Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ISABEL FERREIRA | ||
Descritores: | TRANSPORTE AÉREO DE PASSAGEIROS PAGAMENTO PELO TRANSPORTE DA BAGAGEM DE MÃO COMPETÊNCIA MATERIAL | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP2025071013662/24.4T8PRT-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I – Estando em causa a competência em razão da matéria, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da decisão do Juízo Local Cível que conheceu, em recurso, de decisão proferida pelo Julgado de Paz sobre tal questão. II – Estando em causa, na petição inicial, a alegada lesão do consumidor pela conduta da R., companhia de aviação, de exigir pagamento pelo transporte de bagagem de mão, e o prejuízo daí resultante, decorrente da responsabilidade civil, por violação ilícita dos direitos daquele, ainda que por força de uma actuação que possa ter repercussões ao nível da concorrência, a competência para julgar a acção em causa não é do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, mas da jurisdição cível. III – Considerando a competência concorrente do julgado de paz, que se trata de uma acção declarativa de valor que não excede €15.000,00 e que respeita à responsabilidade civil, é competente para o seu julgamento o Julgado de Paz, conforme escolha da autora, que aí instaurou a acção. | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Processo: 13662/24.4T8PRT-A.P1 * Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I – – Invocando a defesa dos direitos dos consumidores, AA intentou, no Julgado de Paz do Porto, acção declarativa comum contra “A... Company Limited”, pedindo: «A. deve a demandada ser condenada a reconhecer que fazer pender a venda de um serviço aa demandante da aquisição de outro serviço funcionalmente independente por parte destes é uma prática restritiva da concorrência e proibida por lei; B. deve a demandada ser condenada a reconhecer que uma bagagem de mão não registada com dimensões até 55x40x20cm e que cumpram integralmente as regras aplicáveis em segurança, é um item essencial e previsível do preço final do serviço de transporte, enquanto offspring da atividade da demandada; C. deve a demandada ser condenada a reconhecer que não pode aplicar um sobrepreço ao preço final do serviço de transporte aéreo quando o consumidor se faz acompanhar de uma bagagem de mão, não registada, com dimensões até 55x40x20cm e que cumpra integralmente as regras aplicáveis em segurança; D. deve a demandada ser condenada a reconhecer que agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, quanto aa demandante; E. deve a demandada ser condenada a reconhecer que violou qualquer um dos artigos do decreto-lei 57/2008, nomeadamente, os artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1.b.d), 9 (12) desse diploma; F. deve a demandada ser condenada a reconhecer que violou os artigos da lei 24/96, nomeadamente, os artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4. 7. (4) e 8 (1, a, c, d) (2), desse diploma: G. deve a demandada ser condenada a reconhecer que violou o artigo 2 (1), da lei 67/2003: H. deve a demandada ser condenada a reconhecer que violou os artigos 11, da lei 19/2012: I. deve a demandada ser condenada a reconhecer que violou o artigo 102, do TFUE: J. deve a demandada ser condenada a reconhecer que o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e tido com a demandante, é ilicito; K. deve a demandada ser condenada a reconhecer que com a totalidade ou parte desses comportamentos lesaram gravemente os interesses da demandante, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores; L. deve a demandada ser condenada a reconhecer que em resultado do comportamento supra descrito no § 3, provocou os danos patrimoniais e não patrimoniais referidos no § 3: e em consequência, para o caso de qualquer um dos pedidos supra proceder: M. deve a demandada ser condenada a indemnizar integralmente a demandante pelos danos que lhe foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, ao exigir o pagamento do trolley bag, em montante global de € 72.98 acrescido de juros vencidos e que se vencerem, a taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a demandada for condenada a indemnizar a demandante pelo sobrepreço, portanto acrescido do que se vier apurar em liquidação de sentença pelos restantes 4 segmentos de voo adicionais aos 2 segmentos identificados na reserva com a referência K53CRIF. N. deve a demandada ser condenada a indemnizar integralmente a demandante pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, designadamente devido ao coercive tie selling, em montante global, não inferior a € 437,88, a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) c (4), do CC, apurar em execução de sentença em face da prova que se requer que a demandada junte, mas nunca menos de € 72,98 por segmento de voo, portanto mínimo de acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento. O. deve a demandada ser condenada a indemnizar integralmente a demandante pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global de 300 euros acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a demandada for condenada a indemnizar a demandante pelos danos morais: P. deve a demandada ser condenada a indemnizar integralmente a demandante pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global de 348 euros, acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à tava legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a demandada for condenada a indemnizar a demandante pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência.». A R. contestou, invocando, além do mais, a excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria, dos Julgados de Paz, defendendo que, no caso, competente para a acção é o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, pois a causa de pedir em que se baseia primordialmente a pretensão da A. são as práticas restritivas da concorrência. Notificada para o efeito, a A. respondeu à matéria de excepção, defendendo, além do mais, ser o Julgado de Paz materialmente competente para a acção. Em 14/11/2023 foi proferido despacho que considerou o Julgado de Paz incompetente em razão da matéria e absolveu a R. da instância. Desta decisão recorreu a A., sendo o recurso distribuído ao Juízo Local Cível do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, o qual decidiu, em 20/10/2024, revogar o despacho recorrido, julgando materialmente competente o Julgado de Paz. Desta decisão veio agora a R. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem: «a) O presente recurso é admissível, nos termos da leitura conjunta dos artigos 629.º n.º 2, al. a), 637.º, 638.º, 639.º e 644.º n.º 2, al. b), do CPC, aplicáveis ex vi artigo 63.º da Lei dos Julgados de Paz. b) A saber, a garantia de defesa das partes exige que seja admissível o recurso da sentença do tribunal de 1.ª instância (na sequência de recurso de decisão de julgados de paz) para o Tribunal da Relação, desde que preenchidos os respetivos pressupostos. c) Neste sentido, embora exista jurisprudência no sentido de um tal recurso não ser admissível, é certo que essa assenta a sua decisão na alegada “norma especial” do artigo 62.º da Lei dos Julgados de Paz, que (discutivelmente) prevalecerá sobre as normas recursivas do CPC. d) Porém, a ser assim, então o primeiro recurso, apresentado pela Recorrente AA, nunca poderia ter sido admitido, por não estar em causa o recurso de uma decisão proferida por julgado de paz em processo cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância. e) No entanto, verifica-se que tal recurso foi, sim, admitido, nos termos e para os efeitos do do disposto na al. a) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, precisamente por estar em causa um recurso com fundamento na violação das regras de competência em razão da matéria. f) Assim, e por força de razão, deve o presente recurso ser admitido. g) O presente recurso tem por objeto a sentença com a Referência 462463251, datada de 20 de outubro de 2024, proferida pelo Tribunal da Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2, no âmbito do Processo n.º 13662/24.4T8PRT, na parte em que o Tribunal a quo conclui pela competência material do Julgado de Paz, em razão das regras previstas na Lei dos Julgados de Paz. h) Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do Direito, nomeadamente do artigo 9.º da Lei dos Julgados de Paz e artigo 112.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário, LOSJ), pois que efetivamente se verifica uma exceção dilatória de incompetência absoluta dos Julgados de Paz em razão das regras de competência material, devendo, em conformidade, manter-se a decisão recorrida e ser a A... absolvida da instância. i) É inequívoco que, atendendo aos pedidos e causa de pedir apresentados no Requerimento Inicial da Demandante, os Julgados de Paz do Porto decidiram corretamente ao se declararem incompetentes em razão da matéria para julgar a presente ação judicial. j) Com efeito, é também inequívoco e unânime (veja-se a jurisprudência e doutrina aplicável a casos em tudo similares, senão idênticos) que existe um tribunal de competência especializada – o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão – que tem como competência julgar todas as ações cíveis cuja causa de pedir seja dominantemente fundada em infrações ao direito da concorrência, como é o presente caso. k) Com efeito, analisado o Requerimento Inicial é patente que não se pretende a justa composição do litígio e tudo o que nele é requerido afasta de imediato o cumprimento dos princípios orientadores da tramitação processual nos Julgados de Paz, tanto mais não seja porque as disposições do CPC só são aplicáveis aos processos que correm termos nos Julgados de Paz no que não seja incompatível com a respetiva Lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos Julgados de Paz, ou seja: os princípios da simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual, como estipula o artigo 63.