Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
236/24.9T8VFX-B.L1-2
Relator: RUTE SOBRAL
Descritores: DEVER DE COLABORAÇÃO COM A JUSTIÇA
MULTA
CONFIDENCIALIDADE
RELATÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I. O artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC) estabelece que as partes têm o dever de colaborar com o tribunal para a descoberta da verdade.
II. Este dever inclui a obrigação de comparecer em tribunal e de assegurar a presença de menor quando determinado pelo tribunal em processo de promoção e proteção.
III. Não tendo a progenitora cumprido o dever de fazer comparecer a filha em tribunal na data designada, nem apresentando documento comprovativo do motivo justificativo alegado, justifica-se a sua condenação em multa processual.
IV. O princípio do contraditório e o direito de acesso aos documentos do processo de promoção e proteção não constituem valores absolutos, sendo passíveis de limitação.
V. Não sendo a perícia de psicologia forense minimamente relevante para a questão de definição da obrigação alimentar a cargo do recorrente, e tendo a jovem, já maior de idade (gozando de plena capacidade de exercício de direitos, incluindo o direito à privacidade e de reserva da intimidade da vida privada, e ainda de proteção de dados pessoais sensíveis), solicitado que o teor do relatório pericial não fosse revelado aos seus progenitores, deverá essa vontade ser respeitada pelo Tribunal.
VI. Nesses termos, mostra-se plenamente justificada e legitimada a confidencialidade do relatório pericial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO
Em 25-06-2024, por impulso do Ministério Público, foi instaurado em benefício das menores A (nascida em 04-01-2007) e B (nascida em 24-04-2014) processo de promoção e proteção.
Em síntese, alegou-se no requerimento inicial:
- As menores são filhas de C de D, separados desde novembro de 2023;
- As menores residem com a progenitora, nos termos de decisão provisória proferida no processo de regulação das responsabilidades parentais e recusam contactos com o progenitor;
- A situação das menores foi sinalizada à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo de Vila Franca de Xira, a 2 de novembro de 2023, por iniciativa da autoridade policial, por queixa apresentada pelo progenitor contra a progenitora, por episódio de violência doméstica;
- A indisponibilidade da progenitora em colaborar, inviabilizou o conhecimento da situação familiar que vivem as menores A e B aferir da necessidade de intervenção.
Em 26-06-2024, declarada aberta a instrução do processo, foi determinada a realização de relatório social, com prévia visita domiciliária, bem como a imediata comunicação ao tribunal de qualquer situação de risco que impusesse a efetiva aplicação de medida cautelar.
Por termo de 12-12-2024, a menor A declarou expressamente pretender a manutenção do presente processo de promoção e proteção após atingir a maioridade (o que viria a suceder 04-01-2025).
Em 27-12-2024 foi aplicada à menor A, a título cautelar, a medida de apoio para a autonomia de vida (artigos 35º nº1 alínea d) e 37º da LPCJP), a executar em apartamento de autonomia em Vila Franca de Xira a indicar pela Santa Casa da Misericórdia, pelo prazo de 6 meses, com revisão no final do prazo de 3 meses.
Em 06-1-2025 foi proferido despacho atribuindo caráter confidencial à informação sobre a morada da jovem, consignando-se que da mesma não poderia ser dado conhecimento aos seus progenitores (decisão reafirmada em 16-01-2025).
Em 22-01-2025 foi homologado acordo de promoção e proteção relativo à jovem A (que atingiu a maioridade no dia 4 daquele mês), mantendo, no essencial, a medida de apoio para autonomia de vida que lhe havia sido aplicada a título cautelar, com o seguinte teor:
Em relação à jovem A, é estabelecido o presente acordo de Promoção e Proteção, na modalidade de "Apoio para a Autonomia de Vida", nos termos previstos nos art.ºs 35º nº 1 al. d), 55º e 56º, por remissão do art.º 113º nº 1, todos da LPCJP.---
1. A medida terá duração de 18 (dezoito) meses, sem prejuízo da sua eventual revisão ou prorrogação nos termos da lei.---
2. A medida será acompanhada pela Exma. Técnica da SCML/NIJ de Vila Franca de Xira Dra. AA, que enviará relatório ao fim do 5º, 11º e 17º mês.---
A jovem compromete-se a:
3. Frequentar o curso superior em que se encontra matriculada com assiduidade, pontualidade e empenho;---
4. Comparecer nas consultas de saúde que vierem a ser realizadas”;---
5. Colaborar com a intervenção a ser executada pela Equipa de Integração Comunitária da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa;---
6. Colaborar com a intervenção do NIJ de VFX, bem como de outros Serviços Intervenientes que vierem a mostrar-se necessários”.
Em 03-07-2025 foi proferida decisão que manteve a referida medida em benefício da menor A ao abrigo do disposto no art. 62º, nºs 1 e 3, al. c), da LPCJP.
Em 14-07-2025 foi homologado acordo de promoção e proteção relativamente à menor B de apoio junto dos pais, na pessoa da mãe nos termos previstos nos art.ºs 35º nº 1 al. a), 55º e 56º, por remissão do art.º 113º nº 1, todos da LPCJP, com a duração de um ano.
Nessa mesma data foram admitidos os cinco recursos interpostos, até então, pelos progenitores, como apelação, com subida imediata, em separado, e com efeito meramente devolutivo.
Proferida decisão singular que julgou três de tais recursos extintos, por inutilidade da lide, cumpre apreciar, de seguida, ambos os recursos não abrangidos por tal decisão, enunciando, sumariamente, as vicissitudes processuais que lhes estão subjacentes.
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Recurso de 07-01-2025 [interposto pela recorrente (progenitora) C]:
Como se alcança da ata de 23-09-2024, foi solicitado ao Núcleo de Infância e Juventude (NIJ) de Vila Franca de Xira, informação sobre a existência de condições necessárias para efetivação de visitas supervisionadas do pai às menores.
