Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | IVO NELSON CAIRES B. ROSA | ||
| Descritores: | AUTO DE NOTÍCIA VALOR PROBATÓRIO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/09/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | Sumário: (da responsabilidade do Relator) I. A valoração de declarações e depoimentos (formalmente) produzidos, na qualidade de lesado, de arguido ou de testemunha, antes da audiência de julgamento, e aqui reproduzidos, apenas pode ocorrer nos casos expressamente previstos e desde que verificados os necessários pressupostos, conforme se estipulado nos artigos 355º, 356º e 357º do CPP. II. Quanto ao que consta de fls. 6, verifica-se que a declaração do arguido, inserta no formulário da PSP, denominado auto de descrição do acidente, no qual assume a sua intervenção no acidente, traduz-se num ato processual documentado, elaborado pelo agente que tomou conta da ocorrência e não, como parece ser o entendimento do recorrente, um documento ou um auto de declarações. III. Assim, não se tratando de declarações de arguido formalmente prestadas no inquérito, não será possível, como pretende o MP, atribuir qualquer valor probatório, ainda que apenas para demonstrar eventuais incongruências das declarações prestadas em audiência, a uma declaração por escrito, prestada por alguém interveniente num acidente de viação e perante um agente da PSP. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório Por sentença proferida a ... de ... de 2024, foi proferida a seguinte decisão: Absolver o arguido BB da prática de um crime homicídio, por negligência, p.p. pelo art. 137.º, nº 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal; Julgar totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Nacional de Pensões/Instituto da Segurança Social, I.P, absolvendo a demandada ... de todo o demandado; Julgar totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido por AA, absolvendo a demandada ... de todo o demandado. Não se conformando com essa decisão, o MP recorreu para este Tribunal da Relação tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição): 1-Ao dar como não provado o facto de o ofendido não ter iniciado a travessia e de não estar já mais perto do fim da mesma no momento do embate e, ainda, de não dar como provado os factos integrantes do elemento subjetivo do tipo em causa e designadamente que o arguido “agiu com violação dos deveres objetivos de cuidado, atenção e prudência a que estava obrigado enquanto condutor, não observando as precauções de exigência exigidas pelo exercício da condução, que o arguido conhecia e sabia estar obrigado, conduzindo desatento aos demais utentes da via e não regulando a velocidade do veículo, bem como as manobras face à aproximação do peão de modo a que pudesse em condições de segurança e perante qualquer obstáculo ou circunstância e perante qualquer obstáculo ou circunstância, imobilizar o veículo que conduzia”, que “não adequou a sua condução à via em que circulava, não agindo com o zelo e diligência que lhe competiam e de que era capaz no ato de condução os quais, a terem sido adotadas pelo arguido, teriam configurado meio idóneo a afastar-se do ofendido e a evitar o embate e, em consequência a morte de CC” e que “não tomou os cuidados devidos no que tange à circulação automóvel, não chegando sequer a prever como consequência possível da sua condução a ocorrência do acidente descrito e as lesões dali decorrentes para o peão, as quais foram causa direta e necessária da morte do ofendido”, a sentença recorrida incorreu nos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP. 2. Da mera leitura conjugada dos factos provados e da fundamentação da matéria de facto dada como provada resulta evidente que o arguido não adotou as medidas de cautela que se impunham ante o cenário que se lhe deparava e, bem assim, que conduzia a uma velocidade excessiva e desadequada às circunstâncias do caso concreto, pois que se assim não fosse, teria evitado o acidente. 3. Com efeito, considera-se que os factos dados como não provados decorrem natural e logicamente dos factos dados como provados na sentença e da motivação da matéria de facto, sendo inconciliável e uma contradição lógica dar uns como provados e outros como não provados, pelo que deve determinar-se que os “factos não provados” se desloquem para os “factos provados”, proferindo-se sentença condenatória do arguido em conformidade. 4. Assim, o Ministério Público impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 2, 3 e 4 do CPP, por entender, salvo devido respeito pelo Tribunal a quo, e salvo melhor opinião, que o Douto Tribunal absolveu o arguido porque fez uma errada apreciação da prova testemunhal e documental carreada para os autos e, bem assim, da prova produzida em audiência de discussão e julgamento. 5. O douto Tribunal, apesar de lançar mão do princípio do in dúbio pro reo, acaba por credibilizar as declarações do mesmo na parte em que descreve a sua versão da dinâmica do acidente quando, na verdade e nesta parte, deveria desconsiderá-la totalmente perante as contradições evidentes das mesmas em face das regras da experiência comum, do depoimento do agente da PSP, da própria declaração subscrita pelo arguido no dia do acidente e das medições e do croqui juntas aos autos de fls. 3 a 6. 