Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2909/2005-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/01/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: As medidas de coacção previstas no artigo 200°, n.° 1, alínea b), e n.° 3 (proibição de ausência para o estrangeiro com obrigação de entrega do passaporte) e no artigo 201°, n.°s 1 e 2, do Código de Processo Penal (obrigação de permanência na habitação com utilização de meios técnicos de controlo à distância, regulada pela Lei n.° 122/99, de 20 de Agosto) não são cumuláveis entre si.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa


I – RELATÓRIO
1 – Na sequência da detenção e do 1° interrogatório judicial do arguido P. a srª juíza do Tribunal Judicial da Comarca de Elvas proferiu, em 26 de Outubro de 2004, o despacho que, na parte relevante, se transcreve:
«Desde há mais de seis meses a esta parte vêm sendo encetadas e levadas a cabo diligências várias, profícuas e com resultados visíveis que, passo a passo, vêm sendo apreciadas por nós e que, atento o conteúdo das informações carreadas para os autos, motivaram que os arguidos tivessem sido detidos no final do dia de domingo.
Fácil é, neste momento, constatar pela consulta do processo, que já vai longo, serem abundantes as situações de facto indiciadoras, de forma cada vez mais flagrante da prática pelos referidos arguidos, conjuntamente com outras pessoas, de uma actividade criminosa de dimensões consideravelmente graves e extensas. Está, de forma claríssima, fortemente indiciada a prática, em concurso real, pelos 2 arguidos agora ouvidos, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. nos artigos 21° e 24° do D.L. 15/93 de 22/01, na forma de cumplicidade (artigo 27° do C.P.) e de um crime de associação criminosa, p. e p. no artigo 28° n.° 2 do D.L. n.° 15/93 de 22/01, desta feita como autores.
Se é certo que as informações até hoje recolhidas e carreadas para os autos não nos deixavam dúvidas acerca da actividade criminosa acima mencionada, os interrogatórios judiciais acabados de realizar acabaram por confirmar e reforçar os indícios e as conclusões já anteriormente extraídos do processo. De facto, é impressionante a intensidade da actividade desenvolvida por estes arguidos e pelas restantes pessoas que, tudo indicia, fazem parte da associação criminosa constituída para o tráfico de droga, com cariz e dimensões internacionais e de que nos dão conta as várias vigilâncias realizadas de forma secreta e, sobretudo, as imensas transcrições de intercepções de escutas telefónicas por nós ordenadas ao longo de vários meses aos vários telemóveis possuídos pelos arguidos.
Por nenhum dos dois arguidos hoje ouvidos foi apresentada qualquer explicação razoável e/ou lógica relativamente à sua participação na actividade da organização acima referida.
No que diz respeito ao arguido M., não se nos afigurou, de forma alguma, credível a versão que inicialmente apresentou no sentido de que não sabia que tipo de actividade vinha sendo desenvolvida pela sua patroa, MM., quando é certo que o próprio arguido desde o início declarou que por várias vezes a fez transportar (com uma regularidade quinzenal) a Madrid, onde contactava com indivíduos que lhe entregavam quantias avultadíssimas em dinheiro, tendo ainda dito que ele próprio transportou quantias na ordem dos 130 mil euros de Espanha para Portugal, sem que a patroa lhe apresentasse justificação racional e suficiente para tais factos. O mesmo sucedeu relativamente às várias viagens de avião que pela mesma eram fretados. Acresce que o arguido M. este sempre disponível para em tudo colaborar com a actividade da patroa, fazendo tudo o que lhe era ordenado e tendo acabado por confessar neste interrogatório que a partir de determinada altura confirmou as suas desconfianças no sentido de que a referida actividade se consubstanciava no tráfico de estupefacientes. Disse ainda que tal actividade era desenvolvida "por uma pequena organização". De realçar que das escutas telefónicas em que o arguido M. teve intervenção resulta claramente que o mesmo mantinha com a MM. uma relação bastante próxima, que em muito extravasava a relação profissional, resultando ainda de tais intercepções que o arguido tinha um amplo conhecimento da actividade acima referida.
Quanto ao arguido P., apesar de o mesmo ter negado ter o seu conhecimento relativamente à actividade desenvolvida pela MM. e pelas restantes pessoas que embarcaram no avião que veio a ser retido em Caracas, resulta também claramente das intercepções telefónicas em que o mesmo foi escutado que estava a par da referida actividade, mantendo já com a MM. uma relação bastante próxima. O arguido colaborou consciente e voluntariamente com as várias acções levadas a cabo pela associação, após ter sido, por várias vezes, contactado para o efeito pela MM.. Os contactos eram de tal forma frequentes que aquela ofereceu ao arguido um telemóvel que o mesmo utilizava cada vez que tinha que a contactar a ela ou ao arguido M. e vice-versa. Não soube o arguido explicar, de forma razoável, porque razão em determinada ocasião o arguido M. o contactou para lhe mostrar uma mala cujas dimensões o arguido P. analisou; da mesma forma que não soube explicar porque razão não lhe causou estranheza o facto de a MM. fretar aviões, alegando que deles precisava para se deslocar a reuniões próprias da empresa imobiliária inglesa que dizia possuir, sendo que se preocupava com as dimensões da bagageira do avião.
