sobre si recaíam e a efectiva prestação dos serviços facturados.

Não sendo aliás verosímil que a interveniente tenha deixado de cumprir as obrigações que para si decorrem da dita sentença.

Sendo certo que na apreciação da prova não poderá deixar de se atentar nas regras da experiência comum e normalidade do acontecer, seguindo critérios não de quase certeza, mas de forte probabilidade.

Para concluir que, pese embora se tenha como provado que a interveniente efectuou pagamentos nos termos que se provaram em 19) e 30), não se provaram as concretas quantias em causa, o que também determinou o que se consignou sob as alíneas a) a c) dos factos não provados. (…)

Desde já afirmamos que improcede a pretensão da apelante.

Vejamos.

Por um lado, a prova documental de modo viável – pois não padece de problemas de memória ou de parcialidade – indica claramente que a interveniente C... assumiu e pagou as despesas. Esta prova documental indica com toda a probabilidade, que assim ocorreu tal factualidade, ou como afirma o M.mo Juiz, com “forte probabilidade”. Não existem elementos probatórios, e muito menos a apelante os indicou, que possa retirar força probatória a tal meio de prova.

Por outro lado, a testemunha, BB, veio relatar qual o modo de funcionamento dos serviços da interveniente, quanto aos pagamentos que efectuava, na sequência de apresentação/reclamação dos vários tratamentos que o sinistrado foi apresentando.

Como bem assinala a apelada, interveniente, no seu articulado de 30.05.2019, a mesma alegou no artigo 10.º: “Recebida a participação de sinistro e realizadas as diligências prévias necessárias ao mínimo apuramento do sucedido, a Interveniente assumiu a responsabilidade pela reparação do acidente de trabalho e, em consequência, assegurou toda a assistência clínica ao Autor, suportou todas as despesas médicas, medicamentosas e de reabilitação, pagou indemnizações por incapacidades temporárias, pensões e um capital de remição.”, e no artigo 13.º e 14.º ” O Autor foi sujeito a tratamentos de recuperação entre a data do acidente e a da consolidação das lesões, em 14/03/2017, esteve internado, foi sujeito a cirurgias, diversos exames complementares de diagnóstico, consultas médicas e sessões de fisioterapia. Todos os referidos tratamentos foram suportados pela Interveniente” – que corresponde ao ponto 30 dos factos provados.

A R., companhia de seguros A..., na sua contestação quanto aos factos alegados pela interveniente (atrás citados) tomou a seguinte posição.

12. Aceita a R. que a Interveniente, em consequência do acidente em causa nos autos, tenha efetuado diversos pagamentos, ao abrigo de um contrato de seguro de acidentes de trabalho,

13. Porém, e reiterando o já alegado em 23.º da sua contestação à petição inicial, uma vez que não são factos do seu conhecimento pessoal, a R. desconhece, sem obrigação de conhecer, o alegado em 4.º, 12.º a 17.º, 22.º a 27.º, 30.º, 31.º e 34.º,.

Resulta claro, que a companhia de seguros A... não impugnou ter a interveniente procedido a pagamentos, sendo que, especificadamente, impugnou os seus valores.

Ora, o que ficou dado como provado, nem é mais nem menos do que aquilo que a R. aceitou/confessou.

Assim, ainda que procedesse a fundamentação da impugnação da decisão da matéria de facto, sempre improcederia por esta razão.

Pelo exposto, improcede a pretensão da apelante.


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B)


Aplicação do artigo 4.º, n.º 1 do Regulamento da EU (CE) n.º 864/2007 - local onde ocorreu o dano; aplicação da Lei portuguesa.

Vem a apelante, companhia de seguros A..., sustentar que ao caso, o Tribunal a quo fez errada aplicação do regime decorrente do Regulamento (CE) 864/2007.

Que o acidente ocorreu em território do Reino de Espanha e as lesões que o sinistrado ficou a padecer também se efectivaram no local do acidente, pelo que é errada a decisão do Tribunal a quo, quando decide que “as repercussões do mesmo apenas se vieram a verificar em Portugal, pelo que a Lei aplicável será a Portuguesa”. Que é irrelevante a circunstância das consequências indirectas ocorrerem em Portugal.