º da Lei dos Julgados de Paz. l) Ora, a Recorrente apresenta um extenso pedido que se pode resumir no seguinte: i. reconhecimento, pela Demandada, de que fazer depender a venda de um serviço à demandada da aquisição de outro serviço funcionalmente independente por parte destes, é uma prática restritiva da concorrência e proibida por lei e que, relativamente a este facto, agiu com culpa e consciência da ilicitude – ou seja, pretende a Demandante que a Demandada reconheça ter cometido, com dolo, uma prática restritiva da concorrência nas suas relações comerciais com a Demandante; ii. reconhecimento, pela Demandada, de que uma bagagem de mão não registada com dimensões até 55x40x20cm e que cumpram integralmente as regras aplicáveis em segurança, é um item essencial e previsível do preço final do serviço de transporte, enquanto offspring da atividade da Demandada, e reconhecimento, pela Demandada, de que não pode aplicar um sobrepreço ao preço final do serviço de transporte aéreo, quando o consumidor se faz acompanhar de uma bagagem de mão não registada, com as dimensões acima elencadas – ou seja, pretende a Demandante que a Demandada reconheça ter cometido, com dolo, uma prática comercial desleal; iii. reconhecimento, pela Demandada, de que violou os artigos 4.º, 5.º, n.º 1, 6.º, alínea b), 7.º, n.º 1, alíneas b) e d) e artigo 9.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 57/2008, que estabelece o regime aplicável às práticas comerciais desleais das empresas – ou seja, pretende a Demandante que a Demandada reconheça ter cometido práticas comerciais desleais; iv. reconhecimento, pela Demandada, de que violou os artigos 3.º, alíneas a), d), e) e f), artigo 4.º, 7.º, n.º 4 e 8.º, n.º 1, alíneas a), c) e d) e n.º 2, todos da Lei n.º 24/96, i.e., a Lei de Defesa do Consumidor – ou seja, pretende a Demandante que a Demandada reconheça ter violado os direitos dos consumidores; v. reconhecimento, pela Demandada, de que violou o artigo 2.º, n.º 1 da Lei n.º 67/2003, sobre certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas – diploma esse que não se encontra mais em vigor, pelo que se questiona a sua relevância; vi. reconhecimento, pela Demandada, de que violou o artigo 11.º da Lei n.º 19/2012, que aprova o novo regime jurídico da concorrência – ou seja, pretende a Demandante que a Demandada reconheça ter cometido uma prática restritiva da concorrência, por alegado abuso de posição dominante; vii. reconhecimento, pela Demandada, de que violou o artigo 102.º do TFUE, que dispõe sobre a exploração de forma abusiva da posição dominante no mercado – ou seja, pretende a Demandante que a Demandada reconheça ter cometido uma prática restritiva da concorrência, por alegado abuso de posição dominante. m) É, assim, evidente e inequívoco que não está em causa nenhuma das ações listadas no artigo 9.º da Lei dos Julgados de Paz, – nem mesmo uma ação que respeite “à responsabilidade civil contratual e extracontratual” – na medida em o pedido principal não pretende a responsabilização civil da A..., mas antes um reconhecimento de ter praticado uma série de práticas comerciais restritivas e desleais, em especial, baseadas num alegado abuso de posição dominante no mercado. n) Aliás, é patente do pedido apresentado que, muito embora a Demandante peticione que a Demandada seja condenada ao pagamento de uma indemnização, esse pedido é subsidiário, na medida em que depende da procedência dos pedidos acima elencados (“e, em consequência, para o caso de qualquer um dos pedidos supra proceder”). o) Desta forma, e tal como descrita pela Demandante, a causa de pedir traduz-se na violação do regime jurídico aplicável às práticas comerciais desleais, à defesa dos consumidores e à concorrência, sendo o pedido principal a declaração de incumprimento, doloso, desses regimes, nada tendo a ver com a simples efetivação das normas de responsabilidade contratual ou extracontratual. p) Pelo que, ainda que nos presentes autos não se discutam exclusivamente infrações ao direito da concorrência, é inequívoco que a causa de pedir dominante/em que se baseia primordialmente a pretensão da Demandante são as práticas restritivas da concorrência, relativamente às quais existe um tribunal de competência especializada: o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão. q) Neste sentido, verifica-se que também os Julgados de Paz de Vila Nova de Gaia, assim como Julgados de Paz de Lisboa, em três processos distintos, decidiram de acordo com aquele que é o entendimento do Julgados de Paz do Porto e da A..., i.e., que os Julgados de Paz não são materialmente competentes para apreciar e decidir o mérito da causa. r) Aliás, também o Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, no âmbito do Processo n.