Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
0069953
Nº Convencional: JTRL00026290
Relator: CARLOS DE SOUSA
Descritores: ESTADO DE NECESSIDADE DESCULPANTE
SEQUESTRO
Nº do Documento: RL200002020069953
Data do Acordão: 02/02/2000
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL - CRIM C/ PESSOAS.
Legislação Nacional: CP95 ART14 N1 ART35 N1 E N2 E ART158 N1.
Sumário: I - Não age em estado de necessidade desculpante o arguido que manteve a sua mulher detida, cerca de seis horas e meia, privando-a da sua liberdade de locomoção, para tal tendo utilizado a força física e uma faca de cozinha, apesar de o ter feito sob suspeita de que a sua mulher estava a viver com outro homem, a casa de quem a foi buscar e deter.
II - O arguido agiu num estado emocional que não passou de uma irritação, motivado por mero ciúme e mais para manifestar o poder sobre o seu cônjuge (arrogando a sua propriedade), do que para manifestar o seu amor/paixão.
III - Tendo o arguido agido livre e conscientemente, estão preenchidos todos os requisitos, objectivos e subjectivos, da prática de um crime de sequestro, p.p. no artigo 158º, nº 1 do C. Penal de 1995.
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência na 3ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I - No presente processo comum (juiz singular) do 2º Juízo Criminal do Funchal, com o nº 3173/96.1TAFUN foi o arguido (J) (id. nos autos) acusado pelo MºPº (a sua então mulher, ofendida, desistira da queixa que entretanto formulara, relativa ao crime de ofensa à integridade física simples, cfr. artºs 143º, nºs 1 e 2 do CP/95 - cfr. 1, 35 e 49) pela autoria material de um crime de sequestro, p. e p. pelo artº 158º, nº 1 do citado C. Penal (revisto); mas veio a ser absolvido de tal crime, por sentença de 7/7/99 (fls. 98/99), com fundamento, em síntese, no estado de necessidade desculpante, do artº 35º, nº 1 desse código.
II - A) É desta sentença absolutória que recorre a Exmª Magistrada do Ministério Público, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
"1. O artº 35º do C.Penal, que versa sobre o estado de necessidade desculpante, estabelece uma das formas de concretização da cláusula de inexigibilidade, traduzida pela ideia de não ser razoável exigir do agente, na situação, comportamento diferente. Exige-se a adequação dos meios aos fins e a indispensabilidade dos primeiros.
2. A douta sentença considerou haver o arguido agido em estado de necessidade desculpante, nos termos do nº 1 do artº 35º do C.Penal, invocando a irritação e a emoção que o mesmo sentiu em virtude da violação dos deveres conjugais por parte de sua mulher.
3. A irritação do arguido não abona, sem mais, um típico apelo à adopção de práticas violadoras do direito ambulatório de outrem. Não é possível deixar à mercê de desvarios difusos (como seja o estado de irritação) um bem jurídico da importância da liberdade humana.
4. Era exigível ao arguido, face às circunstâncias do caso, um comportamento diferente do adoptado.
5. Manifestando-se desadequado face ao fim que o arguido se propunha alcançar - a salvaguarda do seu casamento.
6. Uma vez não verificados os pressupostos de que depende a aplicação do artº 35º do C.Penal, não se poderá dizer que o arguido tenha actuado em estado de necessidade desculpante,
7. razão pela qual o mesmo terá de ser condenado pela prática do crime de sequestro, p. e p. pelo artº 158º do C.Penal.
8. Assim não se decidindo, violou-se o disposto nos artºs 35º, nº 1 e 158º, ambos do C.Penal.
Pelo exposto, deverá a douta decisão proferida ser revogada e ser substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de sequestro, p. e p. pelo artº 158º do C.Penal, nos termos expostos, assim se fazendo JUSTIÇA!" - sic.
B) O il. defensor oficioso do arguido contra-motivou, concluindo pela improcedência do recurso e manutenção da douta sentença ora recorrida.
C) Já nesta Relação, o Exmº P.G.A., apôs o seu visto e relegou as alegações para a audiência (fls.110).
III - Colhidos os vistos, e efectuada a audiência, cumpre apreciar e decidir.
