Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3372/23.5T9SNT-A.L1-9
Relator: IVO NELSON CAIRES B. ROSA
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
CRIANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE COM DECLARAÇÃO DE VOTO
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Sumário: (da responsabilidade do Relator)
I. Estando em causa a tomada de depoimento de duas crianças, importa ter presente as diretrizes do Conselho da Europa sobre a justiça adaptada às crianças, das quais se extrai que o depoimento deve ser prestado o mais brevemente possível e de forma a evitar-se a repetição da audição dela como testemunha, com alcance que a este conceito é dado pelo art.º 2º, al. a), da Lei nº 93/99.
II. Daqui decorre que a prática para a tomada de depoimento de crianças perante a justiça penal gira em torno dos seguintes aspetos essenciais: que ocorra uma única vez; o mais cedo possível; em sala diferenciada e pelo intermédio de profissionais capacitados – principalmente psicólogos ou assistentes sociais – a fim de que sejam feitas perguntas de forma mais adequada ao depoente.
III. A Lei de Proteção de Testemunhas prevê medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n.º 1 do art.º 1º - cf. art.º 1º, nº 3, do mesmo diploma.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
Nos autos principais, em ... do corrente ano de 2025, foi proferido despacho, incluído nos atos jurisdicionais a praticar na fase de inquérito, no qual foi indeferida a tomada de declarações para memória futura quanto às crianças AA e BB.
***
Não se conformando com essa decisão, o MP recorreu para este Tribunal da Relação solicitando que o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que designe data para a tomada de declarações para memória futura às crianças AA e BB.
Para o efeito, apresentou as seguintes Conclusões (transcrição):
1. Não obstante a argumentação expendida pelo Tribunal a quo, mormente que os menores não presenciaram a factualidade denunciada, não é menos verdade que tal só será efetivamente descortinado se os mesmos forem ouvidos, pois, não raras vezes, é precisamente através do depoimento da criança que se apura o contexto efetivamente vivenciado no seio familiar.
2. O regime das declarações para memória futura deixou de visar, unicamente, a antecipação antecipada de prova, para ter, igualmente, como foco a proteção da vítima e evitar a exposição permanente das vítimas, não deixando, porém, de respeitar e assegurar um efetivo exercício direito de defesa por parte do arguido.
3. As necessidades de evitar a vitimização secundária e a contaminação de prova fazem-se sentir com maior intensidade nos casos onde as vítimas são menores.
4. A ratio deste instituto é clara: procura evitar o impacto psico-emocional da participação direta da criança em Tribunal, o qual implica, necessariamente a evocação sucessiva pelo declarante da sua dolorosa experiência e a sua exposição a um julgamento público. Por outro lado, procura garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas, evitando-se, deste modo, o perigo de contaminação da prova.
5. A circunstância de os menores não serem considerados, para efeitos do disposto no artigo 67.º-A, n.º 1 do Código de Processo Penal, uma vítima direta dos factos denunciados e eventualmente praticados pelo denunciado apenas contra a sua progenitora, não lhe retira a possibilidade, considerando as suas características de pessoa/testemunha/vítima (ainda que de forma indireta) especialmente vulnerável, de ser inquirida em sede de declarações para memória futura.
6. Precisamente no caso concreto, os menores são vítimas especialmente vulneráveis não apenas em razão da sua tenra idade, mas também pela circunstância de os factos terem sido praticados precisamente no seu grupo familiar.
7. Pretende-se evitar a vitimização secundária.
8. No caso do prosseguimento dos autos sem a tomada de declarações para memória futura aos menores, sempre serão aqueles inquiridos na presença de Magistrado do Ministério Público e, caso se apurem indícios suficientes da prática de factos e seja deduzido despacho de acusação, admitida em fase de julgamento, serão os menores novamente ouvidos em sede de audiência de discussão e julgamento, tornando a relatar, uma vez mais, todos os factos que foram perpetrados pelo pai à sua progenitora.
9. Não será este precisamente o contexto de vitimização secundária das vítimas de violência doméstica que o legislador pretendeu evitar ao consagrar o disposto no artigo 22.º, nºs 1 e 2 da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e no artigo 17.º da Lei n.º 130/2015 de 4 de Setembro, que aqui transcrevemos: “A vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões”?”
10. O sentido de evolução legislativa visa reconhecer as crianças testemunhas em contexto de violência doméstica como “vítimas indiretas” e que a sua sujeição a um ambiente familiar perpetrado por episódios de violência, a que a criança assiste, constitui, ele próprio, uma forma de agressão psicológica à criança com graves repercussões no seu bem-estar psicológico, emocional e normal desenvolvimento da sua personalidade.
11. Cabe à prática judiciária, também, reconhecer que ao menor que presenciou tais condutas no seio familiar assistirá a necessidade de uma única prestação de declarações num ambiente de maior resguardo como aquele que se pretende em sede de declarações para memória futura.
12. O contexto de prestação de declarações para memória futura, num ambiente mais reservado, sem a presença de público (…) é em tudo mais propício à prestação de um depoimento espontâneo de uma testemunha menor de idade.
