Processo nº 6216/24.7T8BRG.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 5
Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Manuel Fernandes
2º Adjunto: Des. José Eusébio Almeida
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO
Recorrente, o Autor: AA
Recorridas, as Rés: A..., LDA. e B..., S.A
AA propôs ação declarativa, com forma de processo comum, contra A..., LDA. e B..., S.A., no âmbito da qual, após ter sido fixada à causa o valor de € 53.846,10 [1], foi proferido
despacho saneador-sentença, com a seguinte
parte dispositiva:
“Nos termos e fundamentos expostos, por ser manifesta a improcedência da ação instaurada por AA, absolvo as rés, “A..., Lda.” e “B..., S.A.” dos pedidos contra si deduzidos.
Custas a cargo do autor (art.º 527º, nº1 do Código de Processo Civil)”.
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Fê-lo, findos os articulados, dispensando a realização da audiência prévia, nos termos do art. 591.º do Código de Processo Civil, e referindo quanto à arguida “Exceção de ilegitimidade substantiva das rés”:
“… Como é sabido a questão da ilegitimidade substantiva, ao contrário da ilegitimidade processual, prende-se com o mérito da causa.
Na verdade, a legitimidade substantiva respeita à efetividade da relação material e prende –se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta.
Por essa razão, prende-se com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido já que a verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido.
Considerando o que foi alegado nos autos pelo autor na petição inicial este tribunal considera que a presente ação é manifestamente improcedente, pelo que as rés não terão, efetivamente, legitimidade substantiva.
(…) Perante todo o exposto, entende este tribunal que os factos concretamente alegados não suportam a solução jurídica preconizada pelo autor e refletida nos pedidos por si deduzidos, sendo que não estamos perante uma simples insuficiência de alegação de factos, mas perante a total omissão de elementos factuais cuja prova possa autorizar, no futuro, a procedência das pretensões deduzidas.
Assim, a exceção de ilegitimidade substantiva invocada pelas rés é procedente, sendo certo que o autor teve oportunidade para se pronunciar quanto à invocação dessa exceção.
Em consequência, impõe-se que se reconheça a manifesta improcedência da presente ação, condenando-se o autor, nos termos do art. 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil, no pagamento das custas.
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De tal decisão apresentou o Autor recurso de apelação pretendendo seja anulado o saneador-sentença recorrido, determinando-se a remessa do processo ao tribunal recorrido para que aí seja facultada às partes a discussão de facto e de direito do mérito da causa, nos termos e para os efeitos do art.º 591º, n.º 1, al. b) do CPC e sejam, subsequentemente, seguidos os trâmites processuais decorrentes do prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos e das exceções deduzidas, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
“1. O saneador-sentença recorrido constitui uma decisão surpresa violadora do princípio do contraditório consagrado no art.º 3º, n.º 3, do CPC e em consequência nula, não sendo possível a sua sanação (art.º 615º, n.º 1, al. d) do CPC).
2. O facto de o Autor se ter pronunciado sobre as excepções deduzidas não dispensa o tribunal recorrido de consultar as partes de modo a permitir-lhes a discussão oral dos factos e direito aplicáveis, bem como a possibilidade de as partes carrearem para os autos elementos necessários para a boa decisão da causa, nomeadamente, o pedido de produção de prova.
3. Acresce que, independentemente de ser ou não possível conciliar as partes, a tentativa de conciliação precede as demais finalidades da Audiência Prévia, pelo que foi também omitida uma formalidade que a lei prescreve.
4. Acresce que se “os factos concretamente alegados não suportam a solução jurídica preconizada pelo autor e refletida nos pedidos por ele deduzidos”, a petição será inepta por força do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 186º do C. P. Civil (CPC) e, em consequência, é nulo todo o processo, gerando uma excepção dilatória (art.º 577º, alínea b)) e a consequente absolvição das Rés da instância (art.º 278º, n.º 1 al. b)), e não a absolvição dos pedidos como decidido no saneador-sentença recorrido.
5. Não existe falha técnica na elaboração da petição inicial devido à não alegação da falta de conformidade no momento em que o veículo foi entregue ao consumidor.
6. O Autor na p.i. reconstituiu os factos e a situação jurídica tal como se verificaram na realidade.
7. Acresce que o juiz só deve conhecer do pedido se o processo contiver, seguros, todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitam a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo. Assim, se uma dessas soluções impuser prosseguimento do processo em ordem ao apuramento dos factos alegados, não pode proferir-se decisão sobre o mérito da causa (Ac. RL, de 24.07.1981, BMJ, 314-361)
8. O veículo em causa era e é anunciado como “uma inovação pioneira” dotado das mais recentes funcionalidades de bem-estar e segurança, servido de tecnologia de ponta já usada em veículos autónomos, designadamente mecanismos de assistência à condução comandados por inteligência artificial susceptíveis de operar de forma completamente independente, sem necessidade de actuação por parte do condutor.
