Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
180/10.7TBPRD-A.P1
Nº Convencional: JTRP00043990
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
PRESTAÇÃO DA CAUÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
POSSE PRECÁRIA
Nº do Documento: RP20100415180/10.7TBPRD-A.P1
Data do Acordão: 04/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – No regime da locação financeira definido pelo DL nº 149/95, de 24.06, na redacção introduzida pelo DL nº 265/97, de 02.10, a exigência de caução a prestar pelo locador não é um efeito automático do deferimento da providência cautelar de entrega judicial, nem o tribunal tem que se pronunciar sobre ela se entender que o caso não justifica a sua prestação e o requerido não se manifestou no sentido do requerente a dever prestar.
II – O juiz exigirá do requerente a prestação de caução apenas quando, em razão das circunstâncias do caso, a mesma se revele necessária à salvaguarda dos direitos do requerido que, por força da providência, se vê desapossado do bem, com alguma probabilidade de vir a ficar prejudicado, nomeadamente, caso lhe venha a ser definitivamente reconhecido o seu direito. Mas esse risco há-de resultar traduzido nos factos indiciariamente provados, designadamente por alegação do requerido interessado.
III – O nº4 do art. 3º do CPC não prevê um articulado em sentido próprio, mas a faculdade concedida a uma das partes de ainda responder, para além do último articulado típico, a uma matéria que, por ter a natureza de excepção e por ter sido alegada naquele último articulado, é nova no processo, assim acautelando o contraditório e a realização do direito a um processo justo e equitativo.
IV – O locatário é mero detentor ou possuidor precário do bem locado e, como tal, não pode beneficiar da presunção de posse a que se refere o art. 1252º, nº2 do CC, nem da presunção de titularidade do direito real, estabelecida para o possuidor no art. 1268º do mesmo Cod, enquanto não inverter o título da posse.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 180/10.7TBPRD-A.P1 – 3ª Secção (Apelação)
Tribunal Judicial de Paredes

