Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4204/18.1T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUELA MACHADO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
IMPULSO PROCESSUAL
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RP202507104204/18.1T8VFR.P1
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A habilitação de herdeiros é um incidente processual que visa a regularização da instância, pelo que deve acontecer no processo respetivo, no qual a instância deve ser regularizada para poder prosseguir, seja requerendo a habilitação ou juntando habilitação de herdeiros notarial.
II - O juiz não é obrigado a conhecer oficiosamente de que foi requerida a habilitação noutro processo, a menos que tal lhe seja comunicado no processo suspenso para o efeito.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 4204/18.1T8VFR.P1






Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:





I – RELATÓRIO


AA instaurou ação especial de prestação de contas contra BB e CC, peticionando a citação dos Réus para, querendo, apresentarem contestação ou as contas.
Foi ainda deduzido incidente de intervenção principal provocada.
Através de requerimento de 05-07-2023, foi dado conhecimento nos autos do falecimento da interveniente DD (em ../../2019).
Nessa sequência foi, em 28-09-2023, proferido despacho com o seguinte teor:
“Vimos o teor do requerimento e do ofício que antecedem.
Do primeiro, além do mais ali expendido (sobre o qual, ulteriormente, se tomará posição), extrai-se que uma das intervenientes destes autos – DD – faleceu em ../../2019.
Atento tal evento, declara-se a suspensão da presente instância – art.º 269.º, n.º 1, alínea a) e 270.º, ambos do CPC.
Notifique.”.

Tal despacho foi notificado às partes, em 02-10-2023.
Nada tendo sido requerido, foi proferido despacho em 21-11-2024, dizendo o seguinte:
“Compulsados os autos, constata-se que por despacho de 28.09.2023 foi determinada a suspensão da instância por falecimento da Interveniente Principal DD, nos termos do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, alínea a) e 270.º, ambos do CPC.
Assim, considerado o disposto no n.º 1 do artigo 281.º do CPC e o lapso temporal entretanto decorrido, notifique as partes para, querendo, requererem o que tiverem por conveniente.”.