Mais alega que a “Lei Espanhola, aqui aplicável, não prevê o direito de reembolso da seguradora de acidentes de trabalho (como é o caso da Interveniente) pela seguradora do responsável pelo acidente de viação em causa nos autos nem a obrigação das seguradoras de responsabilidade civil em reembolsar as seguradoras de acidente de trabalho (nem tal é alegado seja no pedido apresentado pela Recorrida seja na sentença).

Por sua vez, a apelada, interveniente, vem sustentar que tal questão – aplicabilidade da Lei portuguesa ao acidente em causa, por força do citado Regulamento – foi já decidida em sede de saneador. Efectivamente, em tal momento aquando do conhecimento da excepção da prescrição, foi decidiu de modo explicito e claro que a Lei aplicável ao acidente é a Lei portuguesa, e não a Lei espanhola.

Que a R., quanto a esta decisão não manifestou a sua discordância, pelo que a questão em causa está a coberto do caso julgado formal.

Apreciemos então a questão suscitada à luz do caso julgado formal.

Em sede de saneador é proferida decisão, nos seguintes termos:

Sobre a invocada prescrição e a lei aplicável. – Para decidir a exceção de prescrição invocada, impõe-se determinar a lei aplicável.

Neste âmbito, entendemos que deverá ser tido em consideração o regime do Regulamento (CE) n.º 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II), por força do princípio do primado do direito europeu e do princípio do efeito direto do direito europeu, em conformidade com o previsto no art. 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

Tendo presente que, face ao alegado na petição, os danos mais relevantes sofridos pelo Autor ocorreram em Portugal, a lei aplicável à responsabilidade extracontratual emergente do acidente de viação é a lei portuguesa, nos termos do art. 4.º, n.º 1 do citado Regulamento.

Relativamente à prescrição, como é aplicável a lei portuguesa (para além do referido no precedente parágrafo, tenha-se em consideração o disposto na alínea h) do art. 15.º do Regulamento), o prazo de prescrição aplicável é de 3 anos (art. 498.º, n.º 1 do Código Civil), prazo esse que não se chegou a completar.

Improcede, pois, a invocada exceção de prescrição.

Em face do teor da decisão é para nós claro que a questão da Lei aplicável ao acidente e suas consequências é a Lei Portuguesa.

Considerandos.

Em primeiro lugar, importa afirmar, que não há dúvidas que o caso julgado é uma daquelas questões, que é de conhecimento oficioso por parte do Tribunal, qualquer que seja a instância. Nos termos dos artigos 579.º a 581.º do Código de Processo Civil, de modo imperativo o Tribunal oficiosamente tem de conhecer destas questões, não estando dependente da alegação das partes (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil. Tanto assim, que independentemente do valor da causa e da sucumbência é sempre admissível recurso com fundamento na ofensa de caso julgado (artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil).

Deste modo, impõe-se a este Tribunal o seu conhecimento.

O artigo 620.º do Código de Processo Civil com a epígrafe “Caso julgado formal”, dispõe:

1 - As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a rela-ção processual têm força obrigatória dentro do processo.

2 - Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630.º.

Por sua vez, o artigo 625.º do Código de Processo Civil com a epígrafe, Casos julgados contraditórios, dispõe o seguinte:

1 - Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.

2 - É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual. “.

Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida seja objecto de repetida decisão. Se assim for, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão.”, in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 1306/14.7TBACB-T.C1.S1, de 08.03.2018, relatado pelo Cons FONSECA RAMOS.

No mesmo sentido Acórdão Tribunal da Relação do Porto 1320/14.2TMPRT.P1, de 17.05.2022, relatada pelo Des JOÃO RAMOS LOPES, “O caso julgado consubstancia-se ‘na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário’, tornando indiscutível o conteúdo da decisão “.

Quanto ao que seja caso julgado socorremo-nos dos seguintes ensinamentos:

1. A repetição da causa ocorre quando é proposta uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, sendo essa tripla identidade crucial para a verificação de alguma das exceções dilatórias de caso julgado e de litispendência. Contudo, apesar da aparente simplicidade do preceito, que foi ao ponto de definir cada um dos elementos (subjetivo e objetivo) da instância, a sua aplicação suscita enormes dificuldades, que resultam bem transparentes da leitura de arestos jurisprudenciais e de elementos doutrinais (RC 12-12-17, 3435/16).