9. Como era o caso da caixa de velocidades e do travão de mão que bloquearam automaticamente acto contínuo ao condutor pressionar o botão Start/Stop para desligar o motor.
10. E foi este mecanismo que falhou durante a sua utilização normal ao fim de apenas seis anos e oito meses quando é certo que a sua vida útil de vida era de, pelo menos, 16,8 anos.
11. Há produtos que comportam certos riscos pelo simples facto de poderem alterar o seu modo de funcionamento durante a sua utilização normal.
12. Nesta senda, como sublinha a Comissão Europeia essa característica pode “dar origem a novos riscos que não existiam quando o sistema foi colocado no mercado”
13. Os fabricantes têm que contar com os riscos que resultam da incorporação da IA (inteligência artificial) nos seus veículos, ainda que estes, à luz do estado científico e técnico, não padecessem de qualquer vício à data da sua colocação no mercado.
14. Assim e refletindo o equilíbrio entre os interesses do fabricante e os interesses dos consumidores, impende sobre o fabricante, no quadro de uma obrigação geral de segurança a que está adstrito por força do DL n.º 69/2005, de 17 de Março, um dever de acompanhamento dos produtos que coloca no mercado (cfr. art.º 6º, n.º 1, al. b).
15. Está em causa o princípio basilar “pacta sunt servanda” patente no artigo 406º, n.º 1, do Código Civil.
16. Os pedidos formulados pelo Autor fundam-se, assim, em responsabilidade contratual e solidária das Rés.
17. Do que cura a presente acção é, face aos factos que integram a causa de pedir, da inexecução da obrigação que impendia sobre as Rés, visto a prestação não ter sido efectuada tal como era devida. O Autor adquiriu um automóvel novo, cuja expectativa de vida útil média era de 16,8 anos (artigo 88 da resposta) e decorridos apenas 6 anos e 8 meses, durante a sua utilização normal, ficou destruído em consequência directa e necessária de uma grave falha do seu sistema de segurança que não bloqueou a caixa de velocidades e o travão de mão após ter sido accionado o botão de stop usado para desligar o motor.
18. Na resposta às excepções o Autor juntou cópias do “Manual do proprietário” do Range Rover ..., Publicação n.º LRL ... que lhe foi entregue no momento em que a 2ª Ré lho vendeu (página 154/art.º 6º da resposta/Sistema de Segurança “Stop/Start automático”; página 30/ art.º 7º resposta/Sistema de Segurança “Travagem incorrecta” e página 169/art.º 8º da resposta/”Travagem de Emergência Automática (AEB)”.
19. Factos estes que constituem contra-excepções às excepções deduzidas na contestação.
20.De facto, as Rés alegam factos extraídos do Manual do Proprietário (artºs 83º, 93º, e 96º da contestação da 1ª Ré) e até juntaram como documentos nºs 1, 2 e 3 cópias desse manual.
21. Manual que o Autor pretendia juntar aos autos logo que se mostrasse adequado, atento o facto de se tratar de um volume com 520 páginas. Provavelmente a Audiência Prévia seria o momento indicado, mas o tribunal recorrido ao omitir tal audiência e ao decidir sem avisar as partes não permitiu que ficasse a conhecer as convenções de segurança contratadas entre as partes e cuja interpretação e aplicação das mesmas aos factos controvertidos se revela de capital importância.
22. Ora, o saneador-sentença ignorou esta factualidade, a qual é absolutamente necessária e indispensável para a descoberta da verdade material e resolução justa da questão controvertida.
23. Estas disposições de segurança contratadas pela Ré no Manual do Proprietário Range Rover ..., entregue pela 2º Ré ao Autor no momento da formalização do contrato de compra e venda, fazem parte integrante deste. Têm, pois, pleno efeito vinculativo.
24. Em face dos factos alegados pelo Autor, a única conclusão possível é a de que as medidas de segurança contratadas no manual que integrou o contrato de compra e venda não funcionaram.
25. O caso sub-judice cura da venda de coisa que se tornou defeituosa depois da celebração do contrato (defeito superveniente).
26.“Há casos em que devedor executa materialmente a prestação, mas não cumpre porque a executa mal. Pode e deve falar-se, ainda nessas
hipóteses, de inexecução da obrigação, visto que a prestação não é efectuada tal como era devida”
27.“Aquele que executa mal é obrigado, em princípio, a corrigir o defeito ou, se a correcção não se torna possível, a substituir a prestação imperfeita por outra perfeita. Nos exemplos figurados, a empresa que vende o automóvel tem de o pôr em condições de bom funcionamento ou, se não o conseguir, de entregar outro automóvel”
28. Uma vez que por força das convenções estabelecidas no Manual do Proprietário do ..., a Ré se obrigou ao bom funcionamento dos aludidos sistemas de segurança, naturalmente, durante toda a vida útil do veículo, as regras, a atender, por força da remissão do art.º 918º, aplicável por analogia ou interpretação extensiva, são as relativas ao não cumprimento das obrigações, nos termos dos artigos 798º e seguintes do C. Civil.
