Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2128/24.2T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: DIREITO CONTRAORDENACIONAL
RESPONSABILIDADE DA PESSOA COLETIVA POR ATOS DOS SEUS FUNCIONÁRIOS AINDA QUE CONTRÁRIOS ÀS SUAS INSTRUÇÕES
Nº do Documento: RP202510152128/24.2T8VFR.P1
Data do Acordão: 10/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DA ARGUIDA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No domínio do direito contraordenacional impende uma censura sobre os responsáveis pelos vários sectores económicos e sociais, o que exige ao agente o dever, segundo as circunstâncias do caso, de ser capaz de prever e avaliar corretamente a possibilidade de realização do ilícito de forma a poder evitá-lo.
II - Não logrando não observar o dever de cuidado a que estava obrigada de que as regras legais fossem observadas e efetivamente respeitadas na prática.
III - O 7 n.º 2 do RGCC ao estabelecer a responsabilidade das pessoas colectivas requer uma interpretação extensiva, de modo a incluir no seu âmbito os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas.
IV - A razão de ser da necessidade de interpretação extensiva reside na circunstância de a responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas assentar numa imputação direta e autónoma, - quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num "defeito estrutural da organização empresarial" (defective corporate organization) ou na "culpa autónoma por défice de organização", quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva, mas que não precisa de ser identificada nem individualizada.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 2128/24.2T8VFR.P1

1.Relatório
Na sequência de impugnação judicial da decisão administrativa proferida pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) que aplicou à arguida A..., S.A.:
- coima de € 2.000(dois mil euros), pelo atraso no envio do original da reclamação ..., de 14 de maio de 2020, ao abrigo do disposto no art.9 nº 1 al. a) do Decreto-Lei 156/2005, de 15 de setembro, na redação que lhe foi dada pela Lei 74/2017, de 21 de junho;
- coima de € 2.000 (dois mil euros), pelo atraso no envio do original da reclamação ..., de 23 de junho de 2020, ao abrigo do disposto no art. 9 nº 1 al. a) do Decreto-Lei 156/2005, de 15 de setembro, na redação que lhe foi dada pela Lei 74/2017, de 21 de junho;
- coima de € 600 (seiscentos euros), por se encontrar incorretamente preenchido o campo relativo à identificação do fornecedor do bem ou prestador do serviço, na mesma folha de reclamação, ao abrigo do disposto no art.9 nº 1 al. b) do Decreto-Lei 156/2005, de 15 de setembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 74/2017, de 21 de junho;
- coima de € 600 (seiscentos euros), por se encontrar por preencher o campo relativo à identificação do fornecedor do bem ou prestador do serviço, na reclamação ..., de 13 de novembro de 2019, ao abrigo do disposto no art.9 nº 1 al. b) do Decreto-Lei 156/2005, de 15 de setembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 74/2017, de 21 de junho;
E em cúmulo jurídico das coimas condenou a arguida na coima única de €4500,00 (quatro mil e quinhentos euros).
Não se conformando a arguida interpôs recurso de impugnação judicial para o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, que correu sob o nº2128/24.2T8VFR no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2 onde por sentença depositada em 7/04/2025 foi decidido:
«1) Julgar improcedente a nulidade invocada pela recorrente A..., S.A..
2) Condenar a recorrente A..., S.A.:
- na coima de € 1.000 (mil euros), pela prática da contra-ordenação relativa à falta de entrega atempada da reclamação n.º ..., prevista e punida pelos artigos 5.º, n.º 1, e 9.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, na redacção da Lei n.º 74/2017, de 21 de Junho;
- na coima de € 1.500 (mil e quinhentos euros), pela prática da contra-ordenação relativa à falta de entrega atempada da reclamação n.º ..., prevista e punida pelos artigos 5.º, n.º 1, e 9.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, na redacção da Lei n.º 74/2017, de 21 de Junho;
- na coima de € 400 (quatrocentos euros), pela prática da contra-ordenação relativa à falta de verificação do correcto preenchimento da reclamação n.º ..., prevista e punida pelos artigos 4.º, n.º 2, alínea b), e n.º 3, e 9.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Decreto-lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, na redacção da Lei n.º 74/2017, de 21 de Junho;
- na coima de € 500 (quinhentos euros), pela prática da contra-ordenação relativa à falta de verificação do correcto preenchimento da reclamação n.º ..., prevista e punida pelos artigos 4.º, n.º 2, alínea b), e n.º 3, e 9.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Decreto-lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, na redacção da Lei n.º 74/2017, de 21 de Junho.
3) Em cúmulo jurídico, condenar a recorrente A..., S.A., na coima única de € 3.000 (três mil euros).
4) Condenar a recorrente nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em duas unidades de conta – artigo 93.º, n.º 3 do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.»
Inconformada com a decisão da impugnação judicial veio a arguida interpor recurso para este Tribunal Superior.
É o seguinte o teor das conclusões de recurso da arguida:
«A. A Arguida vinha condenada pela ASAE pela prática de quatro infrações em coima no montante de € 4500,00. As infrações em questão relacionam-se com o preenchimento incompleto de reclamações por parte do reclamante e com o envio fora de prazo de uma reclamação. A Arguida impugnou judicialmente a decisão administrativa e, em primeira instância, viu aquela decisão ser revogada por sentença que, julgando parcialmente procedente o recurso, apenas reduziu o montante da condenação a € 3000,00.
B. O Tribunal a quo conclui de forma clara que o sucedido se ficou a dever a um lapso de funcionários da Arguida. A sentença, aliás, refere o seguinte: “Por seu turno, não se apurando em concreto as circunstâncias que determinaram as omissões em apreço, não é lícito que se presuma que as mesmas decorreram de uma atuação deliberada e intencional (como fez a autoridade administrativa), sendo aliás bem mais razoável concluir que as mesmas se terão ficado a dever à falta de zelo de algum dos funcionários da sociedade, até porque, tudo aponta para a afirmação que as demais reclamações dos mesmos livros foram enviadas no prazo legal e estavam deviamente preenchidas”.
