Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
652/23.3T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: EXERCÍCIO DO CONTRADITÓRIO
ÚLTIMO ARTICULADO ADMISSÍVEL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Nº do Documento: RP20250617652/23.3T8PVZ.P1
Data do Acordão: 06/17/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A peça processual por via da qual a parte exerce o contraditório quanto às excepções arguidas no último articulado admissível apenas tem os efeitos cominatórios previstos no artigo 572.º, al. c), do CPC, não lhe sendo aplicável o disposto no artigo 574.º do CPC.
II – Isto não obsta a que se considere válida e eficaz a confissão expressa e espontânea de factos que seja feita na referida peça processual, nos termos previstos no artigo 46.º do CPC. Mas, neste caso, já não estaremos perante os efeitos de uma falta de impugnação especificada de factos, mas sim perante os efeitos de uma confissão expressa de factos.
III – A acção de prestação de contas é o meio próprio para se apurarem e aprovarem as receitas obtidas e as despesas realizadas por quem administra bens alheios, bem como o respectivo saldo, e não para se aprovarem despesas a realizar. Não é, portanto, o meio adequado para se condenar o titular do património administrado a cumprir os contratos que celebrou (ou a restituir o que recebeu com fundamento na nulidade desses contratos ou no enriquecimento sem causa), ainda que a contraparte também fosse, na altura em que o contrato foi celebrado, o administrador do referido património.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 652/23.3T8PVZ.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA, com domicílio na ..., Rua ..., ..., ... Santo Tirso, intentou a presente acção declarativa comum contra A..., com sede na Rua ..., Apartado ..., ... Santo Tirso.
Alegou, em síntese, o seguinte: no período compreendido entre 01.01.2018 e 31.12.2020, quando exercia funções como presidente da direcção do réu, efectou vários empréstimos de dinheiro a este, a pedido do mesmo, no valor de total de 80.013,57 €, que o réu utilizou para pagar dívidas vencidas, provenientes de fornecimento de telecomunicações, energia elétrica, salários, despesas e comissões de jogadores e treinadores, conforme extracto de conta que junta como documento n.º 1; as quantias assim entregues ao réu e os pagamentos efetuados pelo autor, a pedido, no interesse e por conta do réu, constam do relatório e contas do ano de 2020, as quais foram aprovadas por unanimidade no dia 01.06.2021; aqueles empréstimos concretizaram-se com a entrega por parte do autor ao réu das quantias referidas no extrato de conta, que aqui se dá por reproduzido, através de sucessivos pagamentos de valores diferenciados; o réu obrigou-se a restituir as quantias mutuadas, pelo menos, até ao dia 31.12.2020, mas não o fez, apesar de ter sido por diversas vezes interpelado para o efeito.
Concluiu pedindo a condenação do réu a pagar ao autor – com fundamento nos contratos de mútuo, na sua nulidade ou no enriquecimento sem causa – a quantia de 80.013, 57 €, acrescida dos juros de mora, à taxa comercial em vigor em cada momento, vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento, contados a partir 31.12.2020, sendo que os vencidos importam já na quantia de 16.000 €.
O réu apresentou contestação, onde começa por alegar a manifesta improcedência do pedido face à causa de pedir alegada pelo autor, invocando o disposto nos artigo 576.º e 590.º do CPC, situação que qualifica como “excepção peremptória de ineptidão da petição inicial por inviabilidade”, com base na qual pugna pela sua absolvição do pedido, ou “ineptidão da petição inicial por manifesta ininteligibilidade do pedido”, excepção dilatória que dá lugar à absolvição da instância.
Alega, de seguida, a prescrição do direito do autor, negando que este tenha celebrado com o réu qualquer contrato de mútuo, negando igualmente que eventuais pagamentos que o autor possa ter feito ao réu ou por conta deste – que não aceita terem existido – tivessem por base qualquer acordo entre as partes, pelo que apenas se poderia equacionar um enriquecimento sem causa, acrescentando que, nos termos do artigo 482.º do CC, o direito à restituição por enriquecimento prescreve nos três anos a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável.