A) No presente recurso esta Relação só tem poderes de cognição em matéria de direito, uma vez que, conforme consta da acta de audiência e julgamento, de 99/06/30, pelos intervenientes processuais foi declarado unanimemente que prescindiam da documentação dos actos da audiência (cfr. acta de fls. 97, artºs 364º, nº 1 e 428º, nº 2 do CPP/98 (red. da Lei 59/98, de 25/08).
Aliás, o âmbito do presente recurso, limitado pelas conclusões do recorrente - cfr. artºs 403º e 412º, nº 1, ambos do CPP e como é jurisprudência uniforme do STJ (entre muitos, o seu ac. de 31/01/96, BMJ 453/338) - como vimos circunscreve-se à qualificação jurídico-penal dos factos apurados (em audiência de discussão e julgamento), i.e., se integram a prática pelo arguido do imputado crime de sequestro (artº 158º, nº 1 do C.P./95); e se, apesar disso, também integram uma das causas de exclusão da culpa, mormente o alegado estado de necessidade desculpante - cfr. artº 35º, nº 1 do mesmo C.Penal revisto (red. do Dec.-Lei 48/95, de 15 de Março), então vigente.
E ainda, soçobrando tal causa de exclusão, qual a medida concreta da pena a aplicar.
Acresce que (embora, actualmente, não seja totalmente líquido) parece manter-se em vigor (mesmo após a revisão operada no CPP, pela Lei 59/98) a jurisprudência fixada pelo STJ de que o tribunal de recurso pode, mesmo oficiosamente - Ac. nº 7/95 do S.T.J., de 19/10/95 (in D.R. nº 298, I Série-A, de 28/12/95) conhecer dos vícios da sentença do nº 2 do artº 410º do CPP, desde que resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) o erro notório na apreciação da prova.
Ora, como vimos, o MºPº (recorrente) não invoca nenhum destes vícios, nem - adianta-se já - eles se descortinam do texto da sentença, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
Vejamos então a matéria de facto apurada na douta sentença, ora recorrida.
B) A decisão recorrida enumera os seguintes factos provados (numeração nossa)
" 1 - No dia 3 de Dezembro de 1996, cerca das 16 horas e 30 minutos, o arguido (J) dirigiu-se à residência de (I) astrólogo, situada em (X) no Funchal, pelo facto de suspeitar que a sua mulher (A) aí se encontrasse.
2 - Já no interior do apartamento e, após confirmar tal suspeita, o arguido ordenou à ofendida que o acompanhasse à casa onde viveram, para explicar a situação do casal ao filho de ambos, o que esta de pronto recusou.
3 - De seguida, o (J) apoderou-se de uma faca de cozinha, cujas demais características não foi possível apurar e exibiu-a ao (I), à ofendida e à testemunha (M), mas largou-a, posto o que pegou por um braço da esposa e obrigou-a a acompanhá-lo para a sua residência, sita em (Y) no Funchal, local onde a obrigou a permanecer até às 23 horas desse mesmo dia, apesar de a (A) lhe fazer saber que agia contra a vontade da visada.
4 - O arguido queria que a esposa ficasse a viver com ele e o filho menor de ambos.
5 - O arguido (J) agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de privar a queixosa da sua liberdade ambulatória, após, para o efeito, ter vencido a sua resistência.
6 - Tinha perfeito conhecimento de que tal conduta era proibida por lei.
7 - Do seu certificado de registo criminal não consta qualquer condenação.
8 - O arguido está actualmente divorciado da queixosa e esta já não vive com o astrólogo.
9 - Era comerciante, mas está desempregado e vive em casa da mãe, com o filho do casal (desfeito), sendo apoiado pela família;
10 - Completou a 4ª classe;
11 - Não tem meio de transporte próprio."
Acresce que:
Não se provou que:
"O arguido obrigou a queixosa a sair com ele mantendo uma faca na mão;
(Nem que) a queixosa, sistemática e reiteradamente, lhe tenha dito na casa da família que ele agia contra a vontade dela." - sic.
C) Subsumindo os factos apurados ao direito.