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Teixeira Ribeiro
Adj. Desemb. Pinto de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B……….., S.A., com sede na ….., Pessoa Colectiva n.º 501 525 882, matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto, requereu providência cautelar de entrega judicial, como preliminar da acção principal, contra C………., NIF 159 536 ….., e D………, NIF 178284…., ambos residentes na Avenida ….., n.º …, freguesia de ….., concelho de Paredes, alegando essencialmente que, no exercício da sua actividade, em 9.10.2001 celebrou com os requeridos um contrato de locação financeira relativo a uma fracção autónoma de um edifício cujo gozo lhes cedeu mediante o pagamento de rendas que os últimos deixaram de pagar a partir de 7.3.2006.
Apesar de interpelados para o pagamento das 30 rendas em falta, sob pena de se considerar o contrato definitivamente não cumprido, os requeridos nada pagaram, pelo que a requerente perdeu o interesse que tinha na prestação.
Com efeito, assistindo-lhe o direito à resolução do contrato, a requerente exerceu-o através de declaração enviada aos requeridos onde, para além de peticionar os montantes em dívida, exigia a entrega do imóvel, mantendo-se os últimos, ainda hoje, na mesma posição de não pagamento e não entrega da fracção.
A requerente cancelou o registo da locação financeira.
E deduziu o seguinte pedido:
«Termos em que, face à resolução do contrato e não entrega do equipamento deve a Providência Cautelar requerida ser julgada provada e procedente sem audição da Requerida e ordenada a entrega do equipamento identificada no artigo 5.º do presente articulado à aqui Requerente.»
Fundamentadamente, o tribunal recorrido optou pela citação dos requeridos prévia à diligência pretendida, tendo eles exercido o contraditório pela oposição à providência, por excepção e por impugnação.
Alegaram, em síntese, que negociaram com E……….. e F……….. a compra e venda do prédio urbano composto por andar e loja, com a finalidade de passarem a residir no 1.º andar e usarem e fruírem a loja para o exercício do comércio.
Como não possuíam recursos financeiros para adquirir de imediato esse prédio dirigiram-se à banca para obter financiamento, tendo manifestado ao Banco a vontade de contrair empréstimos na forma de mútuo com hipoteca ou com as garantias que a requerente tivesse por convenientes.
A requerente convenceu os requeridos que o melhor crédito para aquisição da loja seria obtido através do recurso ao leasing imobiliário ficando o Banco nos “papéis” como proprietário mas, na realidade, tudo se passava como se de um mútuo com hipoteca se tratasse.
Os requeridos acreditaram e confiaram no requerente e, por isso, contrataram, sendo que logo após a aquisição da loja entraram no domínio e na posse da mesma, o que ainda hoje acontece, ali exercendo o seu comércio, tudo limpando, reparando, conservando, retirando e colhendo os seus frutos e rendimentos, e pagando as contribuições; o que acontece desde 9.10.2001, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de forma ininterrupta e na intenção e com convicção de que a fracção lhes pertence.
Assim, os requeridos são proprietários da fracção e isso mesmo têm manifestado ao requerente, mas este insiste em arrogar-se proprietário.
Por parte do requerente ocorreu reserva mental, com os efeitos da simulação. Daí que o negócio seja nulo.
No entanto, por estarem reunidos os requisitos de substância e de forma, e o fim prosseguido pelas partes permite supor que elas teriam querido realizar negócio de tipo ou conteúdo diferente, em função da invalidade detectada, deve a locação financeira converter-se em mútuo com hipoteca entre o requerente e requeridos --- art.º 293° do Código Civil, sendo que os requeridos, como sempre, estão dispostos a liquidar o crédito junto do requerente, justificando-se, porém, a renegociação do contrato por alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar.
Impugnaram toda a matéria alegada na petição inicial e concluíram pela “improcedência da providência cautelar”.
Produzidas as provas, a providência foi, fundamentadamente, decidida nos seguintes termos:
«Face ao exposto, julgo a providência cautelar procedente e, consequentemente, determino a entrega da fracção designada pela letra “B” destinada a comércio descrita na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.° 1223 e inscrita na matriz sob o art. 2558.°-B.
Custas pela requerente, a atender na acção respectiva (art. 453°, nº l, do Código Processo Civil).»
Em 12 de Janeiro de 2010 foi concretizada a entrega judicial ordenada, tendo sido lavrado o respectivo auto.
Inconformados, os requeridos apelaram da decisão, resumindo as suas alegações sob a seguinte forma de conclusões:
…………
…………
…………
…………
…………
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do acto recorrido e não sobre matéria nova, excepção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A, do Código de Processo Civil, na redacção que foi introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aqui aplicável).
O Tribunal deve apreciar todas as questões decorrentes da lide, mas, embora o possa fazer, não tem que discutir todos os argumentos ou raciocínios das partes; apenas deve considerar o que for necessário e suficiente para resolver cada questão[1].

Importa apreciar e decidir as seguintes questões:
1- Saber se a sentença é nula por qualquer uma das duas razões invocadas:
a) Oposição entre os fundamentos e a decisão; e
b) Omissão de pronúncia.

2- Modificação eventual da matéria de facto dada como provada e não provada.

3- Saber se (seja ou não seja modificada a matéria de facto dada como provada):
a) Os requeridos podem ser considerados possuidores e proprietários do imóvel;
b) Ocorreu reserva mental da requerente na contratação da locação financeira com os requeridos e se justifica a conversão desse contrato em mútuo com hipoteca; e se
c) Houve alteração anormal das circunstâncias que justifique a modificação do referido contrato.

4- Possibilidade desta Relação fixar caução a prestar pela requerente a favor dos requeridos recorrentes.
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III.
São os seguintes os factos considerados atendíveis pela 1ª instância:

a) O B…………., SA incorporou, por fusão, o G………… SA.
b) No exercício da sua actividade comercial, o requerente celebrou com os requeridos, em 9/10/2001, um contrato denominado “Contrato de locação financeira imobiliário n.º 20011139” cuja cópia se encontra junta a fls. 12 a 20 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.

c) O requerente, no dia 9/10/2001, adquiriu a E……….. e F……… a propriedade da fracção autónoma designada pela letra “B” destinada a comércio descrita na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 1223 através de escritura de compra e venda celebrada no Quinto Cartório Notarial do Porto.

d) Os requeridos deixaram de pagar a renda vencida em 7 de Março de 2006 e as seguintes, não tendo, desde então, pago mais nenhuma renda.

e) O requerente interpelou os requeridos, em 16 de Outubro de 2008, para fazerem cessar a mora no prazo de 10 dias, sob pena de considerar o contrato definitivamente não cumprido.