Por fim, o réu defende-se por impugnação (motivada), impugnando expressamente o vertido nos artigos 2.º a 49.º da petição inicial e alegando o seguinte: a autor, enquanto foi presidente da direcção do réu, não utilizava contas bancárias tituladas por este, sendo normal a utilização de pagamentos e recebimentos em numerário, bem como pagamentos e recebimentos de dinheiro do réu através de conta bancária do autor; foram feitos diversos levantamentos em numerário desta conta bancária, sem que se conheça o seu destino; o autor confundia, assim, as respectivas esferas patrimoniais, tornando impossível o controlo da origem e destino dos fundos próprios e dos fundos do réu; o extracto de conta junto como documento n.º 1 da petição inicial não merece qualquer credibilidade e foi elaborado pela contabilista do autor e de uma sociedade de que este era sócio; o mesmo sucede com o relatório de contas junto com a petição inicial, que foi elaborado pela mesma contabilista e que respeita ao período em que o autor era ainda o presidente da direcção do réu, apenas tendo sido assinado pela direcção seguinte porque o réu não tinha (nem tem) meios financeiros para ordenar a realização de uma auditoria financeira a tempo de apresentar as contas anuais ao Município ..., de modo a poder receber o respectivo subsídio, pelo que não configura a admissão da existência do crédito em litígio.
O autor veio responder às excepções alegadas na contestação, negando a manifesta improcedência/ineptição da petição inicial. Neste contexto, admitiu ter usado a sua conta bancária para receber quantias devidas ao réu e pagar dívidas deste, esclarecendo que não havia outra solução, atenta a penhora das contas bancária do réu e os inúmeros pedidos de declaração da insolvência do mesmo, e reiterou que estes recebimentos e pagamentos estão espelhados no extracto e no relatório de contas que juntou aos autos, acrescentando ainda que, embora já não seja presidente do réu desde 31.12.202o, este nunca pediu uma auditoria às contas nem instaurou qualquer acção contra o autor a pedir-lhe a prestação de contas da sua administração.
Pugnou igualmente pela improcedência da prescrição invocando, para além do mais, a suspensão do respectivo prazo, prevista na lei com fundamento na situação de pandemia de Covid-19, bem como a interrupção do mesmo prazo decorrente das interpelações escritas para pagamento. Também neste contexto reiterou a sua alegação inicial, designadamente que o réu se enriqueceu à sua custa, negando que tivesse confundido patrimónios. Mais declarou que impugna por falsidade toda a factualidade alegada na contestação que se encontre em contradição direta ou indireta com a factualidade alegada na petição e na resposta.
Foi designada data para tentativa de conciliação das partes, que não surtiu qualquer efeito.
O Tribunal a quo convidou o autor a aperfeiçoar a sua petição inicial, concretizando as datas em que foram acordados os «vários empréstimos ao Réu» e as quantias de cada um destes, cujo total perfaz 80.013,57 €, mais devendo o autor fazer menção a cada um dos documentos relativos a cada um desses vários empréstimos, por remissão para os documentos apresentados com a petição inicial.
O autor acedeu ao convite, apresentando nova petição inicial aperfeiçoada, onde discrimina as datas e os montantes mutuados e faz menção dos documentos relativos a cada uma das parcelas.
O réu exerceu o contraditório, apresentando nova contestação, tendo o autor apresentado nova resposta às excepções.
BB foi habilitado como cessionário do crédito do autor (cfr. apenso A), após o que foi designada data para audiência prévia, na qual o tribunal considerou possível apreciar o mérito da acção no despacho saneador, sem necessidade de produção de mais prova, e facultou às partes a possibilidade de se pronunciarem por escrito, concedendo-lhes 10 dias para esse efeito.
Apenas o autor se pronunciou, discordando da possibilidade de apreciar imediatamente o mérito da causa e preconizando o prosseguimento dos autos com a produção da prova requerida.
De seguida foi proferido saneador sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu o réu dos pedidos deduzidos.