Tal solicitação foi dirigida ao referido Núcleo em 24-09-2024, com insistências em 11-10-2024 e em 22-10-2024.
Em 25-10-2024, o referido NIJ informou encontrarem-se agendadas entrevistas com a mãe e ambas as menores para 31-10-2024 “com vista a abordar junto das mesmas a possibilidade de serem realizados convívios supervisionados entre pai e filhas”.
Em 06-11-2024, aquele organismo informou que a progenitora e filhas não compareceram na referida data, tendo sugerido o agendamento de datas para audição das menores e progenitores em sede judicial.
Nessa sequência, foi emitida a seguinte promoção:
Tendo em consideração que o NIJ reportou continuar a verificar-se dificuldade daquela entidade em conseguir contactar com a progenitora, tendo esta e as crianças faltado à entrevista agendada para o dia 31.10.2024, o NIJ não logrou obter as informações que lhe tinham sido solicitadas.
Assim sendo, tal como sugerido pelo NIJ, p. que se designe data para audição da jovem A e da criança B, presencialmente, nas instalações deste Juízo de Família e Menores, na presença da técnica do NIJ e mediante o acompanhamento da jovem e da criança por técnico especializado”
Nos termos promovidos, o tribunal recorrido, por despacho de 18-11-2024, designou o dia 27-11-2024 para inquirição das menores.
Por requerimento de 26-11-2024, a progenitora alegou estar impossibilitada de comparecer na hora designada dado encontrar-se notificada para comparecer no INML à mesma data com vista à elaboração dos relatório periciais ordenados nos autos e ainda que “(…) as crianças, estão, nesse horário (amanhã, ao meio dia), em atividades escolares intensas, por se aproximarem os testes deste trimestre /semestre”.
Nessa sequência, a diligência agendada foi transferida para 03-12-2024, tendo sido proferido despacho com o seguinte teor:
A progenitora veio aos autos solicitar a alteração da data designada para audição das crianças (sendo que a diligência não visa a audição da progenitora), alegando que, no dia de amanhã terá de comparecer no INML, pelas 11 horas, para conclusão da perícia, não tendo juntado, contudo, qualquer comprovativo, mas comprometendo-se a fazê-lo.
Atendendo ao motivo invocado pela progenitora, a quem não se reporta a diligência agendada, mas que, porventura, quererá acompanhar as filhas, dou sem efeito a data designada para a audição das crianças, ordenando que se notifique a progenitora para, no prazo de dez dias, comprovar documentalmente a sua presença no INML, no dia de amanhã, sob pena de condenação em multa processual.
Para a audição das crianças designo o próximo dia 3 de dezembro às 11,30 horas.
Sucede que também nesta data (03-12-2024) as menores estavam ausentes, pelo que foi designado o dia 12-12-2024 para a sua audição.
Em 12-12-2024 apenas a menor A compareceu em Tribunal, esclarecendo que foi o progenitor que lhe deu conhecimento da diligência, estando ausente a sua irmã, como se alcança da ata respetiva, tendo sido proferido despacho que designou o dia 17-12-2024 para continuação da “conferência”.
Foi solicitada à PSP a notificação à progenitora para fazer comparecer a filha Bna referida data “(…) com a advertência das legais cominações previstas no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Civil”, constando dos autos que a mesma obteve o resultado de “certificação positiva” - cfr. email da PSP de 16-12-2024.
Por requerimento de 16-12-2024 solicitou a progenitora, além do mais a realização da diligência a 19, 20 ou 23 de dezembro por a B ter em 17-12-2023 um recital de Natal.
Atenta a sua relevância para a apreciação do recurso, transcreve-se o teor de tal requerimento:
Pelas razões descritas em anteriores requerimentos e assumindo-se, pelo teor do Despacho que hoje lhe foi entregue, que a diligência marcada para amanhã 17.12.2024 se destina à prestação de declarações de várias pessoas (“…prestarem declarações”) no plural … C, Requer:
B) Que a diligência se realize a 19, 20 ou 23 (a qualquer hora), pelo facto de a B ter, em 17.12.2024, a apresentação de um recital de Natal (que está a preparar, com muito empenho e dedicação, há mais de 3 meses - no âmbito de um projeto escolar destinado a angariar fundos e alimentos para as famílias mais necessitadas do conselho), ao qual a criança se recusa faltar …
A) Autorização para ser ouvida, à distância, por teleconferência, através do escritório do seu advogado (cfr. arts 15 e 23 do Estatuto da Vítima - Lei n.º 45/2023, de 17/08), para o que se aguarda a receção, das respetivas credenciais-convites, através do endereço de correio eletrónico do seu advogado: (…)
Para o que tudo fará para assegurar a presença das filhas (ainda que a mais nova, tenha em 17.12.2024 à mesma hora, a apresentação de um recital de Natal – no âmbito de um projeto escolar destinada a angariar fundos e alimentos para as famílias mais necessitadas da freguesia, ao qual se recusa faltar …
B) Se notifique o signatário, com a máxima urgência, do teor:
- Do Despacho que determinou a realização desta última Diligência, com expressa indicação dos fundamentos de facto e de direito, que determinaram que se realizará com que intervenientes ? com? ou sem? a presença dos advogados, para tomada de declarações a quem, a quantas pessoas ?
- Dos ficheiros que contém a gravação das declarações já prestadas nestes autos e apensos.
- Da ata das diligências já prestadas nestes autos”.
Verificada a ausência da menor B, foi proferida na ata de 17-12-2024 despacho com o seguinte teor:
Uma vez que a Progenitora estava devidamente notificada para fazer comparecer a criança Bno dia de hoje, vai a mesma condenada em multa de 2UC.
Quanto à pretensão de a criança ser ouvida à distância, vai o mesmo indeferido, uma vez que se pretende a audição da Bpresencialmente.