Foram assim várias as contradições detectadas entre as declarações dos arguidos os elementos informativos de que dispomos resultantes quer das reportagens fotográficas, quer das vigilâncias, quer das escutas ordenadas.
Escusamo-nos a relatar aqui qualquer situação concreta porquanto das mesmas nos dão conta com requintado pormenor os presentes autos de inquérito.
Importa realçar os elementos de que dispomos e que denunciam as ligações da actividade dos arguidos com pessoas de nacionalidades estrangeiras, o que é fortemente indiciador do carácter internacional da actividade desenvolvida pela organização com a qual os arguidos têm vindo a colaborar e a que acima fizemos referência, organização essa destinada à aquisição, transporte e distribuição de produtos estupefacientes, designadamente cocaína.
De acordo com as informações que até este momento foram carreadas para os autos e que foram até esclarecidas pelas próprias declarações do arguido M., na referida organização terão funções de chefia a MM., actualmente detida na Venezuela e os Colombianos R. e  V.; por seu turno os arguidos M. e P. terão a seu cargo funções relacionadas com o apoio técnico e logístico necessário ao desenvolvimento da actividade.
Considerando que o artigo 28° n.° 2 do referido Decreto-Lei n.° 15/93 de 22/01, dispõe que pratica o crime de associação criminosa quem prestar colaboração, directa ou indirecta, aderir ou apoiar o grupo, organização ou associação que vise praticar o crime previsto no art°. 21° do mesmo D.L., a nosso ver e de acordo com todos os elementos de que dispomos e a que já fizemos referência, encontra-se, sem dúvida, indiciada a prática por parte dos arguidos M. e P. de um crime de associação criminosa, em concurso real, como já dissemos, com a prática, em cumplicidade, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado (considerando a quantidade de droga apreendida na Venezuela que ronda os 400 quilos de cocaína em alto grau de pureza), p. e p. pelos artigos 21° e 24° do referido Decreto-Lei.
O crime de associação criminosa p. e p. pelo referido artigo 28°, n.° 2 tem como moldura abstracta a pena de 5 a 15 anos de prisão, sendo que o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21° do mencionado diploma é punido com idêntica pena a que acresce a agravação prevista no artigo 24°, pena esta que, "in casu", deverá ser especialmente atenuada nos termos previstos para a cumplicidade no artigo 27° n.° 2 do Código Penal. Do exposto se conclui que ambos os crimes indiciados são punidos com pena de prisão bastante superior a 3 anos.
Considerando o cariz da actividade desenvolvida pelo organização, bem como a dimensão da mesma - desde logo plasmado na quantidade de droga apreendida em Caracas e bem assim nos montantes económicos movimentados pelas várias pessoas envolvidas - não poderemos deixar de considerar existirem condições propícias à fuga dos arguidos, existindo igualmente perigo de perturbação do inquérito e das investigações ainda em curso. A intensidade e a natureza já bastante elaborada da actividade até este momento desenvolvida não se compadece, a nosso ver, com a liberdade dos arguidos. Entendemos que a única medida suficiente para fazer face às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir é de prisão preventiva.
Pelo exposto, tudo visto e ponderado, ao abrigo das disposições conjugadas dos tipos legais acima referidos e dos artigos 193.° n.° 1 e 2, 202°, n.° 1 alínea a) e 204°, als. a) b) e c) todos do C.P.P., determino a aplicação aos arguidos M. e  P. da medida de coacção de prisão preventiva».
No dia 26 de Janeiro de 2005, depois de, dois dias antes, a requerimento do arguido P., ter sido realizado um novo interrogatório judicial, o sr. juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal veio a proferir o seguinte despacho:
«No que tange ao arguido P. os elementos que pretendeu adicionar com o interrogatório que requereu e a que se procedeu não inculcam a alteração dos pressupostos de facto e de direito que estiveram subjacentes à aplicação ao arguido da medida de coacção vigente. Pelo exposto mantemo-la, operando o reexame a que alude o artigo 213° do Código de Processo Penal.
Quanto à sua situação de doença, a que alude o documento ora junto a fls. 1375, envie-se cópia do mesmo ao Exm° Director do E. P. onde se encontra a fim de os serviços clínicos do E. P. se pronunciarem sobre a existência de doença grave e quais as implicações do seu tratamento em Estabelecimento Prisional».