f) O requerente remeteu aos requeridos, que a receberam, a carta registada datada de 17 de Novembro de 2008 cuja cópia se encontra junta a fls. 32/33 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

g) Os requeridos não entregaram ao requerente o imóvel id. em c).

h) Os requeridos negociaram com E………. e F……… a compra e venda do prédio urbano composto por andar e loja sito no lugar de ….., freguesia ……, Paredes, com a finalidade de passarem a habitar o 1.º andar e usarem e usufruírem a loja para o exercício do comércio, tendo acordado com os vendedores os termos, condições e cláusulas do contrato de compra e venda, designadamente, o preço de €16.500.000$00 para a loja.

i) Os requeridos dirigiram-se à banca, nomeadamente ao requerente, para obter financiamento para a aquisição acordada com os vendedores.

j) Os requeridos obtiveram financiamento do requerente para a aquisição do 1.º andar do imóvel através de mútuo com hipoteca.

k) Aos requeridos foi entregue a fracção id. em c) em Outubro de 2001.

l) Desde essa data que os requeridos usam e fruem essa fracção, ali exercendo comércio, limpando-a, reparando-a e colhendo os seus rendimentos, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta e sem oposição de ninguém.

B) E foi considerada não indiciariamente provada qualquer outra matéria, designadamente que:
a) O requerente convenceu os requeridos que o melhor crédito para a loja seria obtido através do recurso ao leasing imobiliário, ficando o banco nos “papéis” e formalidades na qualidade de proprietário da loja mas na realidade seriam sempre os requeridos os seus legítimos donos e possuidores, tudo se passando como se de um mútuo com hipoteca se tratasse.

b) Os requeridos, desde há 8 anos, pagam as contribuições da fracção id. em c) dos factos indiciariamente provados.

c) Os requeridos estão, desde há 8 anos, na posse dessa fracção na convicção de que essa fracção lhes pertence.

d) O requerente na contratação da locação financeira emitiu uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar os requeridos.

e) Os requeridos são titulares de créditos e débitos regulares decorrentes da actividade de comércio que exercem, cujo saldo líquido sofre as variações e flutuações normais do giro comercial, tudo dificultado pela concorrência das grandes superfícies comerciais.

f) Os requeridos têm procurado satisfazer os débitos dos seus credores, entre eles o do requerente.
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IV.
1- Da nulidade da sentença
a) Oposição entre os fundamentos e a decisão
Constitui causa de nulidade da sentença --- extensível aos próprios despachos (qualquer decisão, seja qual for a forma que assuma) --- a oposição entre os fundamentos e a decisão (art.ºs 666º, nº 3 e 668º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil. Trata-se de um vício lógico que compromete a decisão desde logo na sua construção. A decisão perde a sua justificação ao apoiar-se ostensivamente numa base que, na realidade, não a sustenta. Os fundamentos dela constantes conduziriam, logicamente, não ao resultado expresso e querido pelo juiz subscritor, mas a um resultado oposto ou, pelo menos, bastante diferente, de tal modo que a decisão não é um acto considerado racionalmente sustentado; antes revele a uma distorção do raciocínio lógico que se impõe entre as premissas de facto e de direito e a conclusão. A fundamentação há-de apontar num sentido enquanto o segmento decisório segue caminho oposto ou, pelo menos, uma direcção claramente diferente.
A nulidade da oposição entre os fundamentos e a decisão está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos art.ºs 158° e 659°, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, de fundamentar as decisões e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a consequência ou conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Não se verifica a oposição geradora desta nulidade se o julgador errou na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável ou se, porventura, errou na indagação de tal norma ou na sua interpretação. Assim, a circunstância de o juiz ter eventualmente extraído ilações e explanado o seu raciocínio, com argumentos e razões não sustentadas nos factos provados não é problema de nulidade de sentença.
Entendem os recorrentes que, se o tribunal deu como provados factos aptos a sustentar a posse do imóvel por parte deles (requeridos) não poderia ter julgado procedente a providência cautelar porque o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, nos termos do art.º 1268º, nº 1, do Código Civil. Daí que, estando também cancelado o registo da locação financeira a favor da requerente, o tribunal deveria ter considerado os recorrentes proprietários do bem.
Como é por demais evidente, não está em causa qualquer viciação de raciocínio lógico entre os fundamentos e a decisão que ponha em causa a sua própria construção e valor enquanto acto decisório processual, mas, tão simplesmente, discordância dos recorrentes relativa à subsunção jurídica dispensada pela Ex.ma Juíza aos factos provados. Não aceitam o tratamento jurídico dado à matéria de facto. Chamam impropriamente de nulidade o que, na verdade, na interpretação legal efectuada pelos recorrentes, apenas poderá ser erro na interpretação e aplicação da lei por parte do tribunal.
Com efeito, não há oposição entre os fundamentos e a decisão.