Quanto à audição da A tal já não é necessário, uma vez que a mesma compareceu voluntariamente em Tribunal para prestar declarações no passado dia 12 de dezembro de 2024.
Acresce que o que se pretende é ouvir a criança para ser dado cumprimento ao ordenado no despacho de 26.06.2024, não estando presente o progenitor na data a ser designada para a sua audição, não havendo por isso fundamento para ser invocado qualquer estatuto de vítima.
Quanto ao fundamento que determina esta diligência, a audição da criança, está devidamente explicitado no processo, processo esse que poderá ser consultado pelo Ilustre Mandatário nos termos do disposto no art.º 88 da LPCJP.
Assim, para a audição da B, o Tribunal designa o próximo dia 7 de janeiro às 11 horas, devendo ser emitidos os competentes mandados de comparência, a executar nos exatos termos promovidos”.
Em 16-12-2024 a menor B, pelas 17h44, dirigiu comunicação eletrónica ao Juízo de Família de Vila Franca de Xira, com a menção de urgente e com o seguinte teor:
Exº Senhor Doutor Juiz
Queria-lhe informar que o dia proposto para eu ir a tribunal, eu terei um concerto do conservatório e gostava muito de estar presente. Eu também queria saber se lá entrarei em contacto com o meu pai pois eu não quero. Por isso, a partir de dia 19 eu gostava de não ir a tribunal e fazer uma videochamada com o senhor doutor juiz, na minha escola num local onde não haja ninguém (…)”.
Em 17-12-2024, pelas 16h43, em resposta a tal comunicação eletrónica, foi solicitado à menor B que identificasse o nº do processo, solicitação a que respondeu na mesma data pelas 17h54.
Em 17-12-2024 a progenitora juntou aos autos “certificado de incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença” com início a 16-12-2024 e termino a 14-01-2025.
Em 19-12-2024 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Nos presentes autos veio a progenitora juntar o certificado de incapacidade temporária para o trabalho, no período compreendido entre os dias 16.12.2024 e 14.01.2025, ao que se deduz, para justificar a falta da criança Bna diligência designada para o dia 17.12.2024, e a que não compareceu, apesar da progenitora se encontrar devidamente notificada para fazer comparecer a filha.
De acordo com o referido certificado, o mesmo apenas atribuiu à progenitora incapacidade para o exercício da sua atividade profissional, não implicando a necessidade de permanência no domicílio, pelo que, em face do mesmo, não é de concluir que não pudesse assegurar a presença da filha na diligência agendada.
Assim sendo, decido manter a condenação da progenitora na multa processual já ordenada em ata.
D.N.”
Em 07-01-2025, progenitora interpôs recurso de tal despacho, transcrevendo-se as respetivas conclusões:
1. Ao ter condenado a mãe da Bem multa de 2 UC (por não ter feito comparecer a filha em Tribunal em 17.12.2024) ignorando tudo quanto havia sido requerido pela mãe em 16.12.2024 (além do mais, ao abrigo do Estatuto de Vítima - no sentido de que fossem ouvidas à distância), ignorando o pedido da filha para ser ouvida em dia diferente de 17.12.2024 (a criança escreveu ao Tribunal, alegando ter uma audição no Conservatório, para que se vinha preparando há meses), ignorando que a mãe se encontrava doente, sem notificar a mãe do teor da ata, em decisão não fundamentada, ignorando que o Tribunal recorrido está há mais de um ano, para fixar uma prestação alimentar do pai às filhas (a entregar à mãe), abstendo-se de conhecer tudo quanto havia sido requerido pela mesma mãe em 16.12.2024, o Despacho recorrido violou o disposto nos artigos a 1 a 7, 154, 417 607 nº 4 e 615 nº 1 todos do CPC, preceitos que foram interpretados em violação dos Princípios Constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana, da Confiança, da Igualdade e do Acesso ao Direito e, bem assim, do disposto nos artigos 1º, 2º, 13º e 20º, 58 e 205º da Constituição da República Portuguesa.
2. O Tribunal recorrido deveria ter interpretado o disposto nos artigos a 1 a 7, 154, 417 607 nº 4 e 615 nº 1 todos do CPC, em conformidade com os Princípios Constitucionais da Proporcionalidade, da Dignidade da Pessoa Humana, da Confiança, da Igualdade e do Acesso ao Direito e, bem assim, do disposto nos artigos 1º, 2º, 13º e 20º, 58 e 205 da Constituição da Republica Portuguesa, proferindo Despacho que, apreciando os pedidos formulados pela mãe em 16.12.2024, levasse em conta a vontade de criança (impedida em atividade musical no Conservatório na data designada), designasse nova data para a tomada de declarações à mãe e à criança (por teleconferência), julgando validamente justificada a ausência da mãe e da criança, tudo sem qualquer condenação da mãe, ora recorrente, em multa.”
O Ministério Público, na resposta a tal recurso, concluiu nos seguintes termos:
1º- Quanto aos motivos que levaram à necessidade de audição da criança em sede judicial e às várias datas que foram designadas para esse efeito, sem que a recorrente tenha assegurado a presença da filha, remete-se para o supra exposto.
2º- A recorrente encontrava-se notificada para fazer comparecer a Bpara audição, em tribunal, no dia 17.12.2024 e não o fez, o que levou à sua condenação em multa processual, pelos motivos que constam do despacho que determinou essa condenação.
3º- Também quanto ao despacho que manteve a condenação em multa, não obstante o certificado de incapacidade temporária para o trabalho por doença, apresentado pela progenitora, para o período compreendido entre 16.12.2024 e 14.01.2025, se entende que nada há apontar ao mesmo, porquanto decorria do certificado que não existia necessidade da recorrente permanecer no domicílio, não sendo, por isso, de concluir que não pudesse assegurar a comparência da filha.