C. De resto, da matéria dada por provada resulta claramente que:
i. “Todos os trabalhadores da Arguida recebem formação nestas matérias e são instruídos para que, devolvido o livro de reclamações pelo cliente, verifiquem se tudo ficou devidamente preenchido.” – ponto11 dos factos provados;
ii. “A Arguida designa em todos os seus estabelecimentos uma pessoa para ficar responsável pelo tratamento “burocrático” dos processos de reclamação” – ponto 13 dos factos provados;
iii. “Tal trabalhador fica não só responsável pelo tratamento interno da reclamação como, igualmente, pelo envio do original da reclamação para a ASAE dentro do prazo legal, bem como, por todas as diligências que, na sequência de uma reclamação no livro, se justifiquem fazer” – ponto 14 dos factos provados;
iv. “Para tal, os trabalhadores da Arguida com tal incumbência recebem formação especializada sobre estes temas, nas quais se esclarece, entre outros aspetos, a obrigatoriedade de envio das reclamações efetuadas no livro para esta Autoridade, sendo, igualmente, esclarecidas as consequências de eventuais incumprimentos” – ponto 15 dos factos provados;
v. “A Arguida dá instruções claras a todos os seus trabalhadores com tais incumbências de que devem cumprir com tais determinações legais, esclarecendo o que poderá estar em causa caso não o façam” – ponto 16 dos factos provados;
vi. “Não existiu qualquer intenção da Arguida em ocultar as ditas reclamações” – ponto 19 dos factos provados;
vii. “A Arguida instruiu, ainda, todos os seus funcionários no sentido destes prestarem todas as informações relativas ao correto preenchimento das reclamações no livro aos clientes sempre que estes solicitassem o livro de reclamações. – ponto 25 dos factos provados;
viii. “Acontece que por lapso dos trabalhadores em questão, os originais das reclamações não foram enviados atempadamente para esta Autoridade (…)” – ponto 17 dos factos provados;
D. Sendo claro que a Arguida instruiu os seus trabalhadores, dotando-os de meios e conhecimento, a assegurarem-se do correto preenchimento das reclamações pelos reclamantes e a procederem ao envio no prazo legal do original da reclamação para a ASAE.
E. A única coisa que, a este propósito e de forma muito breve, se põe em causa
ser a necessidade de existir um procedimento de controlo ou reforço de formação. Diga-se, salvo o devido respeito, que, apesar de não constar dos factos provados, é manifesto que existe um procedimento de verificação, desde logo, por ter sido dessa forma que se detetou o atraso no envio da reclamação – e que, ainda assim, foi enviada.
F. As obrigações de instruir e formar os seus trabalhadores foram cumpridas, não competindo ao tribunal a quo, como que legislando para o caso concreto, crie supostas obrigações e ou diligências que evitariam o sucedido.
G. Os trabalhadores da Arguida estão cientes das obrigações legais em questão e das instruções da Arguida a este propósito. Não resulta dos autos que tivesse sido por falta de informação ou de meios que os trabalhadores da Arguida tivessem omitido a sua obrigação. Fizeram-no, dizemos nós, por serem seres humanos que, como todos, estão sujeitos a errar – e erraram.
H. É, por demais, manifesto que a única razão de ser do sucedido, foi um erro de um trabalhador. A Arguida nem por ação, nem por omissão, contribuiu para o sucedido. Nada ganhou com o mesmo, nem retirou qualquer tipo de vantagem. E o tribunal a quo chegou também a essa conclusão. Tanto chegou que, confrontado com a total ausência de culpa da Arguida se viu forçado a afirmar o seguinte: “Porém, ainda que se tratem de falhas de certos funcionários da sociedade arguida e ainda que estes tenham atuado ao arrepio das instruções transmitidas, tais lapsos são ainda imputáveis à sociedade recorrente por esta ser responsável pelos atos ou omissões das pessoas singulares que a representam”.
I. O que, salvo o devido respeito, é falso e é, de resto, o raciocínio que inquina toda a decisão e a sua fundamentação.
J. É que, em lado algum se dá por provado que os trabalhadores que erraram são representantes da Arguida. Aliás, o tribunal a quo desconhece por completo quem foram as pessoas que, concretamente, omitiram as suas obrigações. Pelo que, ou se considera que todo e qualquer trabalhador da Arguida é seu representante, ou a decisão do tribunal a quo traduz-se realmente na objetivação da responsabilidade contraordenacional da Arguida.
K. Mas mais, o n.º 2 do art.º 7.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro dispõe claramente que “As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.” (sublinhado nosso)
L. O que, de resto, deixa em evidência o que se vinha defendendo: A Arguida não pode ser responsabilizada pelos erros dos trabalhadores que vão contra diretas instruções suas. Não resulta provado – nem poderia – que tenha sido a ação ou omissão de qualquer órgão da Arguida a provocar a situação em causa nos autos.
M. Resulta, pelo contrário, que foram os trabalhadores da arguida e contra expressas indicações desta. Indicações que, tal como resulta provado, os trabalhadores da Arguida conhecem e compreendem, dispondo dos meios necessários à sua execução.
N. A Arguida cumpriu escrupulosamente as suas obrigações: deu formação, criou procedimentos, nomeou responsáveis e instruiu todos os seus trabalhadores no sentido de darem cumprimento aos prazos e formalidades legais no preenchimento de reclamações.
O. Pelo que, apenas uma perspetivação da responsabilidade da Arguida como uma responsabilidade objetiva permite que, não obstante o que foi dado por provado, se conclua a condenar a Arguida pela prática de uma infração que foi praticada por terceiro e contra a sua vontade ou intenção.
P. Aliás, o conceito de representante não existe no âmbito do RGCO, exigindo-
se, para a responsabilização da Arguida, que a infração tenha sido pratica por algum dos seus órgãos e no interesse daquela, o que, manifestamente, não aconteceu.
Q. É que, saliente-se, não se trata sequer da “velha” questão do apuramento da
identificação da pessoa singular que determina a vontade da pessoa coletiva.
Trata-se de se saber que a responsabilidade foi de trabalhador que atuou contra as instruções expressas da Arguida.
R. Aceitar a condenação da Arguida nestas circunstâncias e, consequentemente, uma interpretação do n.º do do art.º 7.º do RGCO que vai muito além da letra da norma, é aceitar a objetivação da responsabilidade delitual da Arguida em manifesta violação do disposto n.º 2 do art.º 32.º da CRP o que se traduz numa flagrante inconstitucionalidade que, aqui, também se deixa alegada.
S. É bastante claro, atenta factualidade provada, que a Arguida não teve culpa no sucedido. Pelo que, estando afastada a culpa da Arguida, está afastada também a possibilidade de a mesma ser condenada pelas infrações em causa nestes autos.
T. Sem prejuízo do até aqui exposto, que se sublinha e reitera, certo é que, por mais que se concluísse pela condenação em coima da Arguida – o que apenas por cautela de patrocínio se considera – sempre teria que ser outra a condenação em termos quantitativos.
U. Ainda que se considerasse a atuação da Arguida negligente – o que se rejeita, como se defendeu – sempre se teria que ser coerente com a demais factualidade demonstrada nos autos. É absolutamente claro que a Arguida não retirou qualquer benefício da presente situação. É também evidente que, em nenhum dos casos dos autos, qualquer reclamante ficou prejudicado.
V. Se, igualmente, se reconhece uma culpa diminuta, de que forma se acaba a
condenar a Arguida no dobro do mínimo legal? É, salvo o devido respeito, um juízo infundado e errado. Pelo que, por mais que se considerasse a existência de culpa da Arguida – o que apenas por cautela se equaciona – sempre se teria que reduzir a sua condenação, tanto nas penas individuais como, posteriormente, em sede de cúmulo.»
Conclui pedindo que na procedência do presente recurso seja revogada a decisão recorrida e proferido Acordão que absolva a arguida da prática das infrações que lhe são imputadas;
ou, se assim não se entender
seja a condenação em coima reduzida ao mínimo legal previsto para a
negligência, tanto nas penas concretas de cada uma das infrações, como, igualmente, no cúmulo jurídico a realizar das mesmas.