29. Ao cumprimento defeituoso faz-se, aliás, alusão no artigo 799º, n.º 1.
30. Na falta de analogia e atenta a obrigação de julgar (artigo 8º do C. Civil),
a situação sempre deveria ser resolvida “segundo a norma que o próprio interprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema” (art.º 10, n.º 3 do C. Civil).
31.“Este sistema tem, teoricamente, o inconveniente de permitir disparidades de interpretações, já que deferem, necessariamente, os critérios de razoabilidade de homem para homem, mas tem a vantagem de, sobrepondo-se a concepções puramente teóricas, descer à realidade das coisas” – Cfr. Antunes Varela/Pires de Lima, in Código Civil Antado, Coimbra Editora, 3ª Edição, 1982, pag. 59, anotação, n.º 3 ao art.º 10º.
32. No capítulo V, sob a epígrafe “Disposições complementares e finais”, o artigo 54º, n.º 1 do DL 84/2021, de 18 de Outubro, estabelece que “Os direitos previstos no presente decreto-lei não prejudicam o direito do consumidor a ser indemnizado nos termos gerais”.
33. O Autor no artigo 72º da p.i. invoca como fundamento da responsabilidade civil imputada às Rés, a Lei da Responsabilidade Civil do Produtor, nos termos do Dec. Lei n.º 69/2005, de 17 de Março, em cujo respectivo preâmbulo se lê que «A segurança dos produtos e serviços colocados no mercado constitui elemento fundamental de garantia pelos direitos dos consumidores consagrados na Constituição e na lei …»
34. No artigo 81 da resposta às excepções o Autor aceitou especificadamente o alegado nas contestações das Rés segundo o qual “os modelos mais recentes da marca Land Rover já não integram o selector rotativo que se pode encontrar nos modelos de veículos congéneres ao veículo dos presentes autos”.
35. Acresce ainda a violada obrigação geral de acompanhamento ou obrigação de segurança que sobre a Ré impende nos termos do art.º 6º, n.º 1, al. b) do DL 69/2005, de 17 de Março, que a faz incorrer em responsabilidade civil nos termos gerais, em virtude de não ter contactado o Autor para trocar o falado Selector pela manete de velocidades que passaram a equipar os modelo ..., certamente porque estas passaram a conferir maior segurança aos utilizadores/consumidores dos Range Rover.
36. Aos factos controvertidos é primacialmente aplicável a lei quadro ou lei de bases designada por Lei de Defesa do Consumidor (Lei 24/96, de 31 de Julho), que no seu artigo 4º estabelece:
“Os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor.”
37.“Artigo5.º
Direito à proteção da saúde e da segurança física
1 - É proibido o fornecimento de bens ou a prestação de serviços que, em condições de uso normal ou previsível, incluindo a duração, impliquem riscos incompatíveis com a sua utilização, não aceitáveis de acordo com um nível elevado de proteção da saúde e da segurança física das pessoas.
38.“Artigo12.º
Direito à reparação de danos
1 - O consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.
2 - O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei.”
39.“Artigo13.º Legitimidade ativa
Têm legitimidade para intentar as ações previstas nos artigos anteriores:
a) Os consumidores diretamente lesados; (…)”
40.“Artigo 3.º
Direitos do consumidor
O consumidor tem direito:
a) À qualidade dos bens e serviços;
c) À proteção da saúde e da segurança física; (…)
e) À proteção dos interesses económicos;
f) À prevenção e à reparação dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que resultem da ofensa de interesses ou direitos individuais homogéneos, coletivos ou difusos;
(…)”
41.Consequentemente, ao contrário do pretendido pela Ré e a que o saneador-sentença aderiu na integra, o alegado pelo Autor nos artºs 1º a 12º, 21º a 23º, 25º, 27º, 28º, 34º a 80º, 83º a 100º, 102º e 114º da sua fundada resposta é absolutamente necessário e indispensável não só para a descoberta da verdade como constituiu legítima e fundada resposta, designadamente, quanto ao direito aplicável.