4º- Entende-se, assim, que os despachos proferidos se encontravam devidamente fundamentados.
5º- Por outro lado, também se é de opinião que neles foi feita uma correta aplicação do direito, face à necessidade de proceder à audição, presencial, da criança, não tendo a recorrente assegurado a sua comparência, conforme lhe competia, porque devidamente notificada para o efeito.
6º- Conclui, assim, o Ministério Público, salvo o devido respeito pelo entendimento expresso pela recorrente nas alegações do recurso apresentado, que o despacho recorrido deve ser mantido e confirmado”.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Na ausência de ampliação de recurso e de questões de conhecimento oficioso, identifica-se a seguinte questão a decidir nas alegações da recorrente:
- Acerto da sua condenação em multa por falta de comparência da sua filha Bà diligência agendada para 17-12-2024.
Os factos a ponderar para a apreciação do recurso são os que resultam da tramitação exposta.
O fundamento legal da condenação radica no disposto no artigo 417º, nº 2, CPC que sob a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade” estabelece no seu nº 1:
Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”.
Já o nº 2 comina com condenação em multa a falta de colaboração.
O dever de colaboração emerge do princípio da cooperação, consagrado no artigo 7º, CPC, cuja violação determina a aplicação de multa, nos termos do disposto no artigo 27º RCP. Tal dever de cooperação mostra-se limitado pelo respeito pelos direitos fundamentais - neste sentido José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, 3ª edição, Vol. 2º pág. 223
Das alegações da recorrente depreende-se que considera que lhe era inexigível fazer comparecer a sua filha B em diligência agendada para 17-12-2024, dado resultar de ambos os requerimentos (seu e da própria menor) apresentados no dia anterior, a impossibilidade da comparência, decorrente da cumulação de vários fatores impeditivos, designadamente de recital de Natal agendado para a mesma data, da sua situação de doença e do estatuto de vítima.
Este último fundamento deve ser enquadrado na Lei nº 112/2009, de 16 de setembro (na versão da Lei nº 57/2021, de 16 de agosto), que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas. Do seu artigo 14º, nº 1, resulta: “Apresentada a denúncia da prática do crime de violência doméstica, não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima, para todos os efeitos legais, o estatuto de vítima”. Do nº 2 daquela norma resulta que quando existam filhos menores, o regime de visitas do agressor deve ser avaliado ou condicionado.
Porém, dos autos não logramos extrair que quer à recorrente, quer à sua filha B tenha sido atribuído tal estatuto de vítima. Consequentemente, dos elementos conhecidos, não pode concluir-se que a menor B, ao ser convocada para declarações, visse tal estatuto (que - reitera-se - não lhe foi atribuído) desrespeitado. Tanto mais que no despacho proferido em ata de 17-12-2024 ficara clarificado que: “(…) o que se pretende é ouvir a criança para ser dado cumprimento ao ordenado no despacho de 26.06.2024, não estando presente o progenitor na data a ser designada para a sua audição, não havendo por isso fundamento para ser invocado qualquer estatuto de vítima”.
Assim, assente a inaplicabilidade do estatuto de vítima, deverá ter-se presente que a condenação em multa a que a recorrente reage radica na falta de comparência da menor B a tomada de declarações designada para 17-12-2024.
Tal diligência, como se extrai da tramitação processual e dos despachos proferidos, inseria-se no apuramento da viabilidade de serem retomadas as visitas (ainda que supervisionadas) entre a menor e o seu pai. De facto, logo no requerimento inicial se alegava que as menores residiam com a mãe e recusavam contactos com o progenitor. Acresce que no despacho de 26-06-2024, pelo qual foi declarada aberta a instrução do processo, foi determinada a realização de relatório social, com prévia visita domiciliária, bem como a imediata comunicação ao tribunal de qualquer situação de risco que impusesse a efetiva aplicação de medida cautelar.
Por despacho de 23-09-2024, foi solicitado ao Núcleo de Infância e Juventude de Vila Franca de Xira informação sobre a existência de condições necessárias para efetivação de visitas supervisionadas entre as menores A e B e o pai. Perante a falta de comparência da recorrente e das filhas, o NIJ de Vila Franca de Xira sugeriu que se procedesse à audição das menores e progenitores em sede judicial, tendo sido nessa sequência, e após promoção nesse sentido, que o tribunal recorrido designou, para o efeito, o dia 27-11-2024. Em face da indisponibilidade da recorrente, a diligência foi depois agendada para 03-12-2024, tendo sido proferido despacho no qual se reafirmava que não se visava a inquirição da progenitora. Perante a ausência das menores, a diligência foi então reagendada para 17-12-2024, ficando a recorrente notificada “(…) com a advertência das legais cominações previstas no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Civil”.
Ora, embora a recorrente, por requerimento dirigido aos autos no dia anterior (16-12-2024), tenha informado que a menor B não podia comparecer por força de recital de Natal, não comprovou a efetiva existência desse impedimento. Assim como não esclareceu o local e a hora a que o mesmo ocorreria, por forma a justificar a impossibilidade de comparência da menor, invocando-o de forma genérica. E também não referiu se a menor participaria efetivamente no recital, por forma a sustentar minimamente a impossibilidade invocada.
Acresce que nesse mesmo requerimento também não invocou que tivesse sido acometida por qualquer doença que a impedisse de fazer comparecer a menor. Só ulteriormente invocou tal situação de doença, não comprovando, contudo, que a mesma a impedisse de se ausentar de casa para acompanhar a filha a diligência já por várias vezes adiada.
Já o requerimento apresentado pela própria menor, na véspera da diligência (às 17h44 do dia 16-12-2024) e sem identificação do número de processo, acabou por não ser conhecido atempadamente.