O recurso foi admitido por despacho exarado nos autos em 23/05/2025.
Em primeira instância o MP respondeu ao recurso alegando, em síntese, que a decisão recorrida fez uma correta apreciação dos factos e aplicação do direito.
O ilícito de mera ordenação social corresponde a uma censura de natureza social e administrativa cujo fundamento dogmático é a subsidiariedade do Direito Penal e a necessidade de sancionar comportamentos ilícitos, mas axiologicamente neutros. Do ponto de vista teleológico, as contraordenações são uma medida de proteção da legalidade, o que justifica a maior flexibilidade na análise dos pressupostos da imputação, designadamente da culpa, que é diferente da culpa penal.
Ao contrário do direito penal, o direito contraordenacional tem como regra geral que, além das pessoas singulares, a responsabilidade contraordenacional pode sempre ser imputável a uma pessoa coletiva.
As pessoas coletivas podem assim ser consideradas responsáveis pela infração quando a contraordenação tenha sido praticada pelos seus órgãos, pelos titulares dos seus órgãos, mandatários ou representantes e, em alguns casos, até pelos atos dos trabalhadores no exercício das suas funções.
O artigo 7 n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações requer uma interpretação extensiva, de modo a incluir no seu âmbito os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa colectiva ou equiparada, deste que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas.
Em contrário da posição assumida pela sociedade recorrente _ “AA”, do artigo 7º do DL nº 433/82, de 27/10 (Regime Geral das Contraordenações) resulta a responsabilização contraordenacional das infrações cometidos pelos seus órgãos no exercício das suas funções.
Acresce que o termo “órgão”, do ponto de vista conceptual, não está necessariamente associado a um centro autónomo e institucionalizado de poderes funcionais - a uma realidade
institucional ou estatutária.
Por isso mesmo, são descortináveis diversas definições legais de “órgão”, consoante os fins concretamente visados pelo diploma em que as mesmas se inserem.
Ora, na interpretação deste conceito legal, tem a jurisprudência pacificamente reconhecido que ali serão a subsumir não apenas os órgãos sociais de uma empresa, mas igualmente os trabalhadores ao seu serviço, desde que estes atuem no exercício das suas funções ou por causa delas, o que nos parece configurar o caso dos autos.
A jurisprudência tem vindo a interpretar o RGCO de forma evolutiva, passando de um modelo de imputação orgânica para um modelo de imputação funcional, em que o sentido da expressão “órgão no exercício das funções” usado no artigo 7.º do RGCO é entendido como incluindo os trabalhadores ao serviço da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas.
A responsabilidade contraordenacional das pessoas colectivas, sustentando-se numa imputação directa e autónoma, não exige a identificação nem a individualização da pessoa singular executante da acção típica e ilícita.
Ou seja, a pessoa coletiva é responsável haja ou não identificação da pessoa física que praticou os factos ou as omissões, constitutivos da infração.
Refutando a argumentação aduzida pela recorrente, é também de sustentar a verificação de tal conclusão ou desfecho até mesmo quando se não mostre possível individualizar ou personificando, que pessoa(s) singular(es), no âmbito do exercício comercial perante o público, assim atuaram ou deixaram de atuar.
A responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva, por ato omissivo, existe independentemente da responsabilidade singular de quem omitiu, e, sendo (ou não) tal omissão em nome e no interesse da pessoa coletiva.
Mais entende ser de manter a medida fixada em primeira instância para as coimas aplicadas à arguida.
Pugna pela manutenção do decidido.
Nesta Relação a Sr.ª Procuradora-geral-adjunta acompanha a posição expressa pelo MP em 1ª instância, aderindo à argumentação abundante e assertiva expressa na sua resposta ao recurso à qual adere.
Emite parecer no sentido da improcedência do presente recurso.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP não foi apresentada resposta ao recurso.
2 – Fundamentação
A - Circunstâncias com interesse para a decisão a proferir.
Pelo seu interesse para a decisão a proferir passamos de seguida a transcrever a sentença recorrida no que respeita à decisão de facto e de direito na parte conexa com o âmbito do recurso:
«Procedeu-se a julgamento com observância estrita do legal formalismo
(...)
Matéria de facto provada:
1. No dia 3 de Agosto de 2020, pelas 11:30 horas, a ASAE procedeu à inspecção do estabelecimento de comércio a retalho de telecomunicações e acessórios denominado “AA Mobile”, sito na ..., ... (Centro Comercial ...), em ..., Concelho de Guimarães.
2. No decurso de tal fiscalização, verificou-se que a folha de reclamação n.º ... não se encontrava correctamente preenchida, sendo totalmente omitida a identificação do fornecedor do bem/prestador do serviço, não tendo o funcionário da arguida que recebeu aquela reclamação confirmado se o consumidor havia preenchido correctamente a mesma.
3. O estabelecimento encontrava-se aberto e em pleno funcionamento, tendo acompanhado o acto inspectivo BB.
4. Nos dias 17 de Julho de 2020 e 6 de Outubro de 2020, a arguida procedeu ao envio dos originais das folhas de reclamação n.ºs ... e ..., preenchidas nos livros de reclamações existentes nos estabelecimentos da arguida, a, respectivamente, 14 de Maio de 2020 e 23 de Junho de 2020.
5. A folha de reclamação n.º ..., no campo relativo à identificação do fornecedor do bem ou prestador do serviço, encontrava-se incorrectamente preenchida, apenas se indicando “AA”.
6. A arguida sabia que tinha a obrigação legal de enviar aquelas reclamações para a ASAE no prazo de quinze dias após a sua apresentação e que tal omissão era proibida e punida por lei.
7. Mais sabia a arguida que tinha o dever de fornecer todos os elementos necessários ao correcto preenchimento dos campos relativos à sua identificação, devendo ainda confirmar que o consumidor ou utente os havia preenchido correctamente.
8. Ciente de tais imposições legais, a arguida não diligenciou, através dos seus funcionários, pelo envio atempado das referidas reclamações, nem pela confirmação do correcto preenchimento das folhas de reclamação quanto à sua identificação, nem tão pouco cuidou pela existência de uma adequada fiscalização que permitisse atempadamente detectar tais omissões, cuidados a que nada obstava e de que era capaz.
Mais se provou com relevância para a determinação das sanções a aplicar:
9. No ano de 2023 a recorrente apresentou um resultado operacional de exercício de € 9.045.345,36, sendo declarado € 1.145.497.468,40 de vendas e € 122.863.737,89 de gastos com pessoal.
10. À data dos factos não eram conhecidos à recorrente quaisquer antecedentes contra-ordenacionais de idêntica natureza.
Da defesa:
11. Todos os trabalhadores da Arguida recebem formação nestas matérias e são instruídos para que, devolvido o livro de reclamações pelo cliente, verifiquem se tudo ficou devidamente preenchido.
12. As reclamações foram enviadas pela Arguida acompanhada de uma carta-tipo com a sua total identificação e a indicação da sua sede.