2 – O arguido  P. interpôs recurso desse despacho.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
«I – A decisão ora em recurso entendeu subsistirem os pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva.
II – Entendeu o tribunal a quo, mantendo os pressupostos que determinaram a aplicação da medida, que existe o perigo de fuga do Arguido e perigo de perturbação do inquérito e das investigações ainda em curso.
III – No que diz respeito aos perigos de fuga e de perturbação do inquérito e da investigação, serviu de base à fundamentação da sua verificação, as considerações absolutamente genéricas de que: " Considerando o cariz da actividade desenvolvida pela organização, bem como a dimensão da mesma - desde logo plasmado na quantidade de droga apreendida em Caracas e bem assim nos montantes económicos movimentados pelas várias pessoas envolvidas - não podemos deixar de considerar existirem condições propícias à fuga dos arguidos... " (itálico nosso).
IV – Tal despacho limita-se a tecer considerações genéricas sobre o tipo de actividade criminosa em causa, sobre as avultadas quantias que lhe está associada, não cuidando de descer ao plano da concretização de tais considerações, no que diz respeito ao ora recorrente.
V – Ao contrário das considerações explanadas pelo Meritíssimo Juiz de Instrução, não possui o recorrente avultadas quantias económicas nem manifesta, ou manifestou, quaisquer sinais de riqueza.
VI – O recorrente vive da sua pensão de reforma da aviação civil, onde foi piloto durante toda a sua vida profissional, e de algumas prestações de serviços que realiza no âmbito dos conhecimentos técnicos que possui, nomeadamente na área da segurança de voo e fretamento de aeronaves, e da sua recente actividade como responsável de operações da TAC (Transportes Aéreos Comunitários).
VII – E foi por ser evidente a proveniência lícita dos seus bens, designadamente o dinheiro que possui, não lhe foram apreendidas quaisquer quantias monetárias. Ora,
VIII – Perfilar o perigo de fuga na consideração genérica das elevadas quantias monetárias habitualmente ligadas ao tráfico de droga, sem cuidar da verificação em concreto de tais manifestações de riqueza no ora recorrente, é manifestamente abusivo e não faz a mais correcta aplicação da lei.
IX – Em momento algum, o despacho recorrido refere qualquer facto que demonstre em concreto a intenção do arguido de se furtar à acção da justiça, quer quando da aplicação da medida de coacção, quer no momento do reexame dos pressupostos da sua manutenção.
X – Também não existem quaisquer elementos que possam evidenciar o alegado perigo de perturbação da investigação ou do inquérito.
XI – O recorrente foi detido à saída de sua casa, mais de 24 horas depois de ter tido conhecimento da existência de problemas relacionados com o voo da aeronave, no aeroporto de Caracas.
XII – Na altura da detenção, o recorrente não manifestou qualquer resistência aos agentes da polícia judiciária que o abordaram. Mais, autorizou que os mesmos agentes entrassem em sua casa sem que fossem portadores de mandado judicial, efectuassem a busca e apreendessem os bens que entendessem. Ora,
XIII – Este comportamento do recorrente revela franca colaboração com a justiça e com o inquérito e vai em sentido radicalmente contrário às considerações feitas no despacho recorrido.
XIV – A prisão preventiva aplicada não teve em conta todos os elementos de facto existentes nos autos, não procedeu à necessária avaliação do comportamento do recorrente, castigando-o em vez de o premiar, radicando a sua aplicação em considerações meramente genéricas, tendo em conta o carácter necessariamente excepcional da sua aplicação.
