Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
397/24.7T8PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: DIREITO À PROVA
FACTOS PERTINENTES
MEIOS DE PROVA RELEVANTES
Nº do Documento: RP20250410397/24.7T8PRT-B.P1
Data do Acordão: 04/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A instrução do processo reporta-se à atividade destinada à produção dos meios de prova dos factos controvertidos relevantes/abrangidos pelos temas da prova fixados (art. 410.º do Cód. Proc. Civil). Os meios de prova visam a demonstração dos factos oportunamente alegados pelas partes que estão controvertidos ou que carecem de determinado meio de prova para poderem ser considerados.
II - O direito à prova desenvolve-se dentro dos limites da sua necessidade e pertinência para prova de factos relevantes para a decisão a proferir.
III - O processo civil declarativo não é um processo de inquérito, não se destinando à descoberta de factos hipotéticos desconhecidos pela parte, mas sim à prova de factos (positivos ou negativos) por esta conhecidos, e pela mesma claramente afirmados (alegados).
IV - Não é, assim, de admitir requerimentos probatórios que visam a prova de factos que não estão controvertidos ou que respeitam a matéria que não integra factualidade alegada nos articulados e abrangida pelos temas da prova.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 397/24.7T8PRT-B.P1

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Sumário:

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Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

AA intentou ação declarativa de impugnação de perfilhação contra a BB, peticionando que, em consequência da procedência da ação, seja «(…) declarado que o réu não é filho biológico de CC, nascido a ../../1932, em ..., Paredes, NIF ......, portador do BI ..., com todas as consequências legais, designadamente, ordenando o averbamento da decisão a proferir em ambos os assentos de nascimento do réu, ou seja, no assento n.º ..., de 01.04.1970, da 3.ª C. R. Civil do porto, atualmente arquivado no Instituto dos Registos e do Notariado, sito na Rua ..., ..., ... Porto, bem como no Assento de nascimento ..., do ano de 2013, da 3.ª C. R. Civil do Porto, o que se requer.».

Para tanto, alega que consta do assento de nascimento do réu BB que o mesmo é filho de CC, falecido em 30-11-2021, fruto de uma relação extraconjugal deste com DD, mãe do réu, mas que o referido CC nunca manteve relação estável e permanente com a referida DD, que à data da conceção e nascimento do réu o falecido CC era casado com EE, com quem residia, que nunca tratou o réu como filho nem nunca manteve quaisquer relações pessoais, familiares ou outras com o mesmo, havendo dúvidas profundas quanto à paternidade do réu constituída por perfilhação efetuada pelo referido CC, dado que a progenitora do réu manteve relações sexuais com vários homens pela altura da conceção do réu, tendo o referido CC, no testamento outorgado em 13 de setembro de 2013, declarado que não tem ascendentes ou descendentes vivos, efetuando os legados que dele constam à sua mulher e à aqui autora.

Argui a falsidade da certidão do assento de nascimento do réu quanto à indicação da residência habitual do CC, negando que o mesmo tivesse a sua residência habitual na Rua ..., n.º ..., 1.º dt.º, ..., dado que o referido CC nunca coabitou com a mãe do réu, tendo sempre coabitado com a respetiva mulher EE entre 1958 e 2021, nas moradas que indica.

Peticiona que o tribunal requisite ao Instituto dos Registos e do Notariado o original do assento de nascimento n.º ..., de 01.04.1970, da 3.ª C. R. Civil do Porto (art. 53.º da PI), para apuramento da residência do CC à data em que o réu nasceu e comprovação de que o mesmo não coabitava com a mãe do réu a altura do seu nascimento, o que constitui um facto essencial para a decisão da causa, pela necessidade de se estabelecer qual era a residência habitual do CC na data da elaboração do assento de nascimento do réu, alegando que se frustrou a tentativa de obtenção de tal certidão pelo advogado da autor por lhe ter sido «(…) referido que tal documento só poderia ser requisitado por um Tribunal Judicial, com o argumento de que as certidões de nascimento que contêm a menção de que a pessoa é filho ilegítimo foram substituídas por força de imposição normativa por novos assentos de nascimento e são de acesso reservado. (…)».

Na petição inicial requereu a produção antecipado de prova, com vista à obtenção de material biológico de CC para realização de prova pericial consistente na realização de exame de paternidade de ADN para apurar da (in)existência de vínculo biológico entre o réu e o referido CC.

Para fundamentar tal requerimento, alegou que «(…) o corpo do CC foi cremado por manifestação de vontade de pessoa alheia à Ré e à sua mãe FF, provavelmente por vontade do Réu, investindo-se na qualidade de filho perfilhado pelo falecido.» – art. 64.º da PI –, e que «Dado que o CC era católito praticante e considerando ainda que o mesmo não manifestou a vontade de ser cremado após a sua morte, o corpo do CC foi cremado com o único fito de eliminar definitiva e irreversivelmente quaisquer vestígios biológicos do seu corpo.» – art. 65.º da PI.

No final da petição inicial a autora, para além do requerimento de produção antecipada de prova, requereu, no que aqui releva, a produção dos seguintes meios de prova:

I - DOCUMENTAL:

A) (…);

B) Requer que seja requisitado ao Instituto dos Registos e do Notariado, sito na

Rua ..., ..., ... Porto, o original do assento n.º

769/1970, de 01.04.1970 da 3.ª C. R. Civil do Porto, para prova de que o assento junto como doc. 4 da p.i. contém declarações materialmente falsas que se requer sejam declaradas pelo Tribunal (cfr, art. 372.º do Cód. Civil), designadamente quanto ao local da residência do CC à data do assento, reservando-se a Autora o direito de se pronunciar sobre tal documento logo que o mesmo lhe seja exibido.