b) Omissão de pronúncia
Esta causa de nulidade da decisão ocorre quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (art.º 668º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil).
Os recorrentes entendem que, tendo o tribunal a quo julgado procedente o procedimento, deveria “apreciar a possibilidade de prestação de caução por parte do requerente”, tendo em vista garantir a indemnização a que o requerido possa ter direito ao abrigo do art.º 21º, nº 4, do Decreto-lei nº 149/95, de 24.6, alterado pelo Decreto-lei n° 265/97, de 2.10.
O juiz deve obediência à lei.
Reza o art.º 660º, nº 2, do Código de Processo Civil que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Deve entender-se por “questões” as pretensões deduzidas ou os elementos integradores do pedido e da causa de pedir; ou sejam, as concretas controvérsias centrais a dirimir.
O nº 4 do art.º 21º do Decreto-lei nº 149/95, de 24 de Junho, na redacção introduzida pelo Decreto-lei nº 265/97, de 2 de Outubro, dispõe, a propósito da providência cautelar específica de entrega judicial, que «o tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.° 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada».
A prestação de caução pelo requerente da providência não constitui um efeito automático do decretamento da entrega judicial. A lei deposita na sensibilidade do juiz a avaliação casuística das circunstâncias em que se justifica a exigência daquela garantia, em benefício do requerido. Quer isto significar que o juiz exigirá do requerente a prestação de caução apenas quando, em razão das circunstâncias do caso, a mesma se revele necessária à salvaguarda dos direitos do requerido que, por força da providência, se vê desapossado, com alguma probabilidade de vir a ficar prejudicado, nomeadamente, caso lhe venha a ser definitivamente reconhecido o seu direito. Mas esse risco há-de resultar traduzido nos factos indiciariamente provados, designadamente por alegação do requerido interessado (princípio do dispositivo; art.º 264º do Código de Processo Civil). A exigência de prestação de caução não é, e não pode ser, um acto arbitrário do julgador.
Ora, compulsados os autos, nada neles se revela favorável à necessidade de implementação daquela faculdade, e os requeridos não só não aduzem factos nesse sentido no seu articulado de oposição --- lugar e momento próprios para a dedução da sua defesa --- como também não se manifestaram no sentido do requerente prestar a caução, não pondo em causa, além do mais, a sua solvabilidade.
Por conseguinte, temos que, por um lado, o juiz não deixou de se pronunciar sobre questão que tivesse sido suscitada por qualquer das partes e, por outro lado, por falta de matéria de facto que o justificasse, não tinha que ordenar à requerente que prestasse caução. Dada a situação, nem sequer tinha que se pronunciar sobre esta matéria. A lei não impõe que se pronuncie sempre sobre tal possibilidade, mas apenas que determine a prestação de caução quando tal se justifique, fundamentando essa opção. A Sr.ª Juíza não o fez nem tinha que o fazer, atentos os elementos de facto disponíveis nos autos e a absoluta omissão de pronúncia das partes quanto a esse assunto.
Desta feita e com base na análise das matérias abrangidas nas referidas al.s a) e b) do ponto 1 das questões a decidir, conclui-se pela inexistência da invocada nulidade da decisão recorrida com base nas al.s c) e d) do nº 1 do art.º 668º do Código de Processo Civil.
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2- Modificação eventual da matéria de facto dada como provada e não provada
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3- O enquadramento jurídico dos factos provados
- Poderão os requeridos ser considerados possuidores e proprietários da fracção identificada sob a al. A) c) dos factos provados?
O documento de fl.s 12 a 20 titula um contrato de locação financeira imobiliária havido entre requerente e requeridos e por eles assim também denominado relativamente a uma determinada fracção de um imóvel, identificado nas respectivas condições particulares pela letra B, rés-do-chão, para comércio.
Ainda com acolhimento nos factos provados, consta que a requerente, no mesmo dia em que subscreveu a locação financeira, adquiriu essa mesma fracção a terceiros para, assim, locar, nos termos daquele contrato, aos requeridos.