Resulta do artigo 5º RGPTC (aplicável ex vi artigo 84º LPCJP) que a audição da criança se justifica para que possa manifestar a sua opinião, a ponderar na decisão a tomar, e ainda para que o seu depoimento possa ser considerado como meio probatório (cfr. artigo 5º RGPTC, nº 1, 4, 6 e 7. Consequentemente, a tomada de declarações à menor B beneficiava de fundamento legal, sendo manifesto que visava obter a perspetiva da menor quanto à questão da falta de contacto com o progenitor que se verificava há largos meses, pelo menos desde a instauração do processo de promoção e proteção. Diligência essa que se inseria no âmbito da instrução do processo, sendo exigível a comparência da menor B.
A propósito do dever de fundamentação, que o recorrente afirma ter sido violado na decisão proferida, e que dispõe de assento constitucional no artigo 205º, nº 1 CRP, dispõe o artigo 154º, nº 1, CPC: “1 – As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.” Similarmente, também o artigo 607º, nº 3, CPC consagra o dever de fundamentação das decisões judiciais, estabelecendo a necessidade de indicação dos factos provados e a indicação e interpretação das normas jurídicas violadas. A tal propósito, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, (Código de Processo Civil Anotado, Volume 1, Almedina, 2019, pág. 188) “O dever de fundamentação das decisões tem consagração constitucional (art. 205º, nº 1 da CRP), apenas se dispensando no caso de decisões de mero expediente. Deste modo, ainda que o pedido não seja controvertido ou que a questão não suscite qualquer dúvida, a respetiva fundamentação deverá ser fundamentada nos termos que forem ajustados ao caso”.
No Acórdão do Tribunal Constitucional nº 147/2000, de 21-03-2000 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), refere-se: “Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afetam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controle mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adoção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas. que a fundamentação visa (…)”
Porém, o dever de fundamentação das decisões judiciais apresenta níveis de exigência diversos, com vista à sua adequação quer ao tipo de decisão, quer ao tipo de processo em que é proferida.
No caso, tratando-se de processo de jurisdição voluntária, e muito embora o tribunal estivesse obrigado ao dever de fundamentação das suas decisões (cfr. artigos 100º LPCJP, 986º, nº 1, e 607º, CPC), esse dever inscrevia-se num patamar sumário, inserindo-se o despacho recorrido na tramitação e instrução da causa, visando sancionar a ausência da menor em diligência para aquela data designada.
E o certo é que a decisão recorrida não pode deixar de ser apreciada devidamente integrada na tramitação processual já referida, que não era de molde a suscitar qualquer dúvida quanto à violação do dever de comparência que motivou a condenação em multa.
Afigura-se, pois, que o despacho que indefere a justificação da falta e mantém a condenação em multa se mostra fundamentado, dado os autos indiciarem manifesta falta de colaboração com impacto na sua tramitação, o que implica a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida.
Pelo exposto, improcede o recurso, mantendo-se a condenação da recorrente em multa de 2 UC por não ter acompanhado a filha menor à diligência agendada para 17-12-2024.
As custas do recurso serão suportadas pela recorrente, atento o seu decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário que requereu e que lhe tenha sido concedido – cfr. artigo 527º nº 1, CPC.
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Recurso de 07-04-2025 (interposto pelo progenitor D relativamente ao despacho de 21-03-2025 que indeferiu a notificação do relatório pericial realizado à filha A):
Na apreciação de tal recurso, haverá que ponderar as seguintes vicissitudes processuais (que se extraem da consulta do processo e seus apensos):
- Nos autos de regulação de responsabilidades parentais, em conferência de pais realizada em 22-02-2024, foi determinada a realização de avaliação psicológica “dos progenitores e também das crianças A e B”;
- Em 14-11-2024, o progenitor requereu a consulta do presente processo de promoção e proteção “nos termos do disposto no artigo 88º, nºs 1 e 3 da LPCJ (…) através da sua mandatária, via Citius”;
- Tal requerimento mereceu o seguinte despacho de 26-11-2024:
Nos presentes autos o progenitor veio, através da sua mandatária, solicitar a consulta dos mesmos, via Citius.
O processo de promoção e proteção reveste caráter reservado, mas o art. 88º, nº 3, da LPCJP possibilita os progenitores a sua consulta, pessoalmente ou através de advogado.
Tal consulta a que se refere o preceito legal é apenas na secretaria do tribunal, não possibilitando essa consulta via Citius, atendendo ao superior interesse das crianças sujeitos às medidas de promoção e proteção (cf. nesse sentido, entre muitos outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - Processo nº 1585/23.9T8TVD-L.L1-2 -, datado de 26.09.2024, disponível in www.dgsi.pt, em que refere, de forma categórica, que “(…) O processo de promoção e proteção apenas pode ser consultado na secretaria do Tribunal, estando vedado aos Advogados a sua consulta eletrónica no citius.”
Face ao supra exposto, indeferido a consulta dos autos, através do Citius, deferindo a sua consulta na secretaria judicial”;
- Em 27-12-2024 foi proferida, a título cautelar, à então menor A “medida de apoio para a autonomia de vida (artigos 35º nº1 alínea d) e 37º da LPCJP) a executar em apartamento de autonomia em Vila Franca de Xira a indicar pela Santa Casa da Misericórdia pelo prazo de 6 meses com revisão no final do prazo de 3 meses”.
- Em 30-12-2024, o NIJ de Vila Franca de Xira remeteu informação, da qual consta, além do mais, o local onde a menor A se encontrava a pernoitar temporariamente até ser encontrada alternativa habitacional conveniente ao seu superior interesse, sugerindo que fosse conferido caráter confidencial a tal informação;
- Em 06-01-2025, foi proferido despacho com o seguinte teor:
Tendo em atenção o teor da informação prestada pela NIJ e os motivos aí invocados, para proteção e promoção da estabilidade emocional da A, atribuo à informação de 30.12.2024 caráter de confidencialidade, não podendo ser dado conhecimento aos progenitores da morada da jovem, nem podendo esta informação ser objeto de consulta por parte dos mesmos.”
