Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO RAMOS DE SOUSA | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO CADUCIDADE DO CONTRATO ACÇÃO DE DESPEJO ARRENDATÁRIO MORTE PROVA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/06/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I) Em acção de despejo assente na pretensa extinção, por caducidade ( decorrente do falecimento da arrendatária ), do contrato de arrendamento, se a morte estiver controvertida, será necessário prová-la. II) E, para prová-la, será necessário apresentar a respectiva certidão do registo civil (certidão do registo do óbito, ou outra certidão do registo civil onde estiver averbado o óbito), porque a morte está sujeita a registo civil obrigatório. Na sentença, o tribunal declarará se julga provada a morte. E só pode julgá-la provada em face dessa certidão do registo civil. III) Mas se, na fase da fixação da base instrutória, a morte não estiver controvertida, também será necessário prová-la. É que o art. 490-2 do CPC impede que ela seja considerada admitida por acordo: “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo (...) se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito”. IV) Porém, porque a morte é um facto sujeito a registo civil obrigatório, só pode ser provada mediante documento escrito, isto, mediante é certidão do registo civil – arts. 1º, 4º e 211 do CRC (Código do Registo Civil). | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Relatório O 3º Juízo Cível de Lisboa julgou improcedente a acção intentada por A (autora, recorrente) contra B (ré, recorrida), absolvendo-a assim dos pedidos da A., que eram: a) Declarar extinto, por caducidade, o contrato de arrendamento referido nos autos, e condenar a Ré a despejar o arrendado, entregando-o, livre e devoluto, à A. b) Declarar ilegal a ocupação do locado pela Ré, condenando-a a pagar, a título de indemnização, 250,00 euros mensais desde a citação até efectiva devolução, com juros de mora à taxa legal. Quanto à caducidade, fundamentava-se a A. na invocação do falecimento da arrendatária do local, daí resultando, aliás, os demais pedidos formulados na acção. O tribunal ponderou que o falecimento da arrendatária não havia ficado provado nos autos, por não ter sido apresentado em tempo o respectivo assento de óbito. Não logrando a Autora fazer tal prova, a acção soçobrara na totalidade, ficando prejudicada a decisão das demais questões. Recorre agora a A., alegando: a) Violação do caso julgado. b) A morte da arrendatária estava admitida por acordo, pelo que deveria ter sido dada como provada. c) Contradição insanável entre os fundamentos e a decisão: pois a sentença, por um lado admitiu ter ocorrido a morte da arrendatária, mas mais abaixo considerou que tal facto não está provado. d) Omissão do conhecimento do facto morte (não se entendendo haver a contradição anterior). A Ré não contra-alegou. O Tribunal a quo sustentou o decidido. Cumpre decidir as seguintes questões: 1- Se houve violação do caso julgado. 2- Se a morte da arrendatária deveria ter sido considerada admitida por acordo. 3- Se houve contradição entre os fundamentos e a decisão. 4- Se houve omissão do conhecimento do facto morte. Fundamentos Factos: O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos: 1º) Maria ….., viúva, e B , divorciada, adquiriram por sucessão hereditária de Pedro ….., o imóvel correspondente à fracção “D”, sito nas ….., nº 9, em Lisboa, descrito na 4ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, PA. 10, de 200/11/14, sob o nº 0000 – cfr. certidão de fls. 8 a 10. (Facto A) 2°) B adquiriu o imóvel precedentemente identificado, por sucessão hereditária de Maria ….. — cfr. escritura pública de habilitação de herdeiros, donde consta: “Arquivo duas certidões de registo civil: uma de óbito e uma de nascimento. — cfr. fis. 77 e 78.(Facto B) 3°) Com início em 01/09/1962, por contrato de arrendamento verbal, os anteriores proprietários do imóvel referido em A) deram de arrendamento a Vitória ….., a cave direita do referido prédio, pela renda mensal de 600$00, conforme “Declaração de Arrendamento”entregue nas Finanças do 2° Bairro Fiscal de Lisboa, datada de 10/01/1964 — cfr. fls. 11. (Facto C) 4°) A renda do locado é actualmente de € 60,00— cfr. fls. 12. (Facto D) 5°) Os recibos foram sempre emitidos em nome da arrendatária Victória …... (Facto E) 6°) A R. apresentou-se à A. como sendo filha da arrendatária. (Facto G) 7°) Do registo de nascimento da R. não consta que a R. seja filha de Victória ….