Ninguém duvida de que está em causa um contrato de locação financeira, como resulta, aliás, dos termos das respectivas condições gerais, designadamente do art.º 1º, nº 2, de onde consta: “Nos termos e condições previstas nestas Condições Gerais, nas Condições Particulares e na legislação aplicável, o Locador, que adquiriu o imóvel a expressa solicitação e negociação do Locatário, cede-lhe o referido imóvel em locação financeira, obrigando-se a vender o mesmo ao Locatário se, após o decurso do prazo contratual, este exercer a opção de compra”; do art.º 3º, nº 1: “O Locatário pagará ao Locador uma renda cujo montante, periodicidade, datas de vencimento, local e forma de pagamento se encontram determinadas nas Condições Particulares”; e, do art.º 9º, nº 1: “No termo da locação financeira, o Locatário poderá adquirir o imóvel locado contra o pagamento do valor residual estabelecido nas Condições Particulares, e desde que não se encontre vencida e não paga qualquer quantia que seja devida ao Locador.”
Segundo o art.º 1º do Decreto-lei nº 149/95, de 24 de Junho, alterado pelo Decreto-lei nº 265/97, de 2 de Outubro, que estabelece o regime jurídico do “Leasing”, «Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados».
“A locação financeira pode ser definida como o contrato a médio ou a longo prazo dirigido a financiar alguém, não através da prestação de uma quantia em dinheiro, mas através do uso de um bem. Proporciona-se ao locatário não tanto a propriedade de determinados bens, mas a sua posse e utilização para determinados fins”[2].
Estabelece-se uma relação triangular em que o futuro locatário contacta com um fornecedor dos bens pretendidos, escolhe aqueles que necessita, inteirando-se do preço, das condições de pagamento e do regime de manutenção; o locatário e o locador celebram o respectivo contrato de locação; nos termos do referido contrato, o locador celebra um contrato de compra e venda ou de empreitada com o fornecedor; o locador paga os bens fornecidos; o fornecedor entrega os bens ao locatário e este paga, nos seus vencimentos, as rendas devidas ao locador. Há um pedido de financiamento do locatário, endereçado à locadora, que em seu nome e por conta própria compra ao fornecedor a coisa locada e a cede para gozo temporário ao locatário que, no final do contrato, fica com a opção de compra da mesma pelo preço residual[3].
O contrato de locação financeira é meramente consensual e obrigacional, ou seja, não é um contrato real nem no tocante à sua constituição, nem ao seu efeito (cf. art.º 8.°, nº l do referido regime), é bilateral, oneroso comutativo, e de execução continuada ou periódica, com as inerentes consequências.
Com efeito, na locação financeira, o locatário, por força do contrato, não adquire, ipso facto, a propriedade do bem. Entra na sua esfera jurídica, sim, o direito potestativo de aquisição futura pelo presumível valor residual. O interesse fundamental do contrato não se conecta com a propriedade, mas antes com o uso. É este que proporciona ao locatário a fruição de meios para o exercício de uma actividade produtiva, base em que assenta o seu projecto económico. Por isso, a retribuição não se denomina preço, mas sim renda. Esta há-de, pois, cobrir a amortização do bem cedido, a retribuição propriamente da utilização e do risco do locador, que conserva sempre a propriedade da coisa locada se o locatário não exercer, atempadamente, o direito opcional à compra.
A controvérsia agora trazida ao recurso, versa sobre a efectiva verificação da posse, para a qual concorrem determinados e indispensáveis requisitos sem os quais aquela situação jurídica não se verifica e, como tal, ainda que possa haver exercício de poderes de facto sobre a coisa, essa acção pode ser insuficiente para fundamentar a aquisição de um qualquer direito real.
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art.º 1251º, do Código Civil). Pressupõe uma situação de facto que exige a prática de actos materiais sobre uma coisa, de intensidade suficiente ou de prática suficiente para se afirmar que determinado sujeito colocou essa coisa debaixo do seu poder.
Composta pelo corpus e pelo animus, a posse pressupõe que, a par do exercício de poderes de facto sobre a coisa (elemento material, referido a actos de detenção ou/e fruição), haja intenção (elemento psicológico) de agir como titular do direito real a que o exercício do poder de facto se refere.
O nosso Código Civil segue, basicamente, a tese subjectivista encabeçada por Savigny. Só existe posse quando existem, conjuntamente, aqueles dois elementos. Sem o corpus o animus é um fenómeno puramente interno, sem o animus o corpus é mera exterioridade, simples facto material sem significado jurídico.
O art.º 1253º do Código Civil considera meros detentores ou possuidores precários, além do mais, os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito (al. a)) e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem (al. c)). O agente detentor exerce o corpus sobre determinada coisa mas não tem o animus de possuir a coisa em termos de qualquer direito real.
O que eleva a simples detenção ou posse precária a verdadeira posse é, em geral, a intenção de exercer um determinado poder no próprio interesse.
Eis o cerne da questão.