C) Requer que seja notificada a FUNERÁRIA A..., LDA, Rua ..., ... ... (Gondomar) para vir juntar aos autos os documentos comprovativos de que o CC, natural ..., Paredes, onde nasceu no dia ../../1932, NIF ......, portador do BI ..., com última residência na Rua ..., n.º ... – 3º, ... Porto, foi cremado após a sua morte em 30.11.2021, mais comprovando documentalmente quem determinou que o CC deveria ser cremado, ou deu a respetiva ordem/autorização.

Citado, o réu apresentou em 19-02-2024 contestação, alegando ser filho biológico do falecido CC e impugnando parcialmente a factualidade alegada, concluindo pela improcedência da ação.

Em 15-03-2024 foi proferida decisão de deferimento parcial do requerimento para produção antecipada de prova e efetuado convite à autora para requerer a intervenção principal da mãe do réu, sob pena de absolvição do réu da instância por preterição de litisconsórcio necessário passivo.

Em 02-05-2024 foi deferido requerimento de intervenção principal passiva de DD como associada do réu, e ordenada a sua citação.

Citada, a interveniente apresentou em 12-06-2024 contestação, alegando que o reconhecimento da paternidade do réu foi efetuado pelo falecido CC através do ato voluntário da perfilhação, de forma livre, esclarecida e verdadeira, impugnando parcial e motivadamente a factualidade alegada pela autora e concluindo pela improcedência da ação.

Em 23-09-2024 o tribunal a quo convidou a autora a aperfeiçoar a petição inicial, concretizando alegações não factualizadas, o que a autora fez por requerimento de 07-10-2024.

Em 11-11-2024 foi proferido despacho de fixação do objeto do litígio – «Impugnação da paternidade de CC relativamente ao réu.» – e de fixação dos temas da prova, nos seguintes termos:

- se CC nunca manteve relação estável com a mãe do réu;

- se nunca manteve qualquer relação social, familiar ou outra com o réu;

- se nunca coabitou com a mãe do réu;

- se à data da conceção e nascimento era casado e viva com o cônjuge;

- se nunca tratou o réu como filho;

- se o réu nunca foi visto na casa do perfilhante;

- se a ré DD, no período legal de conceção do réu BB, manteve relacionamento sexual com vários homens.

Nesse mesmo despacho, no âmbito da apreciação do requerimento probatório apresentado pela autora na petição inicial, o tribunal a quo proferiu a seguinte decisão:

A cópia do assento de nascimento de BB não foi impugnada, pelo que não se vislumbra interesse na apresentação do original.

Por outro lado, e ainda que assim se não entendesse, a obtenção de certidão do original do assento de nascimento está ao alcance da autora.

Assim sendo, indefiro a requerida notificação do Instituto de Registos e Notariado.


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Resulta do assento de óbito junto que CC foi cremado.

Por outro lado, afigura-se irrelevante para a decisão da causa saber quem tomou tal decisão.

Assim sendo, indefiro a requerida notificação da Funerária A..., Lda.

Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação deste despacho, concluindo, no essencial:

1) Na presente ação constitutiva de impugnação de perfilhação a A. pede, em síntese, que “seja declarado que o réu não é filho biológico de CC,” seu tio-avô;

2) Fê-lo com fundamento no artigo 1859.º do Cód. Civil, impugnando que o R seja, efetivamente, filho biológico do CC (cfr. art. 8.º da p.i.).

3) Para prova de que o R. não é filho biológico do CC a A. requereu que fossem feitos testes genéticos de ADN ao material biológico do CC e do R. de modo que, no seu confronto, se possa determinar que o R. não é filho biológico de CC. (…)

5) Por ter sido cremado o corpo do perfilhante não é possível obter material biológico a partir da exumação do seu cadáver. (…)

14) Por força do disposto no artigo o artigo 212.º, n.º 4 do Código do Registo Predial, os serviços do IRN não emitem certidões dos quais conste que o filho é ilegítimo, dando também cumprimento ao disposto no artigo 36.º n.º 4 da CRP de 1976, com o seguinte teor: Os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação.

15) Um dos temas de prova definido no despacho saneador tem como objecto aferir “se à data da conceção e nascimento era casado e viva com o cônjuge”;

16) A A. alega na petição inicial que o CC coabitava com a sua mulher na altura da concepção e do nascimento.

17) A A. que tem o ónus de demonstrar os factos constitutivos do seu direito, cfr. art. 342.º do CC.

18) Porém, a A. viu-se forçada a juntar aos autos uma certidão de nascimento transcrita da qual consta que à data do nascimento o CC viva com mãe do Réu na Rua ..., no Porto, apesar se esse ser um facto falso que lhe é desfavorável, sendo favorável aos RR - cfr., o doc. 4 junto com a p.i.

19) Antes do 25 de Abril, como no caso do Réu, uma criança nascida fora do casamento era registada com a menção discriminatória de filho ilegítimo (…)

23) O Decreto-Lei n.º 51/78, de 30 de março, que aprovou o novo Código do Registo Civil, eliminou do assento de nascimento as menções a filho legítimo ou ilegítimo.

24) Nas transcrições de assentos de nascimento, (…) eram igualmente eliminadas essas menções discriminatórias.

25) E, também no que diz respeito à emissão de certidões de registos, o Código do Registo Civil estabelece que as «que contenham menções discriminatórias de filiação são, sempre que possível, obrigatoriamente emitidas por meios informáticos com eliminação das referidas menções, seja qual for a espécie e o fim a que se destinem (…)» [cfr, o artigo 212.º, n.º 4]. (…)

27) (…) é contrário às disposições legais aplicáveis a seguinte afirmação constante do despacho em crise: “Por outro lado, e ainda que assim se não entendesse, a obtenção de certidão do original do assento de nascimento está ao alcance da autora.”