42.O saneador-sentença acolhe errada interpretação e aplicação, nomeadamente, do art.º 3º, n.º 3, do CPC, 406º, 918º e 798º e seguintes do Código Civil, bem como do art.º 54º, n.º 1 do DL 84/2021 de 18 de Outubro; art.º 4º do DL 69/2005 de 17 de Março, sobretudo o n.º 1 e 3 alínea f) (“o nível de segurança razoavelmente esperado pelos consumidores), art.º 6º, n.º 1, al. b)) deste mesmo diploma (obrigação geral de acompanhamento ou obrigação de segurança, artºs 3º, 4º, 5º, 12º da Lei 24/96, de 31 de Julho (Lei quadro da Defesa do Consumidor)”.
A Ré A... respondeu pugnando pela total improcedência do recurso e por que seja mantida a decisão recorrida, apresentando as seguintes
Conclusões:
A. A Autora/Recorrente discorda do entendimento sufragado pelo Ilustre Tribunal a quo que julgou verificada a exceção perentória de ilegitimidade substantiva das Rés, assim como a exceção perentória de caducidade dos direitos invocados pelo Autor.
B. A decisão ora recorrida não pode ser considerada uma decisão-surpresa, uma vez que: (i) a decisão assentou numa solução jurídica levantada pelas partes, ou seja, a ilegitimidade substantiva das Rés, exceção perentória deduzida em 23 Sem prejuízo da exceção de caducidade dos direitos invocados pelo Autor, que foi também julgada procedente. sede de Contestação; e (ii) as partes discutiram tal solução – as Rés deduziram a exceção perentória na Contestação e o Autor respondeu às exceções, após ser notificado para tal, em resposta apresentada a 30 de janeiro de 2025.
C. Não tendo as partes requerido a realização de tentativa de conciliação, não se pode considerar que foi omitida uma formalidade legalmente exigida, porquanto tal diligência apenas teria de se realizar caso o juiz considerasse oportuna – cf. artigo 594.º, n.º 1 do CPC.
D. Ainda que decorra do artigo 591.º do CPC que a audiência prévia só pode ser dispensada em ações que devam prosseguir, a verdade é que, por via do instituto da adequação formal previsto nos artigos 547.º e 6.º do CPC, o tribunal poderia proferir o saneador-sentença sem necessidade de realizar a audiência prévia.
E. Ambas as partes pronunciaram-se sobre o mérito da exceção nos articulados apresentados em juízo.
F. O Tribunal estava munido dos elementos factuais e jurídicos que lhe permitiam conhecer de imediato o mérito da exceção invocada, uma vez que, para qualquer das soluções plausíveis da questão de direito suscitada, a demonstração de quaisquer outros factos seria indiferente, porquanto as Rés são substantivamente ilegítimas e os direitos invocados pelo Autor encontram-se caducados, como resulta da própria lei.
G. Estando o Tribunal munido dos factos necessários para conhecer do mérito da exceção no despacho Saneador, deve fazê-lo, como decorre do disposto da alínea b), do n.º 1 do artigo 595.º do CPC.
H. A consequência de os factos alegados não suportarem a solução jurídica preconizada pelo Autor não é a ineptidão da Petição Inicial, porquanto não se verifica nenhum dos pressupostos identificados nas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CPC, na medida em que não falta ou é ininteligível o pedido ou a causa de pedir, não há contradição entre o pedido e a causa de pedir, nem se cumulam causas de pedir ou pedidos incompatíveis.
I. Contrariamente ao alegado pelo Recorrente, o Saneador-Sentença não padece de qualquer contrassenso inadmissível e incompreensível. O Tribunal a quo limitou-se a aplicar o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 67/2003decredt J., de 8 de abril. Não se tendo o “defeito” verificado no prazo de dois anos após a entrega do veículo, o vendedor não pode ser responsabilizado.
K. Tal como na Petição Inicial, o Recorrente, uma vez mais, não alega ou demonstra (i) a existência de uma desconformidade aquando da entrega do bem, nem (ii) o incumprimento de qualquer dever por parte das Rés/Recorridas, nomeadamente uma falha concreta de segurança, limitando-se a referir, parcamente, que o dano se deve à “inteligência artificial” e não à atuação da condutora do veículo.
L. Nos últimos 18 parágrafos do Capítulo II das Alegações de Recurso, o Recorrente, sem qualquer fundamento, limita-se a transcrever integralmente o alegado nos artigos 33.º a 51.º da Petição Inicial. A respetiva resposta foi apresentada em sede de Contestação, sendo que para a decisão proferida pelo Tribunal a quo – e, consequentemente, para o recurso da mesma – tais factos são irrelevantes na medida em que, como resulta da própria decisão, “ainda que se provem nos autos todos os factos alegados pelo autor na petição inicial, afigura-se-nos que a presente ação é manifestamente improcedente.”24.
M. A suposta junção de um manual do proprietário do veículo em nada alteraria as razões de direito subjacentes à procedência das exceções deduzidas pelas Rés – pelo que a argumentação do Autor, ora Recorrente, não pode proceder. Como já referido, o Tribunal a quo estava munido de todos os elementos necessários para tomar a decisão quanto ao mérito da causa.