13. A Arguida designa, em todos os seus estabelecimentos, uma pessoa para ficar responsável pelo tratamento “burocrático” dos processos de reclamação.
14. Tal trabalhador designado fica não só responsável pelo tratamento interno da reclamação como, igualmente, pelo envio do original da reclamação para a ASAE dentro do prazo legal, bem como, por todas as diligências que, na sequência de uma reclamação no livro, se justifiquem fazer.
15. Para tal, os trabalhadores da Arguida com tal incumbência recebem formação especializada sobre estes temas, nas quais se esclarece, entre outros aspectos, a obrigatoriedade de envio das reclamações efectuadas no livro para esta Autoridade, sendo, igualmente, esclarecidas as consequências de eventuais incumprimentos.
16. A Arguida dá instruções claras a todos os seus trabalhadores com tais incumbências de que devem cumprir com tais determinações legais, esclarecendo o que poderá estar em causa caso não o façam.
17. Acontece que por lapso dos trabalhadores em questão, os originais das reclamações não foram enviados, atempadamente, para esta Autoridade, ao arrepio, aliás, das instruções da sua entidade patronal, aqui, Arguida.
18. No entanto, assim que os funcionários da Arguida repararam que não haviam sido enviadas as reclamações realizadas, procederam de imediato ao seu envio para esta Autoridade.
19. Não existiu qualquer intenção da Arguida em ocultar as ditas reclamações.
20. Diga-se mais que, aquando da publicação em Diário da República de todos os diplomas que possam relevar para a actividade desenvolvida pela Arguida, esta promove acções de formação destinadas a todos os seus funcionários.
21. Estas acções de formação destinam-se a dar a conhecer a Lei a todos aqueles que lidam com situações para as quais estão previstas regras específicas.
22. Foi, precisamente, o que aconteceu no caso em presença.
23. Com a publicação do Decreto-Lei 156/2005 de 15/9, cuja temática se desenvolve em torno dos Livros de Reclamação, sua obrigatoriedade e consequências da sua violação, a Arguida promoveu várias acções de formação, com vista à explicação desta temática e do iter a seguir nas situações por ela abrangidas.
24. Nesta acção ficou claro que todos os estabelecimentos estavam obrigados a remeter as reclamações efectuadas para a entidade competente, assim como a entregar o respectivo duplicado ao reclamante, mesmo que estas reclamações tenham sido – eventualmente – entretanto, sanadas.
25. A Arguida instruiu, ainda, todos os seus funcionários no sentido destes prestarem todas as informações, relativas ao correcto preenchimento das reclamações no respectivo livro, aos clientes sempre que estes solicitassem o Livro de Reclamações.

Matéria de facto não provada:
a). No circunstancialismo descrito nos pontos 2), 4) e 5), não foram facultados ao consumidor todos os elementos necessários ao correcto preenchimento dos campos relativos à identificação do fornecedor de bens ou prestador de serviços.
b). Ao descurar esses deveres, a arguida previu o incurso em ilícitos contra-ordenacionais, conformando-se, porém, com os resultados advenientes das suas omissões.
c). Na referida formação, os trabalhadores da arguida são instruídos de que, sempre que algum cliente pretenda redigir uma reclamação, a ajudar o mesmo no preenchimento da reclamação, designadamente, explicando sumariamente o que deve ser preenchido em cada campo (desde logo para evitar alguns lapsos muito frequentes em reclamações no livro).
d). Aquando do término da explicação, o livro é entregue, a fim de garantir a privacidade e de não condicionar de forma alguma o cliente reclamante, os trabalhadores da Arguida afastam-se do local, deixando o cliente a redigir a reclamação e solicitando ao mesmo que, terminando, entregue o livro para que se possa verificar se tudo ficou devidamente preenchido.
e). Os funcionários que receberam as reclamações em causa nos autos eram aqueles que haviam recebido a formação especializada referida nos pontos 11), 13), 14) e 15) dos factos provados e os especialmente designados para tratar destas matérias.
f). Nas reclamações em causa nos autos em que, depois de lhes terem sido explicadas as regras elementares de preenchimento da reclamação, os clientes reclamantes optaram por não a preencher totalmente, tendo abandonado a loja sem permitir sequer a algum trabalhador da Arguida que rectificasse a situação.
g). Aliás, sublinhe-se, no dia seguinte a cada uma destas reclamações os colaboradores da Arguida tentaram contactar os reclamantes em questão que, ou não atenderam a chamada, ou não se prontificaram a deslocar-se ao estabelecimento, em tempo útil, para corrigir a situação.
h). Nas cartas-tipo referidas no ponto 12) era também identificado o estabelecimento em questão onde as reclamações foram concretamente apresentadas.
Motivação:
A decisão teve por base a prova produzida em audiência, nomeadamente:
Relativamente ao circunstancialismo do tempo e local em que ocorreram os factos, foi especialmente considerado, o teor das reclamações ou cópias destas, juntas a folhas 4 dos autos principais, folhas 2 do apenso n.º 203/21.4EAMDL e folhas 4 do apenso n.º 598/20.7EABRC, assim como do expediente atinente ao seu envio, junto a folhas 4 verso e 5 dos autos principais e a folhas 3 e 4 do apenso n.º 203/21.4EAMDL, tomando-se ainda em atenção o vertido no auto de notícia de folhas 2 a 3 do apenso n.º 598/20.7EABRC, não obstante, quanto a este último elemento, revelar o agente autuante CC, Inspector da ASAE, não ter já memória dos factos por si percepcionados, certo que a factualidade ali vertida não foi colocada em causa pela recorrente.
Na verdade, visto o teor da documentação junta, é inelutável a imputada intempestiva apresentação das reclamações em apreço (bastando atentar nas datas em que tais reclamações foram apresentadas e nas datas do seu envio pela arguida para a ASAE), assim como a deficiência do seu preenchimento nos moldes apontados (ou seja, uma delas não tem sequer qualquer elemento de identificação do fornecedor do bem/prestador do serviço, na outra indica-se singelamente “AA”), certo que, caso os funcionários da arguida tivessem verificado as reclamações (como lhes é legalmente imposto), facilmente teriam detectados tais imperfeições, pelo que é também forçoso concluir que não o fizeram.
Por seu turno, a testemunha DD, funcionária da recorrente há cerca de treze anos, em funções na coordenação da área do “...”, revelou não ter conhecimento directo dos factos objecto dos autos, muito embora trabalhasse no estabelecimento comercial da arguida localizado em Santa Maria da Feira (onde foi apresentada a reclamação n.º ...), não se recordando se, à data, estaria ou não em teletrabalho, nada tendo apurado quanto ao que teria determinado o envio intempestivo da reclamação em apreço. Com relevância, a depoente descreveu a formação que é ministrada aos funcionários que, dentro da orgânica da recorrente, têm competência nestas matérias, esclarecendo que são efectuadas verificações periódicas quanto ao cumprimento das obrigações em questão (ficando, todavia, por perceber, porque não terão sido atempadamente detectadas as omissões de envio ou, pelo menos, mais prematuramente – note-se que decorreram alguns meses até ao envio –, assim como as imprecisões no preenchimento, as quais apenas foram apontadas pela autoridade administrativa), referindo também que, habitualmente, nos estabelecimentos onde já prestou funções, os funcionários ajudam os clientes a preencher a parte de identificação do vendedor ou prestador do serviço, reconhecendo desconhecer se tal auxílio é regra geral em todos os estabelecimentos (daí ter tal facto sido levado à matéria indemonstrada).