28) Pelo exposto, deve ser revogado, por ser ilegal, o despacho em crise, dado ser violador do disposto do princípio do contraditório, na sua acepção ampla, vertida, entre outras, na disposição do n.º 3 do art. 3.º do CPC, e do direito à prova, corolário do direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrada no art. 20.º da CRP, e estabelecido, entre outros, no disposto no artigos 410.º e 413.º do CPC, bem como por violação do disposto no artigo 212.º, n.º 4.º do Código do Registo Civil, e do artigo 36.º, n.º 4 da CRP, que como se sabe, no domínio dos direitos fundamentais, é de aplicação directa, por força do respetivo artigo 18.º da CRP.

29) Devendo ser substituído por outro despacho que ordene que “seja requisitado ao Instituto dos Registos e do Notariado, sito na Rua ..., ..., ... Porto, o original do assento n.º ..., de 01.04.1970 da 3.ª C. R. Civil do Porto, para prova de que o assento junto como doc. 4 da p.i. contém declarações materialmente falsas que se requer sejam declaradas pelo Tribunal (cfr, art. 372.º do Cód. Civil), designadamente quanto ao local da residência do CC à data do assento”, documento que é essencial para a prova do seguinte tema de prova: aferir “se à data da conceção e nascimento [O CC] (era casado e) viva com o cônjuge”;

30) Nos artigos 60.º a 66.º da p.i. a A. alegou que; “O CC era crente na Igreja Católica Apostólica Romana e o mesmo praticava a crença de que a Igreja era contrária à cremação do corpo após a morte; O CC nunca manifestou a vontade de ser cremado após o seu óbito; Não obstante, após o seu óbito, o corpo do CC foi cremado, informação que pode ser confirmada junto da funerária que tratou do serviço fúnebre do CC: FUNERÁRIA A..., LDA, Rua ..., ... ... (Gondomar), conforme requerimento de prova documental deduzido a final; O corpo do CC foi cremado por manifestação de vontade de pessoa alheia à Ré e à sua mãe FF, provavelmente por vontade do Réu, investindo-se na qualidade de filho perfilhado pelo falecido; Dado que o CC era católito praticante e considerando ainda que o mesmo não manifestou a vontade de ser cremado após a sua morte, o corpo do CC foi cremado com o único fito de eliminar definitiva e irreversivelmente quaisquer vestígios biológicos do seu corpo.

31) No seguimento dessa alegação, no domínio do requerimento de prova documental, requereu ao Tribunal que “seja notificada a FUNERÁRIA A..., LDA, Rua ..., ... ... (Gondomar) para vir juntar aos autos os documentos comprovativos de que o CC, natural ..., Paredes, onde nasceu no dia ../../1932, NIF ......, portador do BI ..., com última residência na Rua ..., n.º ... – 3º, ... Porto, foi cremado após a sua morte em 30.11.2021, mais comprovando documentalmente quem determinou que o CC deveria ser cremado, ou deu a respetiva ordem/autorização.”

32) Tal requerimento de prova tem relevância para o objecto do litígio: Impugnação da paternidade de CC relativamente ao réu.

33) No despacho de 11.11.2024 foi indeferido o aludido requerimento de prova da A. Essa decisão do tribunal inibe o direito à prova da A. com uma fundamentação ilegal.

34) Há inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações (cfr., o art. 344.º, n.º 2 do Código Civil).

35) Nas situações em que ocorra um comportamento culposo da parte não onerada que torne impossível ou extremamente dificultosa a prova pela parte onerada, a inversão do ónus de prova sobre a parte faltosa poderá ser determinada a coberto do disposto no artigo 344.º, n.º 2, do CC. (…)

37) Através da prova por comparação do ADN é possível com um grau de probabilidade próximo da certeza absoluta (100%), passe a redundância, determinar se o Réu é ou não é filho biológico do CC.

38) Podemos presumir que o Réu, como um adulto normal, sem quaisquer problemas cognitivos, tinha conhecimento, à data do óbito ocorrida, de que o perfilhante poderia não ser o seu pai biológico e de que a aferição da verdade sobre a filiação genética entre o perfilhante e o perfilhado poderia ser apurada e determinada com base num teste de genética que procedesse à comparação do material biológico do perfilhante com o material biológico do perfilhado.

39) Mais sabendo o R. que a destruição do material biológico do perfilhante que ocorre com a cremação do seu corpo tornaria impossível, ou mais difícil, averiguar a filiação biológico, pois, desparecendo o corpo, só resta uma hipótese muito reduzida de fazer tais testes de material biológico, se o mesmo tivesse sido recolhido em vida para efeito de avaliar a existência de problemas de saúde (carcinomas, etc.).

40) Por tudo o que vai exposto, tem muito relevância para a boa decisão da causa apurar se foi o Réu quem ordenou a cremação do corpo do perfilhante.

41) A decisão em crise deverá, pois, ser revogada e substituída por outro que determine a notificação da agência funerária para juntar aos autos os documentos de onde conste que o perfilhante foi cremado e onde conste a autorização escrita para que essa cremação ocorresse.

42) As duas decisões recorridas violaram, entre outros, o disposto nos artigos 341.º e 342.º do Código Civil, o disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 410.º e 413.º do CPC, o disposto no artigo 212.º, n.º 4.º do Código do Registo Civil e ainda o disposto nos artigos 20.º, n.º 4 e 36.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

Conclui pela revogação das “duas decisões recorridas (…) devendo as mesmas ser substituídas por outras que determinem a realização a prova requerida”.

Não foi apresentada resposta.