13. Não obstante a presença necessária dos sujeitos judiciários, cremos que o ambiente que a vítima/testemunha especialmente vulnerável se depara em sede de audiência de discussão e julgamento é mais propício a constranger o seu depoimento, comprometendo a sua espontaneidade. E por que assim pensamos? Porque, não raras vezes, acontece cruzar-se, nas instalações do Tribunal, com outros intervenientes processuais, seja o arguido/denunciado ou outras testemunhas.
14. As diversas deslocações a Tribunal para prestar depoimento sobre factos perpetrados pelo seu pai não podem nem devem passar a fazer parte da sua rotina inerente; antes devem assumir carácter excecional, concentrando-se num único momento processual.
15. Considerando todas as características do caso concreto e de as testemunhas especialmente vulneráveis menores, de 09 e 05 anos de idade, relativamente a quem se promoveu a tomada de declarações para memória futura, não temos, pois, como não deixar de considerar indispensável, nesta fase dos autos, a determinação da realização daquela diligência, resultando quanto a nós evidente que prevalecerá, neste caso, o interesse da testemunha menor em ser inquirida apenas na medida do estritamente indispensável sobre factos que visam a sua vida privada e familiar, sobre o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da Justiça, salvaguardas que estão as garantias de defesa do arguido/denunciado.
16. Não obstante o termo “poderá”, ínsito no artigo 33.º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, que remete para um poder discricionário da realização da referida diligência, consideramos, a respeito, que não é o mesmo um poder arbitrário, pois que a crescente gravidade dos factos neste, também, cada vez mais repetido tipo de crime exige de todos os operadores judiciários empenho e uma ação prática efetiva e proveitosa.
17. Atenta a superior relevância dos interesses em causa, entende-se que a regra haverá de ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, até no exercício do “dever de proteção” à mesma vítima consagrado no art.º 20.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, só em casos excecionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se devendo indeferir o mesmo requerimento.
18. Se a vítima ou o Ministério Público requerem a tomada de declarações para memória futura é porque nisso vêm interesse, sendo este, também, necessária e consequentemente, o interesse da comunidade, os quais, afinal, todos passam pela descoberta da verdade e pela efetiva realização da justiça.
Nestes termos, e nos demais de Direito aplicável, que V. Exas. doutamente suprirão, parece-nos apodítico que o presente recurso interposto deve proceder e, em consequência, deve o despacho recorrido ser substituído por outro que designe data para a tomada de declarações para memória futura aos menores AA e BB, no que farão a habitual Justiça.
***
A Sra. PGR junto deste Tribunal da Relação acompanhou o recuso do MP interposto na primeira instância.
***
Não foi cumprido o artº 417º, n.º 2 do C.P.P dado que não existe arguido constituído nos autos.
***
II - Questões a decidir:
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. Art.º 119º, nº 1; 123º, nº 2; 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CP Penal, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/6/1998, in BMJ 478, pp. 242, e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Tendo em conta este contexto normativo e o teor das conclusões apresentadas pelo recorrente, há que analisar e decidir.
Na fase de inquérito pode o juiz de instrução criminal indeferir a inquirição de testemunhas para memória futura com o argumento de que estas não têm conhecimento dos factos.
A tomada de declarações para memória futura só deverá ter lugar, nas situações em que o suspeito está identificado e é conhecido o seu paradeiro, após a constituição como arguido.
Cumpre, assim, apreciar no presente recurso se no concreto caso devem ser tomadas declarações para memória futura às duas testemunhas acima mencionadas.
III – FUNDAMENTAÇÃO:
A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição):
« Contrariamente ao afirmado pelo Ministério Público, dos autos não constam (nem são concretamente indicados na promoção que antecede), factos relevantes que tivessem sido presenciado pelos menores (notando-se que logo no início da queixa é expressamente referido que a conversa teria lugar quando os menores estivessem a dormir…).
Os factos referidos sob o ponto 10 a 19 são absolutamente irrelevantes paro o efeito.
Mesmo nos factos referidos no ponto 46 a informação é a de que “os meninos estavam bem e a dormir…”
– ponto 48, os meninos continuavam a dormir… ponto 50, continuavam a dormir…, ponto 62 “…temia pelo que os filhos pudessem assistir”, não “que tivessem assistido”! ponto 68, “…deixou a casa com os filhos…”; 144, para o efeito, é irrelevante que o pai não assistisse as aulas de natação; pontos 216 e seguintes, não se afigura relevante para efeitos criminais envolver os menores na discussão sobre a posse do frigorífico e outros bens da casa do casal…
Assim, os menores de nada relevante são testemunhas que devessem ser inquiridas em diligência de conservação de prova ou de pré constituição de prova que é a tomada de declarações para memória futura.
Ainda que a diretiva referida na promoção que antecede vincule o Ministério Público, não é ato normativo que vincule este Tribunal.