6. Em sede de audiência de discussão e julgamento, o arguido primeiro refere que tentou desviar-se para o lado esquerdo e que depois, quando viu o senhor a andar em passo rápido, tentou desviar-se para o lado direito (minuto 10:11 a 10:22), que “a pessoa vinha em passo apressado ou a correr” (minuto 33:17 a 33:21), para depois dizer que afinal “conforme me desvio para o lado direito vi a pessoa que continuava a passar (…) aquilo foi questões de segundo, assim que eu virei para o lado direito eu vi a pessoa a continuar a correr ou em passo apressado e guinei a mota toda para o lado” (minuto 33:28 a 33:50), para voltar à versão inicial (minuto 36:34 a 37:53), dizendo que vê o ofendido a atravessar ao pé da carrinha que estava ao pé dos caixotes de lixo (minutos 38:09 a 38:15), e depois voltar a contrariar o que havia referido dizendo “eu travei, tentei travar na altura (…) eu travei já praticamente em cima do senhor já, tentei travar em cima do senhor já” (minuto 40:52 a 41:04). 7. Com efeito, só com base nas declarações do arguido em sede de audiência de discussão e julgamento não se consegue perceber a dinâmica do acidente por serem ostensivamente contraditórias e, bem assim, não credíveis. No entanto, com base na demais prova produzida, consegue. 8. O arguido refere que na altura se deu como culpado do acidente – e, a nosso ver, bem – (minuto 15:54 a 16:20), porquanto o que decorre da sua descrição de fls. 6, mais concretamente no segmento em que refere que “só vendo o senhor que estava a despejar o lixo logo a seguir aos carros atravessou a estrada e só vi o senhor quando estava encima dele não pude travar de repente embati no senhor com o lado esquerdo da mota e projetando o senhor ao chão” é que o senhor iniciou a travessia na faixa de rodagem e que o arguido, que circulava “quase no centro da via” (minuto 30:00 a 30:06) só o viu quando já estava em cima do mesmo, tendo travado nesse momento, por isso é que veio a embater com o lado esquerdo da mota no ofendido, tanto mais que nesta declaração escrita, o arguido não refere nem que se desviou do peão, nem que o peão estava a correr/em passo apressado. 9. Por outro lado, se o arguido embateu com o lado esquerdo do guiador no ofendido – facto que o Tribunal deu, e bem, como provado – e o arguido ia no centro da via, a única conclusão que se pode retirar é que o ofendido já estava do lado esquerdo do motociclo e, bem assim, já tinha iniciado a travessia da faixa de rodagem e já estaria perto do final da travessia no momento em que o embate ocorre. 10.É isto que decorre, inclusivamente, do depoimento do agente da PSP, que pese embora não se recordasse de toda a sua intervenção, explicou de forma perentória que o embate se deu a 1,75m da parede de acordo com as medições e com o croqui juntos aos autos, efetuados com base nas declarações do arguido no local do acidente. 11.É o que decorre igualmente da reprodução das declarações do mesmo em sede de inquérito perante Magistrado do Ministério Público (fls. 266) do qual se ressalta ter afirmado que a vítima “iniciou a travessia do lado direito para o lado esquerdo da via, na referida via não existe qualquer passagem de peões, a mais próxima encontra-se a mais de 50m, é uma via estreia e sem passeios” e que “o embate ocorreu quando a vítima estava a 1,75, da parede, ou seja, já estava mais perto do final da travessia”. 12.E é também isso que decorre das regras da experiência comum, pois que, a menos que a vítima fosse supersónica – o que, pese embora se refira a sua agilidade física, tal não é compatível com um idoso de 86 anos – não é crível nem compatível com as regras da lógica que, atendendo à velocidade máxima a que o arguido circulava (indicada pelo próprio e corroborada pelo agente da PSP: não mais de 40 km/h), e na versão do arguido é já “em cima” da vítima que a vê, no momento em que a mesma sai junto da carrinha que tapava dos caixotes de lixo, a mesma fosse de tal forma rápida que conseguisse passar para o lado esquerdo do motociclo se o tivesse avistado no momento em que inicia a travessia e se o motociclo, como refere o arguido, circulando no centro da via, se tivesse desviado para a esquerda. 13.A versão insistente do arguido de que o peão surgiu inopinadamente na via e que, ao volante do motociclo, se tentou desviar, primeiro para a esquerda e depois para a direita, apenas faria sentido se tivesse embatido com o lado direito do guiador no ofendido, o que não aconteceu. 14.Aliás, o próprio Tribunal, na sua fundamentação aflora isso mesmo, dizendo que “o local onde ocorreu o embate denota que o arguido não se encontrava muito próximo à direita pois nesse caso teria embatido no ofendido com esse lado do motociclo”. 15. Face a todo o supra exposto a única conclusão lógica e de acordo com as regras da experiência, do normal acontecer e do senso comum é esta: quando o embate ocorreu a vítima já tinha iniciado o atravessamento da faixa de rodagem e já estava mais perto do final da travessia, por isso é que o arguido embateu com o guiador esquerdo no ofendido e ambos caem junto da porta da casa do mesmo. E por isso é que este facto tinha que ser dado como provado, consentaneamente com o facto provado 9. 16. Por outro lado, considera ainda o Ministério Público que, salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo, com base na prova produzida em julgamento, deveria ter dado como provados os factos que compõem o elemento subjetivo do tipo e que, ao não fazê-lo, apreciou erroneamente a prova 17.Atentas as declarações prestadas pelo arguido não conseguimos compreender a conclusão do Tribunal a quo de que o arguido não desrespeitou nenhuma norma de cuidado a que estivesse obrigado, bem pelo contrário. Senão vejamos. 