Em 04-02-2025 foi proferido pelo tribunal a quo despacho de admissão do recurso como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a decidir:

Atentas as conclusões da alegação de recurso, cumpre apreciar se existe erro de julgamento do tribunal recorrido nas decisões de indeferimento dos requerimentos probatórios apresentados pela autora.

Acresce a responsabilidade por custas.

III – Fundamentação:
Factos processuais provados

Os factos a considerar para a apreciação do recurso são os que estão descritos no relatório antecedente.

Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Fundamentos do recurso
2. Direito à prova – fundamento e finalidade
3. Requisição de original de assento de nascimento do réu
4. Notificação de terceiro para junção de documento
5. Responsabilidade pelas custas

1. Fundamentos do recurso

Insurge-se a apelante quanto às decisões do tribunal recorrido que indeferiram os seguintes requerimentos probatórios por si apresentados no final da petição inicial:

- Requer que seja requisitado (pelo tribunal) ao Instituto dos Registos e do Notariado o original do assento n.º ..., de 01.04.1970 da 3.ª C. R. Civil do Porto, para prova de que o assento de nascimento do réu, junto pela autora como doc. 4 da PI, contém declarações materialmente falsas que se requer sejam declaradas pelo Tribunal (cfr, art. 372.º do Cód. Civil), quanto ao local da residência do CC à data do assento, reservando-se a Autora o direito de se pronunciar sobre tal documento logo que o mesmo lhe seja exibido;

- Requer que seja notificada (pelo tribunal) a FUNERÁRIA A..., LDA, para vir juntar aos autos os documentos comprovativos de que o CC, foi cremado após a sua morte em 30.11.2021, mais comprovando documentalmente quem determinou que o CC deveria ser cremado, ou deu a respetiva ordem/autorização.

Funda a sua discordância, em síntese, na violação do seu direito à prova e erro do juízo do tribunal a quo sobre a impertinência/irrelevância probatória para a decisão da ação (e ainda, no que concerne ao indeferimento da requisição da certidão do original do assento de nascimento, também na existência de erro no juízo quanto à falta de demonstração da necessidade de intervenção do tribunal para a sua obtenção).

2. Direito à prova – fundamento e finalidade

Os meios de prova – apresentação de coisas móveis ou imóveis, prova por documentos, prova por confissão e por declarações de parte, prova pericial, inspeção judicial, prova testemunhal – têm por função a demonstração da realidade dos factos – art. 341.º do Cód. Civil – que estão controvertidos no processo – art. 410.º do Cód. Proc. Civil.

Corolário do princípio do dispositivo que ainda vigora no regime processual civil vigente, como resulta da leitura conjugada do disposto nos arts. 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d), 571.º, 572.º, als. b) e c) e 574.º, todos do Cód. Proc. Civil, é às partes que incumbe alegar os factos essenciais que suportam as pretensões deduzidas, o que é feito nos respetivos articulados.

Além dos factos essenciais que têm necessariamente que ser alegados pelas partes, podem ainda ser considerados pelo juiz outros factos, nomeadamente, os factos instrumentais e os que sejam complemento ou concretização dos que as partes alegaram e resultem da instrução da causa, nos termos e condicionalismos estabelecidos nas als. a) e b) do n.º 2 do art. 5.º do Cód. Proc. Civil.

A instrução do processo reporta-se à atividade destinada à produção dos meios de prova dos factos controvertidos relevantes/abrangidos pelos temas da prova fixados (art. 410.º do Cód. Proc. Civil). Os meios de prova visam a demonstração dos factos oportunamente alegados pelas partes que estão controvertidos ou que carecem de determinado meio de prova para poderem ser considerados. Da produção dos meios de prova oportunamente indicados podem ainda resultar demonstrados os factos instrumentais e os que sejam complemento ou concretização dos que as partes alegaram (art. 5.º, n.º 2, als. a) e b), do Cód. Proc. Civil, já referido).

Através dos requerimentos probatórios apresentados pretende a autora a junção ao processo de documentos – o original do assento de nascimento do réu n.º 769/1970, de 01.04.1970 da 3.ª C. R. Civil do Porto e documento comprovativo de que o CC foi cremado após a sua morte em 30.11.2021 e de quem deu ordem/autorização para a cremação –, requerendo para tal que o tribunal requisite o original do assento de nascimento do réu, e que notifique terceiro – a Funerária A... L.da. – para juntar documentos comprovativos da cremação e de quem autorizou/deu ordem de cremação.

3. Requisição de original de assento de nascimento do réu

Sobre a requisição de documentos dispõe o art. 436.º do Cód. Proc. Civil nos seguintes termos:

Art. 436.º - Requisição de documentos

1. Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade.

2. A requisição pode ser feita aos organismos oficiais, às partes ou a terceiros.

Como resulta do acima referido no ponto 2., a produção de meios de prova tem como finalidade a demonstração dos factos oportunamente alegados pelas partes que estão controvertidos ou que carecem de determinado meio de prova para poderem ser considerados. Tal resulta corroborado pela parte final do n.º 1 do art. 436.º do Cód. Proc. Civil. A requisição aí prevista depende da necessidade do(s) elemento(s) a requisitar para o esclarecimento da verdade.

Fundamenta a autora/apelante a necessidade de junção do original do assento de nascimento para com tal junção poder fazer prova de que “o perfilhante não coabitava com a mãe do perfilhado na altura do nascimento deste”, por “do original do assento de nascimento” constar “que o perfilhado é filho ilegítimo do perfilhante e que a residência deste na altura do casamento era com a sua mulher e não com a mãe do perfilhado.”