A inquirição intempestiva e desnecessária dos menores apenas resultaria no envolvimento desnecessário dos mesmos em conflito dos pais, potencialmente criador de um conflito de lealdade que em tudo é prejudicial ao seu são desenvolvimento, isto é, contrário ao superior interesse das crianças.
Trata-se, outrossim, de ato inútil, que não só se traduz em má prática judiciária, como também está vedada por lei processual.
Por tais motivos o ato requerido não se enquadra no disposto no artº 271º, do CPP.
Acresce que:
O suspeito é conhecido assim como o respetivo paradeiro.
Não existe notícia de que as eventuais testemunhas a inquirir ou o arguido se irão ausentar para o estrangeiro.
Em momento algum o suspeito foi chamado aos autos, dando-lhe conhecimento dos factos em investigação para que pudesse, querendo, fazer-se representar por ilustre defensor de sua escolha na diligência que agora se promove, defensor esse que devidamente informado, permitiria que a inquirição a realizar respeitasse o contraditório essencial para que a prova a pré-constituir fosse validamente instruída valendo em fases posterior do processo, nomeadamente em eventual julgamento, sem necessidade de repetição com inerente e nova sujeição dos menores às formalidades que se pretendem evitar com a tomada de declarações para memória futura.
De facto, a tomada de declarações para memória futura tem como finalidade a preservação de um meio de prova testemunhal que poderá não ser possível recolher no futuro mas também resguardar uma testemunha especialmente frágil dos inconvenientes e incómodos que a sucessiva reinquirição provocaria no respetivo bem estar pela constante invocação de um determinado momento traumático.
A realização deste ato num momento precoce de todo o procedimento não só viola o principio contraditório como frustra todas estas finalidades pois imporá no futuro a sua repetição.
Por um lado, o total desconhecimento da realidade que se pretende descortinar e preservar deixa o inquiridor desprovido de elementos que permitam uma inquirição completa porque realizada na posse das circunstâncias que poderiam permitir um exame cruzado capaz de resistir a eventuais fragilidades que venham a surgir com o decurso da investigação – não será uma verdadeira inquirição mas simplesmente a gravação de um discurso unidirecional.
Acresce que, sendo conhecido o suspeito, que não se furtou à ação da justiça nem se colocou em parte incerta, constituirá grave violação dos direitos de defesa afastar deliberadamente, por simples estratégia ou opção do titular da ação penal, a intervenção daquele que, no futuro, isto é, no momento em que as declarações poderão ser determinantes, o julgamento, de uma participação ativa na contribuição para o exame cruzado do depoimento.
O titular da ação penal, se não respeitar, como seria de esperar que fizesse, o princípio da legalidade e a objetividade imposta pela realização de um procedimento equitativo, terá natural propensão a captar um depoimento incriminador insuscetível de exame cruzado.
Por isso mesmo, entendeu o legislador dever confiar a tarefa de recolha das declarações para memória futura ao juiz de instrução, o qual no exercício da sua especial função de garantia dos direitos liberdades e garantias deverá procurar criar, antecipando, as condições similares às do julgamento que, em última análise e no dizer do artº 271º, do CPP, é o momento em que as declarações antecipadamente recolhidas poderão ser tomadas em conta.
Essas condições serão, naturalmente, aquelas que em cada caso concreto, permitam recolher, em tempo útil, um determinado depoimento de tal forma que a antecipação evite para a vítima o reviver da situação traumática que a repetição necessariamente criará mas também fazê-lo de modo a proporcionar as condições de credibilidade do depoimento com pleno respeito pelos direitos de defesa e prossecução de um processo equitativo proporcionando a igualdade de armas que se impõe num Estado de Direito.
O artº 271º, do CPP, no seu nº 1, como seria de esperar, não assume posição quanto ao momento em que deverão ser tomadas as declarações para memória futura aludindo simplesmente ao “decurso do inquérito”.
Na escolha desse momento deverão ser ponderadas, não só as circunstâncias acima já referidas, mas também as condições objetivas do prestador do depoimento no sentido de se saber até que ponto será ainda possível recolher esse depoimento. No caso concreto, não há sinais de que o prestador do depoimento esteja na iminência de desaparecer, seja do espaço do território nacional ou que venha a perder a capacidade para depor.
Não existiu qualquer abordagem ou sequer tentativa de abordagem que seja ao suspeito, que é conhecido, não havendo notícia de que se tenha furtado ao contacto com as autoridades policiais.
Em suma: nenhuma razão objetiva impõe a imediata recolha do depoimento; a recolha imediata do depoimento prejudicaria as condições de credibilidade do depoimento porque desprovida de exame cruzado; os direitos de defesa do suspeito não poderiam ser garantidos já que estaria à margem de qualquer possibilidade de intervenção e contribuição para a descoberta da verdade material; tais circunstancialismos redundariam na inevitável repetição do depoimento caso houvesse necessidade de fazê-lo valer em julgamento.
De nada adiantará o argumento de que ao Ministério Público cabe a direção do inquérito.