18.Em sede de audiência de discussão e julgamento, o arguido afirma que: - passava pelo local do acidente “quase todos os dias, todos os dias praticamente porque era o meu local de trabalho, quer dizer, não era o local, a gente tinha muitas entregas para lá, a gente tinha muitas entregas” (minuto 09:19 a 09:51); - trabalhava na ... “há uns meses” (minuto 25:38), que era turno fixo, era só da noite, era a partir das 16h (minuto 25:47 a 25:51), que passava ali regularmente (minuto 25:56 a 25:58); - “Aí até às 21h estava sempre pessoal ali na rua porque os cafés estavam abertos” (minuto 26:07 a 26:22); - as pessoas “passavam na rua onde não houvesse passadeiras, é onde calhasse” (minuto 26:22 a 26:27); - na extensão da rua apenas há uma passadeira e que as pessoas que ali vivem costumam passar na estrada (minuto 26:44 a 26:59); - havia uma passadeira “nem a cem metros” (minuto 08:48 a 09:19); - a zona do acidente é uma zona mais residencial (minuto 27:05 a 27:14); - na zona onde houve o embate “não costuma lá haver carros estacionados. Não, porque a rua é muito estreita” (minuto 27:20 a 27:25) e que “a gente tinha aí uns 2 metros e qualquer coisa para passar na rua. É estreita como quem diz, para um carro largo, se fosse um carro largo a passar” (minuto 27:40 a 27:53); - eu ia naquela rua, ia nem a 50 km/h, certamente, quando passo pelo restaurante, sei que o número que procurava era um pouco mais à frente, tinha duas carrinhas, uma delas ford transit, tapava-me a visibilidade toda praticamente dos caixotes do lixo e qualquer coisa que estivesse ali por trás (minuto 08:48 a 09:19); - havia “duas carrinhas estacionadas, as duas, uma de médio grande porte e a outra de grandes dimensões” (minuto 07:44 a 07:55) e que estavam “lado direito, a tapar a visibilidade dos caixotes do lixo” (minuto 07:57 a 08:05); - uma, a ford transit, estava mesmo a tapar os caixotes do lixo (minuto 23:57 a 24:06) e a outra “estava mais à frente, a tapar umas escadas, já antes dos caixotes” (minuto 24:26 a 24:33); - a ford transit “ocupava quase meia via” (minuto 28:10); - “Na altura havia lá um estaleiro, um pequeno estaleiro, do lado direito, não era bem estaleiro, havia ali carros a entrar e a sair em terra batida, num espaço de terra batida” (minuto 06:58 a 07:30); - perante os carros estacionados à direita e a ocupar quase metade da via, manteve a velocidade “porque eu não ia a muito, ia para aí a 30/40 km/h, certamente, se calhar nem tanto, e continuei a andar, normal”. (minuto 28:33 a 28:39); - não abrandou porque “na altura não tinha ninguém” (minuto 29:05), “não vi nenhuma passadeira, abrandava se houvesse alguma passadeira ou assim” (minuto 29:18 a 29:26); - não viu ninguém à sua frente (minuto 30:54 a 31:08), nunca pensou que viesse uma pessoa (minuto 31:07 a 31:14), não olhou para a direita porque não conseguia ver (31:14 a 31:19), estava sempre a olhar em frente (minuto 31:19 a 31:22); - sabia que havia pessoas ali a passar no momento (…) sabia que podia haver pessoas a passar a qualquer momento, por isso ia a uma velocidade reduzida (minuto 32:25 a 32:39) e não abrandou porque não havia nenhum elemento que prejudicasse ou que fosse prejudicar (minuto 32:39 a 32:46); - viu o carro, estava a tapar os caixotes do lixo, não pensei, nem ninguém pensaria que aparecesse uma pessoa de repente dali e que não tivesse a precaução de olhar também de vinha (…) (minuto 32:46 a 33:05); - “a mota também não fazia muito barulho, não era uma daquelas motas, era uma acelera, e não fazia barulho e pela idade do senhor, que podia na altura, não sei, ter algum problema de audição, podia não ter ouvido o barulho e iniciou a passagem a pensar que não viesse nenhum veículo” (minuto 49:06 a 49:34); - na altura podia ter ido com muito mais atenção (minuto 51:09 a 51:16) e que “na minha mente aquela rua é velocidade para 10 km/h, na minha mente aquilo era para 10 km/h, aquela rua, necessariamente” (minuto 51:16 a 51:35); - se lhe tivesse passado pela cabeça que atrás dos carros sairia um peão, teria parado (minuto 57:56 a 58:03) - estava à procura de um número do lado esquerdo para fazer uma entrega (minuto 08:48 a 09:19 e 30:21 a 39:26) - os caixotes de lixo estavam do lado direito (minuto 11:02 a 11:03); - o Sr. DD vinha “do lado direito, do lado dos caixotes” (minuto 11:11 a 11:19). 19.Resulta, pois, das declarações do arguido que o mesmo conhecia cabalmente as circunstâncias da via, por ali passar diariamente, sendo indubitável que o mesmo sabia ser zona residencial, de moradores idosos, que é uma rua estreita onde apenas existe uma passadeira a mais de 50 metros do local do embate e que a toda a hora há peões a atravessar a faixa de rodagem, que é uma zona movimentada, mesmo àquela hora – perto das 21h – por haver restaurantes abertos – como aliás resulta dos depoimentos de EE e FF, gerente e cliente da “...” e que se encontravam na rua àquela hora e que, mesmo que se considerem depoimentos pouco credíveis, a sua presença no local é inegável. 20. Mais decorre que o arguido sabia que é uma zona movimentada não só de entrada e saída de veículos (do espaço, em terra batida, em frente aos caixotes do lixo que servem de estacionamento), como de peões, tanto pela existência de caixotes do lixo, como de umas escadas/acesso de passagem de peões limítrofe com a faixa de rodagem– ambos tapados por pelo menos dois veículos que ocultavam qualquer movimentação que ali pudesse ocorrer, sabendo ainda que a qualquer momento podia aparecer um peão dessa zona. 21.Assim, o arguido deveria ter ficado alerta, adotado as cautelas necessárias, mormente redobrar a sua atenção e a sua cautela por resultar das regras da experiência e do saber comum que, numa tal situação, assim que se apercebeu do estreitamento da via (que já conhecia ab initio), da perda parcial da visibilidade da via (em largura e extensão) por estarem carros estacionados em zonas onde há movimentação de pessoas (quer pela existência de escadas/acesso para peões entre o restaurante “...” e os caixotes do lixo, quer dos próprios caixotes do lixo – de onde saiu a vítima - que, àquela hora, podiam estar a ser usados quer por moradores, quer pelos restaurantes) e sabendo que o local do acidente é uma zona movimentada e que ali podia surgir um peão (como aliás existia já na esplanada do restaurante “...”) a atravessar a estrada e, perante isso, não podendo ignorar as dificuldades acrescidas daí resultantes para imobilizar ou desviar o seu veículo, competia-lhe ter adequado a sua condução a essas circunstâncias, nomeadamente, reduzindo a velocidade, de modo a que pudesse parar o veículo se necessário. 