Sendo certo que a autora alegou na petição inicial que o CC coabitava com a sua mulher na altura da conceção e do nascimento do aqui réu e que o mesmo nunca coabitou com a mãe do réu BB (a interveniente DD), “apesar do que erradamente consta da transcrição do assento junta como doc. 4, sendo nessa medida tal assento falso.” – cfr. arts. 10.º e 11.º da petição inicial –, é igualmente certo que nas respetivas contestações está aceite que o referido CC e a interveniente mãe do réu DD não viviam juntos entre 1968 e 1974: o pai do réu BB(…) residia na Rua ..., com a sua esposa. (…)” e a mãe do réu, DD, residia “(…) na Rua ..., n.º ... – 1º - Dto. (…)” – cfr. arts. 10.º a 12.º das contestações apresentadas pelo réu e pela interveniente.

Está ainda documentalmente provado:

– Que o pai do réu BB casou catolicamente com EE em 02 de fevereiro de 1958 e que se manteve casado com a mesma até à data do óbito desta, ocorrido em 25 de junho de 2021 (averbamento ao assento de nascimento do referido CC – documento junto pela autora com a petição inicial).

– Que o réu nasceu no dia ../../1970 (assento de nascimento do réu – documento junto pela autora com a petição inicial).

Deste modo, em conformidade com o disposto no art. 574.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, a seguinte factualidade que foi – erradamente – elencada como integrando um dos temas da prova – “se à data da conceção e nascimento era casado e viva com o cônjuge” – encontra-se provada, em parte por documentos (factos atinentes ao casamento do referido CC e data de nascimento do réu – art. 371.º do Cód. Civil e arts. 1.º a 4.º e 211.º do Cód. Reg. Civil, e arts. 574.º, n.º 2, e 607.º, n.º 5. ambos do Cód. Proc. Civil –, matéria de facto que releva igualmente para a determinação do período legal de conceção) e, em parte, por acordo (o facto do referido CC viver com o respetivo cônjuge EE à data da conceção e nascimento, atenta a aceitação pelo réu e interveniente de que entre 1968 e 1974 o referido CC vivia com a esposa em residência distinta daquela que era a residência da mãe do réu DD – art. 574.º, n.º 1 e n.º 2, e 607.º, n.º 4, ambos do Cód. Proc. Civil).

Não tem assim qualquer relevo probatório a pretendida junção do assento de nascimento original. É matéria perfeitamente assente, e não controvertida, que o réu foi perfilhado pelo referido CC que, à data do nascimento do réu, era casado com pessoa distinta da mãe do réu – a referida EE –, sendo a mãe do réu solteira (como resulta da indicação constante do assento de nascimento do réu junto aos autos do estado civil do aí identificado pai do réu, CC – ‘casado’ – e do estado civil da aí identificada mãe do réu, DD –‘solteira’). Nada releva, pois, a invocada pretensão de junção de documento do qual conste qualquer hipotética menção de “que o perfilhado é filho ilegítimo do perfilhante” para prova do que já está assente.

De igual modo quanto à indicação constante do assento de nascimento junto aos autos da residência dos aí identificados progenitores do réu, dada a aceitação pelo réu e pela interveniente, nas contestações apresentadas, de que aqueles tinham residências distintas à data da conceção e do nascimento do réu, uma vez que o valor de prova plena do referido assento junto aos autos restringe-se, como resulta do disposto nos já anteriormente referidos artigos 1.º a 4.º e 211.º, todos do Cód. Registo Civil, aos factos referidos no art. 1.º.

Acrescentaremos ainda que se o original do assento de nascimento do réu tivesse algum relevo para prova de matéria de facto controvertida pertinente para a decisão da ação – que não tem –, sempre teria autora que juntar prova da impossibilidade de obtenção de certidão do original do assento de nascimento n.º ..., de 01.04.1970, da 3.ª C. R. Civil do Porto por si invocada no art. 55.º da petição inicial: a saber, documento comprovativo do indeferimento pelo Instituto dos Registos e do Notariado do requerimento por si apresentado a solicitar a pretendida certidão.

Improcedente, por conseguinte, a pretendida revogação da decisão de indeferimento da requerida notificação do Instituto de Registos e Notariado para junção do original do assento de nascimento.

4. Notificação de terceiro para junção de documento

Atenta a possibilidade de existência de documentos que, sendo pertinentes ou úteis para prova dos factos, não estejam em poder da parte interessada na sua utilização como meio de prova em determinada ação, estabelecem os arts. 429.º e 432.º do Cód. Proc. Civil, respetivamente, o regime regulador da junção aos autos de documentos em poder da parte contrária ou de terceiros.

As disposições legais reguladoras da apresentação de documentos em poder da parte contrária ou de terceiros, constantes dos arts. 429.º a 437.º do Cód. Proc. Civil, constituem concretizações do regime geral do dever de cooperação consagrado no art. 417.º do Cód. Proc. Civil.

Dispõe o art. 432.º (Documentos em poder de terceiro) do Cód. Proc. Civil nos seguintes termos:

Se o documento estiver em poder de terceiro, a parte requer que o possuidor seja notificado para o entregar na secretaria, dentro do prazo que for fixado, sendo aplicável a este caso o disposto no artigo 429.º.

Por seu turno, o art. 429.º (Documentos em poder da parte contrária), dispõe nos seguintes termos:

1 - Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar.

2 - Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação.

Emerge da leitura conjugada do disposto nos arts. 6.º, 410.º, 423.º, n.º 1 e 443.º, n.º 1, todos do Cód. Proc. Civil, que apenas deve ser admitida a junção aos autos de documentos que sejam relevantes para a prova (ou contraprova) dos factos pertinentes para a decisão da ação, quer tais factos sejam essenciais, quer sejam instrumentais.

