Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
965/23.4PBLRS.L1-5
Relator: ANA LÚCIA GORDINHO
Descritores: RECUSA DE DEPOIMENTO
UNIÃO DE FACTO
PERÍODO DE COABITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/21/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I. A recusa de depoimento só pode ocorrer nos casos previstos na lei – cf. artigos 131.º, n.º 1 e 134.º do Código de Processo Penal – sendo , por isso, uma exceção.
II. Os casos de recusa estão expressamente previstos no artigo 134.º do Código de Processo Penal, onde se reconhece às pessoas ali mencionadas - parentes, afins, adotantes, adotados, cônjuges e conviventes em condições análogas às dos cônjuges – a possibilidade de se recusarem a depor como testemunhas.
III. A faculdade de recusar depoimento é um direito da testemunha, que pode assim evitar um conflito que resultaria em poder contribuir para a condenação de quem lhe é muito próximo ao cumprir o dever de falar com verdade.
IV. No que se refere ao casamento basta que no momento da declaração a testemunha esteja casada com o arguido para que lhe assista o direito de se recusar a depor, independentemente de existir ou não convivência efetiva com o arguido. Já na união de facto exige-se a convivência efetiva com o arguido, ou seja, a coabitação e a recusa apenas se refere a factos ocorridos durante a coabitação.
V. Em sede de direito de recusa, o legislador não pretendeu realizar uma equiparação completa entre o casamento e a união de facto e tal distinção não viola o princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13.º da CRP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
No processo comum singular, que corre termos no Juízo Local Criminal de Loures, Juiz 1, foi decidido que a atual companheira do arguido podia recursar-se a depor relativamente a factos ocorridos fora do período da coabitação, declarando-se a inconstitucionalidade da alínea b) do n.º 1 do artigo 134.º do Código de Processo Penal, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), ao não prever que a pessoa que com o arguido convive em condições análogas às dos cônjuges se pode recusar depor como testemunha relativamente a factos ocorridos fora do período da coabitação, nos mesmos termos em que o artigo 134.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal prevê essa faculdade para o cônjuge do(a) arguido(a).
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Inconformados com esta decisão, recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
“1. Na diligência de audiência de julgamento, que ocorreu no dia 14.01.2025, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, no decorrer do depoimento de AA, ofendida nos autos, permitiu-lhe a recusa na prestação de depoimento, após a mesma informar que, presentemente, reside com o arguido, como se de marido e mulher se tratassem.
2. No seguimento do exposto, o Ministério Público, naquela mesma diligência de audiência de julgamento, arguiu a verificação/ocorrência de uma nulidade sanável, nos termos do art.º 120, n.º 1 al. d) do Código Processo Penal, uma vez que, por um lado, em nosso entendimento, a prestação do depoimento de AA era essencial para a descoberta da verdade material, por outro, que das informações recolhidas, junto do arguido e da ofendida nos autos, resultou que estes não são, nem em momento algum foram, casados, e por fim, que, nos termos do art.º 134.º, n.º 1, al. b) do Código Processo Penal, apenas podem recusar-se a depor como testemunha “…Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação…”, ou seja, que inexiste qualquer previsão legal que permitisse ou facultasse que ofendida nos autos se pudesse recusar a prestar declarações como testemunha, sendo que, ao conceder tal recusa, o Tribunal a quo, contrariando o legalmente estatuído, não efectuou uma diligência que se reputa como essencial para a descoberta da verdade, e por conseguinte, incorreu na prática de uma nulidade sanável.
3. O Juiz do Tribunal a quo, apenas se pronunciou quanto ao anteriormente expendido, na diligência de audiência de julgamento de 24.01.2025, através de despacho com o seguinte teor:
“… DA ALEGADA NULIDADE PELO FACTO DE O TRIBUNAL TER DISPENSADO A OFENDIDA DE TESTEMUNHAR, POR ESTAREM EM CAUSA FACTOS OCORRIDOS FORA DO PERÍODO DA COABITAÇÃO
Após a testemunha/ofendida AA ter sido questionada acerca do relacionamento actual que tem com o arguido, disse viver em união de facto com o mesmo, tendo-se recusado a prestar depoimento, foi dispensada pelo Tribunal. Nessa sequência, o Digno Magistrado do Ministério Público propugnou: “O art. 134º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, dispõe que podem recusar-se a depor como testemunhas quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
Ora compulsado o despacho de acusação verifica-se que os factos imputados ao arguido referem-se a período em que arguido e ofendida não eram companheiros, não tinham qualquer tipo de relação, não coabitavam juntos, razão pela qual, atenta a natureza da sua relação actual o Ministério Público entende que a ofendida não se pode recusar a prestar depoimento, razão pela qual, não lhe deveria ter sido dada tal faculdade, pelo que ocorreu uma nulidade, mais concretamente a nulidade prevista no art. 120º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal, a qual se arguiu para todos os efeitos tidos por convenientes.”