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Inconformado, o autor apelou desta decisão, apresentando a respectiva alegação, que termina com as seguintes conclusões:
«A) A sentença recorrida é nula e de nenhum efeito, porque o Juiz a quo apreciou mal a questão que lhe foi colocada, errou claramente na apreciação quer dos factos quer na aplicação do direito, errou na apreciação dos documentos, errou claramente no objeto da causa e do litígio;
B) Foi instaurada uma ação declarativa de condenação sob a forma comum, na qual foram alegados empréstimos efetuados pelo Recorrente ao Recorrido, tendo sido pedida a restituição das quantias mutuadas, acrescidas de juros e a título subsidiário foi pedida a devolução das quantias mutuadas com base no enriquecimento sem causa, caso não se conseguisse fazer prova do primeiro pedido;
C) O Juiz a quo entendeu que a ação correta seria uma ação de prestação de contas, baseado no facto de o primitivo autor ter admitido que também recebeu dinheiros (na sua conta bancária) de terceiros para pagar dívidas do Recorrido;
D) É verdade que o Recorrido recebeu dinheiros de terceiros e que as destinou para pagamento de dividas do Recorrido, mas também é verdade que as quantias mutuadas ao Recorrido e exaustivamente identificadas nos autos não são essas quantias, são quantias provenientes de dinheiros do recorrente e da sociedade da qual o primitivo autor era sócio e gerente – B..., Lda, pelo que, o recorrente não pode prestar contas do dinheiro que era seu e só seu e que o emprestou ao Recorrido para pagar as dividas deste, com a obrigação de devolução;
E) Na contestação do Recorrido em momento este nega os referidos empréstimos, nem nega que os empréstimos e pagamentos elencados na p.i. tenham origem em dinheiros de terceiros, confessando que foi o primitivo autor que os emprestou e utilizou tais quantias para pagar dividas do Recorrido;
F) O Recorrido não coloca sequer a questão da prestação de contas do dinheiro emprestado pelo primitivo autor ao Recorrido, o que ele diz é que o primitivo Autor recebeu outras quantias além das que emprestou ao Recorrido, pelo que, há manifesto erro de apreciação dos factos e de decisão;
G) O Juiz a quo volta a errar porque, as contas de administração que o primitivo autor fez enquanto presidente do Recorrido, foram aprovadas por unanimidade no dia 21/06/2021 e foram certificadas pelo Revisor Oficial de Contas a 30/06/2021;
H) No doc. nº 52 junto à p.i., na rúbrica 8, sob a epígrafe “CUSTOS DE EMPRÉSTIMOS OBTIDOS”, resulta na descrição “Empréstimos do Presidente” o valor ascende a 80.013,57 €. Ora, tendo as contas da administração do primitivo autor, enquanto presidente do recorrido, sido apresentadas e aprovadas por unanimidade pelo R., inexistem quaisquer contas a prestar seja a quem for, nem o primitivo Autor tem de prestar contas do dinheiro próprio que emprestou ao Recorrido e que se encontram todas documentadas nos autos, inexistindo norma legal que o obrigue a parte a prestar contas do seu próprio dinheiro;
I) Os empréstimos do primitivo autor não eram novidade para o Recorrido, isto porque nos anos anteriores a 2020, os montantes emprestados atingiram os valores infra, sendo que, as contas da administração do primitivo autor sempre foram aprovadas por unanimidade pelo recorrido: 2016 – 40.000 €; 2017 – 74.290,34 €; 2018 – 78.840,48 € e 2019 – 93.923,48 €;
Quanto à suposta prestação de contas:
J) Dispõe o art.º 942, nº 3, do CPC, relativo ao processo especial de prestação de contas, que “Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos arts. 294º e 295º (…).”;
K) Nestes autos inexiste a obrigação de o primitivo Autor de prestar contas porque o dinheiro cuja restituição se requer, é dinheiro próprio e não de terceiros, não havendo norma legal que preveja a obrigatoriedade de ele prestar contas, pelo que, há manifesto erro de apreciação dos factos e erro decisório;
L) O recorrido não invocou existir erro na forma de processo nem invocou que o dinheiro com que se enriqueceu à custa do empobrecimento do primitivo autor - era proveniente de patrimónios de terceiros;
M) A convite efetuado pelo Tribunal a quo e por diferente julgador, o primitivo autor concretizou a factualidade alegada nos artigos 6º e 7º, o que fez nos artigos 8º a 10º da p.i. retificada e o Recorrido apresentou na sua contestação em momento algum impugnou direta ou indiretamente a factualidade alegada nos artigos 8º a 10º da p.i., nem impugnou os documentos que a sustentam, devendo a mesma ser dada como provada, com as legais consequências;
N) O recorrido não negou que as quantias identificadas nos artigos 6º a 10º da p.i., tivessem sido mutuadas pelo primitivo Autor ao Recorrido, nem negou ter recebido tais quantias, nem negou a utilização de tais quantias para pagamento de dívidas, encargos e despesas do recorrido, nem alegou que tais quantias eram suas e que o primitivo Autor apenas as administrou; nem alegou que as quantias ali referidas tivessem sido pagas com dinheiro de terceiros ou com dinheiros do Recorrido;