Se assim fosse, a lei processual não imporia a intervenção do juiz de instrução. Poderia o Ministério Público proceder como entendesse, sem fiscalização por intervenção jurisdicional – o mesmo seria afirmar que o Ministério Público poderia recorrer a qualquer meio de obtenção de prova sem a intervenção jurisdicional, com por exemplo a interceções telefónicas ou outros atentatórios dos direitos liberdades e garantias.
Os direitos aqui em causa, para além da proteção da vítima são também os fundamentais de garantia de processo equitativo a que se refere o artº 32º, da CRP, em especial seus números 1, 3, 4 e 5, equilíbrio que o Ministério Público não pretende respeitar por entender que apenas assim respeitará uma diretiva interna.
Pelo exposto, indefiro o requerido”.
Cumpre analisar os fundamentos do recurso:
Antes de apreciarmos o cerne do presente recurso cumpre precisar em que consistem as declarações para memória futura e em que circunstâncias este meio de prova pode e deve ser produzido.
A produção da prova em processo penal, com vista a assegurar o princípio basilar do julgamento, que é do da livre apreciação da prova, decorre perante o tribunal com respeito por dois princípios fundamentais: o da oralidade e o da imediação
O princípio da imediação, também conhecido como da prova imediata, tal como previsto no artigo 355º do CPP, pressupõe um contacto direto e pessoal entre o juiz e as pessoas que perante ele depõem, sendo esses depoimentos que irá valorar e servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Assim, o princípio da imediação exige uma relação de proximidade, não só física como temporal, entre os intervenientes processuais e o tribunal, de modo a que este possa ter uma perceção própria e segura dos elementos que servirão de base para a fundamentação da decisão jurisdicional.
Não obstante esta ser a regra, existem exceções a este princípio e uma dessas exceções é, precisamente, a prestação de declarações para memória futura prevista e regulada no artigo 271º do Código de Processo Penal.
Dispõe o artigo 271º do CPP o seguinte:
1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder á sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e. o. local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4 - Nos casos previstos, no n,° 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
5- A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6 - É correspondentemente. aplicável o disposto nos artigos 352º, 356.°, 363.° e 364.°
7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e as acareações.
8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores, não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.».
Daqui decorre que as declarações para memória futura, por configurarem uma exceção ao princípio da imediação, constituem uma produção antecipada de prova, um meio cautelar de prova, que tem como objetivo assegurar a obtenção e conservação de determinada prova pessoal, com vista ao respetivo aproveitamento em sede de julgamento, decorrente do perigo adveniente da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento.
Para além de se traduzirem num meio de conservação da prova testemunhal, nas situações de doença grave ou deslocação para o estrangeiro, as declarações para memória futura representam, também, um direito que aos sujeitos processuais é conferido de garantir aquela prova, assim como um instrumento de proteção das próprias fontes de prova.
Da análise deste preceito decorre, ainda, que nas situações previstas no número um a prestação de declarações para memória futura não é obrigatória, dado que o legislador diz expressamente que o juiz “pode proceder”, enquanto que nas situações previstas no número dois, ou seja, no caso de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, terá sempre lugar a audição em declarações para memória futura, durante o inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
A tomada de declarações para memória futura, verificados que estejam os pressupostos para a sua admissibilidade, visa, ainda, acautelar o respeito por princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente o respeito pelo princípio do contraditório, o qual encontra assento constitucional no artigo 32º nº 5 da CRP, bem como garantir o princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no art.º. 6.º, § 1.º da CEDH.
Estando em causa, de acordo com o Ministério Público, a investigação de um crime de violência doméstica, há que ter em atenção a Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência às suas vítimas, onde prevê no seu artigo 33.º a possibilidade de o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa ser tomado em conta no julgamento.
A Lei nº 112/2009, de 16-09 - que instituiu o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência às suas Vítimas (LVD) - regula autonomamente as declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, o que faz com estas normas, por serem especiais, afastem a norma geral prevista no citado artigo 271º do CPP.
Há que ter em atenção, também, a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substituiu a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, publicada no Jornal Oficial da União Europeia L 315/72 de 14.11.2012, conhecida como Diretiva das Vítimas. Esta Diretiva foi transposta para a ordem jurídica nacional através da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro, que estabelece um regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, bem como para o Estatuto da Vítima aprovado pela Lei 130/2015 de 4 de setembro.
Diz o artigo 33º da lei 112/2009, de 16 de setembro:
1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.
4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.
6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.
7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
Conforme resulta do artigo 2º alíneas a) e b) da lei em causa, para efeitos de aplicação da presente lei, considera-se:
a) «Vítima» a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica;
b) «Vítima especialmente vulnerável» a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social.