Notificado tal despacho em 22-11-2024, nada foi dito ou requerido, pelo que em 08-01-2025, foi proferida a seguinte decisão:
“Com relevo para a apreciação da questão decidenda, importa atentar no seguinte:
1. AA instaurou a presente ação especial de prestação de contas contra BB e CC, peticionando a citação dos Réus para, querendo, apresentarem contestação ou as contas;
2. Foi ainda deduzido incidente de intervenção principal provocada;
3. Por despacho de 28.09.2023 foi determinado o seguinte: “Vimos o teor do requerimento e do ofício que antecedem. Do primeiro, além do mais ali expendido (sobre o qual, ulteriormente, se tomará posição), extrai-se que uma das intervenientes destes autos – DD – faleceu em ../../2019. Atento tal evento, declara-se a suspensão da presente instância – art. º269.º, n.º 1, alínea a) e 270.º, ambos do CPC. Notifique”;
4. O despacho referido em 3. foi notificado a todos os intervenientes processuais a 2.10.2023.
5. A 21.11.2024 foi, ainda, proferido despacho com o seguinte teor: “Compulsados os autos, constata-se que por despacho de 28.09.2023 foi determinada a suspensão da instância por falecimento da Interveniente Principal DD, nos termos do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, alínea a) e 270.º, ambos do CPC. Assim, considerado o disposto no n.º 1 do artigo 281.º do CPC e o lapso temporal entretanto decorrido, notifique as partes para, querendo, requererem o que tiverem por conveniente.”
6. As partes não tomaram posição no processo.
Cumpre apreciar e decidir.
Preceitua o n.º 1 do art.º 281.º do CPC que “sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”
Resulta, assim, de forma clara do supracitado preceito legal que a deserção da (instância) opera ope legis desde que se verifiquem os seguintes requisitos: decurso de um prazo de seis meses sem impulso processual da parte sobre a qual impende o respetivo ónus; que a falta desse impulso seja imputável a negligência ativa ou omissiva da parte assim onerada, em termos de poder concluir-se que a falta de tramitação processual seja imputável a um comportamento da parte dependente da sua vontade.
In casu, desde a data aludida em 3., nada mais foi requerido por nenhuma das partes. Note-se que o falecimento da Interveniente Principal DD, determinava a necessidade de habilitação do(s) seu(s) sucessor(es) para pôr fim à suspensão da instância (art.º 276 n.º 1 alínea a)).
A Autora não fez chegar aos autos qualquer decisão que habilitasse os sucessíveis da Interveniente, permitindo, dessa forma, que o decurso do tempo determinasse o desfecho deste processo. Por que assim é, e em face da negligência da Autora, impõe-se declarar deserta a instância, o que ora se faz, mais se determinado a extinção da mesma nos termos da alínea c) do artigo 277.º do mesmo diploma legal.
Uma parte da jurisprudência entende que “a negligência das partes segundo a citada previsão legal, pressupõe, quanto a nós, uma efetiva omissão da diligência normal em face das circunstâncias do caso concreto, não podendo, assim, vingar uma qualquer responsabilidade automática/objetiva suscetível de abranger a mera paralisação. (…) O tribunal, antes de exarar o despacho a julgar extinta a instância por deserção, deverá, num juízo prudencial, ouvir as partes de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas, ou de ambas.” – Ac. TRC de 06.03.2018, relatado por António Domingues Pires Robalo (disponível em www.dgsi.pt).
Seguindo de perto esta corrente jurisprudencial e para possibilitar às partes uma derradeira possibilidade do exercício do contraditório, foi proferido o despacho de 21.11.2024, sendo que, as partes não se pronunciaram.
Assim sendo e considerando o lapso temporal decorrido, julga-se, ao abrigo do disposto no artigo 281.º do CPC, deserta a presente instância.
Custas pela Autora
Registe e notifique.
Valor da ação: € 1.078.000,00 (um milhão e setenta e oito mil euros).
Dê baixa estatística.”.
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Não se conformando com o assim decidido, veio a autora AA interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Formulou a recorrente as seguintes conclusões das suas alegações:
“A – Por douto despacho de 28/09/2023, referido em 3., da sentença recorrida, foi declarada suspensa a instância, nos presentes autos, nos termos dos Art.ºs 269º, n.º 1, al. a) e 270º, ambos do C.P.C..
B) O incidente de habilitação de herdeiros, foi instaurado no processo de inventário, que corre no mesmo Juízo de Competência Genérica de Espinho e no mesmo Juiz 2.
C) Como deve ser do conhecimento oficioso e funcional do Juízo, em tal incidente, não há decisão. Porém, foram citados os possíveis sucessores da interveniente principal falecida, e juntaram procuração.
D) Assim, estando suspensa a instância, nos termos do Art.º 275º, do C.P.C., só podem praticar-se os atos urgentes destinados a evitar dano irreparável e os prazos judiciais não correm enquanto durar a suspensão, no caso da al. a) e b), do n.º 1, do Art.º 269º do C.P.C., que é o caso da morte e sucessão (habilitação de herdeiros), de parte nos autos, sendo o caso dos presentes autos.
E) A suspensão da instância, neste caso, cessa quando for notificada a decisão que considere habilitados os sucessores da pessoa falecida.
F) Ora, como deveria ser do conhecimento do Juiz que proferiu a sentença recorrida, tal decisão não foi notificada, muito menos proferida no respetivo incidente.
G) A sentença recorrida baseia-se no instituto da extinção da instância, pela deserção prevista no Art.º 281º, do C.P.C., por falta de impulso processual.
H – Ora, de acordo com o sobredito, estamos na fase da suspensão da instância, não tendo tal suspensão cessado.
I – Daí, não se poder aplicar a extinção da instância, por deserção, pois perante a suspensão da mesma, nos termos sobreditos, e, a mesma, não tendo cessado, não poderão as partes, de qualquer modo, dar impulso à instância, requerendo o que quer que seja.
J – Daí não ter decorrido qualquer prazo de deserção, para ser proferida a sentença recorrida.
K – O tribunal recorrido, ao proferir a sentença recorrida, conheceu de questões que não podia tomar conhecimento, ou seja, da deserção e, consequentemente, proferir a extinção da instância, atenta a suspensão da instância decretada, não ter cessado, como supra se refere.
L – Assim, estamos perante a causa de nulidade da sentença, prevista no Art.º 615º, n.º 1, al. d), do C.P.C..
M – A sentença recorrida, além de outros, infringiu as disposições legais dos Art.ºs 275º, 276º e 615º, do C.P.C..
Pelo exposto,
Deve ser dado provimento ao recurso de apelação interposto, devendo conhecer-se da nulidade da sentença recorrida, substituindo-a por outra,
Fazendo-se, assim, JUSTIÇA.”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