O) O recorrido não alegou não ter existido transferência de património/dinheiro da esfera do primitivo Autor para a esfera do Recorrido e ao não ter impugnado expressa ou tacitamente a factualidade alegada nos artigos 6º a 10º da p.i. aperfeiçoada, confessou tal factualidade, pelo que, a presente ação tinha de ser julgada totalmente procedente por provada;
P) O Recorrido ao não ter alegado que alguma das quantias monetárias referidas no artigo 8º da p.i. aperfeiçoada eram pertença daquele, não pode ser exigido ao Recorrente que prove em ação especial de prestação de contas qual o destino que deu ao seu próprio dinheiro, é que não se está a falar do dinheiro do recorrido, mas de dinheiro pertença do primitivo Autor;
Q) A sentença recorrida vai ao ponto de afirmar que não se provará que as quantias identificadas foram resultantes de contratos de mútuo, na medida em que o primitivo autor não procedeu à entrega de quaisquer montantes ao Réu e que se tivesse transferido para a esfera patrimonial deste último. Nada mais errado;
R) Nas datas referidas no artigo 8, o primitivo Autor, enquanto dono do dinheiro, pegou nas quantias ali referidas e na qualidade de presidente do Recorrido utilizou tais quantias para pagar as dívidas do Recorrido e que ali se encontram concretamente descriminadas. O primitivo autor, por sua mão, emprestou as aludidas quantias para liquidar responsabilidades do recorrido, com a obrigação destes as restituir. Se não são empréstimos, feitos no interesse e por conta do Réu, são o que?
S) Está assente, porque não foi contestado, que o primitivo autor, na qualidade de presidente do recorrido e na posse das quantias que lhe pertenciam as utilizou para pagar dívidas do réu, com a obrigação deste as restituir. Pelo que, é inequívoco que ocorreu a transferência patrimonial da esfera pessoal do primitivo Autor para a esfera patrimonial do recorrido e da esfera patrimonial deste para a esfera patrimonial dos credores deste;
T) O primitivo autor era simultaneamente, presidente do recorrido e a pessoa que supria as necessidades financeiras do recorrido, emprestando-lhe dinheiro, sendo desnecessário a celebração formal de contratos de empréstimo, atenta dupla qualidade de presidente do primitivo autor e o valor dos montantes em causa que se mostram todos eles sustentados por documentos bancários e outros;
U) Estão juntos aos autos extratos de conta corrente que atestam as transferências de património da esfera pessoal do primitivo Autor para a esfera patrimonial do recorrido e deste para a esfera patrimonial dos seus credores e cada transferência consubstancia um empréstimo, com obrigação de restituição no exato valor mutuado e transferido. Crédito este que se encontra reconhecido por relatório de contas aprovado por unanimidade e nunca questionado por qualquer sócio ou da administração do recorrido;
V) Encontra-se alegado e demonstrado que existiu um encontro de vontades entre o então presidente do Recorrido e o primitivo autor, no sentido de este efetuar empréstimos ao Recorrido, para que este suprisse as dificuldades de tesouraria e o se absoluto desequilíbrio financeiro, com a obrigação de restituição de tais quantias e o primitivo autor nessa dupla qualidade, acordou na feitura dos referidos empréstimos, não tendo havido necessidade de elaborar qualquer documento que os titulasse;
W) As quantias mutuada não tinham necessariamente que ingressar nas contas do recorrido, até porque tal seria um ato suicida pois seriam logo penhoradas, mas pelas mãos do seu presidente foram destinadas ao pagamento de dívidas de credores do recorrido e contabilizadas na sua contabilidade organizada, pelo que, em qualquer dos casos integraram a sua esfera patrimonial, porque devido a estas ações as suas dividas foram diminuindo;
X) Mesmo que não fosse feita prova dos mútuos, sempre teria de ser apreciado o pedido formulado a título de enriquecimento sem causa e não tendo o julgador apreciado esta questão, verifica-se nulidade da sentença por omisso de pronúncia, porque o julgador demitiu-se de administrar e aplicar de forma correta e adequada a lei, até porque, o recorrido ao ver as sua dividas pagas com dinheiros do primitivo autor, enriqueceu-se à custa do correlativo empobrecimento deste;
Y) A origem e o destino de cada um dos mútuos elencados no artigo 8º da p.i. aperfeiçoada estão sustentados por documentos, cuja autenticidade não foi abalada, porque não foi impugnada e ou posta em causa em qualquer momento (vide declaração de titularidade da conta, junta com o requerimento de 21/10/2023 e respetivo lançamento no extrato de conta do primitivo autor junto aos autos em 20/10/2023 – fls. 10 e lançamento no extrato da conta do Recorrido – doc. nº 1, fls. 4);
Z) A decisão recorrida é nula e de nenhum efeito, porque o Juiz a quo apreciou mal a questão que lhe foi colocada, errou claramente na apreciação quer dos factos quer na aplicação do direito, errou na apreciação dos documentos, errou claramente no objeto da causa e do litígio, pelo que, a mesma terá de ser revogada e substituída por acórdão que julgue totalmente procedente por provada a presente ação com as legais consequências.