N. Não tendo o Autor/Recorrente, na Petição Inicial, alegado factos que pretende ver considerados para a decisão da presente ação, nos termos dos artigos 5.º, n.º 1, e 552.º n.º 1 al. d) do CPC, não pode, posteriormente, invocar novos factos (não supervenientes), seja na resposta às exceções, seja em sede de recurso, não podendo tais factos ser atendidos na decisão da causa.
O. No Capítulo V das Alegações de Recurso, o Recorrente reporta-se ao instituto de contratos de compra e venda, nomeadamente, ao artigo 918.º do Código Civil.
Considerando que o Contrato de Compra e Venda foi celebrado entre o Autor e a 2.ª Ré, tal regime não é oponível à ora 1.ª Ré/Recorrida, produtora do bem.
P. O Recorrente socorre-se ainda do disposto no artigo 54.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro. Como já referido em sede de Contestação, este diploma legal não se aplica ao presente caso porquanto o veículo foi adquirido pelo Autor em setembro de 2018 e o referido diploma legal só entrou em vigor a Fls. 6 do saneador-sentença. 01 de janeiro de 2022 – cf. artigo 55.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro.
Q. O Decreto-Lei n.º 69/2005, de 17 de março não é aplicável à relação entre o adquirente e o Produtor do bem, regulando apenas as obrigações do produtor perante o mercado no momento da colocação do produto.
R. No Capítulo VIII das Alegações de Recurso, o Recorrente cita os artigos 3.º, 4.º, 5.º, 8.º, 9.º, 12.º, 13.º e 16.º da Lei do Consumidor, alegando que este diploma seria primacialmente aplicável. Todavia, o Recorrente não fundamentou a sua pretensão com base nesta legislação na Petição Inicial, não podendo fazê-lo agora em sede de recurso, nos termos dos artigos 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, alínea d) do CPC. Além disso, tal diploma não é aplicável, uma vez que, conforme o próprio Recorrente alegou nos artigos 5.º, 7.º e 58.º da Petição Inicial, o veículo não estava destinado a uso pessoal, mas sim afetado à atividade profissional do cônjuge do Recorrente.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Da nulidade, arguida nas alegações de recurso, decorrente de, em violação do estatuído no nº1, do art. 591º, do CPC, ter sido proferida decisão a conhecer de mérito sem realização de audiência prévia.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
- Da verificação nulidade processual, arguida nas alegações de recurso (ter a decisão de mérito sido proferida com falta de audiência prévia - decisão surpresa), e suas consequências.
Arguiu o Autor/Apelante, no recurso que apresentou, nulidade da decisão por o Tribunal a quo ter conhecido de mérito sem, antes disso, realizar audiência prévia.
E, como tivemos, já, oportunidade de referir e decidir, as nulidades processuais distinguem-se das nulidades específicas da sentença bem como do erro de julgamento (de facto ou de direito). Estes respeitam a vícios de conteúdo, aquele respeita à própria existência de atos processuais.
In casu, invoca o apelante nulidade por o juiz de primeira instância ter omitido o dever marcar e realizar audiência prévia antes de decidir de mérito, nulidade essa que inquina a própria decisão em que se conheceu de mérito sem ouvir as partes.
Apresenta-se, pois, o apelante a arguir nulidade habitualmente chamada de secundária, inominada ou atípica nas alegações de recurso[2].
Quanto às regras gerais sobre a nulidade dos atos, estatui, para estas nulidades, o nº1, art. 195º, do Código de Processo Civil, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência, que “fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”, consagrando o nº1, do art. 199º, quanto ao prazo de arguição que “se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”.
Consagra-se, assim, um sistema que remete para uma análise casuística, em que se invalida apenas o ato que não possa ser aproveitado, sendo que invalidado um ato tal acarreta que se invalidem todos os subsequentes que se lhe sigam que daquele dependam absolutamente.
Constitui exemplo de omissão de ato prescrito na lei a falta de cumprimento do dever jurídico do juiz de realizar diligência.
Quanto ao regime e meio de arguição, a regra é a de o juiz só conhecer destas nulidades mediante arguição da parte e o meio processual próprio para o fazer é a reclamação (v. parte final do art. 196º e 197º), no momento em que ocorrer a nulidade, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário e, no caso de o não estar, o prazo geral de arguição, de dez dias, conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando se deva presumir que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (cfr. arts. 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1).
Contudo, e mantendo, deste modo, “atualidade e pertinência do brocardo segundo o qual “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”, se houver um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir será a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente”[3].