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Após os vistos legais, cumpre decidir.

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II - DO MÉRITO DO RECURSO

1. Objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, as questões a apreciar são apenas de direito e prendem-se com decidir se, estando suspensa a instância e não tendo cessado a suspensão, podia a instância ser declarada deserta, e se a decisão de tal questão torna a decisão recorrida nula por violação do disposto no art. 615.º, nº 1, al. d) do CPC.

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2. Matéria de facto com relevância para a decisão:
A factualidade com relevância para a decisão é a que consta do relatório.

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3. Decidindo de direito:

A deserção constitui uma forma de extinção da instância (art. 277.º do Código de Processo Civil).
E no âmbito das ações declarativas, a instância considera-se deserta “(…) quando por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses” (cfr. art. 281.º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A deserção da instância depende, deste modo, da verificação de dois pressupostos cumulativos, o primeiro, de cariz objetivo (falta de impulso processual para o prosseguimento da lide); o segundo, de natureza subjetiva, consubstanciado na verificação de uma situação de inércia imputável a negligência das partes.
Admite-se que sendo o processo cada vez mais marcado pelo impulso oficioso do juiz (art. 6.º, n.º 1 do CPC), será cada vez mais rara a ocorrência da deserção da instância, por serem também mais raros os atos que só a parte pode ou deve praticar e que, por isso, importam a paragem do processo.
No entanto, a promoção da habilitação de herdeiros, após o óbito de uma das partes, é uma das situações em que o impulso processual cabe precisamente às partes.
Por outro lado, como se decidiu no Ac. STJ, de 20-06-2023, Processo 19176/16.9T8LSB.L3.S1 (disponível em dgsi.pt): I - A deserção da instância não é automática, pressupondo antes um despacho do juiz que tem de apreciar se a ausência de impulso processual se deve à negligência das partes. II - Tendo sido decretada a suspensão da instância por morte de uma das rés, nos termos dos arts. 269.º, n.º 1, al. a), e 270.º, n.º 1, resulta do art. 276.º, n.º 1, al. a), do CPC, que a suspensão em causa cessa com a notificação da decisão que considere habilitado o sucessor da parte entretanto falecida. III - Por isso, se a autora não deduziu o incidente de habilitação dos sucessores daquela ré, enquanto parte interessada na cessação da suspensão da instância e no correspondente prosseguimento dos termos ulteriores da ação por si proposta, verifica-se o requisito objetivo (a conduta omissiva da autora durante o prazo de seis meses) da deserção da instância - art. 281.º, n.º 1, do CPC. IV - No que respeita à questão do preenchimento do pressuposto subjetivo (a negligência da autora nessa conduta omissiva), importa levar em devida linha de conta que a conduta negligente conducente à deserção da instância consubstancia-se numa situação de inércia imputável à parte, ou seja, em que esteja em causa um acto ou actividade unicamente dependente da sua iniciativa, sendo o caso mais flagrante o da suspensão da instância por óbito de alguma das partes, a aguardar a habilitação dos sucessores. V - Assim, a verificação da negligência da autora dispensa qualquer audição prévia da mesma quanto às eventuais motivações para a falta de impulso processual. VI - A decisão judicial que declarou a deserção da instância não configura uma decisão surpresa, porquanto desde o momento em que teve conhecimento do despacho que determinou a suspensão da instância, a autora sabia - e não podia deixar de saber - que a verificação da sua inércia durante o período de seis meses conduziria à extinção da instância por deserção.”.