Já a testemunha EE, funcionário da arguida há sensivelmente catorze anos e responsável pela loja localizada em Peso da Régua, demonstrou não ter também qualquer conhecimento directo dos factos objecto dos autos, não tendo logrado apurar (ainda que o tivesse tentado, aquando o recebimento da notificação no âmbito do processo contra-ordenacional) o que teria acontecido na situação concreta (a razão pela qual o cabeçalho não tinha sido preenchido, bem como o motivo para o envio não atempado), não tenho sequer conseguido identificar quem seriam os funcionários que teriam tido intervenção na situação (quer no recebimento da reclamação, quer no seu envio), explicitando que, tendo a correspondência remetida para a ASAE sido subscrita por alguém que colocou a locução “permanência” ao lado da sua assinatura (cfr. folhas 3 do apenso n.º 203/21.4EAMDL), tal significava que o responsável não estaria no estabelecimento, sendo substituído por aqueloutro, certo que se tratava de uma equipa pequena, na qual vários funcionários assumiam aquelas competências, não existindo alguém especialmente adstrito a estas matérias. Mais referiu o depoente que, para além da formação que é ministrada no ingresso, quando os funcionários passam a assumir aquelas funções (de “permanência”), têm uma formação complementar nestes temas, existindo igualmente um manual de procedimentos disponível no estabelecimento.
A testemunha FF, funcionário da arguida há cerca de onze anos e, à data, em funções na loja localizada em Peso da Régua, relatou como, tendo detectado no livro de reclamações uma reclamação apresentada e não enviada à ASAE, remeteu-a, juntamente com a reclamação apresentada perante si na data de tal descoberta (e daí a detecção). Mais mencionou a formação inicial que é ministrada aquando o início de funções, a qual versa, para além do mais, estas matérias.
Por estas testemunhas, muito embora sem qualquer respaldo em factos (mas apenas na alegação da recorrente), foi aventada a possibilidade de a conformidade das reclamações não ter sido confirmada pelo funcionários que as receberam (diga-se que se afigurou reveladora de alguma incúria a impossibilidade da identificação destes funcionários, apesar de não se ignorar o tempo decorrido até à notificação efectuada no âmbito dos processos administrativos e a situação excepcional em que então vivíamos) por via da actuação dos clientes reclamantes, os quais, na sua versão, amiúde, abandonam os estabelecimentos em sequer entregar o Livro de reclamações. Por tal motivo foi determinada a inquirição daqueles clientes.
Assim, a testemunha GG, subscritor da reclamação junta a folhas 4, assumindo não ter já uma memória vívida dos factos pertinentes, esclareceu que para preencher os elementos do cabeçalho atinentes à identificação do vendedor, pediu indicações à funcionária que se encontrava no balcão (ou seja, partiu da sua iniciativa e não daquela), sendo que a “responsável de loja” confirmou o teor da reclamação apresentada.
Já a testemunha HH, subscritora da reclamação junta a folhas 2 do apenso n.º 203/21.4EAMDL, revelando não ter já recordação dos factos relevantes, transmitiu que apenas efectuou a reclamação para que a arguida melhorasse os procedimentos (perpassando, assim, do relato que a situação decorreu com urbanidade e calma), não tendo presente se a funcionária lhe deu qualquer indicação quanto ao preenchimento (acreditando-se que não o fez, já que referiu a depoente estar convicta que bastaria indicar o nome “AA”) ou se confirmou a correcção do consignado, certo que asseverou que aquela recebeu o Livro, destacou e o duplicado que lho entregou (pelo que, certamente, não foi por falta de oportunidade que a funcionária não detectou a incorrecção do preenchimento).
Por último, a testemunha II, subscritor da reclamação junta a folhas 4 do apenso n.º 598/20.7EABRC, revelou não ter memória de qualquer pormenor pertinente, mormente se lhe foi dada alguma indicação quanto ao preenchimento ou até se lhe foi entregue duplicado da reclamação.
A testemunha JJ, Inspector da ASAE, não tinha conhecimento de qualquer facto relevante, apenas tendo levado a cabo a instrução do processo originado com a reclamação n.º ....
De igual modo, testemunha KK, Inspector da ASAE, não tinha recordação de qualquer facto com relevância para os autos.
Ora, no que respeita aos factos consubstanciadores do elemento subjectivo das infracções, a sua demonstração (e indemonstração daqueles que consubstanciariam uma imputação dolosa) resultou da conjugação dos elementos probatórios acabados de analisar com as mais elementares regras da experiência comum, do normal acontecer e até do mais meridiano bom-senso.
Na realidade, em situações desta natureza, os factos que integram o elemento subjectivo, apenas se alcançam – na falta de confissão integral e sem reservas – com base em outros factos materiais que concludentemente apontam para a dimensão volitiva do agente.
Tratando-se de infracções praticadas por uma pessoa colectiva e tendo em conta a modalidade de comissão – omissão –, difícil é poder surpreender o dolo do agente, pois, ressalvados os casos de flagrante dolo das pessoas individuais que representam a sociedade, a generalidade das situações reportar-se-ão a casos de incúria organizacional, como parece claro ser o caso dos autos.
Por seu turno, não se apurando em concreto as circunstâncias que determinaram as omissões em apreço, não é lícito que se “presuma” que as mesmas decorreram de uma actuação deliberada e intencional (como o fez a autoridade administrativa), sendo aliás bem mais razoável concluir que as mesmas se terão ficado a dever à falta de zelo de alguns funcionários da sociedade, até porque, tudo aponta para a afirmação que as demais reclamações dos mesmos livros foram enviadas no prazo legal e estavam devidamente preenchidas.
Porém, ainda que se tratem de falhas de certos funcionários da sociedade recorrente e ainda que estes tenham actuado ao arrepio das instruções transmitidas, tais lapsos são ainda imputáveis à sociedade recorrente, por esta ser responsável pelos actos ou omissões das pessoas singulares que a representam.
Acresce que, do depoimento das identificadas testemunhas funcionários da arguida, resultou claro que, não obstante as formações ministradas, estas são-no apenas aquando o ingresso na sociedade ou nas funções com esta responsabilidade, existindo lapsos temporais algo latos sem que se realizem formações complementares, para além de não resultar unívocos os concretos procedimentos a adoptar, em especial, quando ao que deve ser transmitido ao cliente e como.
Com maior relevância, resultou igualmente destes depoimentos que, ao contrário do invocado, não existe um funcionário especialmente adstrito ao tratamento destas reclamações e, sobretudo, não existe qualquer mecanismo de controlo e confirmação do cumprimento das directivas e da Lei, o que teria certamente evitado, pelo menos, o envio intempestivo das reclamações.