Assim se decidiu no Ac. da RG de 5/4/2018, proferido no processo 1856/12.0TJVNF-C.G1, em que a ora relatora foi adjunta e onde se analisa “Conforme explicava Alberto dos Reis[4], “a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente””.
No caso, recorreu o Autor da decisão de mérito, proferida após os articulado e resposta, sem que, previamente, tenha sido convocada audiência prévia.
Vejamos se procede a arguida nulidade, por omissão de ato (inobservância do contraditório).
O nº 3, do artigo 3º, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do processo, trazendo para o nosso direito processual uma conceção mais alargada, visando, através do exercício do direito de influência, prevenir as “decisões surpresa”. Tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório (que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito) já há muito vinha a ser afirmado pela jurisprudência constitucional, especialmente no processo penal, devido às garantias de defesa do arguido e, também, já há muito, vinha a ser defendido pelo Professor Lebre de Freitas[5] para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo, visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[6], e revela grandes potencialidades práticas em termos de cooperação, de lealdade entre os intervenientes processuais e de eficácia das decisões judiciais, sempre, a ser previstas pelas partes.
E, na medida em que garante a igualdade das partes - pela possibilidade de pronúncia e resposta – conduz a soluções do litígio mais justas, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.
Impõe o princípio do contraditório, ao nível do direito, que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa[7], que, embora pudessem ser previsíveis, não tenham sido configuradas pelas partes, sem que estas tivessem obrigação de prever que fossem proferidas.
A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3, do art. 3º, em casos de manifesta desnecessidade. Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas com soluções de direito inesperadas. Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, selecionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim, ao julgador que, antes de decidir, faculte às partes a discussão da questão de direito.
A regra do contraditório passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para a sorte do pleito, inovatória, inesperada e não perspetivada pelas partes, tendo de ser dada a estas a possibilidade de, previamente, a discutirem sendo que tal “entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo nº3, do art. 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar”[8].
Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada “a priori” possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico. Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes. Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, pretendeu-se reforçar e aproveitar a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios. E para que os objetivos de mais rápida, definitiva e eficaz composição dos litígios possam ser alcançados, foi consagrado que uma das finalidades da audiência prévia é a de “Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (art. 591º, nº 1, al. b)).
Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influi ativamente na decisão.[9]. A imposição de audição das partes em momento anterior à decisão é determinada por um objetivo concreto – o de permitir às partes intervirem ativamente na construção da decisão, chamando-as a trazerem aos autos a defesa da solução para que apontam.
Uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem[10], sendo que, contudo, o dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.
São, pois, proibidas as decisões surpresa, isto é, as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido, previamente, analisado pelas partes.
A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas, sim, com a circunstância de se decidir uma questão não prevista, isto é, visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava a contar. O exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.
Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração[11].
Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar[12].
Há decisão surpresa se o juiz, de forma inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão na via adotada pelo juiz, cabe ao mesmo dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos[13], só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta desnecessidade.
Como vimos, a necessidade da contradição, genericamente consagrada no artigo 3º, vem materializada em inúmeras disposições ao longo do Código de Processo Civil, sendo uma delas a que consagra que uma das finalidades da audiência prévia é a de “Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (art. 591º, nº 1, al. b)).
Com efeito, ao Juiz é vedado, depois de satisfação de convite a aperfeiçoamento, nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação (€15.000,00) (cfr. art. 597º), decidir a causa, sem antes dar às partes a faculdade de se pronunciarem em audiência prévia, sendo esta uma diligência que tem, obrigatoriamente, de ter lugar nas referidas ações, conforme estatui o nº1, do artº 591º, do CPC, e tal, in casu, efetivamente, não foi respeitado.
“Do confronto dos arts. 591º, nº1, 592º, nº1, 593º, nº1, 593º, nº3, e 597º resulta claro que a tramitação de uma ação declarativa comum de valor superior a metade da alçada da Relação (€15.000,00) incluirá, em curso normal, a realização de uma audiência prévia, concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº2, do art. 590º, regra que apenas comporta duas exceções tipificadas: quando a lei assim o estabeleça, o que sucede nos casos indicados no art. 592º, nº1; quando o juiz dispense a realização da audiência, ao abrigo do art. 593º, nº1. Com tais ressalvas, a audiência prévia é obrigatória, decorrendo da sua dispensa uma nulidade”[14].
Não se estando in casu perante qualquer das exceções, verifica-se que o tribunal a quo conheceu de mérito sem convocar audiência prévia. E estamos perante uma decisão-surpresa, pois que, após a resposta apresentada à matéria de exceção, na sequência do determinado, foi dada uma solução jurídica sem que, previamente, às partes tenha sido facultada a possibilidade de tomar posição sobre ela.