Atento o processado, ponderando a posição do Digno Magistrado do Ministério Público, consideramos não se ter verificado a apontada nulidade.
Vejamos.
Atendendo o facto de a ofendida, identificada na diligência do passado dia 14 de Janeiro de 2025, ter mencionado que é, actualmente, companheira do arguido, coloca-se a questão de saber se a mesma se pode recusar a prestar declarações relativamente a factos ocorridos fora do período da coabitação, nos termos do art. 134º, n.º 1, al. b), do C.P.P. e uma vez que os factos 5 e seguintes da acusação se referiram a alegados ilícitos perpetrados fora do período de coabitação.
Considera o Tribunal que lhe é conferida essa possibilidade, uma vez que tal direito é conferido aos cônjuges dos arguidos, nos termos da al. a), do n.º 1, do art. 134º, do C.P.P. pelo que ocorreria a violação do princípio da igualdade, caso tal não fosse admissível.
Caso ocorresse essa impossibilidade de recusa, tal consubstanciaria uma violência para com a testemunha que poderia originar que o seu depoimento incriminasse o próprio companheiro, deteriorando, assim, os laços/vínculos existentes.
Seguimos, ainda, o entendimento de Paulo Pinto Albuquerque, quando o mesmo propugna:
“2. A lei nova, ao modificar a al.ª b), curou de precisar que as relações análogas às dos cônjuges incluem os casais do mesmo sexo, mas não sanou a inconstitucionalidade da mesma. O artigo 134º, n.º 1, al. b) é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP), na medida em que não prevê o direito da pessoa que com o arguido convive em condições análogas às dos cônjuges recusar depor como testemunha relativamente a factos ocorridos antes da coabitação, nos mesmos termos em que o artigo 134º, n.º 1, al. a) prevê essa faculdade para o cônjuge do arguido” (vide “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, Maio de 2008, pág. 359).
No mesmo sentido foram os Dignos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto (in “Código de Processo Penal. Comentários e notas práticas”, Coimbra Editora, Abril de 2009, pág. 358):
“1. Este preceito foi alvo de alteração pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, apenas no tocante à al. b) do n.º 1, passando também a abranger as pessoas que vivam em união de facto com o arguido, sendo de outro ou do mesmo sexo, que passam agora a ter a possibilidade de se recusarem a depor como testemunhas. Neste particular, esta alínea é susceptível de padecer de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, consagração no art. 13.º da CRP, na medida em que não se prevê a possibilidade de a pessoa que com o arguido conviver em união de facto, se recusar a depor como testemunha, relativamente a factos ocorridos antes da coabitação, nos mesmos termos em que o art. 134.º, n.º 1, al. a), prevê o cônjuge do arguido”
Aderindo a esta posição, podemos acrescentar que, certamente por lapso o legislador não procedeu à colocação do unido de facto na al. a) do n.º 1 do art. 134º do C.P.P., quando é deveras assertivo, ao nível dos processos com natureza civil, nomeadamente no art. 497º do C.P.C. (sob a epígrafe “[r]ecusa legítima a depor”), estipula que:
“1 - Podem recusar-se a depor como testemunhas, salvo nas acções que tenham como objecto verificar o nascimento ou o óbito dos filhos:
(…)
d) Quem conviver, ou tiver convivido, em união de facto em condições análogas às dos cônjuges com alguma das partes na causa.”
Ou seja, no processo civil o companheiro (ou até o ex-companheiro) pode sempre recusar-se a depor e no processo penal, em que está em causa a liberdade dos cidadãos, o unido de facto seria obrigado a depor, podendo levar à condenação do(a) seu(a) companheiro(a).
Inclusivamente, nos presentes autos, em que a ofendida (única testemunha arrolada pelo Ministério Público) se reconciliou com o arguido, sobre ela incidiria o ónus de ocasionar a condenação do seu companheiro ou até, no limite, levar à privação da sua liberdade.
Assim, é nosso entendimento que, concomitantemente, com a declaração de inconstitucionalidade da al. b) do n.º 1 do art. 134º do C.P.P., sempre se poderia recorrer à al. d) do n.º 1 do art. 497º do C.P.P. ex vi art. 4º do C.P.P., possibilitando que a aqui ofendida se pudesse recusar a depor, mesmo quanto a factualidade ocorrida fora do período da coabitação.
Por todo o acima exposto, não se considerando verificada a nulidade invocada pelo Ministério Público, mantem-se a decisão proferida na audiência ocorrida em 14/1/2025 e invocando-se, para todos os efeitos legais, a inconstitucionalidade da alínea b) do n.º 1 do art.º 134.º do C.P.P., por violação do princípio da igualdade (art.º 13.º da CRP), na medida em que não prevê o direito da pessoa que com o arguido convive em condições análogas às dos cônjuges recusar depor como testemunha relativamente a factos ocorridos fora do período da coabitação, nos mesmos termos em que o art. 134º, n.º 1, al. a), do C.P.P., prevê essa faculdade para o cônjuge do(a) arguido(a)…”.