Quanto à situação económica da recorrente foi considerada a IES junta no requerimento datado de 22 de Março.
No que tange aos factos não provados os mesmos assim o resultaram pela circunstância de a prova produzida não ter sido suficiente para a sua confirmação ou mesmo por os ter infirmado.
Do direito aplicável
Nos termos do artigo 1.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-lei nº 433/82, de 27 de Outubro, constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.
Conforme sabido é, o transcrito normativo fornece uma definição de contra-ordenação estruturada sob critérios formais, já que é justamente através de um índice conceitual-formal que o legislador opera a distinção entre crime e contra-ordenação, à segunda categoria fazendo corresponder todo o facto ilícito, típico, culposo, punível com coima (cfr. Prof. Figueiredo Dias, “O movimento de descriminalização”, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pg.327).
Por seu turno, o artigo 2.º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, estipula que “só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática”, deste modo consagrando, no domínio do direito contra-ordenacional, os chamados princípios da legalidade, da tipicidade e da não retroactividade.
Deste modo, para que possa ser configurada a prática de um ilícito contra-ordenacional, qualquer que ele seja, é necessária a verificação de determinados pressupostos, a saber:
- a ocorrência de um facto (por acção ou omissão), no sentido em que só uma conduta humana traduzida em actos externos pode ser qualificada como contra-ordenação e justificar a aplicação de uma coima.
- a existência de um tipo-de-ilícito, no sentido em que, exprimindo-se a ilicitude precisamente através de tipos de ilícito, só a conduta subsumível à descrição legal do comportamento proibido poderá ser contra-ordenacionalmente relevante.
À recorrente foram imputadas duas contra-ordenações correspondentes ao atraso no envio do original de reclamações, previstas e punidas pelos artigos 5.º, n.º 1, e 9.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, na redacção da Lei n.º 74/2017, de 21 de Junho; e duas contra-ordenações pela incorrecta identificação do fornecedor do bem ou prestador do serviço naquelas reclamações, previstas e punidas pelos artigos 4.º, n.º 2, alínea b), e n.º 3, e 9.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, na redacção da Lei n.º 74/2017, de 21 de Junho.
A arguida foi sancionada pela prática dolosa de tais contra-ordenações.
Como supra se consignou, dispõem os pertinentes preceitos legais:
Artigo 4.º
Formulação da reclamação
1 - A reclamação é formulada através do preenchimento da folha de reclamação no livro de reclamações.
2 - Na formulação da reclamação, o consumidor ou utente deve respeitar as regras de preenchimento previstas na folha de instruções e na folha de reclamação, devendo em especial:
a) Preencher de forma correta e completa todos os campos relativos à sua identificação e endereço;
b) Preencher de forma correta a identificação e o local do fornecedor de bens ou prestador do serviço;
c) Descrever de forma clara e completa os factos que motivam a reclamação, respeitando o espaço que se destina à respetiva descrição;
d) Apor a data da reclamação.
3 - Para efeitos do disposto na alínea b) do número anterior, o fornecedor de bens ou o prestador de serviços deve fornecer todos os elementos necessários ao correto preenchimento dos campos relativos à sua identificação, devendo ainda confirmar que o consumidor ou utente os preencheu corretamente.
4 - Quando os consumidores ou utentes estejam impossibilitados de preencher a folha de reclamação por razões de analfabetismo ou incapacidade física, o fornecedor de bens, o prestador dos serviços ou qualquer responsável pelo atendimento deve, no momento da apresentação da reclamação e a pedido do consumidor ou utente, efetuar o respetivo preenchimento nos termos descritos oralmente por este.
Artigo 5.º
Envio da folha de reclamação
1 - Após o preenchimento da folha de reclamação, o fornecedor do bem, o prestador de serviços ou o funcionário do estabelecimento, deve, no prazo de 15 dias úteis, salvo se for estabelecido prazo distinto em lei especial, remeter o original da folha do livro de reclamações, consoante o caso:
a) À entidade de controlo de mercado competente ou à entidade reguladora do setor identificada no artigo 11.º;
b) À entidade de controlo de mercado competente ou à entidade reguladora do setor, tratando-se de fornecedor de bens ou de prestador de serviços não identificado no anexo ao presente decreto-lei;
c) À entidade que, nos termos da lei, emite a respetiva acreditação, na ausência de entidade reguladora do setor ou de entidade de controlo de mercado competente, tratando-se de fornecedor de bens ou de prestador de serviços não identificado no anexo ao presente decreto-lei e sujeito a processo de acreditação;
d) À Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), caso não exista entidade competente nos termos das alíneas anteriores.
2 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, a remessa do original da folha de reclamação deve ser acompanhada dos seguintes elementos:
a) A resposta já enviada ao consumidor ou utente em virtude da reclamação formulada, quando aplicável;
b) O exemplar da mensagem publicitária, através de suporte físico ou digital, quando o objeto da reclamação incidir sobre publicidade.
3 - A remessa do original da folha de reclamação pode, ainda, ser acompanhada dos esclarecimentos sobre a situação objeto de reclamação, incluindo informação sobre o seguimento que tenha sido dado à mesma.
4 - Após o preenchimento da folha de reclamação, o fornecedor do bem, o prestador de serviços ou o funcionário do estabelecimento tem ainda a obrigação de entregar o duplicado da reclamação ao consumidor ou utente, conservando em seu poder o triplicado, que faz parte integrante do livro de reclamações e que dele não pode ser retirado.
5 - Caso o consumidor ou utente recuse receber o duplicado da reclamação, o fornecedor do bem ou prestador de serviço deve proceder ao arquivo do duplicado, com a menção desta recusa.
6 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o consumidor ou utente pode também remeter o duplicado da folha de reclamação à entidade de controlo de mercado competente ou à entidade reguladora do setor, de acordo com as instruções constantes da mesma, ou, tratando-se de fornecedor de bens ou de prestador de serviços não identificado no anexo ao presente decreto-lei e não havendo uma e outra destas entidades, à entidade que nos termos da lei é competente para emitir a respetiva acreditação ou, na ausência desta, à ASAE.
Artigo 9.º
Contraordenações
1 - Constituem contraordenações puníveis com a aplicação das seguintes coimas:
a) De (euro) 250 a (euro) 3500 e de (euro) 1500 a (euro) 15 000, consoante o infrator seja pessoa singular ou coletiva, a violação do disposto nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 do artigo 3.º, nos n.os 1 e 2 do artigo 5.º, no n.º 3 do artigo 5.º-A, nos n.os 1 a 3 do artigo 5.º-B e nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º;
b) De (euro) 150 a (euro) 2500 e de (euro) 500 a (euro) 5000, consoante o infrator seja pessoa singular ou coletiva, a violação do disposto no n.º 3 do artigo 1.º, nas alíneas c) e d) do n.º 1 e nos n.os 2, 3 e 5 do artigo 3.º, nos n.os 3 e 4 do artigo 4.º, nos n.os 4 e 5 do artigo 5.º, no n.º 4 do artigo 5.º-B, no n.º 6 do artigo 6.º e nos n.os 2 e 5 do artigo 8.º
2 - A negligência é punível sendo os limites mínimos e máximos das coimas aplicáveis reduzidos a metade.