Como resulta do acima exposto, tais factos integram (tal como a douta sentença parece admitir, logo no início da fundamentação (cfr. fls. 99) os requisitos, objectivos e subjectivos da autoria material pelo arguido do imputado (na acusação do MºPº) crime de sequestro, p. e p. pelo citado artº 158º, nº 1 do C.P. revisto - vigente, na altura dos factos, ou melhor, desde 01/10/95 (artº 13º do D.L. nº 48/95, de 15/03).
Na verdade, o arguido deteve a então (na altura dos factos) sua mulher, pelas 16h30 do aludido dia 3/12/96, na residência do astrólogo (I) (testemunha id. nos autos), de início mediante a ameaça de uma faca de cozinha e depois obrigando-a, mediante força física, e sempre contra a vontade da mulher (ofendida), levou-a para a sua residência, onde a manteve detida, obrigando-a a ali permanecer até às 23 horas desse dia; agindo o arguido livre, deliberada e conscientemente, com a intenção de privar, como privou, a ofendida da sua liberdade (ambulatória), tendo perfeito conhecimento de que tal conduta era proibida por lei:
Quer dizer, o arguido deteve e manteve detida, cerca de 6 horas e meia, a ofendida, privando-a da sua (dela) liberdade de locomoção, como era sua intenção - mormente, agindo com dolo directo (artº 14º, nº 1 do C.Penal) e com plena consciência da ilicitude da sua conduta.
Na douta sentença, ora recorrida, porém, entende-se que o arguido agiu em estado de necessidade desculpante, o que, nos termos do citado artº 35º, nº 1 do C.Penal integra uma causa de exclusão da culpa do agente.
Ora, é este o cerne do presente recurso, já que o MºPº, ora recorrente, põe em causa que o estado emocional do arguido "ao saber que a mulher se encontrava a viver com um astrólogo" - cfr. facto 1. apurado, não é bem esta a expressão utilizada, mas compreende-se que se quisesse dizer que suspeitava que a mulher ali se encontrasse, ... a viver com aquele indivíduo, como, aliás, se extrai, inequivocamente, do facto 8. apurado (porquanto aí se explicita que, agora, a dita mulher "...já não vive com o astrólogo.".
E daqui, face a um tal estado emocional, a douta sentença exclui a culpa do agente, com base no artº 35º, nº 1 do citado C.Penal - o que o recorrente entende não proceder.
Acontece que esse estado emocional, tal como vem retratado na douta sentença recorrida, não passa de uma irritação (impulso inicial, portanto), ainda que se acrescente que foi devida ao facto de o arguido confirmar, então, a suspeita (ou seja, não é apanhado sequer de surpresa, a suspeita já pré-existe) de que a mulher se encontrava a viver com outrem.
Em suma, o arguido age movido por mero ciúme (que é, como se sabe, estado de afecto asténico), mas como se apurou (vide factos 5. e 6. supra) tal não o impediu de livremente avaliar o mal que infligiu à ofendida, nem de ponderar devidamente a ilicitude da sua acção (criminosa).
Aliás, o ciúme é um facto da vida (bem conhecido de toda a gente) e que embora provocasse a irritação do arguido, tal não o impediu, nem sequer obnubilou ao ponto de tornar desculpável a conduta concretamente apurada nos autos: note-se que, livre, deliberada e conscientemente, privou a ofendida da liberdade, detendo-a e mantendo-a nesse estado, contra a sua vontade, por um período superior a 6 horas.
E assim sendo, agindo o agente sob um tal estado emocional, que não ultrapassa a mera irritação (como também refere a douta sentença), tal circunstancialismo não preenche os requisitos do mencionado estado de necessidade desculpante.
E para que não haja dúvidas, basta acrescentar que a alegada causa de exclusão da culpa, a do designado estado de necessidade desculpante, do artº 35º, nº 1 do C.Penal, para se ter por preenchida, exige que o agente tenha a intenção de afastar um perigo actual, não removível de outro modo, e que este (perigo actual) ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro; ou, em qualquer dos casos, quando não seja razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
Daí que, face ao acima exposto, embora o arguido tenha agido para defender a sua honra e/ou para a reconciliação da família, isto não basta para que se considere preenchida a causa de exclusão da sua culpa, mormente que se esteja perante o aludido estado de necessidade desculpante.