Os recorrentes, tendo como demonstrado o exercício dos poderes de facto sobre a fracção locada, apelam ao disposto no art.º 1252º, nº 2, do Código Civil e presumem o seu animus correspondente ao exercício do direito de propriedade, para concluir pela verificação de uma posse real e efectiva correspondente ao exercício daquele direito real.
Como a prova do animus poderá ser muito difícil, para facilitar as coisas ao possuidor, a lei estabelece a referida presunção. Diz que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto. Daqui decorre que, sendo necessário o corpus e o animus, o exercício daquele faz presumir a existência deste (Mota Pinto, in Direitos Reais, 1970, p. 191).
Porém, tal presunção juris tantum só funciona em caso de dúvida e não quando se trata de uma situação definida, que exclui a titularidade do direito invocado. Neste sentido, explica Penha Gonçalves, in Direitos Reais, 2.ª Ed., 1993, págs. 283 e seg.s, que «a presunção, juris tantum, estabelecida no n.° 2, significa que quem exerce o poder de facto sobre certa coisa fica isento do ónus da prova do respectivo animus possidendi. “Caberá, por isso, a quem nisso tenha interesse, demonstrar que o poder de facto exercido configura situação de mera detenção. A presunção em referência só é de admitir porém, como se diz no final do texto legal em exame “sem prejuízo do disposto no n.° 2 do art.º 1257°”. O sentido útil desta ressalva legal parece ser o seguinte: a aludida presunção não poderá ser invocada quando se prove que a posse se iniciou como precária porque, então, por força daquele preceito, tem de se presumir que continua como tal».
Como ensina Menezes Cordeiro, in Direitos Reais, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1979, vol. II, pág. 665, pese embora a posse se constitua pela prática de determinados actos materiais sobre uma coisa, pode suceder que essa prática exista sem que surja a posse: bastará, para tanto, que uma disposição legal considere essa situação como mera detenção. A inversão do título da posse é precisamente a forma jurídica pela qual o detentor --- isto é, a pessoa que, não obstante exercer os poderes materiais sobre a coisa, não tem a posse --- passa a possuidor. “Como o detentor deve a sua situação a uma disposição legal que lhe retira a posse, a inversão do título de posse terá de consistir na remoção desse obstáculo, ou seja, na criação de uma situação tal que o elemento n da equação de Ihering deixe de ter aplicação”. São situações expressamente previstas na lei civil em que a situação de facto e a situação jurídica estão dissociadas (cf. Oliveira Ascensão in Direitos Reais, Almedina 1978, pág. 253).
É a própria al. b) do citado art.º 1253º que classifica como mero detentor ou possuidor precário aquele que simplesmente possui em nome de outrem.
Ora, sendo o contrato de leasing meramente consensual ou obrigacional, sem efeitos reais, os requeridos, tal como a generalidade dos locatários neste tipo de contrato, entrou na posse do bem locado para exercer o respectivo uso, mediante o pagamento de uma renda, fazendo-o em nome da locatária G…….., SA, proprietário das instalações da loja. É, por isso mero possuidor precário ou detentor. E só deixará de o ser mediante a inversão do título da posse, convertendo então o animus detinendi em animus possidendi indispensável à verdadeira posse, nos termos do art.º 1265º do Código Civil; o que opera através da sua oposição contra aquele em cujo nome possui, de tal modo que os actos que pratica deixem de ser, à evidência, exercido em nome daquele. Tendo contado com a colaboração do proprietário na constituição da detenção, o agente tem que dar directo conhecimento à pessoa em cujo nome possui da sua “revolta”, da sua intenção de actuar como titular do direito. Não pode aproveitar-se até dos amplos poderes de facto concedidos e aproveitados para daí extrair, sem mais, a posse efectiva. Tem que praticar actos de rebeldia contra o verdadeiro possuidor, actos que inequivocamente reflictam a sua intenção --- que, igualmente, tem de manifestar --- de agir em nome próprio. Sem este comportamento não há inversão do título da posse, mantendo-se precária (cf. António Lima Araújo e Fernando Roboredo Seara, in Direitos Reais, AAFDL, 1980, pág.s 218 a 222). Não basta, designadamente, que deixe de pagar as rendas.
Não ocorrendo qualquer facto que, pela sua relevância, opere a inversão do título da posse dos requeridos, estes continuam a ser simples locatários e possuidores precários do r/chão locado, sem que possam beneficiar da presunção da titularidade do direito de propriedade que invocam ao abrigo do art.º 1268, nº 1, do Código Civil; antes e apenas sujeitos do contrato de locação financeira que subscreveram, com os direitos e as obrigações emergentes do respectivo regime legal e contratual.
Daí que, proprietário do bem seja a requerente da providência, assim, com legitimidade para requerer a entrega judicial.