- cfr. certidão emitida em 25/09/2007, junto aos autos a fls. 13 e 14. (Facto H) 8°) Com data de 02/10/2007, o mandatário da A. enviou à R. a carta registada junta aos autos a fls. 15 e 16 e que aqui se dá por reproduzida, na qual consta, em síntese: - ter o contrato de arrendamento celebrado com Victória ….. caducado por força do seu falecimento; - nunca a R. ter exibido os documentos comprovativos do título que a habilita para ocupar o imóvel: - ter tido a A., nesta data, conhecimento, através de certidão de nascimento, que a R. não é descendente da anterior arrendatária; - não existindo motivos legais que justifiquem a transmissão do arrendamento, agradece-se a entrega, no prazo máximo de trinta dias, do imóvel livre de pessoas e bens. — cfr. fls. 15 a 19. (Facto I) 9°) A R. recusa-se a devolver o imóvel, não o tendo feito até à presente data. (Facto J) 10°) Dá-se por reproduzido o “Atestado” emitido pela Junta de Freguesia do Socorro, com data de 27/05/2008, no qual, o Presidente da referida Junta de Freguesia “atesta, mediante declarações do próprio (...) que B , de 61 anos de idade,no estado civil de viúva, de profissão Reformada, filha de Alberto …. (...) é residente nesta freguesia e moradora há 61 anos na …., 9-c/v-dto.” — cfr. fls. 57 (Facto L) 11°) A A. solicitou à R. a entrega do imóvel assim que teve conhecimento do facto de a arrendatária do imóvel não constar como mãe da R. no seu registo de nascimento. (Facto 3) 12°) A ora R. sempre viveu no locado, com Victória …., desde que nasceu até à morte desta. (Facto 6) 13°) A R. comunicou verbalmente o falecimento da arrendatária ao pai da A. (Facto 7) 14°) A partir do falecimento da arrendatária, foi a R. quem passou a deslocar-se à tipografia da qual o pai da A. era proprietário, para pagar as rendas do locado. (Facto 8) 15º) Provado apenas o que consta dos factos 7 e 8. Desta matéria de facto, constante da sentença recorrida, apenas está em discussão se deve dar-se ou não como assente a morte da arrendatária Vitória ….. É o que se apreciará a seguir. Análise jurídica: 1. O tribunal a quo não violou o caso julgado. Segundo a Recorrente, o Tribunal a quo violou “orientações vinculativas” recebidas do Tribunal da Relação, ao não valorar os vários elementos de prova constantes dos autos, nomeadamente a confissão da Ré na contestação da morte da arrendatária Vitória ……. Violou o disposto no art. 156-1 do CPC, verificando-se assim anulabilidade da sentença. Recorde-se que da base instrutória elaborada pelo Tribunal a quo constava a seguinte questão: “(5) Victória ….. faleceu em 28/12/1982 ?”. (Neste nome, houve lapso de escrita, que assim se rectifica: o nome correcto, várias vezes referido no despacho é Vitória ……). E no final do mesmo despacho avisava-se: “O facto 5º da B.I. só pode ser demonstrado pela apresentação da competente certidão de óbito da arrendatária Vitória …., aliás já protestada juntar pela R”. No despacho sobre a resposta à base instrutória este facto foi julgado “Não provado”. E o Tribunal justificou: “Não se considerou provado o facto 5 (…) por a morte ser um acto sujeito a registo e os actos sujeitos a registo só serem susceptíveis de prova por documento autênticos, maxime assento de óbito, em conformidade com o disposto nos arts. 1º e 2º do Código de Registo Civil”. Alguns dias depois, veio a A. apresentar uma certidão de óbito, mas o Tribunal recusou-a, por inadmissibilidade legal: já estava encerrada a discussão da matéria de facto e já havia sido proferida a respectiva decisão. Houve recurso, mas o TRL (Tribunal da Relação de Lisboa, 1ª Secção) confirmou a decisão. Ao analisar a questão naquele recurso, o TRL notou que, quando carreou para a base instrutória a morte da arrendatária, como facto a provar, o Tribunal de 1ª instância deu um sinal/aviso para a conveniência de a parte interessada, in casu a autora, requerer a junção aos autos do documento pertinente. Ora, observou o TRL, “não obstante, ainda assim, nada fez a autora, só tendo acordado para a omissão de um determinada ónus probatório quando confrontada foi com o teor do despacho da matéria de fato provada e não provada, o que já era tarde”. Mas o TRL prossegue com a observação