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Consequência da falta de marcação de audiência prévia e da inobservância do contraditório
A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195º, que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no art. 199º. Na verdade, incluindo-se a violação do princípio do contraditório na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do nº1, do art.195º, não constituindo nulidade de que o tribunal conheça oficiosamente, a mesma tem-se por sanada se não for invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo - arts 197º, nº 1 e 199º, nº 1[15].
A violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, constitui nulidade processual, prevista no nº1, do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Dada a relevância e primordial importância do contraditório, como analisamos, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual por a omissão ser suscetível de influir no exame ou na decisão da causa).
Sendo decorrência do referido princípio a proibição de decisões-surpresa, isto é, decisões baseadas em fundamento não previamente considerado pelas partes, tais decisões, a serem proferidas, incluem-se nas referidas nulidades. E, carecendo a nulidade de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (art. 197º, n.º 1), no prazo de dez dias, após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo (art. 199º, n.º 1), sob pena de ficar sanada, estando a decisão-surpresa coberta por decisão judicial, como é entendimento pacífico da jurisprudência, nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso[16]. A prolação de decisão desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso[17].
Assim, analisada a lei, vista a doutrina e a jurisprudência não pode deixar de se decidir, pelos argumentos expostos que tinha, pois, o Tribunal a quo, antes de decidir de mérito, de ouvir os argumentos das partes, convocando-as, expressamente, para essa finalidade. Assiste, deste modo, razão ao apelante, ao concluir pela violação do contraditório, elevado, na verdade, até, à categoria de princípio constitucional.
E, como refere o apelante, in casu, a nulidade cometida não pode deixar de inquinar o despacho saneador-sentença proferido.
António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, chamam a atenção para a divergência doutrinária e jurisprudencial acerca do enquadramento da questão – “se a arguição dessa nulidade segue as regras gerais ou se transforma em nulidade do despacho saneador ou despacho saneador-sentença que, sem essa diligência obrigatória, seja proferido”[18].
“Paulo Pimenta convoca para o efeito o regime das nulidades processuais, por omissão de ato que influi na decisão da causa, nos termos dos arts 195º e 199º, traçando um quadro completo no que concerne à arguição e efeitos de tal nulidade (ob.cit., pp. 230-232 e 250-252)”. Defende que quando a parte se aperceber da existência da nulidade deve suscitá-la para que a situação possa ser reparada, devendo a questão “ser resolvida através da arguição da nulidade no processo, nos termos do art. 195º, a suscitar no prazo de 10 dias, de tal modo que, sendo deferida a nulidade, tal se projetará também na anulação do despacho que tenha sido proferido”[19].
Na jurisprudência a integração da situação da omissão de ato obrigatório “no campo das nulidades processuais foi afirmada também em RP 5-7-06, 0632391 e RP 6-5-10, 81/07” tendo esta solução a “vantagem de permitir que a nulidade seja superada pelo próprio juiz logo que seja arguida pela parte, fora das exigências (e dos encargos) inerentes à interposição de recurso de apelação, mas defronta-se com a norma do art. 613º que, em regra, declara que o poder jurisdicional se esgota com a prolação da decisão, impedindo que seja o juiz que a proferiu a reparar o erro cometido”[20].
Miguel Teixeira de Sousa considera que a omissão “se converte, afinal, numa nulidade da própria decisão que venha a ser proferida. Em https://blogippc.blogspot.pt, à margem de RL 15/5/14, 26903/13 (…), refere que “ a nulidade resultante da omissão (…) só se verifica se, na apreciação do pedido da parte, for dada relevância à deficiência (…) (no mesmo sentido, RP 8/1/18, 1676/16). Esta solução tem a vantagem de não colidir com a norma do art. 613º sobre a extinção do poder jurisdicional, que cessa com a prolação da decisão, (…) a ser ultrapassada através da interposição de recurso, nos termos gerais (ou arguição da nulidade, nos termos do art. 615º, nos casos em que não seja admissível recurso)[21].
A jurisprudência, como vimos, vem-se orientando no sentido de a apreciação da nulidade processual por determinada omissão de despacho ou omissão de alguma formalidade de cumprimento obrigatório – como a que demanda o exercício do contraditório - “acaba por ser apreciada no âmbito de recurso que entretanto foi interposto, como aconteceu em RL 15-5-14, 26903/13, RE 26-10-17, 2929/15 e RG 23-6-16, 713/14, dizendo-se especificadamente neste último que “se a nulidade está coberta por decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo ato ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo”, o que essencialmente conduz à solução defendida por Teixeira de Sousa. Trata-se de uma solução para a qual a nulidade processual apenas ganha relevo quando tal se projeta negativamente na decisão que é proferida, sendo a questão apreciada em sede de interposição de recurso”[22].