4. O Ministério Público não concorda com o entendimento defendido pelo Tribunal a quo, na decisão ora recorrida, entendimento, de igual forma, sufragado, entre outros, por Paulo Pinto de Albuquerque, pois consideramos que, à semelhança do pugnado pelo Conselheiro Santos Cabral “…Não nos parece de sufragar tal entendimento pois que são realidades diferentes em termos sociológicos e jurídicos, relativamente a factos ocorridos antes da coabitação, nos mesmo termos em que o art.º 134.º, n.º 1 al. a) prevê para o cônjuge do arguido…”, vide Código Processo Penal Comentado, Almedina, 2016 - 2.ª edição, pág.489 e ss..
5. De salientar que, não obstante a possibilidade inscrita no art.º 134.º do Código Processo Penal visar evitar situações em que as testemunhas sejam postas perante a alternativa de mentir ou, dizendo a verdade, contribuir para a condenação de um familiar ou companheiro, o legislador, em determinados casos específicos, considerou que a descoberta da verdade material deveria ceder ao interesse da testemunha em não ser constrangida a prestar declarações.
6. O Princípio da Igualdade, previsto no art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa, em nosso entendimento, à semelhança do defendido pela maioria da doutrina e jurisprudência, não proíbe distinções de tratamento, desde que estas não resultem de opções legislativas irrazoáveis e/ou irracionais, sendo que, aquele princípio constitucional “…não implica uma equiparação automática dos direitos dos companheiros aos direitos emergentes do vinculo matrimonial sendo que o tratamento paritário ou, ao menos, semelhante, entre alguém em tais condições e quem esteja ligado ao arguido por uma relação consorcial não é imposto constitucionalmente…” vide, entre outros, Cruz Bucho, in A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo).
7. De salientar que “…o casamento e união de facto são situações materialmente diferentes: os casados assumem o compromisso da vida em comum; os membros da união de acto não assumem, não querem ou não podem assumir esse compromisso. O desfavor ou protecção da união de facto relativamente ao casamento é assim objectivamente fundado, justificando-se até onde seja um meio proporcionado de favorecer o estabelecimento de uniões estáveis ou potencialmente estáveis, no interesse geral. Um tratamento diferente das duas situações, em que as pessoas que vivam em união de facto, não tendo os mesmos deveres, não tenham em contrapartida os mesmos direitos das pessoas casadas, mostra-se assim conforme ao princípio da igualdade, que só quer tratar como igual o que é igual e não o que é diferente, não havendo base legal para estender à união de facto as disposições que ao casamento se referem…”, vide Pereira Coelho-Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, pág.105.
8. De acrescentar que o Tribunal Constitucional defendeu, por diversas ocasiões que
“…na óptica do princípio da igualdade, a situação de duas pessoas que declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem, intencionalmente, opta por o não fazer. O legislador constitucional não pode ter pretendido retirar todo o espaço à prossecução, pelo legislador infraconstitucional, cujo programa é sufragado democraticamente, de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio enquanto instituição social, mediante a formulação de um regime jurídico próprio – por exemplo, distinguindo entre a posição sucessória do convivente em união de facto (reduzida ao referido direito a exigir alimentos da herança) e a do cônjuge…”, vide, entre outros, Acórdão do Tribunal Constitucional 159/2005, proc. 697/04, relator Paulo Motta Pinto, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050159.html.
9. Concomitantemente, não consideramos que o regime de recusa de depoimento instituído no art.º 134.º do Código Processo Penal não viola o preceituado no art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma vez que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por diversas ocasiões, já decidiu que os Estados Membros podem organizar e estabelecer os respectivos processos penais e por conseguinte, o regime de recusa de depoimentos, sendo que, os cidadãos são livres para escolher a forma como estabelecem as suas relações, sendo que, a opção por não formalizar ou registar determinada relação amorosa tem, necessariamente, as suas consequências, e por conseguinte, os mesmos devem aceitar as respectivas consequências resultadas desta escolha, nomeadamente, a sua exclusão da esfera dos laços familiares “protegidos” a que se aplica isenção de obrigação de testemunhar, vide, neste sentido, entre outros, Acórdão (Grande Chambre) do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) de 3 de Abril de 2012, proferido no caso van Heijden c. Países Baixos (n.º 42857/05).