seguinte, sublinhada entre parênteses: “(sem prejuízo, ainda assim, de, em sede de sentença, por força do disposto no artº 659º, nº 3, do CPC, o facto óbito poder e dever ser considerado/valorado, porque para todos os efeitos confessado pela Ré – vide art. 19º da contestação – e, ademais, em acção declarativa de condenação, que não se trata de acção de estado, não será de exigir necessariamente a prova documental do facto óbito, mediante a junção da competente certidão)”. Qual o alcance desta afirmação ? Era ela obrigatória para o Tribunal a quo ? No despacho de sustentação, observa-se: “Que este Tribunal não estava vinculado à consideração contida em acórdão proferido em sede do recurso a que alude a recorrente, afigura-se-nos ser inquestionável, uma vez que tal consideração não integra a decisão daquele acórdão nem é susceptível de configurar caso julgado”. É preciso concordar que aquela referência do acórdão, porque feita de passagem, e não sendo fundamento lógico da decisão, constitui um mero obiter dictum. Não é uma directiva imposta ao Tribunal a quo, mas antes um mero considerando, uma opinião não vinculativa do tribunal superior. Assim, não houve violação do caso julgado. 2. A morte da arrendatária não pode ter-se por admitida por acordo ou confessada Na fase da fixação da base instrutória, o juiz selecciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa (…) que deva considerar-se controvertida – art. 511-1 do CPC. Mas só selecciona a matéria de facto que deva considerar-se controvertida. Se a morte estiver controvertida, será necessário prová-la. E para prová-la será necessário apresentar a respectiva certidão do registo civil (certidão do registo do óbito, ou outra certidão do registo civil onde estiver averbado o óbito), porque a morte está sujeita a registo civil obrigatório. Na sentença, o tribunal declarará se julga provada a morte. E só pode julgá-la provada em face dessa certidão do registo civil. Mas se, na fase da fixação da base instrutória, a morte não estiver controvertida, também será necessário prová-la. É que o art. 490-2 do CPC impede que ela seja considerada admitida por acordo: “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo (...) se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito”. E a morte, sendo um facto sujeito a registo civil obrigatório, só pode ser provada mediante documento escrito, isto, mediante é certidão do registo civil – arts. 1º, 4º e 211 do CRC (Código do Registo Civil). Embora seja necessário prová-la, não é aconselhável incluí-la na base instrutória. Como diz Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, p. 446, Almedina, Coimbra), não deverão ser incluídos na base instrutória: “os factos 'necessitados de prova' por a lei apenas exigir a sua demonstração através de certo meio probatório, dotado de força probatória plena – e portanto subtraídos à apreciação do colectivo (art. 646º, nº 4): na verdade, a 'diluição' na base instrutória deste tipo de factos – maxime dos que só podem ser provados documentalmente – criaria o risco sério de o colectivo acabar, por lapso manifesto, por lhes dar indevidamente resposta, cometendo a consequente nulidade. (…) É óbvio porém – atenta a fisionomia da audiência preliminar – que nada obsta a que, na própria acta, se lhes possa fazer referência, alertando a parte interessada para a necessidade de juntar oportunamente aos autos o documento que é o único meio probatório susceptível de legalmente os demonstrar”. No presente caso, a Juíza do Tribunal a quo optou por incluir esse facto na base instrutória, mas alertando na acta para a necessidade de ser provada por certidão de óbito. Com isto, a Autora ficou alertada para a necessidade de apresentar o meio probatório que a lei exige. Não houve inversão do ónus da prova No caso dos autos, a Autora começou por afirmar que “a arrendatária (Victória …..) faleceu” (art. 4º da p.i.). Com esta alegação, invocou um facto constitutivo do seu direito, um facto susceptível de controvérsia. E o ónus da prova seria aqui da Autora, porque era um facto constitutivo do seu direito – art. 1051-d do CC (Código Civil). Mas a Ré na contestação disse que a referida arrendatária Vitória “faleceu em 28 de Dezembro de 1982, ora se protestando juntar o respectivo Assento de Óbito” (art. 29 da contestação; ver também o art. 19). Com isto, o facto morte