Tendo em conta as finalidades da presente lei conclui-se, desde logo, que a produção antecipada de prova não tem tanto a ver com o perigo resultante da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento, mas antes com a proteção da própria vítima, assegurando a sua proteção célere e eficaz, por forma a minimizar a vitimização secundária, e assegurar-lhe a efetivação dos direitos garantidos por esta lei, nomeadamente, no artigo 20º nº 2 e 3 – direito de proteção - (O contacto entre vítimas e arguidos em todos os locais que impliquem a presença em diligências conjuntas, nomeadamente nos edifícios dos tribunais, deve ser evitado, sem prejuízo da aplicação das regras processuais estabelecidas no Código de Processo Penal. 3 - Às vítimas especialmente vulneráveis deve ser assegurado o direito a beneficiarem, por decisão judicial, de condições de depoimento, por qualquer meio compatível, que as protejam dos efeitos do depoimento prestado em audiência pública.) e artigo 22º nº 1 – condições de prevenção da vitimização secundária - (1 - A vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões). Ao conferir estes direitos à vítima, a serem concretizados através destas garantias processuais, pretendeu-se que ela encerre o episódio de que foi vítima, já que só será prestado novo depoimento, em casos excecionais (nº7 do artigo 33.º da mesma Lei).
Para além de conferir este direito à vítima e funcionar como um meio de proteção desta, a tomada de declarações para memória futura visa, ainda, assegurar, em tempo útil, a autenticidade do depoimento da vítima, muitas vezes o único meio de prova dada a natureza do crime e o modo em que é cometido, e evitar as pressões ou manipulações decorrentes da proximidade da vítima ao agressor, prejudiciais à liberdade e espontaneidade de declaração da vítima.
Por forma a dar concretização prática às finalidades da presente lei, definidas no artigo 3º (entre elas consagrar os direitos das vítimas, assegurando a sua proteção célere e eficaz) deve a autoridade judiciária, neste caso o Ministério Público, ou o órgão de polícia criminal, atribuir à vítima do crime de violência doméstica, o estatuto de vítima.
Com efeito, dispõe o artigo 14º nº 1 e 3 – 1 -Apresentada a denúncia da prática do crime de violência doméstica, não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima, para todos os efeitos legais, o estatuto de vítima. 3 - No mesmo ato é entregue à vítima documento comprovativo do referido estatuto, que compreende os direitos e deveres estabelecidos na presente lei, além da cópia do respetivo auto de notícia, ou da apresentação de queixa.
No mesmo sentido, dispõe o artigo 20º da Lei 130/2015, de 4-09, diploma que aprovou o Estatuto da Vítima e que contém um conjunto de medidas que visam assegurar a proteção e a promoção dos direitos das vítimas da criminalidade, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade.
A atribuição do Estatuto de Vítima não constitui uma mera formalidade. Ela representa o momento em que a vítima toma conhecimento dos seus direitos e garantias estabelecidos na LVD, que hoje tem de ser complementada com as normas que constam do Estatuto da Vítima em processo penal, aprovado pela Lei n° 130/2015, de 4/9, bem como na Lei de Proteção de Testemunhas, aprovada pela Lei n° 93/99, de 12/7 e respetivas alterações.
De acordo com o disposto no citado artigo 33º lei 112/2009, de 16 de setembro, tal como resulta claro do seu número um, apenas está prevista a tomada de declarações das vítimas do crime de violência doméstica, ou seja, a quem foi atribuído o referido estatuto ao abrigo do artigo 14º, e não a todas as testemunhas do crime de violência doméstica, sendo que a lei não impõe ao juiz de instrução a obrigatoriedade de proceder à inquirição de uma vítima para memória futura, nem estabelece os critérios em que deve assentar essa decisão. Com efeito, o legislador diz claramente que o juiz pode proceder à inquirição da vítima no decurso do inquérito.
Apesar do legislador não estabelecer os critérios em que deve assentar a decisão do juiz em autorizar a tomada de declarações para memória futura, isso não significa que essa decisão não tenha de ser fundamentada ou que esteja no âmbito da discricionariedade do juiz de instrução de criminal.
Com efeito, tendo em conta a definição do conceito de vítima prevista no artigo 2º, as finalidades da lei, previstas no artigo 3º, o estatuto de vítima previsto no artigo 14º, bem como os direitos da vítima consagrados nos artigos 15º, 20º e 22º, isto é, direito à informação, direito à proteção e condições de prevenção de vitimização secundária, permite-nos concluir em que condições devem ser prestadas as declarações para memória futura. Para além destes fatores devem ser levados em consideração aquando da tomada de decisão, a fragilidade da vítima, a idade da vítima, a relação que esta tem com o suspeito ou o arguido, o local onde reside e com quem etc.
Na verdade, uma vítima de tenra idade, tendo em conta as regras da experiência comum, tenderá a esquecer o que vivenciou, uma vítima que continua a viver com o alegado agressor, portanto, sob a sua influência, poderá provocar uma eventual contaminação do seu depoimento e a perda de memória dos factos que a mesma vivenciou, prejudicando-se, deste modo, não só a investigação e a descoberta da verdade material, bem como a própria vítima ao ser sujeita a estar presente no tribunal de julgamento e a reviver a situação, causando uma situação de vitimização secundária.
Em suma, é importante ponderar que as declarações para memória futura, neste tipo de crime, materializam um dos direitos da vítima que é o direito de audição antecipada.