10. O art.º 131.º, n.º 1 e o art.º 132.º, n.º 1 al. d) do Código Processo Penal estabelecem que “…Qualquer pessoa tem capacidade para ser testemunha desde que tenha aptidão mental para depor sobre os factos que constituam objeto da prova e só pode recusar-se nos casos previstos na lei…”, sendo que, incumbe às testemunhas, salvo quando a lei dispuser de forma diferente, o dever de, entre o mais, “…d) Responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas…”, pelo que, que a regra, no que diz respeito à prestação de depoimento por parte de testemunhas, é o da obrigatoriedade em prestar declarações, e fazê-lo com verdade, no entanto, em certas e determinadas circunstâncias, que se encontram bem delimitadas e circunscritas, o legislador previu a possibilidade daquelas recusarem prestar o seu depoimento, razão pela qual se conclui que “…a previsão do casamento e da união de facto reporta-se a dois vínculos de natureza muito diferente (um vínculo legal, contratual, e outro de facto), pelo que não viola o princípio da igualdade serem merecedores de tratamento diferente no que respeita aos seus efeitos…”, vide, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.09.2024, proc. 458/23.0GCMFR, relator Rui Coelho, disponível em www.dgsi.pt.
11. Tem sido entendimento jurisprudência pacífico que a recusa em prestar depoimento é “…reconhecido e concedido quando aquela tiver sido cônjuge do arguido ou com ele tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação. Porque assim, se os factos tiverem ocorrido antes ou depois do período do casamento ou da coabitação, a testemunha está obrigada a prestar juramento e a depor e com verdade - cfr. artigo 132º, nº 1, alíneas b) e d), do Código de Processo Penal…”, vide acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.07.2017, proc. 415/15.0 PBEVR, relatora Maria Filomena Soares, disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRE:2017:415.15.0.PBEVR.E1.1D.
12. Ora, caso outro fosse o entendimento, concluir-se-ia que a delimitação efectuada pelo art.º 134.º, n.º 1 al. a) do Código Processo Penal teria, além das circunstâncias ora em análise, de ser alargada e/ou ampliada a um sem número de outras situações, como por exemplo, o caso dos progenitores de quem vive ou viveu, em união de facto com o arguido, bem como dos filhos do companheiro ou companheira do arguido.
13. No entanto, em algumas destas situações, os nosso Tribunais Superiores têm sido unânimes em considerar que, entre o mais, “… Os progenitores de quem vive, ou viveu, em união de facto com o arguido não podem recusar-se a depor como testemunhas…”, vide, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.10.2014, proc. 1096/13.0PBGMR, relatora Ana Teixeira e Silva, disponível em www.dgsi.pt.
14. De salientar ainda que, o Código Processo Penal já conta como 49.ª versões, a última das quais decorrente da Lei 52/2023 de 20.08, sendo que, o art.º 134.º foi alterado, num primeiro momento, em 2007, pela Lei 48/2007, de 27.08, através da qual foi aditada na alínea b) do nº1, a expressão “…sendo do mesmo ou de outro sexo...”, para contemplar, uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo, e, num segundo momento, pela Lei 94/2021 de 21.12, através da qual se inseriu a al. c) do n.º 1, permitindo a recusa de depoimento ao membro do órgão da pessoa coletiva ou da entidade equiparada que não é representante da mesma no processo em que ela seja arguida, pelo que, não julgamos ser sequer conjecturável que o legislador quisesse estabelecer ou estipular algo diferente do que, efectivamente, previu de forma perempória no art.º 134.º, n.º 1 al. b) do Código Processo Penal, ou seja, que apenas podem recusar-se a depor como testemunhas, entre o mais, quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
15. Concomitantemente, não se olvida que o art.º 497.º, n.º 1 al. d) do Código Processo Civil dispõe que “…Podem recusar-se a depor como testemunhas, salvo nas ações que tenham como objeto verificar o nascimento ou o óbito dos filhos: (…) d) Quem conviver, ou tiver
convivido, em união de facto em condições análogas às dos cônjuges com alguma das parte na causa…”, no entanto, este preceito legal não se aplica ao processo penal, por força do disposto no art.º 510.º do Código Processo Penal, uma vez que apenas poderia utilizado/empregue caso a matéria não fosse especialmente prevista, o que não sucede.
16. Com base no exposto, consideramos que o Tribunal a quo, ao permitir que a testemunha AA, actual companheira do arguido, se recusasse a prestar declarações sobre factos ilícitos, alegadamente, perpetrados por este, durante período em que os mesmos não coabitavam, incorreu na prática de nulidade sanável, nos termos do art.º 120.º, n.º 1 al. d) do Código Processo Penal, uma vez que, contrariando o legalmente estatuído, mais precisamente o disposto no art.º 134.º, n.º 1 al. b) do Código Processo Penal, não efectuou uma diligência que se reputa como essencial para a descoberta da verdade.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores, não deixarão de doutamente suprir.