2. A identidade de sujeitos não supõe a mera identidade física ou nominal, verificando-se ainda quando as partes sejam as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, ou seja, não apenas aquelas que intervieram formalmente no processo, mas ainda, designadamente, "aquelas que assumiram, mortis causa ou inter vivos, a posição jurídica de quem foi parte na causa depois de a sentença ter sido proferida e transitada em julgado" (Maria José Capelo, A Sentença Entre a Autoridade ca Prova, p. 324). (…)

4. Também ocorre a identidade dos sujeitos quando os mesmos são portadores do mesmo interesse substancial quanto à relação jurídica em causa (STJ 9-7-15, 896/09), solução que também foi assumida em STJ 22-2-15, 915/09, onde se refere que "para averiguar o preenchimento do requisito da identidade de sujeitos, deve atender-se, não a critérios formais ou nominais, mas a um ponto de vista substancial, ou seja, ao interesse jurídico que a parte concretamente atuou e atua no processo". A identidade de sujeitos, com os limites assim definidos, constitui o pressuposto básico para a invocação quer da exceção de caso julgado (vertente negativa), quer para a afirmação dos limites do caso julgado (vertente positiva). Não é possível de modo algum extrair efeitos de uma decisão judicial relativamente a um sujeito que não possa considerar-se vinculado nos termos anteriormente referidos.

5. A identidade de pedidos afere-se pela circunstância de em ambas as ações se pretender obter o mesmo efeito prático-jurídico, não sendo de exigir uma adequação integral das pretensões (ST) 24-2-15, 915/09, STJ 14-12-16, 219/14 e STJ6-6-00, 00A327). Assim, se a forma como o autor se expressou na petição inicial e o modo como tal se refletiu na sentença são importantes para a aferição da identidade do pedido que foi formulado e apreciado, não deixa de ser importante o que, numa perspetiva substancial, está contido explicitamente e, por vezes, até implicitamente nessas formulações, seguindo sempre um critério orientador segundo o qual, para além de ser dispensável a repetição da mesma causa entre os mesmos sujeitos, deve vedar-se a possibilidade de ocorrer, com a sentença que venha a ser proferida, uma contradição decisória.

6. A identidade de pedidos pode, aliás, ser apenas parcial e, ainda assim, ser bastante para que se considerem verificadas a exceção de litispendência ou de caso julgado. Por exemplo, em face de uma anterior sentença que julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre um determinado prédio, com base num determinado fundamento (ação de simples apreciação positiva), existe repetição da causa se for proposta uma ação de reivindicação na qual, com base no mesmo fundamento, se pretenda ainda a condenação do réu na restituição do bem (cf. sobre a delimitação e características do pedido, cf. anot. aos arts. 3º, 1869 e 552).” in Código de Processo Civil Anotado, ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS PIRES DE SOUSA, 2018, em anotação ao artigo 581.º do Código de Processo Civil.

LEBRE DE FREITAS, RIBEIRO MENDES E ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed., em anotação ao artigo 629.º, pág., 28, afirmam:

A ofensa de caso julgado, por seu turno, pressupõe que a decisão impugnada tenha contrariado outra decisão anterior, já transitada em julgado (arts. 619 e 620; cf. arts. 580 e 581), não se aplicando a norma com fundamento em o acórdão recorrido se ter baseado em ofensa do caso julgado que o recorrente pretenda que não se verificou.

No ac. do STJ de 18.12.13 (ABRANTES GERALDES), proc. 1801/10, decidiu- -se que ocorre ofensa de caso julgado quando a Relação, no âmbito do recurso de apelação interposto pelo autor, haja modificado ex officio o decidido na 1.ª instância, objeto de recurso, em termos que se revelem mais desfavoráveis para o apelante, com desrespeito pelo que dispõe o art. 635-5. Ver ainda os acs. do STJ de 17.11.15 (SEBASTIÃO POVOAS), proc. 34/12, e de 15.2.17 (NUNES RI-BEIRO), proc. 2623/11.