Na verdade, no caso concreto, no circunstancialismo apurado (acima descrito), o arguido teve sempre a capacidade de avaliar o mal que estava a infligir à sua (então) mulher, ponderou a ilicitude da conduta, agindo, em suma, de modo inteiramente livre, deliberada e conscientemente, detendo e privando a ofendida da sua liberdade de locomoção - e por um período de tempo considerável (superior a 6 horas, note-se!).
Aliás, como infelizmente vem sendo usual e descrito como típico, nos casos de violência doméstica, também aqui se verifica que o arguido age ameaçando e usando a força física contra a mulher, mais para manifestar o poder sobre o seu cônjuge (arrogando a sua propriedade), do que para manifestar (o seu afecto) o seu amor/paixão.
É, pois, evidente que o arguido podia e devia ter agido de outro modo: v.g., usando a persuasão, o afecto, ou o diálogo, em vez da violência que usou (primeiro, com a ameaça do uso de uma faca e, depois, com a força física).
Mais. O arguido age com dolo directo (artº 14º-1 do C.P.), ainda que, tendo em atenção o seu estado emocional (de mera irritação), como adiante melhor se verá, poderá, quando muito, diminuir a culpa, mas não especialmente, e, muito menos, excluí-la (cfr. artº 35º, nºs 1 e 2 do C.P.).
Em conclusão:
Não se mostram preenchidos os pressupostos da aludida causa de exclusão da culpa - do artº 35º, nº 1 do C.Penal (nem de qualquer outra das causas de exclusão constantes dos artºs 31º e segs. do C.Penal), mormente por ser exigível ao arguido, face às circunstâncias do caso, um comportamento diverso do adoptado.
Estão, assim, preenchidos todos os requisitos, objectivos e subjectivos, da prática pelo arguido do imputado crime de sequestro, p. e p. pelo artº 158º, nº 1 do C.Penal (red. do D.L. nº 48/95 - não afectada pela ulterior red. da Lei 65/98, de 2/9).
D) Quanto à medida da pena:
Assim, a pena abstractamente aplicável é a do citado artº 158º, nº 1 do C.P./95, ou seja, a de prisão até 3 anos ou a pena de multa (de 10 a 360 dias - cfr. artº 47º).
Reponderamos, agora, o circunstancialismo já acima descrito, realçando que o arguido é delinquente primário e que, embora tenha agido com dolo directo, o fez sob um estado emocional (irritação/ciúme) e os motivos já acima escalpelizados, o que lhe diminui a culpa - embora não de um modo especial (vide supra) - artº 71º do C.Penal revisto.
Assim, e não perdendo de vista as finalidades das penas - mormente, a prevenção geral e especial - e que a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa do agente - cfr. artºs 40º e 70º do C.P./95 - cremos ser adequada e justa a pena de 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos - cfr. artº 50º, nº 1 do C.Penal - até porque, deste modo, basta a censura do facto e a ameaça da pena para preencher os aludidos fins das penas.
Concluindo:
Procede a acusação e, evidentemente, o recurso do MºPº, pelo que é de revogar a douta sentença ora recorrida, nos precisos termos ora descritos, condenando o arguido (J), pela autoria do citado crime de sequestro, do artº 158º, nº 1 do C.Penal revisto, ora descrita pena.
IV - DECISÃO:
Nos termos acima expostos, acordam em dar provimento ao recurso ao MºPº, julgando procedente a acusação e revogando a decisão recorrida, nos termos acima descritos (em III), passa a ficar condenado o arguido (J) - pela autoria do imputado crime de sequestro, p. e p. pelo artº 158, nº 1 do C.Penal revisto:
a) na pena de 9 (nove) meses de prisão, que fica suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos;
b) mais vai condenado em 5 (cinco) UCs de taxa de justiça e nas demais custas do processo (devidas na 1ª instância) - artºs 513º, nº 1 e 514º do CPP/98, 85º, nº 1-b) e 87º, nº 4, do C.C.J.).
Notifique.
Arbitram-se 15.000$00 (quinze mil escudos) de honorários a favor da il. defensora oficiosa (nomeada para este recurso), a adiantar pelo C.G.T.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2000.