Deve o recurso ser julgado procedente, por provado, e consequentemente, deverá ser revogado o despacho proferido que indeferiu a verificação da nulidade sanável supramencionada, prevista pelo art.º 120.º, n.º 1 al. d) do Código Processo Penal e, consequentemente, deverá ser ordenada a reabertura da diligência de audiência de julgamento, e por conseguinte, determinar a recolha de depoimento a AA, com indicação expressa que a mesma não poderá recusar-se a prestar depoimento, devendo, para o efeito, prestar juramento, nos termos do art.º 91.º, n.º 1 do Código Processo Penal e, por conseguinte, falar com verdade sobre todas as perguntas que lhe forem efectuadas, por força do disposto no art.º 132.º, n.º al. d) do Código Processo Penal, sob pena de incorrer na prática de um crime de falsidade de testemunho, p.e p. pelo art.º 360.º, n.º 3 do Código Penal.
Desse modo fazendo V. Exas. acostumada JUSTIÇA.”.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e sem efeito suspensivo.
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O arguido não respondeu ao recurso.
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A Exma. Senhora Procuradora- Geral Adjunta junto deste Tribunal da Relação de Lisboa emitiu o seguinte parecer (transcrição parcial):
“ Examinados o despacho recorrido, os elementos certificados e a fundamentação do recurso interposto pelo Ministério Público na 1.ª instância, concordamos integralmente com o recurso cuja fundamentação subscrevemos na íntegra e à qual nada aditamos atenta a sua proficiência.
Somos, pois, de parecer que o recurso merece provimento.”
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Colhidos os vistos, o processo foi presente a conferência, por o recurso dever ser aí decidido, de harmonia com o disposto no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal.
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II. Questões a decidir:
Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jusrisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, no caso em análise importa decidir se ocorreu uma nulidade sanável, por o tribunal a quo ter permitido que a testemunha que convive com o arguido em condições análogas às dos cônjuges se recussasse a depor relativamente a factos ocorridos em período em que não existia coabitação.
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III.Ocorrências processuais
IIIa) Consta da ata de audiência de discussão e julgamento de 14 de janeiro de 2025:
“TESTEMUNHAS ARROLADAS PELO M.º P.º
AA, nascida em .../.../1991, solteira, …, com domicílio na ....
Questionada a testemunha, nos termos do art. 348º, n.º 3, do C. P. Penal, disse conhecer o arguido, por serem companheiros em união de facto, nada a impedindo de dizer a verdade.
Advertida nos termos do art. 134º, n.º 1, al. b), do C.P.P., disse não pretender prestar declarações, tendo sido dispensada pelo Mm.º Juiz.
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De seguida foi pedida a palavra pelo Digno Magistrado do Ministério Público que, no seu uso, promoveu:
O art. 134º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, dispõe que podem recusar-se a depor como testemunhas quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
Ora compulsado o despacho de acusação verifica-se que os factos imputados ao arguido referem-se a período em que arguido e ofendida não eram companheiros, não tinham qualquer tipo de relação, não coabitavam juntos, razão pela qual, atenta a natureza da sua relação actual o Ministério Público entende que a ofendida não se pode recusar a prestar depoimento, razão pela qual, não lhe deveria ter sido dada tal faculdade, pelo que ocorreu uma nulidade, mais concretamente a nulidade prevista no art. 120º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal, a qual se arguiu para todos os efeitos tidos por convenientes.
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Dada a palavra à Ilustre Defensora do arguido, pela mesma foi dito nada ter a requerer.
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Após o que o Mmº Juiz de Direito proferiu o seguinte:
DESPACHO
Atenta à nulidade invocada decidir-se-á acerca da questão sub judice em sede de sentença, a proferir oportunamente”.
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IIIa) Decisão inserida na sentença final:
“DA ALEGADA NULIDADE PELO FACTO DE O TRIBUNAL TER DISPENSADO A OFENDIDA DE TESTEMUNHAR, POR ESTAREM EM CAUSA FACTOS OCORRIDOS FORA DO PERÍODO DA COABITAÇÃO
Após a testemunha/ofendida AA ter sido questionada acerca do relacionamento actual que tem com o arguido, disse viver em união de facto com o mesmo, tendo-se recusado a prestar depoimento, foi dispensada pelo Tribunal.
Nessa sequência, o Digno Magistrado do Ministério Público propugnou:
“O art. 134º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, dispõe que podem recusar-se a depor como testemunhas quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
Ora compulsado o despacho de acusação verifica-se que os factos imputados ao arguido referem-se a período em que arguido e ofendida não eram companheiros, não tinham qualquer tipo de relação, não coabitavam juntos, razão pela qual, atenta a natureza da sua relação actual o Ministério Público entende que a ofendida não se pode recusar a prestar depoimento, razão pela qual, não lhe deveria ter sido dada tal faculdade, pelo que ocorreu uma nulidade, mais concretamente a nulidade prevista no art. 120º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal, a qual se arguiu para todos os efeitos tidos por convenientes.”