- Em 20-01-2025 foram juntos aos autos os relatórios periciais da progenitora C e da menor B, e no dia seguinte (21-01-2025) foi junto relatório pericial da jovem A, no mesmo se tendo consignado, além do mais:
4.4.31 - Recomenda-se ao douto tribunal que o teor desta entrevista não seja partilhado junto dos progenitores (…)”;
- Do relatório pericial realizado à jovem A consta como “data do exame” a de 20/11/2024 e como data de realização a de 20-01-2025, coincidente com a data da sua assinatura eletrónica pelo perito que o elaborou;
- Em 22-01-2025 o Ministério Público apresentou a seguinte promoção:
Quanto ao exame pericial de psicologia efetuado à jovem A, tal como solicitado no referido exame pela própria jovem, p. que o teor das declarações aí prestadas pela A não seja dado a conhecer aos seus progenitores, para a proteção da jovem”;
- Em 22-01-2025 foi homologado acordo de promoção e proteção relativo à jovem A (que atingiu a maioridade no dia 4 daquele mês), mantendo, no essencial, a medida de apoio para autonomia de vida que lhe havia sido aplicada a título cautelar (já acima descrita). Medida esta renovada em 03-07-2025.
- Em 19-03-2021, o progenitor apresentou requerimento com o seguinte teor:
1-O Requerente não foi notificado do relatório a que se alude no douto despacho, pelo que requer a sua notificação, sendo essencial ter conhecimento do mesmo em momento anterior à realização da diligência.
2-Não obstante a perícia ter sido ordenada no processo principal, os relatórios das filhas e da Requerida foram juntos no apenso A.
3- O relatório do Requerente encontra-se disponível no processo principal, corretamente, estando disponível para consulta de todos os intervenientes, sendo certo que têm que ser notificados.
4-Não existindo despacho que determine a junção dos relatórios das filhas e da Requerida ao apenso A., nem se alcançando a dualidade de critérios no que respeita ao tratamento dos relatórios dos diversos intervenientes, requer a V. Exa. se digne ordenar igualmente a notificação dos relatórios periciais ao Requerente e a sua junção ao autos principais”;
- A progenitora C, na mesma data, também requereu a notificação do “(…) teor de todos os relatórios juntos aos autos que ainda não sejam do conhecimento do progenitores e Mais requer se profira Despacho que expressamente determine que os advogados podem consultar o processo na secretaria, quer a parte física (em papel) quer a parte eletrónica, atenta a última recusa de oficiais de justiça, em permitir o cabal exercício de tal direito (em dezembro último)”.
- Em 21-03-2025 foi proferido despacho (referência 164486183), com o teor que se transcreve na parte relevante:
No que concerne à consulta do processo, autoriza-se a sua consulta pelo mandatário da progenitora, com exceção das informações referentes à jovem A, já determinadas como confidenciais nos autos.
D.N.
Quanto ao relatório pericial da criança B e da progenitora, ordeno que se notifiquem as partes dos respetivos relatórios.
Quanto ao exame pericial efetuado à jovem A, indefere-se o requerido, atenta a confidencialidade solicitada no mesmo para proteção da jovem”.
Foi a tal despacho que o recorrente reagiu, por intermédio do recurso ora em apreciação (de 07-04-2025), centrado no facto de lhe ter sido recusada a notificação do relatório pericial relativo à filha A, com as conclusões que se transcrevem:
1-A perícia psicológica aos progenitores e a ambas as filhas, foi ordenada na conferência de pais, em 22/02/2024, no processo de regulação das responsabilidades parentais.
2-O exame pericial ao progenitor foi feito aquando da marcação pelo IML.
3-O exame pericial da progenitora e das filhas foi feito meses mais tarde.
4-Logo que foi concluído, o relatório pericial do progenitor foi junto aos autos de regulação das responsabilidades parentais.
5-Os relatórios periciais da progenitora e das menores não foram junto aos autos de regulação das responsabilidades parentais, sendo que inexiste douto despacho de que determine ou justifique a aplicação da dualidade de tratamento nos sujeitos processuais.
6-O Recorrente, quando percebeu que os relatórios da progenitora e das filhas foram juntos ao apenso A. processo de promoção e proteção, requereu a sua notificação, pois não tenham carácter confidencial.
7-O Tribunal «A Quo» deferiu a notificação do relatório quanto à progenitora e à menor B mas indeferiu a notificação do relatório da entretanto maior de idade, A, com o fundamento que a mesma requereu a confidencialidade.
8-Ora, salvo melhor opinião o douto despacho é nulo.
9-Viola, entre outros, princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório e o princípio do Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, na medida em que não confere ao Recorrente o direito a um processo equitativo.
10-Na data em que o relatório foi elaborado, a jovem A era ainda menor.
11-Do relatório de avaliação psicológica não constam elementos cuja publicidade junto dos sujeitos processuais, prejudique a sua dignidade.
12-Os relatórios periciais são elementos probatórios essenciais para o Tribunal forme a sua convicção.
13-Os quatro relatórios periciais estão interligados, movo pelo qual, quando foi apresentado o relatório pericial relativo ao progenitor, o Exmo. Senhor Perito evidenciou que tal relatório se encontrava «particularmente prejudicado por não ter sido possível recolher elementos por parte dos demais intervenientes».
14- O princípio do contraditório é um dos princípios basilares do Direito.
15-As partes têm direito a conhecer o teor de todos os meios probatórios, para que possam pronunciar-se sobre os mesmos e, só após o exercício do contraditório, deve o Tribunal forma a sua convicção.
16-Os relatórios não podiam sequer, ser juntos ao apenso A. uma vez que a perícia foi ordenada no processo principal e não existe douto despacho em contrário.