3 - Em caso de violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º, acrescida da ocorrência da situação prevista no n.º 4 do mesmo artigo, o montante da coima a aplicar não pode ser inferior a metade do montante máximo da coima prevista.
4 - (Revogado.)
Ora, em face dos factos tidos por demonstrados, facilmente se conclui, sem necessidade de adicionais considerações, pela verificação de todos os elementos objectivos do tipos contra-ordenacionais em causa.
Com efeito, no supra referido circunstancialismo de tempo e lugar, a recorrente enviou fora do prazo legalmente fixado de quinze dias úteis, duas reclamações, devidamente inscritas no livro existente nos estabelecimentos comerciais por si explorados e, em duas reclamações não verificou o correcto preenchimento do campo atinente à identificação e ao local do fornecedor de bens ou prestador do serviço, sendo, numa delas, totalmente omitidas tais indicações.
Ora, para além da verificação dos elementos objectivos, a possibilidade de, em razão da prática de determinada conduta, imputar ao agente a responsabilidade contida no tipo contra-ordenacional depende ainda da verificação dos elementos subjectivos correspondentes ao ilícito considerado.
Com efeito, segundo expressamente se diz no n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27/10, “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
Aplicando ao caso dos autos as considerações supra expostas, a conclusão que se segue é a de que, perante a demonstração de que a recorrente – naturalmente através dos respectivos funcionários e pessoas singulares através das quais actua – «(…) sabia que tinha a obrigação legal de enviar aquelas reclamações para a ASAE no prazo de quinze dias após a sua apresentação e que tal omissão era proibida e punida por lei. Mais sabia (…) que tinha o dever de fornecer todos os elementos necessários ao correcto preenchimento dos campos relativos à sua identificação, devendo ainda confirmar que o consumidor ou utente os havia preenchido correctamente. (e que) Ciente de tais imposições legais, a arguida não diligenciou, através dos seus funcionários, pelo envio atempado das referidas reclamações para a ASAE, nem pela confirmação do correcto preenchimento das folhas de reclamação quanto à sua identificação, nem tão pouco cuidou pela existência de uma adequada fiscalização que permitisse adequada e atempadamente detectar tais omissões, cuidados a que nada obstava e de que era capaz.», fica afastada a possibilidade de imputação de uma culpa dolosa e, concomitantemente, imposta a necessidade de ponderar a observância do dever objectivo de cuidado, uma vez que as contra-ordenações em causa são também sancionáveis a título negligente (cfr. artigo 9.º, n.º 2, do mencionado Decreto-lei).
O elemento estruturante e referencial de toda a infracção negligente é, como se sabe, a violação de um dever objectivo de cuidado: o elemento configurador do ilícito negligente consiste, pois, na divergência entre o comportamento assumido e aquele outro que haveria de ter sido o adoptado em razão do dever objectivo de cuidado que se impunha observar.
Daí que, perante tal actuação, se imponha o reconhecimento de que a recorrente violou os deveres objectivos de cuidado a que se encontrava vinculada, tornando-se passível do juízo de censura próprio da culpa negligente.
Sendo negligente a modalidade de execução típica a considerar, o limite máximo das coimas aplicáveis coincidirá com metade do legalmente previsto (cfr. artigo 9.º, n.º 2, do mencionado Decreto-lei e artigo 17.º, n.º 4, do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).
Por conseguinte, as molduras a considerar oscilarão então entre os € 750 e os € 7.500 e os € 250 e € 2.500.
Segundo o disposto no artigo 18.º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, a determinação da medida da coima far-se-á em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício que este retirou da prática da contra-ordenação.
No caso em presença, haverá de considerar, no que à falta atempada de envio respeita, a concreta dilação temporal das referidas omissões, ou seja, quanto à primeira situação – reclamação n.º ... – quase quinze dias úteis (deduzido o período de suspensão dos prazos por via da legislação excepcional aprovada em período de pandemia), e, relativamente à segunda – n.º ... – quase quatro meses de atraso; certo que, em sentido oposto, importará atentar que estaríamos em pleno período pandémico, com as conhecidas restrições ao desenvolvimento normal de qualquer actividade, tendo mesmo a primeira reclamação sido apresentada durante o confinamento.
Já no que respeita à omissão da verificação da correcção do preenchimento importará atentar que numa das reclamações é mesmo totalmente omitida a identificação do prestador do serviço ou do vendedor do bem, certo que, em sentido oposto, deverá salientar-se que, aquando o envio de tais reclamações pela recorrente a mesma fornece a sua identificação, ainda que não indique expressa e concretamente o estabelecimento comercial (loja) onde aquelas reclamações foram apresentadas (mas apenas a localidade).
Por outro lado, haverá que considerar a circunstância de estarmos perante uma sociedade especialmente vocacionada à comercialização em massa, com uma grande estrutura organizativa que, como tal, tem especialmente o dever de diligenciar pela adequada delegação de tarefas e fiscalização dos seus funcionários de molde a evitar omissões deste jaez, bem como a considerável dimensão e o tipo de estabelecimentos em causa e a elevada recorrência da prática de ilícitos da mesma natureza.
Quanto à situação económica da arguida apurou-se que, ano de 2023 apresentou um resultado operacional de exercício de € 9.045.345,36, sendo declarado € 1.145.497.468,40 de vendas e € 122.863.737,89 de gastos com pessoal, o que indica uma confortável situação económica, o que, desde logo, veda à fixação de um quantitativo próximo do mínimo legal.
Já no que tange ao benefício económico obtido com a prática das infracções, não temos como discordar com a autoridade administrativa no sentido de ser inviável a sua quantificação, certo que inelutável será que existirá sempre tal benefício, traduzido no gasto não efectuado na eficiente e efectiva formação dos seus funcionários, na adopção de mecanismos de fiscalização interna adequados ou até mesmo na não contratação de pessoas mais aptas. Não obstante, dos factos provados, não resultou demonstrado qualquer benefício económico visível para a mesma.
Como atenuantes sopesam as circunstâncias de à data dos factos a recorrente ser primária, assim como a formação especializada que ministra aos funcionários incumbidos do tratamento de tais questões (muito embora falhe na imposição de que sejam sempre estes funcionários a lidar com tais situações) e nas instruções que dá a estes mesmos trabalhadores.
Por tudo o exposto, afigura-se-me efectivamente não serão adequadas as coimas concretamente aplicadas, em especial por estarmos agora perante molduras sancionatórias atenuadas, por via da imputação dos ilícitos a título meramente negligente, devendo proceder, nesta parte, o recurso interposto.»
B – Fundamentação de direito
É jurisprudência pacífica que o objeto do recurso e o âmbito dos poderes de cognição do Tribunal Superior são delimitados pelo teor das conclusões elaboradas pelo recorrente, sem prejuízo das questões que são do conhecimento oficioso do tribunal.