Tal resulta ainda, de forma clara, do disposto no art. 443.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, nomeadamente, ao consagrar que, efetuada a junção ao processo dos documentos, e facultado o contraditório, o juiz, se não tiver ordenado a junção e verificar que os documentos são impertinentes ou desnecessários, manda retirá-los do processo e restitui-os ao apresentante, constituindo esta disposição legal «(…) expressão do princípio da relevância da prova, consagrado genericamente no art. 6.º, n.º 1, quando se consigna que cumpre ao juiz recusar o que for impertinente ou meramente dilatório.» - assim, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, 2018, p. 511.

Do disposto no art. 429.º do Cód. Proc. Civil, para o qual o art. 432.º do mesmo diploma remete, resulta que o regime previsto para a junção aos autos de documentos em poder de terceiro comunga, de igual modo, de tal princípio da pertinência dos meios de prova, na medida em que é tal pertinência o pressuposto e fundamento essencial e indispensável para o deferimento do requerimento de notificação, designadamente, dos terceiros possuidores dos referidos documentos, para os apresentarem.

Daí que a admissibilidade da ordem de notificação de terceiros para procederem à apresentação de documentos em seu poder dependa da verificação de determinados pressupostos e do cumprimento, pela parte requerente, nomeadamente, das seguintes exigências previstas no art. 429.º, por força da remissão para tal disposição legal operada pelo art. 432.º, ambos do Cód. Proc. Civil:

a) que sejam documentos em poder de terceiro que a própria parte não consiga obter;

b) a identificação do concreto documento cuja junção se pretende obter;

c) a indicação dos concretos factos que com tal documento se pretende provar (ou efetuar contraprova [1]).

Quanto à necessidade de identificação do concreto documento cuja junção se pretende obter, tem a mesma por finalidade «(…) dar a conhecer ao notificado qual o documento que dele se requisita. (…)», uma vez que, para que o notificado «(…) possa tomar conscientemente qualquer atitude perante o despacho que requisitar a apresentação, é indispensável que ele saiba, ao certo, qual a espécie de documentos que se lhe exige – se uma carta, se uma letra, se um relatório, se um balanço, se um título de arrendamento, etc. E não basta que se indique a espécie em abstracto, é necessário que se caracterize a espécie, que se individualize o documento, dizendo-se, por exemplo, de que data é a carta e quem a expediu, a que prédio se refere o arrendamento e em que data se celebrou, etc.

A 2.ª exigência [indicação dos concretos factos a provar ou a fazer contraprova com a requerida junção] destina-se, em primeiro lugar, a habilitar o juiz a deferir ou a indeferir o requerimento (…)». – assim, Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, Coimbra Editora – 1987, p. 39.

Concluímos, pois, que o direito à prova desenvolve-se dentro dos limites da sua necessidade e pertinência: só são admitidos os documentos pertinentes para prova de factos relevantes para a decisão a proferir, sendo que, no âmbito do regime previsto no art. 432.º do Cód. Proc. Civil, a apresentação de documentos em poder de terceiro pressupõe ainda o preenchimento das acima referidas exigências previstas no art. 429.º, ex vi art. 432.º, ambos do Cód. Proc. Civil.

«Ao juiz cabe controlar a pretensa idoneidade do documento para a prova de factos de que o requerente tem o ónus da prova, ou que possam infirmar a prova de factos de que o detentor do documento tem o ónus (…), razão por que o requerente deve identificar, na medida do possível, o documento e especificar os factos que com ele quer provar» – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, p. 247, Almedina, 3.ª Edição.

Em ordem à apreciação da conformidade da decisão recorrida com o direito, cumpre analisar em concreto o cabimento, dentro do regime previsto no art. 432.º do Cód. Proc. Civil, do pedido da autora de notificação da FUNERÁRIA A..., LDA. “(…) para vir juntar aos autos os documentos comprovativos de que o CC (…) foi cremado após a sua morte em 30.11.2021, mais comprovando documentalmente quem determinou que o CC deveria ser cremado, ou deu a respetiva ordem/autorização.”.

No que concerne ao facto referente à cremação do perfilhante, é exata a afirmação efetuada pelo tribunal a quo no despacho de indeferimento de que “Resulta do assento de óbito junto que CC foi cremado”. Tal factualidade, de resto, não é matéria controvertida (ver art. 63.º da petição inicial; art. 57.º da contestação do réu e art. 56.º da contestação da interveniente).

Não sendo matéria controvertida, não está carecida de produção de prova, pelo que é correta a decisão de indeferimento da requerida notificação de terceiro para juntar documento comprovativo de que o referido que o CC foi cremado.

Quanto ao indeferimento do requerimento de notificação da FUNERÁRIA A..., LDA. para comprovar “documentalmente quem determinou que o CC deveria ser cremado, ou deu a respetiva ordem/autorização”, verificamos, desde logo, que a autora não identifica qual é (são) o(s) concreto(s) documento(s) em poder do terceiro – FUNERÁRIA A..., LDA. – que pretende que seja(m) junto(s) ao processo.

De igual modo, não indica a mesma, no requerimento probatório apresentado na petição inicial, quais são os concretos factos alegados na petição inicial que pretende provar ou a fazer contraprova com a requerida junção de documento comprovativo de “quem determinou que o CC deveria ser cremado, ou deu a respetiva ordem/autorização”.

Daqui resulta, desde logo, que o requerimento probatório em causa, nos moldes em que foi efetuado na petição inicial, não preenche os requisitos de cuja verificação dependeria o deferimento do requerimento probatório.

Verificamos, no entanto, que a autora, nas alegações de recurso – cfr. n.os 30), 32) e 34) a 40) das Conclusões – indica qual é a finalidade probatória do aludido requerimento.

A finalidade do requerimento é obter uma eventual inversão do ónus de prova quanto à seguinte factualidade: o réu não é filho biológico de CC.