Feita estas precisões, voltando ao caso dos autos, é de concluir que a questão ora suscitada pela apelante, tem que ser decidida pela ocorrência de caso julgado formal.

Na realidade, a recorrente na fase do saneamento discordando do decidido não interpôs recurso. Efectivamente, o Tribunal a quo decidiu, em momento próprio, tendo já proferido decisão quanto a esta precisa questão – Lei aplicável ao caso dos autos.

Face aos considerados, ponderando os ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais referidos, não há dúvidas que a decisão que se mantém no processo é aquela proferido aquando do despacho saneador – transcrita supra.

Esta decisão foi devidamente notificada às partes.

Deste despacho, nenhuma das partes, veio insurgir-se.

Portanto, tal decisão transitou em julgado. Qualquer posterior pronúncia quanto a esta precisa questão – no mesmo sentido ou em sentido inverso – é irrelevante, pois que é aquela outra que se impõe na presente causa.

Em conclusão, tendo transitado em julgado a decisão de 16.12.2022, em consequência, é tal decisão que se impõe no processo com força de caso julgado.

Improcede, portanto, a pretensão da apelante, quanto a esta questão.


C)

A R. apenas assumiu a responsabilidade o veículo e não do reboque, pelo que a sua responsabilidade deverá ser reduzida a 50%.

A apelante, companhia de seguros A..., vem argumentar que apenas assumiu a responsabilidade civil do veículo com a matrícula ....HSX, e não a responsabilidade civil do reboque com a matrícula R-...-BBP, pelo que deverá ocorrer uma repartição de responsabilidades de 50%, entre si (veículos). Sustenta que a responsabilidade pela ocorrência do acidente e respectiva responsabilidade, se presume igual, nos termos do artigo 497.º, n.º 1 do Código Civil.

Que a circunstância do reboque estar acoplado ao tractor não é impeditiva de concluir por o reboque ter participação na produção do acidente – os danos foram maiores com a sua presença.

O M.mo Juiz na sentença em crise fundamentou do seguinte modo:

No entanto, importa não descurar que, ao contrário do caso a que alude o acórdão em questão, não estamos perante qualquer responsabilidade civil decorrente do risco, com aplicação do disposto nos artigos 503º nº 1 e 505º do Código Civil, mas sim perante responsabilidade civil assente na culpa do condutor do veiculo com a matricula ....HSX (sem prejuízo de o referido acórdão aludir à circunstância de não se poder cindir tal responsabilidade relativamente aos terceiros lesados).

Sem poder desconsiderar-se ainda, no referido contexto, que o evento lesivo se deu em consequência da velocidade e trajectória imprimidas ao e pelo veiculo com a matricula ....HSX (segurado da ré), sem qualquer participação do veículo a ele acoplado, no que concerne ao facto voluntário, ilícito e culposo que veio a determinar os danos.

Para concluir que a ré não tem razão e que nessa medida será responsável na totalidade pelos danos produzidos.

Vejamos.

É pressuposto, da hipótese legal do artigo 497.º, n.º 1 do Código Civil, que haja vários “autores, instigadores ou auxiliares do acto ilícito” que respondam pelos danos causados – artigo 490.ºdo Código Civil.

Nesse caso, a responsabilidade é solidária.

Ora, nos autos a causa de pedir assenta na alegação do A., sinistrado, e agora no pedido da interveniente, na ocorrência de acidente de viação cujo único autor é o condutor do veículo seguro na R., companhia de seguros A....

Efectivamente, nos autos, o A., sinistrado, apenas alegou o que o acidente ocorreu por culpa do condutor do veículo seguro na R.. Nada tendo alegado quanto à contribuição do reboque e em que medida. Alega, tão só, que acidente se ficou a dever à culpa do condutor do veículo seguro na R..

Por sua vez, a R., na sua contestação, apenas alega que não garante a responsabilidade civil pelos danos emergentes da circulação do reboque – artigos 11.º e 14.º da contestação – e acaba concluindo por a sua quota parte da responsabilidade ser de 50% – artigo 17.º da contestação.