Assim sendo, estando em causa um crime de violência doméstica e enquadrando-se a vítima numa das situações enunciadas no parágrafo precedente, apesar da lei não impor uma obrigatoriedade na realização de tomada de declarações para memória futura, será aconselhável que o juiz o faça dado que só assim serão alcançadas as finalidades da lei e garantidos os direitos da vítima neste tipo de crime em função da fragilidade das vítimas ou da sua idade, mas, sobretudo, da relação que têm com o arguido, em que deve evitar-se a exposição da vítima em julgamento.
Deve ser este o procedimento a adotar, em nome da proteção das vítimas contra a vitimização secundária, só assim não acontecendo quando existam razões relevantes para o não fazer.
Para além disso, estando em causa um crime de violência doméstica, previsto no art.° 152.°, n.º 1, do C. Penal, punido com pena de prisão de um a cinco anos de prisão, o mesmo integra a noção de criminalidade violenta, definida no art.º- 1.°, alínea j), do C.P.P. nos seguintes termos:
Para efeitos do disposto neste Código considera-se criminalidade violenta:
- as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.
Ora, tendo em conta a natureza do crime em causa - criminalidade violenta – a vítima deste tipo de crime é sempre especialmente vulnerável, nos termos do artigo 67°-A n º 3 do CPP.
Também a Lei n° 130/2015, de 4 de setembro - Estatuto da Vítima – prevê, no artigo 21º nº 2 al. d), o direito das vítimas especialmente vulneráveis, - como uma das medidas especiais de proteção - à prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24º.
O referido art.º. 24°, n°1, prevê que o juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.° do Código de. Processo Penal.
Importa, ainda, chamar aqui à colação o que está estabelecida na lei de proteção de testemunhas Lei 93/99, de 14 de julho.
De acordo com o artigo 1º nº 1, a presente lei regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objeto do processo.
Conforme resulta do nº 3 do mesmo artigo 1º, são também previstas medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n.º 1.
Deste modo, a Lei de Proteção de Testemunhas prevê medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n.º 1 do art.º 1º - cf. art.º 1º, nº 3, do mesmo diploma.
Dizendo o art.º 26º, nº 1, que “quando num determinado ato processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal ato decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.” Acrescentando no nº 2 que a “a especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.”
Por outro lado, nos termos do diploma citado, “durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime”
- nº 1 do art.º 28º. E, “Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.”.
Estando em causa duas testemunhas com 5 e 9 anos de idade, ou seja, crianças, ambas com capacidade para depor, nos termos do artigo 131.º do Código de Processo Penal, importa ter em atenção as diretrizes que o Conselho da Europa adotou (adotadas pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa em 17 de novembro de 2010) sobre a justiça adaptada às crianças com o objetivo específico de garantir que a justiça é sempre adaptada às crianças, independentemente de quem sejam ou quais tenham sido os seus atos.
Acima de tudo, as crianças até aos 17 anos – que sejam parte num processo, vítimas, testemunhas ou infratores – devem beneficiar da chamada abordagem «crianças primeiro».
Importa, também, ter em conta as Diretrizes das Nações Unidas sobre a Justiça em Processos que Envolvem Crianças Vítimas e Testemunhas de Crimes - Resolução nº 20/2005 – ECOSOC (Conselho Económico e Social das Nações Unidas).
Entre essas diretrizes, tendo em conta o caso concreto, importa destacar as seguintes:
Todas as autoridades relevantes devem adotar uma abordagem abrangente, que tenha em devida conta o conjunto dos interesses em causa, incluindo o bem-estar psicológico e físico da criança e os seus interesses jurídicos, sociais e económicos.
As sessões de tribunal nas quais participem crianças devem ser adaptadas ao ritmo e à capacidade de atenção da criança: devem estar previstas pausas regulares e as audiências não devem ser demasiado longas. Para permitir que as crianças participem com todas as suas capacidades cognitivas e a fim de preservar a sua estabilidade emocional, devem reduzir-se ao mínimo as interrupções e as distrações durante as sessões de tribunal.
Na medida do possível e necessário, as salas de interrogatório e de espera devem estar organizadas de forma a criar um ambiente adaptado às crianças.
Devem envidar-se todos os esforços para que as crianças prestem depoimento no ambiente mais favorável possível e nas condições mais adequadas, tendo em atenção a sua idade, maturidade e nível de compreensão e quaisquer dificuldades de comunicação que possam ter.
O número de interrogatórios deve ser tão limitado quanto possível e a sua duração deve ser adaptada à idade e à capacidade de atenção da criança.
Deve ser evitado, tanto quanto possível, o contacto direto, o confronto ou a comunicação entre a criança vítima ou testemunha e o presumível infrator, a não ser que a criança vítima o requeira.
Os profissionais devem desenvolver e implementar medidas para tornar mais fácil para as crianças testemunharem ou darem provas para melhorar a comunicação e compreensão nas fases pré-julgamento e julgamento.