XV – O comportamento manifestado pelo recorrente ao longo de todo o processo, o facto de estar familiarmente integrado, nunca ter tido qualquer problema com a justiça, pessoa de inegável reputação profissional e pessoal, obrigava a redobrado cuidado na avaliação dos pressupostos da aplicação da medida de coacção mais gravosa, a prisão preventiva.
XVI – Não existindo, como não existem, os perigos constantes no despacho recorrido, a manutenção da medida de coacção aplicada é manifestamente desproporcionada e ilegal, face às exigências cautelares que o caso em concreto impõe.
XVII – Outras medidas de coacção seriam adequadas e suficientes para acautelar os fins do processo em causa, nomeadamente as não privativas, em absoluto, da liberdade.
XVIII – Relativamente à verificação de fortes indícios da prática do crime, é notória a falta de substância de tal consideração, revelando o douto despacho recorrido, que mantém inalterados os pressupostos da aplicação da prisão preventiva, uma incorrecta apreciação da prova indiciária produzida, assim como não pondera acertadamente sobre a adequação e proporcionalidade da medida aplicada ao arguido.
XIX – Os elementos de prova com que o arguido foi confrontado não espelham a existência indiciária defendida pelo Ministério Público de que "... é impressionante a intensidade da actividade criminosa desenvolvida por estes indivíduos... ", muito longe disso. E acrescente-se que em sede da aplicação de medidas de coacção, não se exigem indícios quaisquer, mas sim indícios fortes (sublinhado nosso).
XX – A prova indiciária recolhida é frágil e os alegados indícios da sua participação no crime alimentam-se duma tese criada e concebida em torno das suas capacidades profissionais e conhecimentos técnicos.
XXI – Pretende o Ministério Público, a todo o custo, encaixar o perfil profissional do arguido na operação do tráfico de droga que redundou na apreensão do Citation X na Venezuela, esquecendo as evidências que contrariam a sua participação, as quais teve oportunidade de esclarecer e às quais, erradamente, não foi dada a devida relevância e ponderação.
XXII – Os conhecimentos técnicos que o recorrente possui contradizem em absoluto a forma como tal operação foi conduzida, a atender aos factos conhecidos e que levaram à apreensão das malas e à detenção dos passageiros e tripulação do Citation X, em pleno aeroporto de Caracas.
XXIII – Ao manter a prisão preventiva ao arguido, o despacho recorrido violou claramente o princípio da adequação e proporcionalidade previstos no artigo 193°, n.° 1, do CPP, por as exigências cautelares, neste caso, afastarem completamente a necessidade de tal medida.
XXIV – Com a manutenção de tal medida, o despacho recorrido viola igualmente, por errada interpretação, o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva, “ultima ratio” das medidas de coacção, quando outras medidas cautelares satisfariam os fins últimos do processo penal.
XXV – A não se entender que uma medida de coacção não privativa da liberdade é adequada e suficiente a tais fins, sempre o Meritíssimo Juiz a quo poderia ter aplicado outra medida da mesma natureza, mas menos gravosa, nomeadamente a obrigação de permanência na habitação, prevista no artigo 201° do Código de Processo Penal, se necessário com recurso aos mecanismos legais de vigilância electrónica.
XXVI – Ao manter tal decisão, sem qualquer outra fundamentação, mais não fez do que represtinar os fundamentos da aplicação da medida ao tempo do primeiro interrogatório do arguido, enfermando a mesma do vício de falta de fundamentação, por violação do disposto no artigo 97°, n.° 4 do CPP e do artigo 205°, n.° 1, da CRP.
XXVII – Foram assim violadas as disposições previstas nos artigos 97°, 193°, 202° e 204°, todas do CPC e nos artigos 205° da CRP.
XXVIII – Pelo que, dando-se provimento ao recurso, deve o douto despacho recorrido ser revogado, devendo ser aplicada outra medida de coacção ao arguido que se seja adequada a acautelar os fins do processo penal».