º 4337/23.2T8VNG, num processo em tudo semelhante, concluiu ser materialmente incompetente para apreciar os autos, remetendo-o para o Tribunal da Concorrência, Supervisão e Regulação. s) Por todo o exposto, cumpre concluir que os Julgados de Paz não são materialmente competentes para conhecer do mérito da causa, pelo que o Julgado de Paz do Porto decidiu bem ao concluir pela verificação de exceção dilatória de incompetência material – decisão que a A... acompanha integralmente por todos os argumentos nela invocados e nos demais ora apresentados. Termos em que, (i) deverá ser concedido provimento ao Recurso ora interposto pela A... e, em consequência, revogar-se a Sentença recorrida, julgando-se procedente a exceção dilatória de incompetência material dos Julgados de Paz, sendo a A... absolvida da instância, assim se fazendo o que é de Lei e de Justiça!». A A. apresentou o requerimento de 07/11/2024, no qual afirma não apresentar contra-alegações, “desde logo porque entende que não é admissível recurso da sentença proferida pela primeira instância e da decisão ao recurso de apelação dessa sentença para um terceiro grau de jurisdição como agora pretende a demandada”. * Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. *** II – Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar: a) admissibilidade do recurso; b) competência material para tramitar a acção em causa. ** Vejamos a primeira questão. Nos termos do art. 62º, nº 1, da Lei nº 78/2001, de 13/07 (Lei dos Julgados de Paz), as decisões proferidas nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas por meio de recurso a interpor para a secção competente do tribunal de comarca em que esteja sediado o julgado de paz. Prevendo o art. 63º da mesma Lei que é subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, com excepção das normas respeitantes ao compromisso arbitral, bem como à reconvenção, à réplica e aos articulados supervenientes. Ora, nos termos do art. 629º, nº 2, al. a), do C.P.C., é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, com fundamento na violação das regras de competência em razão da matéria. Relevam aqui razões de “interesse público inerente ao facto de (…) o litígio se inscrever na ordem jurisdicional dos tribunais judiciais e, dentro destes, de ser respeitada a competência em razão da hierarquia e da matéria”, sendo a extensão da recorribilidade aplicada a outros impedimentos que não só o valor da causa ou da sucumbência, como é o caso dos impedimentos ao segundo e ao terceiro grau de jurisdição “ou quando o acesso ao Supremo estiver vedado por alguma norma especial”. “A competência absoluta constitui um pressuposto basilar de cujo preenchimento depende a possibilidade de o tribunal incidir sobre o mérito da causa”, “não podendo a violação das respetivas regras ficar condicionada por aspetos secundários ligados ao valor do processo, ao valor do decaimento ou a outros fatores que, em geral, impedem o recurso de apelação ou de revista”. Tal recurso é igualmente admitido quanto ao terceiro grau de jurisdição, nos termos do art. 671º, nº 2, al. a), do C.P.C. (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 48, incluindo nota 65, 49 e 51). Tais razões são válidas também quando estão em causa os julgados de paz, não sendo incompatíveis, antes pelo contrário, com os princípios gerais do processo nos julgados de paz e com a lei respectiva, posto que é do interesse público que estes apenas julguem as causas para as quais são materialmente competentes, pelo que as aludidas normas do Código de Processo Civil são aplicáveis ao presente recurso. É, portanto, admissível o recurso, como decidiu o tribunal recorrido. ** Apreciemos agora a segunda questão, sendo a factualidade relevante a que consta do relatório que antecede.Defende a R. que a competência para a acção é do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, no que foi acompanhada pela decisão proferida no Julgado de Paz do Porto. Por sua vez, a A. defende a competência do Julgado de Paz, tendo sido nesse sentido a decisão ora recorrida, do Juízo Local do Porto. Cumpre decidir. Conjugando as normas dos arts. 6º, 8º e 9º, nº 1, da Lei nº 78/2001, de 13/07, os julgados de paz são competentes para apreciar e decidir as seguintes acções declarativas, cujo valor não exceda € 15.000,00: a) Acções que se destinem a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que tenham por objecto o cumprimento de obrigação pecuniária e digam respeito a um contrato de adesão; b) Acções de entrega de coisas móveis; c) Acções resultantes de direitos e deveres de condóminos, sempre que a respectiva assembleia não tenha deliberado sobre a obrigatoriedade de compromisso arbitral para a resolução de litígios