22.O arguido não previu o resultado que adveio da sua omissão, contudo era-lhe exigível que o fizesse, atenda a sua atividade de condutor de motociclo e distribuidor/... de pizzas que exercia há vários meses, passando diariamente no local do acidente, à data dos factos. 23.O Tribunal não valorou ainda corretamente o facto de o arguido referir que, naquele local, deveria ter estado ainda mais atento e que ali não se deve circular a mais de 10 km/h, atribuindo essa afirmação a uma consequência “traumática” do evento. No entanto, não levou em consideração a afirmação do agente da PSP que, com base na sua experiência profissional, para além de ter indicado que o motociclo estaria a circular a velocidade não superior a 40 km/h face à distância para a mota imobilizar (o que o Tribunal valorou), disse também que, para evitar o embate, o motociclo teria que circular dentro dos 20 km/h e não mais do que isso (minutos 12:11 a 12:23) (afirmação que já não foi tida em consideração), o que credibiliza a sensatez da afirmação proferida arguido e infirma a conclusão do Tribunal de que o arguido assim o disse por estar traumatizado. 24.Uma vez que o arguido confirmou em audiência que circulava mais no centro da via, que estava à procura do número da porta para fazer uma entrega, que era mais à frente do lado esquerdo, e que embateu com o lado esquerdo do guiador no ofendido, ressalta que da conjugação de todos os elementos supra a conclusão que, considerando as características da via e o local do embate, para que o mesmo fosse evitado, bastava que o arguido abrandasse a velocidade e focasse a sua atenção no instante em que se apercebeu da sua entrada em rua estreita, previsivelmente movimentada e, bem assim, da redução da visibilidade na largura da via, que podia – como pôde – mascarar a movimentação de pessoas na zona “tapada”. 25.O arguido poderia e deveria ter adotado uma velocidade especialmente moderada em relação à velocidade máxima permitida no local, todavia, o arguido confiou, quando não deveria ter confiado, que ninguém se atravessaria na faixa de rodagem (a qual é permitida a travessia por força da inexistência de passadeira a mais de 50m), tendo mantido a sua velocidade e não olhando para os locais de onde poderiam surgir peões. 26.Não obstante a falta de prova direta sobre a velocidade concreta a que o arguido conduziu, os elementos probatórios (precisos e concordantes) acima analisados, devidamente conjugados entre si, autorizam a concluir, com segurança, no sentido sustentado na acusação, ou seja, de que o arguido conduzia a uma velocidade excessiva e desatento de modo a poder travar e imobilizar no espaço livre e visível à sua frente. 27. Conforme vem entendendo a Doutrina e a Jurisprudência, em termos de previsibilidade de um certo resultado, teremos de analisar não só aquilo que é previsível e evitável para a generalidade das pessoas, mas também se para aquela pessoa em concreto, era previsível e evitável que um determinado acontecimento se desse. Ou seja, deve medir-se a violação dos seus deveres objetivos de cuidado de acordo com aquilo que o agente é capaz de prestar, segundo o seu conhecimento e capacidades pessoais. 28.Tendo sido confirmado pelo arguido que, à data dos factos, exercia profissionalmente há vários meses, diariamente, uma atividade de condução de veículos de distribuição de pizzas no local do embate, podia e devia o arguido ter previsto o que não previu e procedido em conformidade, ou seja, adotando os cuidados e as diligências que as circunstâncias concretas impunham. 29.Não é objetivamente imprevisível que, numa zona movimentada, sem passeios e onde as pessoas costumam atravessar a faixa de rodagem, perto de caixotes de lixo e escadas/acesso exclusivamente pedonais limítrofe com a faixa de rodagem e cuja visibilidade se encontra parcialmente obstruída por outros carros ali estacionados, um peão a dado momento decida atravessá-la e muito menos para alguém que exerce profissionalmente a atividade de condução e distribuição e que conhece cabalmente as características da via, como é o caso do arguido. 30. Mesmo que, em concreto, não fosse de prever o atravessamento, essa previsão está implícita nas normas dos artigos 24.º e 25.º do Código da Estrada, que impõe a especial redução de velocidade em certas circunstâncias, exatamente aquelas que criam mais perigo e em que mais se quer acautelar a segurança de todos os utentes da via, em especial os mais vulneráveis, como os peões, e que o arguido conhecia. 31. Muito embora no local a velocidade estivesse delimitada a 50 km/h e o arguido não a tivesse excedido, tal não obsta à conclusão de que o mesmo excedeu a velocidade no local, uma vez que tais limites gerais cedem necessariamente perante os deveres especiais de moderação da velocidade nas situações previstas nos artigos 24.º e 25.º do Código da Estrada e que se verificavam no caso concreto. 