- Ocorreu reserva mental da requerente na contratação da locação financeira com os requeridos e justifica-se a conversão desse contrato em mútuo com hipoteca?
Há reserva mental sempre que é emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário (art.º 244º, nº 1, do Código Civil). A reserva será relativa quando se afirma querer certo negócio, querendo-se um negócio diferente. Mas, seja ela relativa ou absoluta (quando não se quer negócio algum) a sua relevância jurídica depende do conhecimento que dela tenha o declaratário. O que se passa no foro íntimo do declarante não prejudica a declaração, embora ela não corresponda àquilo que se quer[4]. Por consequência, a declaração negocial emitida pelo declarante, com a reserva, ocultada ao declaratário, de não querer o que declara, não é, em princípio, nula[5].
O ónus da prova desta divergência intencional entre a declaração e a vontade é dos requeridos, que a invocam (art.º 342º, nº 1, do Código Civil).
Desde logo porque os factos provados não reflectem, minimamente que seja, qualquer divergência entre a vontade real da requerente e a vontade por ela declarada no âmbito do contrato de locação financeira, é manifesta a falta de um pressuposto essencial à existência de reserva mental na celebração daquele negócio, o que faz cair por terra a nulidade invocada ao abrigo daquela figura jurídica.

- Terá ocorrido alteração anormal das circunstâncias que justifique a modificação do referido contrato?
Referem os recorrentes que “as circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar sofreram uma alteração anormal, tendo os requeridos direito à modificação do contrato segundo juízos de equidade, dado que a exigência das obrigações por eles assumidas ofende gravemente os princípios da boa-fé e não está coberta pelos riscos próprios do contrato, o que os requeridos invocam à luz do artigo 437° do C.C.” (26ª conclusão). Mas nem nas alegações do recurso os apelantes concretizam a alteração das circunstâncias, nem da matéria provada constam factos que apontem para qualquer alteração, e menos ainda para uma caracterização capaz de relevar com o grau de exigência próprio do enquadramento jurídico delineado pelo art.º 437º do Código Civil, de que se destaca, à partida, o requisito da imprevisibilidade da alteração do estado de coisas em que as partes fundaram a decisão de contratar. São irrelevantes as alterações abrangidas pelos riscos próprios do contrato, pelas suas normais flutuações ou pela finalidade do negócio. Sempre deveria estar demonstrado (e não está) que houve uma mudança de circunstâncias em que as partes se vincularam, tomando excessivamente oneroso ou difícil para uma delas o cumprimento daquilo a que se encontra obrigada ou provocando um desequilíbrio acentuado entre as prestações, assim, com afectação do princípio da boa fé, quando se trate de contratos de execução diferida ou de longa duração.
Também por falta de pressupostos, não ocorre qualquer situação de alteração anormal de circunstâncias, não havendo fundamento para a modificação do contrato segundo juízos de equidade ao abrigo do nº 1 do referido art.º 437º.