Portanto, não estando nos autos a companhia de seguros do reboque, e nada foi alegado quanto à quota parte da culpa na ocorrência do sinistro e dos danos, nada haveria que decidir quanto a tal – medida da culpa do condutor do veículo segura na R.. Nada foi alegado se ocorreu ou não um incremento do risco de circulação do tractor (veículo segura na R. companhia de seguros) com o reboque, designadamente para o agravamento dos danos no sinistrado.

Deste modo, tal como decidiu, e bem, o M.mo juiz, da factualidade alegada e muito menos da provada, não se pode assacar qualquer responsabilidade ao reboque, e, portanto, não é caso accionamento da hipótese legal do artigo 497.º, n.º 1 e 2 do Código Civil.

Se a causa de pedir na presente demanda tivesse como pressuposto a existência de autores ou causadores do acidente, quer o tractor, quer o reboque, aí estaríamos perante um caso de responsabilidade solidária, entre o tractor e reboque, e respectivas companhias de seguros. E, nesse caso, o regime das obrigações solidárias responderia à questão suscitada pela R. companhia de seguros/apelante.

Dispõe o artigo 512.º do Código Civil o seguinte:

1. A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles.

2. A obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um deles; igual diversidade se pode verificar quanto à obrigação do devedor relativamente a cada um dos credores solidários.

Na presente demanda, o credor da obrigação solidária, a aqui interveniente, apenas demandou a companhia de seguros do tractor, companhia de seguros A.... Mas, sempre poderia ter demandado a companhia de seguros do reboque ou como poderia demandar ambos. Esta é uma das decorrências da obrigação de indemnizar ser solidária.

1. Se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, o n.º 1 do artigo 497.° determina que é solidária a sua responsabilidade, o que significa, conforme resulta do artigo 512.°, que o lesado pode exigir de cada uma delas o cumprimento da obrigação de indemnizar, na sua integralidade, e que a realização da obrigação integral por qualquer uma das pessoas responsáveis a todas libera perante o lesado. O artigo 497.° afasta, deste modo, no domínio da responsabilidade civil extracontratual, o regime da conjunção ou da parciariedade que em regra vale para as obrigações plurais salvo se a solidariedade resultar da lei ou da vontade das partes (artigo 513.°). Ao considerar aplicável o regime da solidariedade no domínio da responsabilidade civil extracontratual, o legislador teve em vista, segundo a justificação tradicionalmente apresentada pela doutrina, acautelar o lesado contra o risco da insolvência de algum dos obrigados (ANTUNES VARELA, 2000: 753, e RIBEIRO DE FARIA, 2001: 168; cfr., ainda, para outra perspetiva, justificando a solução da solidariedade principalmente pelo «fundamento ético-personalístico» que sustenta a imputação de cada um dos obrigados, embora «sem ignorar também o ideário protectivo da vítima», MAFALDA MIRANDA BARBOSA, 2013: 1275, nt. 2611). A regra da solidariedade é aplicável não só no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito e culposo, como também no domínio da responsabilidade civil extracontratual pelo risco: a solução da solidariedade é, na verdade, expressamente afirmada quanto à responsabilidade pelos danos resultantes de acidentes causados por veículos de circulação terrestre pelo n.º 1 do artigo 507.° e, nos demais casos de responsabilidade pelo risco, extrai-se da remissão do artigo 499.° para o regime da responsabilidade por factos ilícitos; no que se refere, em particular, à responsabilidade solidária do comitente e comissário perante o lesado, cfr. MARIA DA GRAÇA TRIGO, 2009: 364-373.”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Univ Católica (2018), pág. 367 – anotado Gabriela Páris Fernandes.

Portanto, sendo solidária a obrigação, pode o credor exigir o cumprimento da obrigação na sua integra, como seria o caso. Somente quando é exercido o direito de regresso entre os devedores solidários, será decidida a medida da culpa de cada um deles e das consequências dessa culpa, havendo-se como iguais as culpas dos responsáveis – n.º 2 do artigo 497.º do Código Civil.

Pelo exposto, haverá que improceder, nesta parte da pretensão da apelante.


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III DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela R. apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

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Porto, 30 de Setembro de 2025
Alberto Taveira
Maria da Luz Seabra
Rodrigues Pires
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pelo Exmo. Senhor Juiz.