32.O resultado verificado era objetiva e subjetivamente previsível uma vez que a vítima, na altura do embate, já estava mais perto do final da travessia – tanto que foi embatida com o lado esquerdo do guiador – e que no momento em que tinha iniciado a mesma o arguido tinha visibilidade reduzida, quer em largura, quer em extensão, da faixa de rodagem (artigo 19.º do Código da Estrada), atenta a existência de veículos estacionados junto dos caixotes do lixo, pelo que o arguido deveria ter abrandado ou mesmo parado para conseguir ver o peão a atravessar e, bem assim, evitar o embate. Se não o fez, foi porque adotou uma condução que não lhe permitiu executar tais procedimentos de modo a poder imobilizar ou desviar a viatura no espaço livre e visível à sua frente. 33. Por outro lado, é inquestionável que quando iniciou a travessia da faixa de rodagem, o ofendido estava em espaço legalmente previsto para o efeito, uma vez que nos termos do artigo 101.º, n.º 3 “os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando não exista a uma distância inferior a 50m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem”, como era o caso, pelo que a sua conduta foi regular e em conformidade com as regras estradais, não se lhe podendo assacar qualquer responsabilidade na provocação do acidente. 34. Por sua vez, o arguido não abrandou, como deveria ter feito, tal como decorre, para além dos artigos 24 e 25.º do Código da Estrada, ainda do artigo 103.º do mesmo diploma, quando no seu n.º 2 é referido que “ao aproximar-se de uma passagem de peões (…) junto da qual a circulação de veículos não está regulada nem por sinalização, nem por agente, o condutor dever reduzir a velocidade e, se necessário, parar para deixar passar os peões ou velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem”. 35.O arguido não deveria ter confiado que ninguém iria atravessar a faixa de rodagem e assim eliminar todos os cuidados. 36. Tendo o arguido descurado, no caso, todas as várias circunstâncias já elencadas no artigo 24.º, 25.º e 103.º do Código da Estrada, como impositivas de uma especial moderação de velocidade e atenção, é forçoso concluir-se que o mesmo violou deveres de cuidado e que essa violação foi causa idónea à verificação do resultado típico (a morte da vítima), que lhe é, por conseguinte, imputável. 37. Ao assim não entender, a douta sentença recorrida violou as normas jurídicas constantes dos artigos 15.º e 137.º, n.º 1 do Código Penal. Termos em que, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e, em consequência, ser o arguido condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 2 e 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, por referência aos artigos 11.º, n.º 2 e 3, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alínea c) e e), 101.º, n.º 3 e 103.º, n.º 2 todos do Código da Estrada. *** Não se conformando com essa decisão, a demandante cível AA recorreu para este Tribunal da Relação tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição): A. No dia ........2020, pelas 20h50, o arguido BB, circulava com o veículo/motociclo matrícula ..-ZD-.., na Rua ..., em Almada, sentido ascendente, na sua função de distribuidor de pizzas (conforme referido no Ponto 1 da matéria de facto provada e presumido do ponto 20). B. No aludido local, a faixa de rodagem configura uma estrada em linha recta sem separador, com pavimento de alcatrão, reservada a um único sentido de circulação e cujo limite de velocidade permitido no local é de 50 Km/h (conforme, parcialmente, Ponto 2 da matéria de facto provada). C. Nessa artéria não existe qualquer passagem destinada à travessia de peões(conforme Ponto 3 da matéria de facto provada). D. Nas circunstâncias de tempo e local descritas em 1 as condições de visibilidade eram boas assim como as condições atmosféricas, sendo que o piso se encontrava limpo e seco (conforme Ponto 4 da matéria de facto provada). E. Não existiam quaisquer fatores naturais que reduzissem a visibilidade dos utentes da via. conforme Ponto 2 da matéria de facto provada (conforme Ponto 5 da matéria de facto provada). F. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o ofendido GG iniciou a travessia da faixa de rodagem, do lado direito para o lado esquerdo da via, sem para tal fazer uso da passagem de peões ali existentes a mais de 50 metros de distância (conforme, parcialmente, Ponto 8 da matéria de facto provada); G. O ofendido foi embatido pelo guiador do lado esquerdo2do motociclo conduzido pelo arguido (conforme Ponto 9 da matéria de facto provada); H. Por força do embate descrito o ofendido caiu desamparado na faixa de rodagem, onde ficou prostrado e imobilizado (conforme Ponto 10 da matéria de facto provada); I. Tal levou a que se mantivesse na ..., onde se manteve com prognóstico reservado e deterioração progressiva do seu estado de saúde, vindo a falecer no dia ........2024 (conforme Ponto 12 da matéria de facto provada); J. Tais lesões foram a causa adequada direta e necessária da morte de GG (conforme Ponto 13 da matéria de facto provada);~ K. A Demandante era mulher do falecido – facto que não foi expressamente dado como provado, mas que se encontra presumido, nomeadamente nos no ponto 19, sendo que manifestamente não ter sido facto dado como provado é um lapso do Tribunal a quo. L. Imediatamente a seguir ao sinistro verificado, a demandante ficou sozinha, a residir na sua habitação e sem qualquer apoio, para além do seu filho, HH e esposa deste (conforme Ponto 16 da matéria de facto provada); M. A demandada ficou sem conseguir dormir descansada (conforme Ponto 17 da matéria de facto provada); N. A demandante sofreu com o internamento e morte do ofendido. (conforme Ponto 18 da matéria de facto provada); O. A demandante necessitou em virtude disso, de ingerir ansiolíticos, calmantes, tudo destinado a minorar o seu sofrimento e ansiedade pela presença e melhoras, do seu companheiro de uma vida. (conforme Ponto 19 da matéria de facto provada). P. A demandada celebrou contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n.