Abrantes Geraldes, em Recursos no NCPC, 5ª ed. Pp. 25-30, defende que a reação da parte interessada passa pela interposição de recurso em cujo âmbito se inscreva a arguição daquelas nulidades, solução também adotada em STJ 23-6-16, 1937/15, no qual se afirmou que “a omissão de ato destinado a proporcionar ao autor o contraditório (…) determina a nulidade do despacho saneador onde tal exceção foi apreciada e julgada procedente” e “em STJ 17-3-16, CJ, t.I, p. 176 (“a decisão surpresa alegada e verificada constitui um vício intrínseco de decisão e não do iter procedimental, acarretando a nulidade do acórdão que assentou a sua decisão em dois fundamentos que não foram previamente considerados pela recorrente, que foram decisivos para a decisão e sobre os quais, antes, deviam ter sido ouvidos recorrente e recorridos” e em STJ 22-2-17, 5384/15”[23].
Assim, a falta da audiência prévia destinada, designadamente, ao fim previsto na al. b), do nº1, do art. 591º, “Facultar às partes a discussão de facto e de direito” determina a nulidade do saneador-sentença que conheceu do mérito da causa, julgando-a improcedente, vendo-se o Autor, devido à não realização de audiência prévia, impedido de influenciar a decisão.
Destarte, estando a nulidade processual coberta por decisão judicial posterior que a permitiu e lhe deu continuidade, conferindo assentimento ao respetivo ato ou omissão dela geradora, o meio próprio para a arguir é o recurso a interpor da decisão proferida, com a qual se esgotou o poder jurisdicional (cfr. art. 613º, do CPC), onde aquela nulidade, a apreciar, releva a projetar-se, como no caso, negativamente na decisão proferida.
Nos termos expostos, procedendo a apelação, por ter ocorrido violação do princípio do contraditório, dada a falta de audiência prévia, com a referida finalidade, não pode a decisão ser mantida.
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As custas do recurso são da responsabilidade das recorridas dada a total procedência da pretensão recursória a que foi apresentada oposição (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, anulam a decisão recorrida e determinam a baixa dos autos à 1ª instância para realização da audiência prévia.
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Custas pelas recorridas.
Porto, 13 de outubro de 2025
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Manuel Domingos Fernandes
José Eusébio Almeida
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[1] “Fixo o valor da ação em € 53.846,10 (cinquenta e três mil oitocentos e quarenta e seis euros e dez cêntimos) – art.º 297º, nº1 do Código de Processo Civil”.
[2] Cfr. exemplos destas nulidades (prática de ato que a lei não admita e omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva) in António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág 236 e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, pág. 382-383.
[3] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 236.
[4] In Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra, 1945, pág. 507.
[5] FREITAS, Lebre de (1992). Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, págs 35 a 38.
[6] FREITAS, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui (1999), Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, pág. 8.
[7] FREITAS, José Lebre de (2006), Introdução ao Processo Civil. Conceitos e princípios gerais, 2ª ed.. Coimbra: Coimbra Editora, págs 115 a 118.
[8] REGO, Carlos Lopes do (2004), Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I, Coimbra: Almedina, pág. 32.
[9] Cfr. Ac. do STJ de 04/05/99, proc. nº 99057, in dgsi.net
[10] Cfr, neste sentido Ac. do STJ de 15/10/2002, proc. 02A2478, Ac. da RL de 11/03/2008, proc. 2051/2008-7, Ac. da RL de 21/05/2009, proc. 1490/04.8TBPDL.L1-6 e Ac. da RP de 10/01/2008, proc. 0736877, todos in dgsi.net
[11] Ac. da RC de 13/11/2012, proc. 572/11.4TBCND.C1, in dgsi.net
[12] Ac. da RC de 20/9/2016, proc. 1215/14.0TBPBL-B.C1, in dgsi.pt
[13] Ac. do STJ de 27/9/2011, proc. 2005/03.0TVLSB.L1.S1, in dgsi.pt
[14] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 685
[15] Cfr. Acs do STJ de 13/1/2005, proc. 04B4031, de 11/12/95, proc. 96A483, de 03/12/96, proc. 97A232, de 06/05/97, proc. 97A232 e de 22/01/98, proc. 98A448, Ac. RE, de 1/4/2004, proc. 2737/03-2, e Ac. RP de 10/01/2008, proc. nº 0736877, todos in dgsi.pt
[16] Acs. STJ. de 13/01/2005, proc. 04B4031; RP de 18/06/2007, proc. 0733086, in dgsi.pt.
[17] Ac. RL de 9/10/2014, proc. 2164/12.1TVLSB.L1-2, in dgsi.net
[18] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 685.
[19] Ibidem, pág. 681 e seg.
[20] Ibidem, pág. 682.
[21] Ibidem, pág. 682.
[22] Ibidem, pág. 682 e seg.
[23] Ibidem, pág. 683.