entre condóminos ou entre condóminos e o administrador; d) Acções de resolução de litígios entre proprietários de prédios relativos a passagem forçada momentânea, escoamento natural de águas, obras defensivas das águas, comunhão de valas, regueiras e valados, sebes vivas; abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes; estilicídio, plantação de árvores e arbustos, paredes e muros divisórios; e) Acções de reivindicação, possessórias, usucapião, acessão e divisão de coisa comum; f) Acções que respeitem ao direito de uso e administração da compropriedade, da superfície, do usufruto, de uso e habitação e ao direito real de habitação periódica; g) Acções que digam respeito ao arrendamento urbano, excepto as acções de despejo; h) Acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual; i) Acções que respeitem a incumprimento contratual, excepto contrato de trabalho e arrendamento rural; j) Acções que respeitem à garantia geral das obrigações. De acordo com a jurisprudência uniformizada no Ac. do S.T.J. de 24/05/2007, publicado no D.R. I Série, nº142, de 25/07/2007, “no actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções previstas no artigo 9º, nº 1, da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, é alternativa relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial concorrente”, mantendo-se válidos os respectivos argumentos perante a redacção actual da norma (cfr. Ac. da R.C. de 11/10/2022, com o nº de proc. 68/21.6T8LMG.C1, publicado em www.dgsi.pt). Os juízos locais cíveis – ou os juízos de competência genérica, onde aqueles não existam – (que são os tribunais de competência concorrente relativamente às matérias atribuídas aos julgados de paz na norma citada) têm a sua competência definida pela negativa, no art. 130º, nº 1, da L.O.S.J.: possuem competência na respectiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada. No que respeita ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, dispõe o art. 112º da L.O.S.J.: 1 - Compete ao tribunal da concorrência, regulação e supervisão conhecer das questões relativas a recurso, revisão e execução das decisões, despachos e demais medidas em processo de contraordenação legalmente susceptíveis de impugnação: a) (…) 2 - Compete ainda ao tribunal da concorrência, regulação e supervisão conhecer das questões relativas a recurso, revisão e execução: a) (…) 3 - Compete ao tribunal julgar acções de indemnização cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infracções ao direito da concorrência, acções destinadas ao exercício do direito de regresso entre co-infractores, bem como pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais acções, nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de Junho. 4 - Compete ainda ao tribunal julgar todas as demais acções civis cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infracções ao direito da concorrência previstas nos artigos 9.º, 11.º e 12.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, em normas correspondentes de outros Estados-Membros e/ou nos artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia bem como pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais acções, nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de Junho. 5 - As competências referidas nos números anteriores abrangem os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões. Tendo presente que a competência se afere pelos termos em que é proposta acção, perante a relação jurídica tal como configurada pelo autor na petição inicial (neste sentido, Ac. da R.P. de 25/01/2024, desta mesma secção, com o nº de proc. 6271/23.7T8VNG.P1, publicado em www.dgsi.pt), verifica-se que, no caso, a autora invoca a “sua qualidade de consumidora para fundar o seu direito” e a “violação do direito que protege os consumidores, queixando-se da apresentação enganosa aos consumidores da tarifa normal dos serviços de transporte aéreo, dizendo abusiva a cláusula contratual das companhias aéreas, em particular da ré, que estabelece a cobrança de um suplemento para passageiros de tarifa normal que viajem com um acessório pessoal e uma mala à mão na cabine e afirmando que funda o seu direito à indemnização também nos termos gerais da responsabilidade civil” (como se descreve, relativamente a uma situação similar, no Ac. da R.G. de 29/05/2024, com o nº de proc. 87/24.0T8BRG.G1, publicado em www.dgsi.pt). Com efeito, os efectivos pedidos formulados são os pedidos de indemnização das alíneas M), N), O) e P) do petitório, consubstanciando as restantes alíneas não “pedidos reais mas as etapas, cumulativas ou alternativas, que o julgador pode tomar para concluir por deferir o pedido real – pagamento de indemnização aos Autores”. “A declaração que os Autores efetivamente pedem, na nossa visão, é a de que o tribunal atenda a que a atuação da Ré é grave, está legalmente prevista