No caso concreto a recorrente suscita as seguintes questões:
1ª) saber se pode ser responsabilizada enquanto pessoa coletiva por atos ilícitos praticados pelos respetivos funcionários ainda que contrários a instruções que lhes tenham sido transmitidas pela arguida.
2ª) medida concreta das coimas aplicadas que a recorrente pretende ver reduzidas.
Cumpre apreciar!
1ª Questão
Temos de ter presente que no domínio do direito contraordenacional impende uma censura sobre os responsáveis pelos vários sectores económicos e sociais, o que exige ao agente o dever, segundo as circunstâncias do caso, de ser capaz de prever e avaliar corretamente a possibilidade de realização do ilícito de forma a poder evitá-lo.
No caso concreto em análise e não obstante a prova pela defesa das instruções da arguida para que fossem cumpridas as regras legais aplicáveis, sucedeu que tais instruções foram insuficientes para que as regras fossem observadas tendo a arguida sido ineficaz no controle das pessoas que em concreto praticaram tais atos nos seus estabelecimentos comerciais.
Como tal não logrou observar o dever de cuidado a que estava obrigada de que as regras legais fossem observadas e efetivamente respeitadas na prática.
Não estamos perante responsabilidade objetiva, como decorre inequivocamente do disposto no art.8 do RGCC, onde se estabelece que só é punível o facto praticado com dolo, ou nos casos previstos na lei com negligência
Considera a recorrente que o nº2 do art.7º do RGCC ao estabelecer a responsabilidade da pessoa coletiva pelos atos praticados pelos seus órgãos não inclui na sua previsão os trabalhadores, por maioria de razão, se agem contra instruções diretas suas.
Porém, não tem sido assim entendido na jurisprudência que tem vindo a considerar que artigo 7 n.º 2, do RGCC requer uma interpretação extensiva, de modo a incluir no seu âmbito os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas e considerando a complexidade que pode ter uma organização comercial como a da recorrente dispensa-se a identificação do autor ou autores do ato ilícito contraordenacional.
Sobre este tema já se pronunciou o Tribunal Constitucional podendo ler-se no Acordão 566/2018: «… faltando uma definição legal própria aplicável no domínio específico do RGCO, e abstraindo de argumentos teleológicos e outros argumentos sistemáticos (por exemplo, uma maior adequação ao princípio da equiparação consignado no artigo 7.º, n.º 1, do RGCO), não se pode ter por absolutamente incompatível com o sentido literal do termo “órgão” referido no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO um entendimento extensivo do mesmo», doutrina que se defende também no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República nº 11/2023, o qual parte da premissa que: «O ilícito de mera ordenação social corresponde a uma censura de natureza social e administrativa cujo fundamento dogmático é a subsidiariedade do Direito Penal e a necessidade de sancionar comportamentos ilícitos mas axiologicamente neutros. Do ponto de vista teleológico, as contraordenações são uma medida de proteção da legalidade, o que justifica a maior flexibilidade na análise dos pressupostos da imputação, designadamente da culpa, que é diferente da culpa penal.»
A razão de ser da necessidade de interpretação extensiva segundo o citado parecer reside na circunstância de a responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas assentar numa imputação direta e autónoma, - quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num "defeito estrutural da organização empresarial" (defective corporate organization) ou na "culpa autónoma por défice de organização", quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva, mas que não precisa de ser identificada nem individualizada.
Faz todo o sentido, a nosso ver, a interpretação vinda de referir, na medida em que como supra já afirmámos, no caso concreto, a diligência da pessoa coletiva para que os seus colaboradores cumprissem as normas legais foi insuficiente e não logrou evitar o ato ilícito contraordenacional, pelo que, está aqui em causa uma falha na organização que conduz à responsabilização.
Sobre este tema indicam-se os Acórdãos da Relação de Coimbra de 13/10/2021, relatado por Maria José Nogueira e da Relação de Lisboa de 26/04/2022, relatado por Vieira Lamim.
E este entendimento vem sendo defendido há bastante tempo nesta Relação do Porto atento o Acórdão de 6/06/2012, relatado por Artur Oliveira, onde pode ler-se: «Em suma, entendemos que o critério de imputação na responsabilidade contraordenacional das pessoas colectivas, nos termos do R.G.C.O., é o seguinte: a expressão "órgãos" reporta-se também às pessoas físicas que, enquanto tais, actuam em nome do ente colectivo, nos termos da doutrina que explanámos. É pois possível gizar um conceito mais amplo, abrangendo as pessoas físicas que, em nome e no interesse da pessoa colectiva, administram os interesses desta, decidindo e actuando pelas pessoas colectivas.»
Assim, nenhuma censura merece a decisão recorrida quanto imputa a responsabilidade pelas contraordenações praticadas pelos funcionários não identificados da arguida à arguida pessoa coletiva.
A decisão recorrida também não viola preceitos constitucionais, designadamente, o art.32 da CRP, como se conclui da leitura do Acórdão do Tribunal Constitucional nº397/2025 que trata tema idêntico, não obstante relacionado com o Regime Quadro do Sector das Comunicações, e faz uma resenha dos casos em que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre este tema.
2ª) Questão
Considera a recorrente que atentas as circunstâncias demonstradas nos autos foi excessivo o montante das coimas parcelares e única aplicadas em concreto, pretendendo a respetiva redução para o mínimo legal.
Vejamos!
A negligência dos funcionários da arguida no que concerne ao preenchimento das referidas reclamações apresentadas pelos consumidores no caso concreto foi grosseira, pelo menos em duas das situações, sendo numa delas completamente omitida a identificação do fornecedor dos serviços, e também no que respeita ao elevado o atraso no envio da referida reclamação (de quase de quatro meses).
Sendo certo que as molduras a considerar por estarmos perante uma imputação a título de negligência oscilam entre os € 750 e os € 7.500 e os € 250 e € 2.500.
Na determinação da medida concreta da coima rege o art. 18 do RGCC que manda atender à gravidade da contraordenação e da culpa e à situação económica do agente, bem como ao benefício económico que se retirou do facto ilícito.
Ficou demonstrado que a arguida goza de excelente condição económica, o que não foi sequer posto em causa neste recurso, e não retirou qualquer benefício da prática dos ilícitos contraordenacionais em causa.
Tudo ponderado consideramos que o Tribunal recorrido ponderou de forma adequada a gravidade de cada uma das contraordenações cometidas, distinguindo as mesmas no que respeita à medida das coimas fixadas, as quais se situam próximas do limite mínimo abstrato aplicável ao caso, pelo que, também nesta matéria nenhuma censura merece a sentença recorrida.
3.Decisão:
Com base nos argumentos que foram aduzidos, acordam os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso da arguida A..., S.A e confirmam integralmente a decisão recorrida.
Custas, pelo decaimento do recurso, a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

Porto, 15/10/2025
Paula Guerreiro
Maria do Rosário Martins
Madalena Caldeira