Daqui decorre que a prática para a tomada de depoimento de crianças perante a justiça penal gira em torno dos seguintes aspetos essenciais: que ocorra uma única vez; o mais cedo possível; em sala diferenciada e pelo intermédio de profissionais capacitados – principalmente psicólogos ou assistentes sociais – a fim de que sejam feitas perguntas de forma mais adequada ao depoente.
Após este percurso importa regressar ao caso concreto, sendo que o que está em causa é a questão de saber se o depoimento das duas crianças, alegadamente testemunhas de um crime, mormente crime de violência doméstica imputado ao seu pai e tendo como vítima a mãe de ambas, deve ser prestado antecipadamente.
A tomada de declarações para memória futura constitui um ato processual a ser autorizado e praticado pelo juiz de instrução criminal, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, conforme resulta do artigo 268º do nº 1 al. f) e 271º nº 1, ambos do CPP, ou da própria vítima, conforme resulta do artigo 33º nº 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro e desde que estejam verificados os respetivos pressupostos formais e materiais.
Tendo em conta o disposto no artigo 33º nº 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, para que seja autorizada a inquirição para memória futura de uma vítima do crime de violência doméstica, durante a fase de inquérito, é necessário, antes de mais, que os factos denunciados sejam suscetíveis de serem qualificados como tal e que a pessoa em causa seja considerada como vítima na definição constante no artigo 2º alínea a) e b) do citado diploma.
Deste modo, o juiz de instrução criminal, por estar em causa uma exceção aos princípios da oralidade e da imediação e, em certa medida, uma restrição justificada dos direitos de defesa do arguido, só poderá autorizar a produção antecipada de prova verificados que estejam todos os pressupostos, não lhe sendo permitido aderir, de forma acrítica, à pretensão do Ministério Público. Com efeito, mesmo nas situações em que decisão do JIC seja de total adesão à posição do Mº Pº é imperativo que essa decisão seja sempre uma opção livre, autónoma e independente, resultante de uma apreciação atribuível à autoria própria do Juiz que a profere.
Na verdade, estando em causa questões relacionadas com o exercício de direitos fundamentais, mormente as garantias de defesa em processo penal e proteção das vítimas e testemunhas, a questão não poderá ficar fora da sindicância jurisdicional a exercer pelo juiz de instrução criminal, enquanto juiz das garantias e de liberdades, por força do artigo 202º nº 2 da CRP quando afirma que na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e do artigo 17º do CPP.
Este entendimento não colide com a estrutura acusatória do processo penal, consagrada no artigo 32º nº 5 da CRP, nem com a separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase do inquérito e nem, muito menos, poderá ser tida como uma posição de sindicante por parte do JIC da atividade do Ministério Público. Esta posição é, em nosso entender, a que melhor se coaduna com as funções do juiz de instrução enquanto garante de direitos fundamentais dos cidadãos.
O que está em causa com a decisão recorrida não é a autonomia do Ministério Público e nem, muito menos, a titularidade do inquérito, mas sim a defesa de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Não obstante estarmos perante factos suscetíveis de configurarem um crime de violência doméstica não estamos em presença, dado que não se mostra alegado pelo recorrente, que as duas testemunhas são vítimas, nos termos da definição no artigo 2º alínea a) e b) da LVD e nem se mostra alegado e demonstrado que tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 14º do mesmo diploma, ou seja, que o Ministério Público tenha atribuído o estatuto de vítima às duas testemunhas.
Deste modo, não estando em causa a inquirição de vítimas de crime de violência doméstica, mas sim de duas testemunhas de um crime de violência doméstica, não se mostram verificados os pressupostos enunciados no artigo 33º da LVD motivo pelo qual não poderá, ao abrigo desta norma legal, ser deferida pretensão do recorrente.
Vejamos agora se estão verificados os pressupostos previstos na lei de proteção de testemunhas - Lei 93/99, de 14 de julho.
A factualidade carreada aos autos, em relação à qual se impõe ao Ministério Público, em obediência ao princípio da legalidade, o dever de investigação e apuramento da verdade material, permite, no âmbito das respetivas possibilidades, sustentar a existência de uma suspeita fundada de que sobre a vítima identificada possa ter sido praticado um crime de violência doméstica p e p pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea a), c), n.°2, alínea a), n°s 4 e 5 do Código Penal, que carece objetivamente de ser investigado, seja no sentido de serem apurados os contornos ou a efetiva e cabal dimensão objetiva dos respetivos factos, como também da forma como os mesmos poderão ser subjetivamente imputados ao arguido, neste caso para efeitos de verificação do preenchimento ou não do respetivo tipo subjetivo do ilícito.
Em qualquer caso, a inquirição das duas testemunhas, por serem filhos do suspeito e da ofendida, do ponto de vista de quem investiga o crime, e dadas as circunstâncias supra referidas, nomeadamente por supostamente terem presenciado alguns dos factos, mostra-se devidamente justificada, não cabendo, neste segmento, ao juiz de instrução criminal, apreciar da oportunidade ou da utilidade da inquirição das testemunhas em causa na fase de inquérito.