Estando-se aqui, como se está, perante uma ação de impugnação da perfilhação, é fundamento do pedido a desconformidade entre a verdade jurídica e a verdade biológica. Cabe à aqui autora demonstrar que o perfilhante CC não é o progenitor do perfilhado réu BB. Para tanto, tem a autora que alegar, para posteriormente demonstrar, os factos que integram a causa de pedir, dos quais resultam que o perfilhante não é o pai biológico. – assim, cfr. Ac. do TR do Porto de 04-05-2023, proc. 646/21.3T8VCD.P1.

Ora, lida a petição inicial o que se verifica é que a autora, na ação na impugnação da paternidade/filiação biológica entre o perfilhante CC e o perfilhado réu BB intentada, alegou factos instrumentais atinentes ao não tratamento do réu como filho pelo referido CC, e à não exclusividade de relações sexuais por parte da mãe do réu com o perfilhante – visando com a ação “averiguar e declarar que o réu não é filho biológico do CC”. Só no artigo 35.º da petição inicial é afirmado – pela positiva – que o perfilhante CC é “putativo (mas, não biológico) pai” do réu.

Verifica-se igualmente que não foi incluído nos temas da prova a factualidade atinente à inexistência de filiação biológica entre o perfilhante CC e o perfilhado BB – sem que tenha sido apresentada qualquer reclamação da enunciação dos temas da prova efetuada (art. 596.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil).

Daqui resulta que – como afirma a autora nas alegações de recurso –, a pretensa relevância deste requerimento probatório indeferido pela decisão recorrida prende-se apenas com a possibilidade de inversão do ónus da prova relativamente à seguinte factualidade que lhe compete provar – mas que não se encontra incluída nos temas da prova: o réu não é filho biológico do perfilhante.

No âmbito do direito probatório material, sobre a inversão do ónus da prova dispõe o art. 344.º do Cód. Civil, nos seguintes termos (realce e sublinhado nossos):


Artigo 344.º

Inversão do ónus da prova


1. As regras dos artigos anteriores invertem-se, quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.

2. Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.

Deste n.º 2 do art. 344.º do Cód. Civil resulta que se dá a inversão do ónus da prova quando a parte contrária (à parte onerada com a prova de determinado facto) cause a impossibilidade de prova desse mesmo facto.

São, assim, pressupostos da aplicação do disposto no n.º 2 do art. 344.º do Cód. Civil a existência de uma conduta ilícita e culposa da parte contrária que dá causa à impossibilidade de prova de determinado facto pela parte sobre a qual recaía o ónus da prova desse facto.

Sobre o ónus da prova para aplicação do art. 344.º, n.º 2, Cód. Civil, refere Nuno A. Pires Salpico, no artigo A inversão do ónus da prova devido a impossibilidade de prova culposamente causada (art.344º/2 CC), Ius Dictum, n.º 1 (2020), pp. 45-75, que «[A]o onerado incumbe o ónus da prova da sua pretensão nos termos gerais (art.342º CC). Porém, verificando-se a impossibilidade de prova dessa pretensão, culposamente pela contraparte, incumbe ao inicialmente onerado o ónus de provar os factos constitutivos da inversão presente no artigo 344º/2 CC (art.342º/1 CC), enquanto posição jurídica ativa48 que lhe confere vantagens relacionadas com o menor esforço probatório e com a maior probabilidade de sucesso da sua pretensão.» – cfr. pág. 20 do artigo acessível em file:///C:/Users/MJ01943/Downloads/ssrn-4230806%20(1).pdf.

É igualmente à autora que incumbe o ónus de alegar os factos passíveis de serem constitutivos da pretendida inversão do ónus da prova.

Na petição inicial, quanto à cremação do corpo do perfilhante CC, alega a autora o seguinte (para fundamentar o pedido de produção antecipada de prova e não como fundamento da prática pelo autor de ato gerador de impossibilidade de produção de prova pericial por exames de ADN):

60.O CC era crente na Igreja Católica Apostólica Romana e o mesmo praticava a crença de que a Igreja era contrária à cremação do corpo após a morte

62.O CC nunca manifestou a vontade de ser cremado após o seu óbito.

63.Não obstante, após o seu óbito, o corpo do CC foi cremado.

64.O corpo do CC foi cremado por manifestação de vontade de pessoa alheia à Ré e à sua mãe FF, provavelmente por vontade do Réu, investindo-se na qualidade de filho perfilhado pelo falecido.

65. Dado que o CC era católito praticante e considerando ainda que o mesmo não manifestou a vontade deser cremado após a sua morte, o corpo do CC foi cremado com o único fito de eliminar definitiva e irreversivelmente quaisquer vestígios biológicos do seu corpo.

66.Não havendo, por esse motivo, um corpo que possa ser exumado e do qual se possa retirar material biológico do falecido CC.

Verificamos, pois, que o que foi alegado pela autora na petição inicial se restringe ao seguinte:

– O perfilhante era católico e seguia a crença da Igreja Católica que era contrária à cremação do corpo, e nunca manifestou a vontade de ser cremado após o seu óbito;

– O perfilhante, falecido em 30 de novembro de 2021, foi cremado “por manifestação de vontade de pessoa alheia à Ré e à sua mãe FF”;

Presume a autora que tal possa ter sido – ‘provavelmente’ – por vontade do réu com o único fito de eliminar definitiva e irreversivelmente quaisquer vestígios biológicos do seu corpo.

Nas alegações de recurso, refere a autora que «(…) podemos presumir que o Réu, como um adulto normal, sem quaisquer problemas cognitivos, tinha conhecimento, à data do óbito ocorrida, em 2021, de que o perfilhante poderia não ser o seu pai biológico e de que a aferição da verdade sobre a filiação genética entre o perfilhante e o perfilhado poderia ser apurada e determinada com base num teste de genética que procedesse à comparação do material biológico do perfilhante com o material biológico do perfilhado.