No mesmo sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04-04-2024, Processo 3705/19.9T8FNC.L1-2, onde se diz: “I - A deserção da instância decorre, nos termos do art.º 281.º, n.º 1, do CPC, da falta de impulso processual, por negligência das partes, decorridos mais de 6 meses, tratando-se de uma causa de extinção da instância [cf. art.º 277.º, al. c), do CPC] cuja razão de ser se prende com os princípios do dispositivo, da celeridade processual e da autorresponsabilidade das partes.
II - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, tal como previsto no art.º 3.º, n.º 3, do CPC. Mas quando da tramitação do processo já resultar objetivamente evidenciado que os autos ficaram a aguardar que a parte viesse praticar um ato de que dependia o normal andamento do processo, não há que notificá-las, de novo, para se pronunciarem especificamente a respeito de uma questão cujo conhecimento já estava, por assim dizer, “na calha”.
III - É o que sucede no caso dos autos, tendo sido proferido e notificado aos mandatários das partes o despacho que determinou a suspensão da instância em virtude do óbito do Autor [cf. artigos 269.º, n.º 1, al. a), e 276.º, n.º 1, al. a), do CPC]. (…) IV - Como decorridos mais de seis meses após aquela notificação, nenhum dos ora identificados herdeiros do falecido Autor veio deduzir o referido incidente, em ordem a que fossem habilitados para, na posição deste último, prosseguir o processo, ou requerer fosse o que fosse em ordem à superação de eventual dificuldade prática, é de concluir - sem que tal constitua uma afronta aos princípios do processo equitativo e da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 4 da CRP) - que a paragem do processo se deveu à negligência dos herdeiros do falecido Autor, estando verificados todos os pressupostos da deserção.”.
No caso dos autos, o Tribunal, embora se entenda que não lhe era exigível, veio mesmo, para possibilitar às partes a possibilidade do exercício do contraditório, justificando a paragem do processo há mais de seis meses, a proferir o despacho de 21.11.2024, sendo que, as partes, e nomeadamente a ora recorrente, continuaram a não se pronunciar.
Entendemos, assim, que se a parte negligencia a habilitação de herdeiros no processo suspenso, mesmo que a habilitação já tenha sido requerida noutro processo, o juiz pode decretar a deserção da instância, pois o dever de impulso processual recai sobre as partes e não sobre o juiz.
A habilitação de herdeiros é um incidente processual que visa a regularização da instância, pelo que deve acontecer no processo respetivo, no qual a instância deve ser regularizada para poder prosseguir, seja requerendo a habilitação ou juntando habilitação de herdeiros notarial.
Ao contrário do que a recorrente parece entender, o juiz não é obrigado a conhecer oficiosamente de que foi requerida a habilitação noutro processo, a menos que tal lhe seja comunicado no processo suspenso para o efeito, pelo que a autora, pelo menos quando foi notificada do despacho de 21-11-2024, devia ter comunicado nestes autos o que, agora, veio dizer no recurso. Não o tendo feito, sofre as consequências que resultam da lei.
E não se diga, como a recorrente pretende, que estando suspensa a instância, não podem ser praticados atos no processo, como seja, decisão a declarar deserta a instância. A ser assim, a instância poderia ficar eternamente suspensa, caso nenhuma das partes se dispusesse a requerer, no caso, a habilitação dos herdeiros da parte/interveniente falecida.
Improcede, pois, sem necessidade de outras considerações, a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.


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III. DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida que declarou a deserção da instância.

Custas a cargo da recorrente.













Porto, 2025-07-10

Manuela Machado

Francisca Mota Vieira

Ana Vieira