mas depois, para si como procedência do pedido, só pretendem o pagamento de quantias pecuniárias. Em qualquer ação em que seja pedido o pagamento de uma indemnização a favor do Autor, este terá de alegar os factos que integram os pressupostos dessa responsabilidade civil (contratual ou extracontratual ou as duas, cumulativamente), indicar as normas jurídicas que o sustentam e terminar com o único pedido real: pagamento de uma quantia a título indemnizatório. São assim aparentes aqueles outros pedidos que não os de indemnização (a multiplicidade dos pedidos é meramente de caráter processual, nomeadamente por refletirem as múltiplas operações (v.g. uma prévia e instrumental - de apreciação, e outra posterior - de condenação) que o tribunal terá de desenvolver para atingir o fim último da ação (a «utilidade económica imediata do pedido») - José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 3.º, páginas, 147 e 148 ou Miguel Teixeira de Sousa, As partes, o objeto e a prova, Lisboa, página 144). Por isso, a opção de se formular tais pedidos redunda numa opção de formular pedidos aparentes que não têm de ser decididos. Por isso, todos os restantes pedidos, nada mais são do que ou eventuais etapas de análise que o tribunal vai ter de fazer para condenar em indemnização ou são meras conclusões jurídicas que não correspondem a efetivos pedidos com diversas utilidades económicas” (Ac. da R.P. de 25/01/2024, citado). Portanto, no caso, verifica-se que está em causa a alegada lesão do consumidor com a conduta da R. e o prejuízo daí resultante, decorrente da responsabilidade civil, por violação ilícita dos direitos daquele, ainda que por força de uma actuação que possa ter repercussões ao nível da concorrência. Não se pretende proteger directamente a concorrência e, no que respeita ao consumidor que adquire o serviço, “a sua lesão não advém da violação de uma regra de concorrência mas sim de uma prática económica isolada proibida que o lesa no seu património” (idem) - no caso, a exigência de pagamento da bagagem de mão. Como quer que seja, não estamos perante uma situação em que a causa de pedir se fundamente exclusivamente em infracções ao direito da concorrência, o que só por si é suficiente para afastar a aplicação das normas dos nºs 3 e 4 do art. 112º da L.O.S.J.. Como se diz no Ac. do S.T.J. de 18/04/2024 (proferido em recurso da decisão da R.P. que se vem citando, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 6271/23.7T8VNG.P1-A.S1), “nunca a mera referência à violação do direito da concorrência, no meio da indicação de muitas outras normas violadas, teria o condão de encaminhar esta ação para aquele tribunal especializado”. É de concluir, assim, que a competência para julgar a acção em causa não é do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, mas da jurisdição cível, sendo que, considerando a competência concorrente do julgado de paz, que se trata de uma acção declarativa de valor que não excede € 15.000,00 e que respeita à responsabilidade civil, é competente para o seu julgamento o Julgado de Paz, conforme escolha da A., que aí instaurou a acção (sem prejuízo da apreciação da incompetência relativa também invocada na contestação). Anote-se que, salvo melhor opinião, não colhe o argumento, utilizado na decisão de 14/11/2013, de que o julgado de paz não está vocacionado para a apreciação das questões em discussão, por ser “um tribunal diferenciado, que tem como mote os princípios (…) de simplicidade, informalidade e oralidade, entre outros e que não se coadunam com a apreciação das matérias que a demandante pretende ver discutidas”. Na verdade, o art. 2º, nº 2, da Lei nº 78/2001, de 13/07, respeita aos princípios que norteiam os procedimentos a utilizar na tramitação das acções no julgado de paz, ou seja ao andamento do processo, e não à complexidade ou simplicidade da matéria (substantiva) submetida à sua apreciação – veja-se que acções de direitos reais ou de cumprimento de contratos de empreitada, por exemplo, podem contemplar questões complexas e, se o seu valor não exceder € 15.000,00, correr termos no julgado de paz (art. 9º, nº 1, als. d) a f), h) e i), da Lei nº 78/2001). Aliás, a norma que define a competência material do julgado de paz em momento algum o faz por referência à simplicidade ou complexidade da matéria a apreciar. * Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pela R. e pela consequente confirmação da decisão recorrida. *** III - Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida. ** Custas pela recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.). * Notifique. ** Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.): …………………………………………………………………. …………………………………………………………………. …………………………………………………………………. * datado e assinado electronicamente * Porto, 10/7/2025 Isabel Ferreira Carlos Cunha Rodrigues Carvalho José Manuel Correia |