Atento o processado, ponderando a posição do Digno Magistrado do Ministério Público, consideramos não se ter verificado a apontada nulidade.
Vejamos.
Atendendo o facto de a ofendida, identificada na diligência do passado dia 14 de Janeiro de 2025, ter mencionado que é, actualmente, companheira do arguido, coloca-se a questão de saber se a mesma se pode recusar a prestar declarações relativamente a factos ocorridos fora do período da coabitação, nos termos do art. 134º, n.º 1, al. b), do C.P.P. e uma vez que os factos 5 e seguintes da acusação se referiram a alegados ilícitos perpetrados fora do período de coabitação.
Considera o Tribunal que lhe é conferida essa possibilidade, uma vez que tal direito é conferido aos cônjuges dos arguidos, nos termos da al. a), do n.º 1, do art. 134º, do C.P.P. pelo que ocorreria a violação do princípio da igualdade, caso tal não fosse admissível.
Caso ocorresse essa impossibilidade de recusa, tal consubstanciaria uma violência para com a testemunha que poderia originar que o seu depoimento incriminasse o próprio companheiro, deteriorando, assim, os laços/vínculos existentes.
Seguimos, ainda, o entendimento de Paulo Pinto Albuquerque, quando o mesmo propugna:
“2. A lei nova, ao modificar a al.ª b), curou de precisar que as relações análogas às dos cônjuges incluem os casais do mesmo sexo, mas não sanou a inconstitucionalidade da mesma. O artigo 134º, n.º 1, al. b) é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP), na medida em que não prevê o direito da pessoa que com o arguido convive em condições análogas às dos cônjuges recusar depor como testemunha relativamente a factos ocorridos antes da coabitação, nos mesmos termos em que o artigo 134º, n.º 1, al. a) prevê essa faculdade para o cônjuge do arguido” (vide “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, Maio de 2008, pág. 359).
No mesmo sentido foram os Dignos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto (in “Código de Processo Penal. Comentários e notas práticas”, Coimbra Editora, Abril de 2009, pág. 358):
“1. Este preceito foi alvo de alteração pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, apenas no tocante à al. b) do n.º 1, passando também a abranger as pessoas que vivam em união de facto com o arguido, sendo de outro ou do mesmo sexo, que passam agora a ter a possibilidade de se recusarem a depor como testemunhas. Neste particular, esta alínea é susceptível de padecer de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, consagração no art. 13.º da CRP, na medida em que não se prevê a possibilidade de a pessoa que com o arguido conviver em união de facto, se recusar a depor como testemunha, relativamente a factos ocorridos antes da coabitação, nos mesmos termos em que o art. 134.º, n.º 1, al. a), prevê o cônjuge do arguido”.
Aderindo a esta posição, podemos acrescentar que, certamente por lapso o legislador não procedeu à colocação do unido de facto na al. a) do n.º 1 do art. 134º do C.P.P., quando é deveras assertivo, ao nível dos processos com natureza civil, nomeadamente no art. 497º do C.P.C. (sob a epígrafe “[r]ecusa legítima a depor”), estipula que:
“1 - Podem recusar-se a depor como testemunhas, salvo nas acções que tenham como objecto verificar o nascimento ou o óbito dos filhos:
(…)
d) Quem conviver, ou tiver convivido, em união de facto em condições análogas às dos cônjuges com alguma das partes na causa.”
Ou seja, no processo civil o companheiro (ou até o ex-companheiro) pode sempre recusar-se a depor e no processo penal, em que está em causa a liberdade dos cidadãos, o unido de facto seria obrigado a depor, podendo levar à condenação do(a) seu(a) companheiro(a)”.
Inclusivamente, nos presentes autos, em que a ofendida (única testemunha arrolada pelo Ministério Público) se reconciliou com o arguido, sobre ela incidiria o ónus de ocasionar a condenação do seu companheiro ou até, no limite, levar à privação da sua liberdade.
Assim, é nosso entendimento que, concomitantemente, com a declaração de inconstitucionalidade da al. b) do n.º 1 do art. 134º do C.P.P., sempre se poderia recorrer à al. d) do n.º 1 do art. 497º do C.P.P. ex vi art. 4º do C.P.P., possibilitando que a aqui ofendida se pudesse recusar a depor, mesmo quanto a factualidade ocorrida fora do período da coabitação.
Por todo o acima exposto, não se considerando verificada a nulidade invocada pelo Ministério Público, mantem-se a decisão proferida na audiência ocorrida em 14/1/2025 e invocando-se, para todos os efeitos legais, a inconstitucionalidade da alínea b) do n.º 1 do art. 134º do C.P.P., por violação do princípio da igualdade (art. 13º da CRP), na medida em que não prevê o direito da pessoa que com o arguido convive em condições análogas às dos cônjuges recusar depor como testemunha relativamente a factos ocorridos fora do período da coabitação, nos mesmos termos em que o art. 134º, n.º 1, al. a), do C.P.P., prevê essa faculdade para o cônjuge do(a) arguido(a)”.