AA) A sentença recorrida padece de nulidade, erro na apreciação da prova (erro na análise da documentação): art.º 607º nº 4, nº 5, 608º, 674 nº 3, todos do CPC; art.º 389º, 39º1 e 396º CC; erro de julgamento quanto à forma da ação; erro na interpretação dos factos e do direito: 615 nº 1 b), c), d), e e); 609 nº 1 in fine do CPC, bem assim como erro na apreciação da confissão do Recorrido, cfr. art.s 465º, 674 nº 3 e 604 nº 4 do CPC.
Termos em que,
Requer que o presente recurso seja julgado totalmente procedente por provado, revogando-se a sentença recorrida e em consequência, requer que seja proferido acórdão que julgue procedente por provada a presente ação, com as legais consequências».
Não foi apresentada resposta à alegação do recorrente.
O Sr. Juiz a quo apreciou a nulidade da decisão alegada pelo recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 617.º, n.º 1, do CPC, concluindo pela sua improcedência.
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II. Fundamentação
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, importa decidir se a decisão recorrida padece de alguma das nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c), d) e e), do CPC, se errou ao julgar totalmente improcedente a acção e se esta deve ser julgada desde já totalmente procedente.
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No que concerne à nulidade da decisão invocada pelo recorrente, importa começar por recordar que a jurisprudência e a doutrina nacionais vêm alertando, de modo uniforme e insistente, para a necessidade de distinguir entre as nulidades da decisão, previstas e reguladas no artigo 615.º do CPC, e o erro de julgamento. A este respeito, afirma-se o seguinte no acórdão do STJ de 03.03.2021 (proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da origem): «Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual – nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma – ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma».
No caso concreto, o recorrente afirma que a decisão é nula «porque o Juiz a quo apreciou mal a questão que lhe foi colocada, errou claramente na apreciação quer dos factos quer na aplicação do direito, errou na apreciação dos documentos, errou claramente no objeto da causa e do litígio» (cfr. conclusão A), e invoca de forma genérica o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c), d) e e) (cfr. conclusão AA).
O que decorre daquela alegação do recorrente é, com toda a clareza, a afirmação de erros de julgamento, tanto no que concerne aos factos como ao direito, não se descrevendo ali qualquer vício formal relativo à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão.
O recorrente afirma também que, «[m]esmo que não fosse feita prova dos mútuos, sempre teria de ser apreciado o pedido formulado a título de enriquecimento sem causa e não tendo o julgador apreciado esta questão, verifica-se nulidade da sentença por omisso de pronúncia, porque o julgador demitiu-se de administrar e aplicar de forma correta e adequada a lei».
Mas na verdade, como assinala o Sr. Juiz a quo no despacho que proferiu em cumprimento do artigo 617.º, n.º 1, do CPC, a decisão recorrida não deixou de apreciar a questão do enriquecimento sem causa, que julgou improcedente com fundamento na sua natureza subsidiária e na possibilidade de apuramento do crédito do autor através da acção de prestação de contas. Infere-se da alegação que o recorrente considera errada esta decisão, só assim se podendo compreender a afirmação de que o tribunal a quo não apreciou a questão do enriquecimento sem causa. Mas, repetimos, o eventual erro da decisão não se pode confundir com um vício formal gerador da sua nulidade.