17-Os relatórios devem ser desentranhados do apenso A e serem juntos ao processo de regulação das responsabilidades parentais e ser ordenada a notificação do relatório pericial da A ao Recorrente.
18-O douto despacho posto em crise viola ou pelo menos fez interpretação errónea do “disposto nos artigos 3º do C.P.C. e 13 º e 20º da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o douto despacho posto em crise ser substituído por outro que determine a notificação do relatório ao Recorrente, assim se fazendo a costumada Justiça!”
O Ministério Público apresentou resposta a tal recurso que concluiu nos seguintes termos:
1º- O recorrente interpôs recurso do despacho judicial, datado de 21.03.2025, que indeferiu o requerimento, em que solicitava que lhe fosse notificado o relatório pericial de psicologia forense, efetuado à jovem A.
2º- O fundamento daquele indeferimento, tal como resulta do aludido despacho, prende- se com a confidencialidade solicitada no relatório pericial de psicologia forense, para proteção da jovem.
3º- O fundamento do indeferimento da notificação do referido relatório ao recorrente não se prende com a natureza do processo ao qual foi junto, mas antes com o motivo que está subjacente a esse indeferimento, relacionado com a proteção da própria jovem, aplicável, portanto, de forma indistinta, em sede de processo de promoção e proteção e no âmbito tutelar cível.
4º- A comprovar essa motivação subjaz o facto do relatório pericial efetuado à criança B, também junto ao processo de promoção e proteção, mas relativamente ao qual não decorre a necessidade de proteção frisado no relatório da jovem A, ter sido notificado ao recorrente.
5º- Embora o art. 3º, nº 3, do Código de Processo Civil preconize o princípio do contraditório e o art. 20º da Constituição da República Portuguesa garanta o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva, tais direitos não se sobrepõem, em nosso entender, ao superior interesse da criança ou jovem, garantido pelo art. 4º, al. a), da LPCJP, aplicável em sede de Regime Geral do Processo Tutelar Cível, por via do disposto no respetivo art. 4º e que, na situação em concreto, impunha, para proteção da jovem, a confidencialidade quanto ao relatório da perícia de psicologia forense efetuado relativamente à mesma.
6º- Atenta a atual maioridade da jovem A, o processo de regulação do exercício das responsabilidades, no que a ela se reporta, apenas poderá prosseguir relativamente ao segmento dos alimentos, por força do disposto no art. 1880º do Código Civil, porquanto no que concerne aos demais segmentos que integram as responsabilidades parentais mostram-se prejudicados por efeito da maioridade, nos termos do disposto nos arts. 130º e 1877º Código Civil.
7º- Não se reportando a perícia de psicologia forense ao segmento dos alimentos, mas antes às relações familiares, interação com os progenitores, vinculação com os progenitores, fatores estes que, perante a maioridade da jovem, deixaram de ter qualquer relevância, mostra-se reforçada a confidencialidade do relatório pericial, perante a necessidade da proteção da jovem.
8º- Mesmo no que se refere ao processo de promoção e proteção, onde, efetivamente continua a relevar o conteúdo do referido relatório, por a jovem beneficiar de medida de promoção e proteção, esta é maior de idade e, por conseguinte, estando habilitada a reger a sua pessoa, pode prestar o consentimento necessário para a intervenção protetiva, não se vendo, assim, também, nesta sede, interesse no acesso dos progenitores ao referido relatório.
9º- Também não se afigura que este relatório tenha qualquer relevo para efeitos da regulação das responsabilidades parentais ou avaliação quanto à necessidade de aplicação de medida de promoção e proteção quanto à irmã, B, porque, relativamente a esta criança foi efetuada a respetiva perícia de psicologia forense e elaborado o correspondente relatório, junto aos autos e acessível à consulta pelos progenitores.
10º- Quanto ao acesso do Ministério Público ao relatório de psicologia forense da jovem A e à consulta do processo de promoção e proteção, sem restrições, tal decorre do estatuto processual do Ministério Público, quer em sede de promoção e proteção, quer no âmbito tutelar cível, para defesa e promoção dos direitos e interesses das crianças e jovens (cfr. os arts. 4º, nº 1, als. b) e i) e 9º, als. c) e d), do Estatuto do Ministério Público, o art. 72º da LPCJP e o art. 17º do RGPTC), não existindo, por conseguinte, com o devido respeito, qualquer violação do princípio de igualdade das partes.
11º- Deste modo, entende o Ministério Público que o despacho recorrido, ao decidir nos moldes em que o fez, não violou qualquer preceito legal nem efetuou qualquer errónea interpretação dos mesmos, designadamente dos preceitos legais mencionados pelo recorrente nas suas alegações de recurso ou bem assim dos princípios processuais aí enunciados, que, em nosso entender, sempre se mostraram salvaguardados e acautelados, embora com as restrições decorrentes da defesa e salvaguarda de outros princípios e normas legais, como sejam as que defendem e priorizam a salvaguarda do superior interesse da criança ou jovem.
12º- Conclui, assim, o Ministério Público, que o despacho recorrido deve ser mantido e confirmado”.
Lidas e interpretadas as alegações do recorrente, conclui-se que a controvérsia radica na decisão que indeferiu o seu pedido de notificação do teor do relatório pericial relativo à sua filha A. A questão a decidir consiste, por isso, em saber se o recorrente pode ter acesso, como pretende, ao referido relatório.
A fundamentação factual a ponderar é a que resulta do relatório antecedente.
Deverá ter-se presente que o objetivo visado com o regime da proteção das criança e jovens em perigo, devidamente enunciado no artigo 1º da Lei nº147/99, de 01/09 (na sua atual redação, doravante LPCJP), é “a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral”. E ainda que a intervenção para promoção dos direitos das crianças e jovens em perigo “(…) tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo”, perigo esse que ocorre designadamente quando “Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional” – cfr. artigo 3º, nº 1 e 2, alínea f), LPCJP.