3 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 1626.
4 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 23 a 31 deste apenso).

5 – Neste tribunal, a srª. procuradora-geral-adjunta, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o parecer de fls. 265 e 265 verso deste apenso no qual defende a improcedência do recurso.

6 – Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi junto qualquer outro articulado.

7 – Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo arguido e os poderes de cognição deste tribunal, importa apreciar e decidir as seguintes questões:
- a falta de fundamentação do despacho recorrido;
- a existência de fortes indícios da prática de crime punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
- os perigos de fuga e de perturbação do inquérito;
- a violação dos princípios da adequação, proporcionalidade e subsidiariedade.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A falta de fundamentação do despacho recorrido
8 – O recorrente alegou que o despacho recorrido padecia do vício de falta de fundamentação, o que, em seu entender, violaria o disposto no artigo 97°, n.° 4, do Código de Processo Penal e no artigo 205°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa.
Não vemos, salvo o devido respeito, que assim seja.
Na realidade, o despacho recorrido reafirma o teor do despacho que inicialmente aplicou a prisão preventiva ao recorrente, remetendo para o que nele oportunamente se tinha dito, e este despacho, como se pode ver pela transcrição que dele se fez, encontra-se suficientemente fundamentado, quer em termos de facto, quer em termos de direito. Mas, mesmo que assim não fosse, ter-se-ia de considerar sanada tal irregularidade (artigos 97°, n.° 4, 194°, n.° 3, 118°, n.°s 1 e 2, e 123°, n.° 1, todos do Código de Processo Penal) uma vez que ela não foi arguida tempestivamente.
Improcede, por isso, nesta parte, o recurso interposto.