Mais sabendo que a destruição do material biológico do perfilhante que ocorre com a cremação do seu corpo tornaria impossível, ou mais difícil, averiguar a filiação biológico, pois, desparecendo o corpo, só resta uma hipótese muito reduzida de fazer tais testes de material biológico, se o mesmo tivesse sido recolhido em vida para efeito de avaliar a existência de problemas de saúde (carcinomas, etc.). (…) pelo que não é de todo exótico fazer a ponderação de que o Réu ordenou a cremação do corpo do perfilhante para tornar impossível de modo definitivo apurar se o mesmo é o seu pai biológico [pelo que] tem muito relevância para a boa decisão da causa apurar se foi o Réu quem ordenou a cremação do corpo do perfilhante. (…)».

Portanto, o que a autora factualmente alega é que desconhece quem determinou a cremação do corpo do perfilhante, e o que pretende através da diligência requerida é apurar quem foi que deu tal ordem – veja-se que o solicitado pela autora foi a notificação da referida FUNERÁRIA A..., LDA para comprovar documentalmente “quem determinou que o CC deveria ser cremado, ou deu a respetiva ordem/autorização.”.

Daqui resulta manifesto que o fito primeiro de tal requerimento probatório é o apuramento do facto essencial – não alegado, porque desconhecido da autora – referente à imputação ao réu da conduta destruidora da possibilidade de recolha de ADN do cadáver do perfilhante: ter sido o réu a determinar a cremação do corpo do perfilhante.

O que a autora pretende não é fazer prova de um facto previamente alegado, mas antes, no âmbito da ação em curso, efetuar diligências investigatórias para tentar obter informações passíveis de lhe permitirem vir a obter o eventual conhecimento do facto base concreto – que não foi alegado como tal na petição, porque a autora o desconhece – de que depende em absoluto qualquer possibilidade de eventual aplicação do regime da inversão do ónus da prova.

Ora, o regime previsto no art. 432.º do Cód. Proc. Civil não tem tal desiderato, nem a notificação aqui requerida pela autora tem cabimento no âmbito da referida diligência instrutória. A instrução do processo visa produzir prova de factos afirmados pela(s) parte(s) e negados por falsos pela parte contrária ou desconhecidos desta, sem obrigação de os conhecer. O processo civil declarativo não é um processo de inquérito, não se destinando à descoberta de factos hipotéticos desconhecidos pela parte (que é o que a autora pretende com o requerimento de notificação da Funerária A..., L.da.), mas sim à prova de factos (positivos ou negativos) por esta conhecidos, e pela mesma claramente afirmados (alegados) – desconhecidos, isso sim, pelo tribunal: daí a necessidade de produção de prova sobre tais factos.

Não sabendo a autora quem “determinou que o CC deveria ser cremado, ou deu a respetiva ordem/autorização” – como a mesma, quer na petição inicial em que formulou o requerimento, quer nas alegações de recurso apresentadas, afirma e reconhece que não sabe ­–, não existe factualidade alegada passível de convocar a aplicação do regime de inversão do ónus da prova.

A alegação de conjeturas para ulterior confirmação ou infirmação mediante atividade investigatória a desenvolver a coberto da fase de instrução de um processo em curso não equivale nem pode substituir a alegação de factos.

Ou bem que a autora tem conhecimento que o réu, entre 30-11-2011, data do óbito do perfilhante, e 02-12-2021 (data do assento de óbito do referido CC junto aos autos, do qual consta que o mesmo foi «Cremado: no cemitério de ..., concelho do Porto»), determinou a cremação do corpo do perfilhante, e pode afirmar tal facto, ou bem que não tem.

Se a autora não sabe se foi o réu que determinou/autorizo a cremação do perfilhante, é inócua e irrelevante tal alegação em moldes de presunção ou possibilidade. Às partes incumbe alegar factos, e não suspeitas não confirmadas.

Acresce ainda ser irrelevante a alegação de que “o corpo do CC foi cremado com o único fito de eliminar definitiva e irreversivelmente quaisquer vestígios biológicos do seu corpo” sem a concomitante alegação da factualidade de onde se pudesse concluir pela existência de um dever do aqui réu de conservar o material biológico do perfilhante, uma vez que se estaria aqui perante uma atuação prévia à existência de um dever emergente da relação jurídica processual que apenas surge com a propositura da ação (sobre o assunto, cfr. Nuno A. Pires Salpico, op. cit., ponto 4.1.2.).

Concluímos, deste modo, pela improcedência do recurso também quanto ao indeferimento do requerimento de notificação da FUNERÁRIA A..., LDA para comprovar “documentalmente quem determinou que o CC deveria ser cremado, ou deu a respetiva ordem/autorização.”

5. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Regulamento das Custas Processuais).

A responsabilidade pelas custas da apelação cabe à apelante, por ter ficado vencida (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IVDispositivo

Pelo exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em confirmar a decisão recorrida.

Custas da apelação a cargo da apelante (art. 527.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).


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Notifique.

***
Porto, 10/4/2025
(data constante da assinatura eletrónica)
Ana Luísa Loureiro
Isabel Peixoto Pereira
Paulo Dias da Silva
________________
[1] Sobre a admissibilidade da junção de documentos em poder da parte contrária ou de terceiros para contraprova de factos cujo ónus de prova recai sobre a parte contrária, ver Ac. TRE de 14 de julho de 2021, proc. 119262/16.9YIPRT-B.E1 e Ac. TRC de 21-04-2015, proc. n.º 124/14.1TBFND-A. C1