º ... com o tomador de seguro, ... – comércio de produtos alimentares S.A., incluindo o veículo – motociclo – com a matrícula ..-ZD-... (conforme Ponto 20 da matéria de facto provada); Q. Esta é a matéria que tendo sido dada como provada tem a concordância da Recorrente, sendo que, essencialmente, no que não foi dado como provado que o Tribunal a quo andou mal, e, consequentemente decidiu mal. R. A discordância da recorrente com a decisão posta em crise reside, desde logo com o cumprimento do que a lei impõe (ao contrário do que fez o arguido...): S. Atentemos então às razões concretas para o desconhecimento, sendo importante, antes de mais, chamar a atenção para determinados elementos que são relevantes para a apreciação da prova: desde logo o tempo decorrido. T. À data do julgamento haviam decorrido 4 anos e 10 meses sobre a prática dos factos. Mais, 2 meses após os factos, o país entrou em Pandemia, com todas as consequências nas vidas de todos nós. U. Outro elemento relevante, é o facto do agente da PSP que foi ouvido em julgamento estava há 36 horas sem dormir, por via do serviço policial, tendo sido inquirido insistentemente sobre um acidente ocorrido há 58 meses atrás, num tempo pré pandemia, onde ainda não era prática existirem fotografias do local. V. Dito isto, centremo-nos nos factos: O atropelamento ocorreu numa rua estreita, com uma via única, de sentido único, com cerca de 5 metros de largura (conforme se retira do auto de acidente), numa chamada de “...” e onde a população é também envelhecida. W. O arguido era distribuidor de pizas, função que, por natureza, implica uma condução rápida, sendo que o condutor vinha há centenas de metros em linha reta (de acordo com o trajeto que o mesmo confirmou), sendo propício a uma condução acelerada. E é aqui que começa a perplexidade: X. O arguido, logo no início das suas declarações – que o Tribunal considera que não se mostram totalmente credíveis (P. 7, §2 e §9), confirma que circulava a cerca de 40 Kms/hora. Y. 40 Kms hora não é circular acima da velocidade permitida no local, contudo, é claramente uma velocidade excessiva para o local e para as características da via, nomeadamente a largura e a profusa circulação de cidadãos idosos, como a falecida vítima. Z. Tanto assim é que o próprio arguido, numa assunção honrosa, que refere expressamente que “atuaria de forma diferente e circularia no local a cerca de 10 Km/h” (P. 8, §1) e é aqui que o Tribunal deixa estupefacto a Recorrente, ao invés de assumir as declarações como uma assunção de culpa, diz resultarem as declarações do facto de ter sido “um evento traumático”. Ora, AA. Se há coisa que ficou clara em todo o julgamento, é que 40 Km/h, naquela via é praticamente 4 vezes acima da velocidade recomendada, atentas as condições da via (estreita, sem passeios, com muita população idos). BB. São relevantes, como se disse, o auto e croqui de fls. 3 e 4, mas essencialmente os fotogramas de fls. 215 a 219, que demonstram que a via não só é estreita, como estava limitada pelos caixotes de lixo (uma das fotos mostra até pessoas a deitar fora o lixo), sendo que as fotos dos autos são diurnas e os fatos ocorreram numa noite de .... CC. Outro elemento de enorme relevo é a parte do motociclo que acertou na vítima. Sem qualquer tipo de discórdia, sabe-se que a vítima foi atropelada com o embate da parte esquerda do guiador, o que implica considerar que, aquando do embate o motociclo estava à direita do peão, forçando a concluir que o peão já se encontrava para lá do meio da via, que, como se viu, era estreita. DD. Outro dado relevante, e que facilita a leitura do atropelamento, é que sabemos qual o percurso da vítima, dado que mora exatamente em frente ao local do acidente (já iremos ao depoimento das testemunhas que o colocam já junto à porta no embate) e tinha saído para por o lixo aos caixotes em frente a casa. EE. Temos então como dados assentes, que o peão estava a regressar do caixote do lixo para casa, percurso em linha recta e que foi embatido pelo lado esquerdo da mota, permitindo concluir que já estaria para além do eixo da via. FF. Se acrescentarmos aqui o depoimento (fls. 215, lido em audiência de julgamento) da Demandante (viúva) que, por um lado, refere que o marido era cuidadoso e, por outro, que o mesmo lhe dizia (aquando da ocorrência) que não conseguiu desviar-se do motociclo, devido à sua excessiva velocidade, facto determinante para o atropelamento, temos o que parecia ser um resultado óbvio, mas que afinal não foi. GG. Note-se que é particularmente estranho, dado que o Tribunal a quo, assume que as declarações do arguido em muitos pontos não se mostram credíveis, mormente em circunstâncias que trouxe para mitigar responsabilidades, que venha a considerar fruto do trauma, as declarações em que assume claramente que considera que circulava com velocidade excessiva. HH. Recorde-se que foi o mesmo arguido que afirmou que, após o acidente, o tentaram assaltar (sendo que nenhuma testemunha corroborou estando pelo menos duas no local), e que a mota, na sequência do embate, foi projetada para a direita. II. Do depoimento do arguido podemos retirar diversas conclusões, mesmo com um depoimento oscilante. O arguido, começa por dizer que nem ia a 50 Km/hora, para depois se fixar na ordem dos 40 Km/hora. JJ. Como se retira da própria sentença (fls. 8, 1.