parece que deixou de ser controvertido; mas não pode considerar-se admitido por acordo ou confessado, continuando a estar sujeito a prova, como vimos. Na ocasião, a Ré protestou juntar o assento de óbito; mas não era seu ónus juntá-lo, porque o ónus da prova era da Autora. Poderá perguntar-se se esta promessa em juízo, “protesto juntar”, terá algum efeito no ónus da prova, nomeadamente levar à inversão do ónus da prova nos termos do art. 344 do CC. Entendemos que não. O ónus da prova não se inverteu porque não houve presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido; nem a lei em geral o determina neste caso – art. 344-1. Também não se pode dizer que esta promessa solene da Ré, tenha culposamente tornado impossível a prova à Autora – art. 344-2. O Tribunal advertira para a necessidade de ser apresentada a respectiva certidão de óbito e se a autora estivesse atenta (bastaria consultar o processo antes do julgamento) teria constatado a falta. Mas esqueceu que o ónus era seu. E foi surpreendida com a resposta de “Não provado” ao facto 5 da base instrutória. Se se tivesse apercebido da falta, poderia, em último caso, ter pedido a suspensão da instância para a obter. O que se verificou aqui foi uma não actuação processual. Que, naturalmente, tem consequências desfavoráveis para a Autora. Sibi imputet. Nem se vê aqui, da parte da Ré, qualquer violação do princípio da lealdade processual, ou da boa fé exigível às partes em juízo. Também não se vê que a morte da antiga arrendatária possa ter-se por confessada na contestação, uma vez que a respectiva prova só pode fazer-se por documento autêntico do registo civil, conforme vimos. 3. Contradição entre os fundamentos e a decisão De qualquer modo, a sentença “desliza” para o reconhecimento da morte da arrendatária Vitória, nomeadamente quando dá como provado (Facto 14º) que “a partir do falecimento da arrendatária, foi a R. quem passou a deslocar-se à tipografia, da qual o pai da A. era proprietário, para pagar as rendas do locado”. Aqui há manifesta desconformidade porque, se não pode dar-se como provada a morte, também não poderá dar-se como provada matéria que implica o reconhecimento da morte. Torna-se apenas necessário corrigir a matéria dada como assente, expurgando dela as referências à certeza da morte da arrendatária, conforme o permite o art. 712-1-b do CPC. Aproveita-se também para corrigir o nome dessa arrendatária, onde há um manifesto lapso de escrita. Assim, nos factos 12º e 14º, onde está 12º) A ora R. sempre viveu no locado com Vitória ..., desde que nasceu até à morte desta. ... 14°) A partir do falecimento da arrendatária, foi a R. quem passou a deslocar-se à tipografia da qual o pai da A. era proprietário, para pagar as rendas do locado. (Facto 8) rectifica-se para 12º) A ora R. sempre viveu no locado com Victória…, desde que nasceu até à alegada morte desta. ... 14°) A partir do alegado falecimento da arrendatária, foi a R. quem passou a deslocar-se à tipografia da qual o pai da A. era proprietário, para pagar as rendas do locado. (Facto 8) O facto 13 não carece de rectificação, pois só dá como provado que a Ré comunicou a morte, e não dá como provada a morte da arrendatária Vitória. Com tais rectificações, são estes (1º a 14º) os factos que este TRL dá por assentes e já não há contradição entre as premissas ou entre os fundamentos e a decisão. 4. Não houve omissão do conhecimento do facto morte Segundo o recorrente, não se admitindo a alegada contradição entre os fundamentos e a decisão, a decisão recorrida seria omissa no conhecimento do facto morte. Não houve omissão de pronúncia sobre esta matéria porque o Tribunal a quo pronunciou-se sobre essa alegação considerando não provada a morte. Obviamente, se a morte não ficou provada, o Tribunal retirou daí as devidas consequências, julgando a acção improcedente. E assim a decisão recorrida não merece censura. Não se provando a morte da arrendatária, não se pode concluir pela caducidade do arrendamento que era o fundamento do pedido da Autora – art. 1051-d do CC, ficando prejudicados todas as demais questões. Decisão Assim, pelo exposto, e com as rectificações apontadas da matéria de facto, decide-se confirmar a sentença recorrida. Custas pela Recorrente. Processado e revisto. Lisboa, 6 de Dezembro de 2011 João Ramos de Sousa Manuel Ribeiro Marques Pedro Brighton |