Julgamos que o caso dos autos evidencia que a jovem A careceu (e carece ainda) de proteção ante um relacionamento conflituoso dos pais, que se têm revelado incapazes de a salvaguardar. Assim, como resulta da tramitação exposta no relatório desta decisão, foi-lhe aplicada inicialmente (em 27-12-2024) a medida cautelar de apoio para a autonomia de vida, nos termos dos artigos 35º nº1 alínea d) e 37º da LPCJP. Tal medida foi complementada com a decisão de 06-1-2025, que atribuiu caráter confidencial à informação sobre a morada da jovem, consignando-se expressamente que da mesma não poderia ser dado conhecimento aos seus progenitores.
Tal decisão relativa à aplicação da medida de apoio para autonomia de vida foi novamente tomada, em termos definitivos e pelo prazo de 18 meses, em 22-01-2025, mediante a homologação de acordo de promoção e proteção (já depois de a menor ter atingido a maioridade), e revista (no mesmo sentido) em 03-07-2025.
A primeira conclusão a extrair de todas as decisões enunciadas é a de que a proteção da jovem A tem vindo a concretizar-se com a medida de apoio para autonomia de vida, mantendo reservadas dos progenitores informações relevantes (como a da sua morada).
Enquadrando tal reserva no regime da LPCJP, haverá que ter presente que um dos princípios orientadores da intervenção é o da privacidade, consignando a alínea b) do artigo 4º: “Privacidade - a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada”. Já o artigo 88º, sob a epígrafe “Caráter Reservado do Processo”, dispõe:
1 – O processo de promoção e proteção é de caráter reservado.(…)
3 – Os pais, o representante legal e as pessoas que detenham a guarda de facto podem consultar o processo pessoalmente ou através de advogado.
4 – A criança ou jovem podem consultar o processo através do seu advogado ou pessoalmente se o juiz ou o presidente da comissão o autorizar, atendendo à sua maturidade, capacidade de compreensão e natureza dos factos.
5 – Pode ainda consultar o processo, diretamente ou através de advogado, quem manifeste interesse legítimo, quando autorizado e nas condições estabelecidas em despacho do presidente da comissão de proteção ou do juiz, conforme o caso.”
Tais normativos apresentam-se em sintonia com a previsão do artigo 16º da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 (CDC), aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90, publicada no DR nº 211/90, Série I, de 12/9/1990, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90, de 12/9, prevendo-se, sob o seu nº1, que “nenhuma criança pode ser sujeita a intromissões arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou correspondência, nem a ofensas ilegais à sua honra e reputação”, e sob o seu nº 2 que “a criança tem direito à proteção da lei contra tais intromissões ou ofensas”.
De todo modo, embora se extraia do citado artigo 88º LPCJP que o processo de promoção e proteção assume caráter reservado, forçoso é concluir que resulta do seu nº 3 que os pais do menor o podem consultar. Ou seja, como se afirma no Acórdão da Relação de Lisboa de 02-05-2017 (proferido no processo nº 14091/09.5T2SNT-A.L1-7, disponível em www.dgsi) “Pode, assim, afirmar-se o princípio segundo o qual as restrições de acesso e consulta do processo não abrangem os pais do menor que, à partida, o podem consultar sem restrições”, e ainda “Podem existir casos em que a integridade física da criança possa ficar em causa se o progenitor souber que a mesmo verbalizou, no âmbito do processo, o seu medo de conviver com ele, de sorte a que o superior interesse da criança aponte para a necessidade de limitar o acesso do progenitor a esse desabafo”.
Contudo, há um facto que se revela determinante para a solução da questão jurídica suscitada pelo recurso em apreço: a maioridade da jovem A no dia 4 de janeiro de 2025, ou seja, em data anterior à data da finalização do relatório pericial (e, portanto, também a montante da sua notificação ao recorrente).
Como bem refere o Ministério Público, ao alcançar a maioridade, o processo de regulação do exercício das responsabilidades que tem por objeto a jovem A apenas prossegue para definição da obrigação de alimentos, por aplicação do preceituado no artigo 1880º do Código Civil. Logo, as demais questões que integram as responsabilidades parentais encontram-se prejudicados por efeito da maioridade, nos termos do disposto nos artigos 130º e 1877º Código Civil.
O próprio processo de promoção e proteção, em que poderá ser ponderado o conteúdo do referido relatório, prossegue por vontade exclusiva da jovem A.
Ora, sendo maior de idade, a jovem A goza de plena capacidade de exercício de direitos (cfr. 123º e 124º, a contrario, e 130º, CC), pelo que o seu direito à privacidade e à proteção de dados pessoais sensíveis deverá ser respeitado pelo Tribunal.
Assim, não sendo a perícia de psicologia forense minimamente relevante para a questão de definição da obrigação alimentar a cargo do recorrente, mostra-se plenamente justificada e legitimada a confidencialidade do relatório pericial.
Conclui-se, pois, que o indeferimento da notificação ao progenitor do teor do relatório pericial se justifica por forma a respeitar a vontade e direito à privacidade e intimidade da vida privada da jovem A (artigo 80º do Código Civil).
Por conseguinte, devendo ser confirmada a decisão recorrida, improcede o recurso.
O recorrente, atento o seu decaimento, suportará as custas do recurso por aplicação da regra consagrada no artigo no artigo 527º, CPC.

DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 2ª Secção Cível em negar provimento a ambos os recursos, interpostos, em 07-01-2025 e 07-04-2025, respetivamente, pelos recorrentes C e D, mantendo as decisões recorridas.
Custas de cada um dos recursos por cada um dos recorrentes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário requerido que lhes venha efetivamente a ser concedido – cfr. artigo 527º, nº 1, CPC.

Lisboa, 09-10-2025
Rute Sobral
Ana Cristina Clemente
Pedro Martins