º parágrafo), a determinada altura menciona que atuaria de forma diferente, e circularia no local a 10 Kms/hora, pois, na sua mente, “aquilo é rua para 10 Kms/hora”. KK. Foi um esgar de honestidade, que o Tribunal optou por considerar uma frase que “resultou de um evento traumático”, confessa-se a estranheza da conclusão, e a verdade é que, atenta a estreiteza da via (com ou sem veículos e já lá vamos), a ausência de passeios, a frequência de passagem de pessoas, tanto que estavam no local os caixotes do lixo (onde os moradores, em regra por aquelas horas, despejam o lixo), a velocidade máxima adequada situava-se sempre na ordem dos referidos 10 Kms/hora. LL. Se se pensar num entregador de pizas, à noite, de mota, à procura do número de porta (tudo factos assumidos pelo arguido), a velocidade “de nem chegar aos 50 Km/hora” ou de “40 Km hora”, seria sempre, mas sempre excessiva, como o próprio arguido referiu e assumiu que a velocidade adequada seriam os 10 Kms hora. MM. Recorde-se que o arguido, na altura do acidente e como o mesmo assume, deu-se como culpado, sendo que, em julgamento (e contraditoriamente a assumir que a velocidade adequada seriam 10 Km/h e que ia a cerca de 40 Km/h) disse que afinal não tinha culpa. NN. Surge ainda a questão dos veículos estacionados no local, dois veículos de grandes dimensões que mais ninguém se recorda de ver no local e que não constam do croqui da polícia, que o arguido pretende servirem como desculpa para a dificuldade em antecipar o peão. OO. Peão esse que, no dizer do arguido, era um octogenário que correu a atravessar a estrada. PP. Quanto aos veículos que o arguido a certa altura até diz estarem estacionados no sentido contrário do trânsito – minuto 46:00 das declarações (facto simplesmente impossível dado as características da via), mesmo que existissem – e recorde-se que mais ninguém se recorda de existirem, sendo que a testemunha EE afirma mesmo que não estavam, ao contrário do pretendido pelo arguido, não seriam fatores de mitigação da culpa, mas sim de agravamento. QQ. Veja-se que, no dizer do arguido, os grandes veículos estacionados naquela via, um à frente dos caixotes do lixo, e outro, maior, na própria via, junto aos caixotes, que – no dizer do mesmo – estreitavam imenso a via, não permitindo sequer um carro maior de passar. Ora, RR. Nesse quadro o cuidado deveria ser redobrado, e a velocidade reduzida, pois a via estava ainda mais estreita, sendo que o espaço para detetar um peão que surgisse, seria sempre mais curto. SS. A questão é que, mais nenhuma testemunha corrobora a existência de veículos no local, sendo que as testemunhas II e EE, perguntadas sobre se seria possível estarem dois veículos virados no sentido contrário ao do trânsito dizem que tal facto é simplesmente impossível. TT. As contradições do arguido não se ficam por aqui, se diz que, aquando do embate não estava ninguém e até gritou em voz alta a pedir ajuda ninguém tendo vindo, mais adiante diz que os “assaltantes” que igualmente ninguém se lembra, “ameaçaram as pessoas idosas que lá estavam” UU. Temos assim, só das declarações do arguido, a assunção da responsabilidade, ora expressa, ora tácita, de que se fosse hoje ia com menos velocidade, que circularia a 10 Km/hora, que passou a ter mais atenção nas ruas mais apertadas, que reduziria mais a velocidade. VV. É assim incompreensível, como, com declarações destas, com assunções desta natureza, que o Tribunal quase que justifica o injustificável, dado que podia-se considerar uma quase que uma “confissão integral e sem reservas”. WW. Mesmo sem outros meios de prova testemunhal, era evidente a responsabilidade do arguido e, consequentemente a culpa. XX. Mas as demais testemunhas, nomeadamente as duas testemunhas presenciais, que vêm desmentir o arguido quanto à existência ou não de mais pessoas na rua, sustentam inteiramente o tipo de embate, bem assim como que não existiam quaisquer carrinhas (e muito menos em sentido contrário) no local. YY. Também a testemunha EE, que descredibiliza diversos pontos das declarações do arguido, desde logo os grandes obstáculos (que na verdade a existirem até deveriam ser fator de dupla atenção), mas também das conclusões do Tribunal a quo, pois efetivamente a vítima foi embatida já junto à sua casa, ou seja, no final da travessia, ao contrário (em parte) do que diz o arguido, que refere que surgiu de repente ZZ. Também a testemunha JJ, de quem, claramente, o Tribunal não apreciou o depoimento, exigindo que a testemunha se lembra-se com precisão quase matemática, de factos ocorridos há 4 anos e 10 meses, mas ainda assim, manifestou que estava no local no momento do embate e que a vítima bateu com a cabeça já no poial da porta, sendo que o tribunal afirma perentoriamente que “o seu depoimento é de afastar in totum” refere que assistiu ao embate e que a vítima estava já à porta de casa. AAA. Do depoimento do agente KK, com as dificuldades que o visível cansaço do mesmo causava, importa destacar que, de acordo com os dados obtidos, seguramente o mesmo já estava mais perto do final da sua travessia”, como reconhece o tribunal a fls. 10 da sentença. .... As dificuldades que o Tribunal diz existirem para determinar de que forma aconteceu o acidente, ou a efetiva responsabilidade pelo mesmo são deveras incompreensíveis atendendo ao manancial probatório, desde logo e até com especial relevo, à assunção de responsabilidade – expressa e tácita – do arguido. .... Recorde-se que o arguido assumiu que ia a cerca de 40 Km/h e hoje reconhece que na rua não se pode passar a mais de 10 Km/h. DDD. Reconhece assim que ia 30 Km acima da velocidade adequada, bem assim como reconhece que ia à procura do número do prédio para entregar a piza. EEE. A desculpabilização