A existência de fortes indícios da prática de crime punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos
9 – O tribunal recorrido considerou que os autos continham fortes indícios da prática pelo recorrente de um crime de associação criminosa, conduta p. e p. pelo n.° 2 do artigo 28° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, e da cumplicidade na prática de um crime de tráfico de droga p. e p. pelos artigos 21° e 24° do mesmo diploma legal.
Analisemos então os indícios recolhidos nos autos até ter sido proferido o despacho recorrido.
Resulta, em primeiro lugar, das conversações telefónicas mantidas entre MM. e o recorrente nos dias 8 e 9 de Setembro de 2004 (sessões n.°s 1456, 1463 e 1475) que, no dia 11 de Setembro de 2004, na noite de sexta-feira para sábado, se iria realizar, num aparelho Falcon, um voo particular entre Tires e Caracas em que deviam viajar quatro pessoas, entre as quais o recorrente e a referida MM.. O preço base desse voo, que deveria demorar 4 dias, era de 169.000 euros. Esse voo devia fazer escala em Goiana onde estava previsto que o recorrente e a MM. se reunissem com um terceiro (fls. 286 a 295). Por conversas posteriormente interceptadas fica-se a saber que tudo se veio a passar conforme o previsto.
Em conversas telefónicas mantidas nos dias 17 e 22 de Setembro o recorrente e a referida MM. discutiram as condições de realização de um novo voo, desta vez num avião Citation X, acabando por ser marcado para o dia 23 apesar de a MM. ter afirmado que aquele aparelho não dava «para o que nós queremos», ao que lhe foi respondido pelo recorrente que «em princípio não, porque não tem a bagageira com o espaço» (fls. 296 a 299).
Através de uma vigilância realizada no dia 21 de Outubro constatou-se que várias pessoas, entre as quais a mencionada MM., o recorrente e o co-arguido  M., jantaram no Hotel Tivoli Tejo, em Lisboa. Por volta da 01H15 dirigiram-se todos para o aeroporto de Lisboa onde o recorrente e o co-arguido M. acompanharam as restantes pessoas até ao último controlo que dá acesso à placa saindo juntos cerca de 15 minutos depois. Quatro passageiras embarcaram para um novo voo numa aeronave com matrícula CS-DCT, Tipo CNJ, aparelho que tinha como destino o Sal (fls. 136 e segs.).
No dia 23 de Outubro, às 7H39, a mencionada MM. ligou para o recorrente pedindo-lhe que telefonasse aos comandantes do avião para os convencer a «meter a porcaria das malas» uma vez que, com estas fora, a Polícia ainda lá chegava e apreendia tudo e ficavam lá todos presos (sessão 99, a fls. 281).
Nesse mesmo dia, a tripulação e três das passageiras desse aparelho, entre as quais a referida MM., vieram a ser detidas num aeroporto na Venezuela por pretenderem transportar nesse avião diversas malas contendo cerca de 384,6 Kgs. de cocaína (fls. 147).
Numa conversa telefónica entre o recorrente e o co-arguido M., realizada entre as 12H44 e as 12H46 desse mesmo dia 23 de Outubro (sessão n.° 44), o recorrente manifestou a convicção de que o avião deveria chegar no dia seguinte a Tires, dizendo o co-arguido M. que lá deixaria estacionado o que se percebe ser um veículo e comprometendo-se o recorrente a passar por lá (fls. 300).
De acordo com uma vigilância externa realizada nesse mesmo dia o co-arguido M. tinha-se dirigido anteriormente a uma empresa de aluguer de veículos onde lhe foi entregue uma viatura Ford, modelo Transit, de matrícula ..-..-.., que depois, pelas 13H45, conduziu junto ao aeroporto de Tires e que aí deixou estacionada (fls. 148 e 149).
Em novo contacto telefónico entre os dois arguidos (sessão 119, a fls. 282) o recorrente disse ao co-arguido M. que tinha havido um azar grave e que quando desejasse podia lá ir buscar a carrinha. O M. respondeu-lhe que ia falar para os de Espanha, com o que o recorrente concordou sugerindo-lhe que dissesse que houve azar e que estava tudo retido.
Ora, em face destes elementos, parece que não se pode duvidar da existência de fortes indícios de que o recorrente, dolosamente, colaborou com o co-arguido M. e com a referida MM. na importação da mencionada quantidade de cocaína, o que, pelo menos, constitui um acto de cumplicidade no tráfico de droga, conduta p. e p. pelo artigo 27° do Código Penal e pelo n.° 1 do artigo 21° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro.
Embora consideremos que não se indicia fortemente a prática de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo n.° 2 do artigo 28° do mesmo diploma, porque não nos apercebemos da existência de qualquer estrutura que extravase a organização e coordenação necessárias para o cometimento de uma infracção desta natureza, tendo em conta o carácter organizado e prolongado no tempo da actividade ilícita, o crime de tráfico de droga poderá ser qualificado nos termos da alínea j) do artigo 24° daquele diploma (por se considerar que o arguido actuou como membro de um bando destinado à prática reiterada de crimes de tráfico de droga em colaboração com, pelo menos, um outro membro do bando).
Mas, mesmo que assim não se venha a entender, a conduta indiciada será sempre punível, no mínimo, em abstracto, com prisão de 9 meses e 18 dias a 8 anos.