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IV. Do Mérito do Recurso
De acordo com o disposto no artigo 410.º, n.º 1 do Código de Processo Penal “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” e, nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “as relações conhecem de facto e de direito”.
Sabemos que a prova testemunhal continua a ser a prova rainha em processo penal e, por isso, a matéria da recusa em depor é de aplicação diária nos tribunais.
A regra é de que qualquer pessoa tem capacidade para ser testemunha, desde que tenha aptidão mental para depor sobre os factos que constituem objeto de prova, e a recusa de depoimento só pode ocorrer nos casos previstos na lei – cf. artigo 131.º, n.º 1 do Código de Processo Penal – sendo , por isso, uma exceção.
Os casos de recusa estão expressamente previstos no artigo 134.º do Código de Processo Penal, onde se reconhece às pessoas ali mencionadas - parentes, afins, adotantes, adotados, cônjuges e conviventes em condições análogas às dos cônjuges – a possibilidade de se recusarem a depor como testemunhas.
A razão de ser da norma é, não só a de obstar ao conflito de consciência que resultaria para a testemunha de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um seu familiar ou afim, mas também e sobretudo proteger as relações de confiança e solidariedade, essenciais à instituição familiar – verdadeiramente, é esta a sua raiz última”2.
A descoberta da verdade material é uma das finalidades do processo penal, mas entende-se que esta não pode procurada a todo o custo. Assim, o reconhecimento do direito de recusa em depor representa uma limitação à obtenção da prova e à administração da justiça.
O legislador desenhou a solução normativa ponderando o conflito entre, por um lado, a realização da justiça, o dever de investigar a existência de um crime, determinar e punir os seus agentes, e, por outro, a proteção do relacionamento familiar, ou análogo”3
A faculdade de recusar depoimento é um direito da testemunha, que pode assim evitar um conflito que resultaria em poder contribuir para a condenação de quem lhe é muito próximo ao cumprir o dever de falar com verdade4.
Tem-se entendido que a faculdade de recusa em depor como testemunha é taxativa e, por isso, só ocorre nos casos expressamente previstos no artigo 134.º do Código de Processo Penal.
O artigo 134.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal prevê que o cônjuge do arguido possa recusar-se a depor como testemunha, não impondo qualquer restrição temporal quanto aos factos sobre os quais pode incidir a recusa de depoimento. Por isso, a possibilidade de recusa de depor não se circunscreve apenas a factos ocorridos durante o casamento, abarcando também factos ocorridos antes do casamento. Basta que no momento da declaração a testemunha esteja casada com o arguido para que lhe assista o direito de se recusar a depor.
O mesmo não acontece em relação a quem “sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante (…) a coabitação”.
No que se refere ao casamento basta que no momento da declaração a testemunha esteja casada com o arguido para que lhe assista o direito de se recusar a depor, independentemente de existir ou não convivência efetiva com o arguido. Já na união de facto exige-se a convivência efetiva com o arguido, ou seja, a coabitação e a recusa apenas se refere a factos ocorridos durante a coabitação.
Não ignoramos que Paulo Pinto de Albuquerque se pronunciou pela inconstitucionalidade do citado artigo 134.º, n.º1, alínea b), por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), como defende a decisão recorrida.
Todavia, “(…) não é de sufragar tal entendimento pois que são realidades diferentes em termos sociológicos e jurídicos, que estão em causa e, sendo situações diferentes, está justificada uma protecção mais intensa concedida ao que tiver sido seu cônjuge. Para a lei civil são realidades diferentes o casamento e a união de facto”5.
Em sede de direito de recusa, o legislador não pretendeu realizar uma equiparação completa entre o casamento e a união de facto e tal distinção, em nosso entender, não viola o princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13.º da CRP.
O que decorre da diferença de regimes é que o legislador consagrou uma proteção mais intensa ao casamento do que às uniões de facto, “sendo óbvia a diferença fundamental entre o casamento e qualquer forma de união de facto — o casamento é um compromisso jurídico, gerador de vínculo jurídico, enquanto a união de facto é o puro facto da convivência em condições análogas às dos cônjuges, sem o intento de estabelecer um vínculo jurídico ou sem a possibilidade de esse vínculo se estabelecer —, não menos evidente é a semelhança da união de facto com o casamento — os actos que, no casamento, consubstanciam a execução do “programa contratual” de desenvolvimento de uma plena vida em comum são os mesmos que são praticados no decurso da união de facto e lhe dão corpo, correspondendo precisamente esta união a uma convivência “em condições análogas às dos cônjuges”
b) Por haver essa diferença, supomos que não poderão aplicar-se à união de facto todas as normas do casamento que se fundem, ou se fundem também, na juridicidade dos deveres assumidos ou do compromisso firmado — o que tendencialmente corresponderá aos efeitos centrais (“negociais”), pessoais ou patrimoniais, do casamento”6.