De resto, ainda que se verificasse a omissão de pronúncia sobre alguma questão que o Tribunal devesse apreciar (artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC) ou a ausência de fundamentos de facto ou de direito justificadores da decisão recorrida (al. b) da mesma disposição legal), as nulidades daí decorrentes não teriam qualquer relevância prática, na medida em que este Tribunal sempre estaria obrigado a substituir-se ao tribunal recorrido, suprindo as nulidades que eventualmente se verificassem, por força da regra consagrada no artigo 665.º do CPC, visto não haver necessidade de recolher elementos não disponíveis nos autos que impusesse a remessa dos autos à 1.ª instância.
Quanto às nulidades previstas nas alíneas c) (a oposição entre os fundamentos e a decisão ou a ocorrência de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível) e e) (condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido), do mesmo artigo 615.º, n.º 1, nem sequer se vislumbra em que razões se baseou o recorrente, afigurando-se impertinente a sua invocação.
Pelo exposto, sem necessidade de outros desenvolvimentos ou explicitações, julga-se improcedente a alegada nulidade da sentença.
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A respeito da segunda questão a decidir, o recorrente afirma que os empréstimos por si alegados para fundamentar o pedido que deduziu, descritos nos artigos 6.º e 7.º da petição inicial originária e nos artigos 8.º a 10.º da petição inicial aperfeiçoada, não foram impugnados pelo réu, pelo que deve julgar-se provada essa factualidade e, com base na mesma, totalmente procedente a acção.
Não tem qualquer razão o recorrente, baseando-se as suas conclusões numa premissa errada.
Como se escreve no relatório deste aresto, na contestação que apresentou, ao defender-se por excepção, o réu negou ter celebrado com o autor qualquer contrato de mútuo, negando igualmente que eventuais pagamentos que o autor possa ter feito ao réu ou por conta deste tivessem por base qualquer acordo entre as partes (cfr. artigo 26.º). De seguida, ao defender-se por impugnação motivada, o réu impugnou expressamente a matéria alegada nos artigos 2.º a 49.º da petição inicial (cfr. artigo 32.º).
O mesmo sucedeu relativamente à descrição aperfeiçoada da factualidade relativa às datas em que foram acordados os empréstimos e às respectivas quantias, constante dos artigos 8.º a 10.º da petição inicial aperfeiçoada, descrição que foi expressamente impugnada na nova contestação apresentada pelo réu: para além de continuar a negar que celebrou com o autor algum contrato de mútuo e que eventuais pagamentos que o autor possa ter feito a si ou por sua conta tivessem por base qualquer acordo entre ambos (cfr. artigo 23.º), o réu impugnou expressamente a matéria vertida nos artigos 2.º a 52.º da petição inicial aperfeiçoada (cfr. artigo 29.º).
Deste modo, os factos que integram a causa de pedir invocada pelo autor permanecem controvertidos, pelo que não podia o Tribunal a quo, como não pode este Tribunal ad quem, considerá-los admitidos por acordo, ao abrigo do disposto no artigo 574.º, n.º 2, do CPC, ou julgá-los provados por confissão, ao abrigo do disposto nos artigos 46.º do CPC e 356.º, n.º 1, do CC.
Por conseguinte, não podia o Tribunal a quo, como não pode este Tribunal ad quem, proferir qualquer decisão de mérito baseada na veracidade desses factos, sem que a mesma seja previamente apreciada com base na prova que vier a ser admitida.
No que dissemos está já implícito que caberá à primeira instância pronunciar-se sobre a admissibilidade e sobre a relevância probatória dos documentos juntos pelo recorrente com o requerimento que apresentou em 12.06.2025, a não ser que a acção deva findar antes por outras razões, designadamente as esgrimidas na decisão recorrida, assunto de que nos ocuparemos de seguida.
Pelas razões expostas, cuja clareza dispensa maiores desenvolvimentos, improcede a pretensão da recorrente no sentido de a acção ser julgada procedente sem necessidade de produção de prova.
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Resta saber se foi acertada a decisão de julgar totalmente improcedente a acção em sede de despacho saneador, ao abrigo do disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, por se entender que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação total do pedido.
Desde já se adianta que a resposta é, a nosso ver, negativa.