Os perigos de fuga e de perturbação do inquérito
10 – Comprovada a existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, importa agora ver se se verifica algum dos perigos enunciados no artigo 204° do Código de Processo Penal.
Embora na parte final do despacho que aplicou a prisão preventiva se citem as três alíneas desse preceito, na sua fundamentação apenas se invoca a existência de perigo de fuga e de perigo de perturbação do inquérito.
Diga-se, em primeiro lugar, que não vislumbramos a existência, em concreto, de qualquer dos perigos enunciados na alínea b) do citado artigo 204° que, de resto, não surge minimamente concretizado em nenhum dos despachos proferidos. De facto, não se vê em que é que, depois de 6 meses de investigações prévias, durante as quais se fizeram escutas e vigilâncias documentadas fotograficamente, e depois de terem sido realizadas buscas, o recorrente poderia impedir a aquisição, conservação ou veracidade da prova.
O mesmo não acontece, porém, com o invocado perigo de fuga.
Embora se admita a existência de factores que possam contrariar esse perigo, como seja a idade do arguido, o certo é que pela gravidade concreta do crime que se indicia e pela previsível dimensão das reacções criminais que lhe serão aplicadas, pelas ligações e facilidade de movimentação no estrangeiro propiciadas pela anterior e actual profissão do recorrente e pelo carácter organizado e transnacional do crime que se indicia, se verifica, em concreto, perigo de fuga (alínea a) do artigo 204° do Código de Processo Penal).
Por isso, ao recorrente não pode deixar de ser aplicada uma medida de coacção que procure obstar à concretização desse perigo.

A violação dos princípios da adequação, proporcionalidade e subsidiariedade
11 – A medida a aplicar deve ser adequada às exigências cautelares que o caso requer (primeira parte do n.° 1 do artigo 193° do Código de Processo Penal), ou seja, deve ser apta a responder ao perigo de fuga que, como se disse, existe e com a intensidade com que ele se manifesta.
Ora, não se pode duvidar de que a prisão preventiva é uma medida eficaz para alcançar este fim.
De facto, de entre todas as medidas de coacção previstas nos artigos 196° a 202° do Código de Processo Penal é ela que apresenta maior aptidão para obstar à fuga do arguido.
É, por isso, adequada para responder ao perigo que se verifica.

12 – Referiu-se anteriormente que a conduta indiciada era punível, em abstracto, pelo menos, com prisão de 9 meses e 18 dias a 8 anos. Ora, tratando-se de actos de colaboração de relevo numa operação de importação por via aérea de uma grande quantidade de cocaína é previsível que, a provarem-se em julgamento os factos até agora indiciados e atrás descritos, e não obstante a idade do arguido e a ausência de antecedentes criminais, o recorrente venha a ser condenado numa pena de prisão efectiva superior ao ponto que medeia entre o mínimo e o máximo da moldura abstracta legalmente estabelecida.
Por isso, não se pode considerar que a aplicação da prisão preventiva constitua um excesso violador do princípio da proporcionalidade (segunda parte do n.° 1 do artigo 193° do Código de Processo Penal).

13 – Resta saber se existe alguma outra medida de coacção que, sendo menos gravosa, possa responder de uma forma suficientemente eficaz ao perigo verificado.
Não é o caso, manifestamente, das previstas nos artigos 196° a 199° do Código de Processo Penal.
A única alternativa à aplicação da prisão preventiva seria a que resultava da conjugação da medida prevista no artigo 200°, n.° 1, alínea b), e n.° 3 (proibição de ausência para o estrangeiro com obrigação de entrega do passaporte) com a prevista no artigo 201°, n.°s 1 e 2, do Código de Processo Penal e na Lei n.° 122/99, de 20 de Agosto (obrigação de permanência na habitação com utilização de meios técnicos de controlo à distância). Porém, estas medidas não são compatíveis entre si e, isoladamente, nenhuma delas assegura de forma satisfatória a prossecução do fim que se tem em vista. Cada uma delas, só por si, é insuficiente para conter o perigo de fuga que se verifica.
Por isso, e não obstante o carácter subsidiário e excepcional da prisão preventiva, não se vê que exista qualquer outra medida que a possa substituir a prisão preventiva que foi aplicada ao arguido.
Daí que o recurso por ele interposto deva improceder.

A responsabilidade pelas custas
14 – Uma vez que o arguido decaiu no recurso que interpôs é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 3 do artigo 87º do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre 1 e 15 UCs.
Tendo em conta a situação económica do arguido e a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 7 UCs.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) negar provimento ao recurso interposto pelo arguido  P.;
b) condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 7 (sete) UCs.
²

Lisboa, 1 de Junho de 2005


(Carlos Rodrigues de Almeida)


(Horácio Telo Lucas)


 (António Rodrigues Simão)