Assim, o casamento e união de facto são situações diferentes: os casados assumem o compromisso da vida em comum; os membros da união de facto não assumem, justificando-se, por isso, favorecer o estabelecimento de uniões estáveis.
Um tratamento diferente nestas duas situações, em que as pessoas que vivam em união de facto, não tendo os mesmos deveres, não tenham em contrapartida os mesmos direitos das pessoas casadas, mostra-se conforme ao princípio da igualdade, que só quer tratar como igual o que é igual e não o que é diferente, não havendo base legal para estender à união de facto as disposições que ao casamento se referem7.
O Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 195/20038 decidiu que:
“Ora, como este Tribunal tem reconhecido, existem diferenças importantes, que o legislador pode considerar relevantes, entre a situação de duas pessoas casadas, e que, portanto, voluntariamente optaram por alterar o estatuto jurídico da relação entre elas – mediante um “contrato celebrado entre duas pessoas (…) que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”, como se lê no artigo 1577º do Código Civil –, e a situação de duas pessoas que (embora convivendo há mais de dois anos “em condições análogas às dos cônjuges”) optaram, diversamente, por manter no plano de facto a relação entre ambas, sem juridicamente assumirem e adquirirem as obrigações e os direitos correlativos ao casamento”.
E no Acórdão n.º 159/20059 o mesmo Tribunal Constitucional referiu:
«Assim, na óptica do princípio da igualdade, a situação de duas pessoas que declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem, intencionalmente, opta por o não fazer. O legislador constitucional não pode ter pretendido retirar todo o espaço à prossecução, pelo legislador infraconstitucional, cujo programa é sufragado democraticamente, de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio enquanto instituição social, mediante a formulação de um regime jurídico próprio – por exemplo, distinguindo entre a posição sucessória do convivente em união de facto (reduzida ao referido direito a exigir alimentos da herança) e a do cônjuge”.
Assim, concluímos que o regime da recusa em depor por parte daqueles que vivem em união de facto é também um desses pontos submetidos a um regime jurídico distinto, tal como distintas são as relações entre os que convivem em condições análogas às dos cônjuges e entre os cônjuges.
A diferença do regime de recusa de depor entre unidos de facto e os que contraíram casamento não viola, assim, o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP, como se decidiu na 1.ª instância.
Sempre se dirá que querer equiparar as duas situações exigiria que união de facto tivesse alguma durabilidade e estabilidade. “Já nos casos em que a convivência começa “hoje” a recusa a depor se exercida amanhã deve abranger apenas os casos ocorridos durante a coabitação”10. Ora, o processo penal não se compadece com a realização desta prova para se decidir se a testemunha pode ou não recusar-se a depor.
Por fim, importará dizer que havendo norma expressa a relativamente a esta questão no processo penal, não faz sentido aplicar a lei processual civil, invocando-se o artigo 4.º do Código de Processo Penal, que, como se sabe, só tem aplicação na integração de lacunas.
Neste conspecto, consideramos que o Tribunal a quo não devia ter concedido à testemunha que vive em união de facto com o arguido a possibilidade de se recusar a depor, pois os factos em julgamento ocorreram em datas em que não existia tal união.
Ao permitir a recusa em depor foi praticada a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Penal – omissão de diligência que pudesse reputar-se essencial para a descoberta da verdade -, tempestivamente arguida – n.º 3, alínea a) do mesmo artigo - tornando inválido o ato praticado, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, declarando nulo o despacho proferido em 14.01.2025 e que permitiu à testemunha AA recusar-se a depor e os atos posteriores, nomeadamente a sentença proferida, devendo ser reaberta a audiência para audição da indicada testemunha, seguindo-se os ulteriores trâmites processuais.
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Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 21 de outubro de 2025
Ana Lúcia Gordinho
João Grilo Amaral
Ester Pacheco dos Santos
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1. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89.
2. Ac. TC 154/2009, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20090154.html
3. António Gama/Lemos Triunfante, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 4.ª Edição, tomo II, pág. 137.
4. António Gama/Lemos Triunfante, ob. cit. pág. 139.
5. Conselheiro Santos Cabral, citado em https://jurisprudencia.pt/acordao/183573/
6. Pereira Coelho, Revista Julgar, in chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/01/JULGAR40-05-FPC.pdf
7. Cruz Bucho - A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo).
8. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030195.html
9. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050159.html
10. António gama /Luís Lemos Triunfante, ob cit. pag. 149.