A decisão recorrida baseia a improcedência da acção em dois argumentos principais, ambos assentes na confissão de factos pelo autor, da qual decorreria, por um lado, a impossibilidade de se provarem os empréstimos de dinheiro em que o autor fundamenta o seu pedido e, por outro lado, a demonstração de que a quantia peticionada pelo autor traduz o saldo que este entende corresponder à diferença entre o que pagou por conta do réu e o que recebeu a título de rendimento deste, no exercício do cargo de presidente da direcção do mesmo, cujo apuramento estará dependente de uma prestação de contas, através do processo especial previsto nos artigos 941.º e 946.º do CPC.
Não podemos sufragar esta argumentação.
Na decisão recorrida afirma-se reiteradamente que, no articulado em que respondeu às excepções invocadas na contestação, o autor confessou que usava as suas contas bancárias para receber dinheiros que eram destinados ao réu e para pagar dívidas deste.
Afirma-se também naquela decisão que, no mesmo articulado, o autor manteve a alegação de que emprestou dinheiro próprio ao réu para pagar dívidas deste.
Conclui-se na mesma decisão que, «atendendo ao alegado e confessado, não se provará que as quantias identificadas foram resultantes de contratos de mútuo, na medida em que o autor nunca procedeu directamente à entrega de quaisquer montantes ao réu, que se tivessem transferido para a esfera patrimonial deste último. E nem se provará que os alegados pagamentos foram feitos pelo autor, em representação do réu, através de quantias que havia previamente transferido para a esfera patrimonial deste último e não directamente aos credores do réu através das suas próprias contas bancárias».
Esta conclusão revela-se precipitada, pois não encontra sustentação nos factos que é possível considerar provados e não provados nesta fase processual.
A este respeito importa ter presente que o articulado onde o autor respondeu às excepções alegadas na contestação teve como finalidade exercer o contraditório relativamente àquelas excepções, só assim se justificando a sua apresentação. Em bom rigor, sendo a contestação o último articulado processualmente admissível nesta acção, esse contraditório deveria ter sido exercido nos moldes previstos no artigo 3.º, n.º 4, do CPC (na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final). Mas nada obstava a que o tribunal convidasse o autor a fazê-lo por escrito, ainda na fase dos articulados, como vem sendo prática habitual. Por igualdade de razão, também nada obstava a que o tribunal atendesse ao articulado onde a parte, por sua própria iniciativa, se apresenta a exercer o contraditório, como sucedeu neste caso, desse modo ratificando uma prática que, embora igualmente usual, não tem sustentação legal.
Em qualquer dos casos, a peça processual por via da qual a parte exerce o contraditório quanto às excepções arguidas no último articulado admissível apenas tem os efeitos cominatórios previstos no artigo 572.º, al. c), do CPC, não lhe sendo aplicável o disposto no artigo 574.º do CPC. Dito de outro modo, a falta de impugnação, naquela peça processual, dos factos alegados no último articulado admissível apenas importa a admissão por acordo dos factos essenciais em que se baseiem as excepções que tenham sido especificadas separadamente. Quanto aos demais factos, não opera o mesmo ónus de impugnação, pelo que os mesmos se devem considerar controvertidos.
O que ficou dito não obsta a que se considere válida e eficaz a confissão expressa e espontânea de factos que seja feita na referida peça processual, nos termos previstos no artigo 46.º do CPC. Mas, neste caso, já não estaremos perante os efeitos de uma falta de impugnação especificada de factos, mas sim perante os efeitos de uma confissão expressa de factos.
Posto isto, voltando ao caso concreto, verifica-se que o autor, no articulado em que respondeu às excepções alegadas na contestação, afirmou de forma expressa que utilizava as suas próprias contas bancárias para receber dinheiro que se destinava ao réu, inclusivamente o dinheiro que lhe emprestou, e para fazer pagamentos das dívidas deste, mais esclarecendo as razões deste procedimento.
Mas não afirmou que nunca procedeu directamente à entrega de quaisquer montantes ao réu ou que tais montantes não tivessem sido transferidos para a esfera patrimonial deste. Pelo contrário, o autor manteve a sua alegação inicial (impugnando toda a factualidade alegada na contestação que se encontre em contradição direta ou indireta com a factualidade alegada na petição e na resposta), designadamente que efectuou vários empréstimos de dinheiro ao réu, a pedido deste, no valor de total de 80.013,57 €, os quais se concretizaram com a entrega por parte do autor ao réu das referidas quantias, e que este se obrigou a restituir as quantias mutuadas pelo menos até ao dia 31.12.2020.