Por outro lado, são evidentes os sinais ao nível da idade das duas testemunhas, ambas crianças, que lhes conferem a qualidade de pessoas especialmente vulneráveis, por força do artigo 26º da Lei 93/99, mesmo sem necessidade de estarmos em presença do perigo referido no n.º 1 do art.º 1º - cf. art.º 1º, nº 3, do mesmo diploma.
Para além disso, estando em causa a tomada de depoimento de duas crianças, importa ter presente as diretrizes do Conselho da Europa sobre a justiça adaptada às crianças, acima enunciadas, das quais se extrai que o depoimento deve ser prestado o mais brevemente possível e de forma a evitar-se a repetição da audição dela como testemunha, com alcance que a este conceito é dado pelo art.º 2º, al. a), da Lei nº 93/99.
Assim sendo, faz todo o sentido que, à luz do disposto nos artigos 1º nº 3, 26º e 28º da Lei 93/99, seja requerido o registo do depoimento das duas crianças, nos termos do disposto artigo 271.º do Código de Processo Penal, tal como fez o Ministério Público nos presentes autos.
Quanto ao argumento utilizado no despacho recorrido de que a realização deste ato num momento precoce de todo o procedimento, onde ainda não existe arguido constituído, não só viola o principio contraditório como frustra todas estas finalidades pois imporá no futuro a sua repetição, apenas cumpre dizer que analisada a lista taxativa de casos que obrigam à constituição de arguido prevista no artigo 58.º do Código de Processo Penal, não se encontra a obrigatoriedade de constituição de arguido prévia à tomada de declarações para memória futura.
É certo que a realização desta diligência sem a prévia constituição do suspeito como arguido inviabiliza a possibilidade deste constituir advogado para assistir ao auto de inquirição e, por consequência, compromete o pleno exercício da garantia de contraditório dado que não permite a contra inquirição, ou inquirição cruzada, prevista no artigo 348º nº 4 do CPP. Mas é certo, também, que este direito ao contraditório, apesar de constituir um direito fundamental do arguido, não é um direito absoluto e que pode ser restringido com vista à tutela de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como é o caso dos direitos das vitimas especialmente vulneráveis e das crianças.
A este propósito, o Tribunal Constitucional no acórdão de 13-05-2025 no processo nº 424/2025, pronunciou-se no sentido de Não julgar inconstitucional a norma extraída dos nºs 1 e 2 do artigo 24.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, na interpretação de que o juiz de instrução pode proceder à tomada declarações para memória futura sem que exista arguido constituído e sem que o Ministério Público, enquanto requerente, afirme e substancie no requerimento as razões, do lado da investigação, da vítima e do suspeito, para a não constituição prévia deste como arguido.
Deste modo, deve ser concedido provimento ao recurso, embora não pelos mesmos argumentos jurídicos, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que se determine a prestação de depoimento para memória futura, nos termos requeridos pelo Ministério Público.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que se determine a prestação de declarações para memória futura, nos termos requeridos pelo Ministério Público.
Sem custas

Lisboa, 9 de outubro de 2025
Processado por computador e revisto pelo Relator (cf. art.º 94º, nº 2, do CPP).
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Diogo Coelho de Sousa Leitão (Declaração de voto)
Paula Cristina B. Gonçalves
*
Declaração de voto
Voto a presente decisão, não obstante serem igualmente válidos os argumentos expendidos pelo despacho recorrido, por essencialmente entender que não compete ao juiz de instrução criminal, no actual desenho do nosso ordenamento jurídico-processual penal, decidir do momento e oportunidade da inquirição de testemunhas pelo Ministério Público na fase de inquérito. E sobretudo porque, estando em causa a tomada do testemunho de duas crianças de 9 e 5 anos de idade, importa salvaguardar a sua integridade e causar-lhes o mínimo impacto possível.
Não obstante, e pese embora o acerto de todo o enquadramento teórico feito, não posso acompanhar a fundamentação na parte em que refere que a inquirição das duas testemunhas, por serem filhos do suspeito e da ofendida, do ponto de vista de quem investiga o crime, e dadas as circunstâncias supra referidas, nomeadamente por supostamente terem presenciado alguns dos factos, mostra-se devidamente justificada.
Do que me foi dado ver, em parte alguma dos elementos constantes dos autos, maxime da queixa, existem indícios de que os menores tenham presenciado qualquer um dos episódios narrados. Bem pelo contrário. De toda a narrativa emerge que os filhos da queixosa e do denunciado ou estavam deitados a dormir, ou não se encontravam presentes quando ocorreram os reportados episódios de violência doméstica.
Daí que, e concluo, recorrendo o Ministério Público ao mecanismo legal que tem à sua disposição de requerer a declaração para memória futura das duas crianças, fá-lo, a meu ver e no presente momento, de forma espúria, arriscando-se a pretexto de não vitimizar duplamente as crianças, vitimiza-las desnecessariamente uma vez.
Diogo Coelho de Sousa Leitão