4- Possibilidade desta Relação fixar caução a prestar pela requerente a favor dos requeridos recorrentes
Por fim, pretendem os apelantes que esta Relação ordene à requerente apelada que preste a caução a que se refere o art.º 21º, nº 4, do Decreto-lei nº 149/95.
Em certa medida, a questão já foi abordada neste recurso, alargando-se agora o seu conhecimento por adequação à análise da pretensão dos recorrentes.
Os autos não só não dispõem de elementos que permitam motivar a necessidade de impor à recorrida locadora a prestação de caução em função da entrega judicial do bem --- motivo pelo qual se presume que a 1ª instância não a ordenou --- como também esta Relação a não pode determinar sem violação do princípio do duplo grau de jurisdição. Aos tribunais de recurso apenas cabe apreciar as questões decididas pelos tribunais hierarquicamente inferiores e não questões novas levantadas perante eles.
O objecto do recurso não se confunde com o objecto do litígio e, por regra, os recursos ordinários são recursos de revisão ou de reponderação da decisão recorrida. A jurisprudência tem repetido uniformemente e desde o início da vigência do Código de Processo Civil de 1939 que os recursos visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova. A questão ou litígio sobre que recaiu a decisão impugnada não é, ao menos de forma imediata, objecto do recurso, no modelo de revisão ou de reponderação acolhido no nosso Direito[6].
Termos em que não merece acolhimento o pedido de imposição de caução à recorrida.
Concluindo, nenhuma das questões suscitadas no recurso procede, nada obstando, por isso, à manutenção da decisão recorrida.
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Sumário (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. No regime da locação financeira definido pelo Decreto-lei nº 149/95, de 24 de Junho, na redacção introduzida pelo Decreto-lei nº 265/97, de 2de Outubro, a exigência de caução a prestar pelo locador não é um efeito automático do deferimento da providência cautelar de entrega judicial, nem o tribunal tem que se pronunciar sobre ela se entender que o caso não justifica a sua prestação e o requerido não se manifestou no sentido do requerente a dever prestar.
2. O juiz exigirá do requerente a prestação de caução apenas quando, em razão das circunstâncias do caso, a mesma se revele necessária à salvaguarda dos direitos do requerido que, por força da providência, se vê desapossado do bem, com alguma probabilidade de vir a ficar prejudicado, nomeadamente, caso lhe venha a ser definitivamente reconhecido o seu direito. Mas esse risco há-de resultar traduzido nos factos indiciariamente provados, designadamente por alegação do requerido interessado.
3. O nº 4 do art.º 3º do Código de Processo Civil não prevê um articulado em sentido próprio, mas a faculdade concedida a uma das partes de ainda responder, para além do último articulado típico, a uma matéria que, por ter a natureza de excepção e por ter sido alegada naquele último articulado, é nova no processo, assim acautelando o contraditório e a realização do direito a um processo justo e equitativo.
4. O locatário é mero detentor ou possuidor precário do bem locado e, como tal, não pode beneficiar da presunção de posse a que se refere o art.º 1252º, nº 2, do Código Civil, nem da presunção de titularidade do direito real, estabelecida para o possuidor no art.º 1268º do mesmo código, enquanto não inverter o título da posse.
5. O objecto dos recursos não se confunde com o objecto do litígio. Pelo recurso visa-se apenas modificar a decisão recorrida e não criar decisões sobre matéria nova.
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, mantém-se, sem mais, a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
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Porto, 15 de Abril de 2010
Filipe Manuel Nunes Caroço
Manuel de Sousa Teixeira Ribeiro
Fernando Manuel Pinto de Almeida
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[1] Cf. Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra, 4ª edição, p.s 54, 103 e 113 e seg.s.
[2] Cf. Diogo Leite de Campos, Ensaio de Análise Tipológica do Contrato de Locação Financeira, in Bol. Fac. Dir. Univ. Católica”, vol. XXIII, pág. 10.
[3] Cf. acórdãos da Relação de Lisboa de 24.6.1999 in BMJ, 488/401 e desta Relação de 1.6.2000, JTRP00029687 in www.dgsi.pt.
[4] P. Lima e A. Varela, Código Civil anotado, 2ª edição, Volume I, pág. 214.
[5] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, pág. 486.
[6] cf. Armindo Ribeiro Mendes, in Recursos em Processo Civil, Reforma 2007, p.s 74 e 81.