Ainda que o tribunal a quo considere inverosímil esta alegação factual, em virtude de o autor ser então o presidente da direcção do réu e de usar as suas próprias contas bancárias para receber o dinheiro destinado ao réu e para pagar as despesas deste, a mesma não se revela impossível do ponto de vista lógico, ontológico ou, mesmo, jurídico, tanto mais que a própria lei admite e regula a celebração de negócios consigo mesmo (cfr. artigo 261.º do CC) e o autor negou expressamente ter havido qualquer confusão de patrimónios (o seu e o do réu), não obstante a utilização da mesma ou das mesmas contas bancárias.
Por conseguinte, não podia o tribunal a quo ter proferido uma decisão de mérito baseada na falta de prova dos factos constitutivos do direito do autor – o que, de resto, não chegou a fazer, pois não discriminou os factos que considera provados e/ou não provados, nem apresentou a respectiva motivação – ou, muito mesmo, numa suposta impossibilidade dessa prova. Só depois de produzida e apreciada a prova apresentada pelas partes estará o tribunal habilitado e pronunciar-se sobre os factos alegados, designadamente sobre as alegadas transferências de dinheiro da esfera patrimonial do primitivo autor (ou da sociedade de que este era sócio) para a esfera patrimonial do réu e sobre as circunstâncias em que tais transferências terão ocorrido, e a proceder ao enquadramento jurídico da factualidade que julgar demonstrada.
A par da impossibilidade de prova dos factos que sustentam o pedido do autor, a decisão recorrida fundamenta a improcedência deste pedido numa espécie de impossibilidade de acção, afirmando que, de acordo com o que foi alegado e confessado pelo próprio autor, a quantia peticionada por este traduz o saldo que o mesmo entende corresponder à diferença entre aquilo que pagou por conta do réu e aquilo que recebeu a título de rendimento deste, no exercício do cargo de presidente da direcção do mesmo, cujo apuramento estará sempre dependente de uma prestação de contas, através do processo especial previsto nos artigos 941.º e 946.º do CPC.
Já decorre do exposto que a incerteza que subsiste quanto aos factos alegados pelas partes impede esta conclusão.
De todo o modo, ainda que os valores alegadamente mutuados pelo autor possam configurar receitas obtidas no âmbito da administração que este fez do património do réu, a restituição desses valores apenas poderia configurar uma despesa realizada pelo autor no âmbito da mesma administração se já tivesse sido feita. Ora, a acção de prestação de contas é o meio próprio para se apurarem e aprovarem as receitas obtidas e as despesas realizadas por quem administra bens alheios, bem como o respectivo saldo, e não para se “aprovarem” despesas a realizar. Não é, portanto, o meio adequado para se condenar o titular do património administrado a cumprir os contratos que celebrou (ou a restituir o que recebeu com fundamento na nulidade desses contratos ou no enriquecimento sem causa), ainda que a contraparte também fosse, na altura em que o contrato foi celebrado, o administrador do referido património.
Assim, mesmo que o primitivo autor esteja obrigado a prestar contas da administração que fez do património do réu – o que, naturalmente, não pode ser aqui apreciado e, em todo o caso, apenas poderá ocorrer se o primitivo autor as prestar espontaneamente ou se o réu exigir a sua prestação (cfr. artigo 941.º do CPC) –, tal obrigação não prejudica nem se confunde com o direito de exigir a devolução das quantias alegadamente mutuadas e/ou aplicadas no pagamento de dívidas do réu, com fundamento nas obrigações decorrentes dos acordos celebrados entre as partes (ou melhor, pelo primitivo autor, na dupla posição de mutuante e de legal representante do mutuário), nas regras da nulidade desses acordos ou nas regras do enriquecimento sem causa.
Flui do exposto que o estado do processo não permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação do pedido, pelo que se impõe revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos, nos termos previstos nos artigos 596.º e seguintes do CPC.
Na procedência parcial da apelação, as respectivas custas são suportadas por ambas as partes, em igual proporção, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, os juízes do Tribunal da Relação do Porto revogam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos, nos termos previstos nos artigos 596.º e seguintes do CPC.
Custas por recorrente e recorrido, em igual proporção.
Registe e notifique.
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Porto, 17 de Junho de 2025
Artur Dionísio Oliveira
Raquel Correia de Lima
Anabela Miranda