que o Tribunal a quo faz do arguido, é algo incompreensível, quase que estranha, num quadro de uma tão evidente responsabilidade. FFF. Andou mal, verdadeiramente mal, o Tribunal em absolver o arguido e consequentemente em absolver a demandada, num quadro tão evidente. GGG. Quereria o Tribunal um vídeo do acidente, pois só assim conseguiria determinar com exatidão factos que ocorreram 4 anos e 10 meses, tendo por referência a data do julgamento. HHH. Pontos de facto incorretamente julgados (al. a) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP) Dos Factos dado como provados: 1 (quanto à impossibilidade apurar a velocidade); 6 (dado que a prova produzida aponta para a inexistência de quaisquer veículos no lado direito da via. Dos Factos dado como não provados. Facto A - Toda a prova, testemunhal, física e até de declarações do próprio arguido, conduzem a uma conclusão diferente; Facto C, D, E e F- Sendo o cerne da questão, é evidente que o Tribunal andou mal, pois que os elementos probatórios conduziam necessariamente a que o facto fosse dado como provado. III. A matéria probatória carreada para os autos, obrigava a que o Tribunal a quo, tomasse decisão oposta à que proferiu: JJJ. provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP). Declarações do arguido; Declarações da aqui recorrente (constante de fls. 215 e lidas em sede de audiência de julgamento, atenta a impossibilidade da mesma estar presente); Depoimento das testemunhas: LL e MM AUTO DA PSP do Acidente e respetivo croqui (Fls. 3 e 4) Fotogramas de fls. 215 a 219 KKK. Das normas jurídicas violadas (art.º 412.º, n.º 2, al. a)). .... Com a sua decisão violou o Tribunal o artigo 127.º do CPP, na medida em que formou a sua convicção com liberdade excessiva ao decidir contra as provas apresentadas, sendo alguns pontos de forma flagrante, mas essencialmente indo muito para além do que a prova permitia, extrapolando de forma – com o devido respeito – grosseira com presunções sucessivas; MMM. Violou o Tribunal a quo o Princípio da Legalidade, plasmado nos artigos 29.º, n.º 1 da CRP e 191.º da CRP, na medida em que não assentou a sua decisão em critérios de exclusiva legalidade no que concerne à apreciação da prova, sendo que a torrente probatória levava a decisão para fim diverso, não sendo suficiente a livre apreciação da prova para contornar este princípio constitucional. NNN. Violou com o seu entendimento, a aplicação adequada do artigo 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, por referência aos artigos 11.º, n.º 2 e 3, 24.º, n.º 1 do DL 114/94, de 03/05; Termos em que, sempre sem prescindir do Douto suprimento de V.Exas., deve o presente recurso obter colhimento e, com a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio por negligência e, consequente deferimento do pedido cível deduzido pela recorrente contra a demandada .... *** O arguido respondeu ao recurso pelo seguinte modo (transcrição): 1-Entendem assim os ora recorrentes, em suma, que os factos dados por provados e respetivas conclusões encontram-se em manifesta contradição com a prova documental e testemunhal apresentada e gravada, bem como com a razoável interpretação desses mesmos factos pelo tribunal. II- Contudo, a sentença ora posta em crise não enferma de nenhuma omissão, nulidade ou vício que a possa inquinar. III- Dado que aquilo que no fundo, os ora recorrentes se insurgem, é a convicção que o tribunal formou através da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, designadamente, dos depoimentos. IV- No entanto, é ao tribunal que incumbe apreciar a prova, com plena observância das regras legais e, uma vez observadas, como é o caso, não tem que ser confrontada a sua convicção, porque diversa daquela a que chegaram os demais intervenientes processuais, no caso, o Ministério Público e a Assistente. V- É assim, em nosso entender, manifesta a falta de razão dos recorrentes quando pretendem atacar a convicção do tribunal, apenas porque difere daquela que eles próprios formaram, uma vez que se constata que a decisão recorrida se mostra lógica, coerente e conforme às regras de experiência comum e é fruto de uma adequada apreciação da prova, segundo o princípio consagrado no art.º 127º do Código de Processo Penal. Termos em que se entende dever o recurso ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se na íntegra a decisão recorrida, assim se fazendo a já devida e costumada. *** A demandada ..., Demandada respondeu ao recurso pelo seguinte modo (transcrição): 1ª Conforme resulta do douto despacho de admissão do recurso, que não sofreu qualquer reclamação, entendeu o douto Tribunal a quo que estava vedada à Demandante e Recorrente a impugnação da matéria de facto quanto à vertente criminal, dado não se ter constituído como assistente, considerando a Recorrida que a Recorrente não cumpriu o ónus de especificação da matéria de facto que considera incorretamente julgada, pois não identificou/transcreveu os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; 2ª Resulta como entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência, que o pedido de indemnização civil enxertado em processo crime só é passível de produção de efeitos se os fundamentos do pedido de indemnização assentarem na prática de um crime, e apesar de à Demandante estar vedado o recurso quanto à matéria criminal, por não ter a qualidade de Assistente, perante o recurso do Ministério Público, no qual é pedida a condenação do arguido pela prática do crime de que foi absolvido, em caso de procedência do recurso – o que mera hipótese se pondera – tal procedência produz efeitos na parte civil, dependente que está da verificação da existência de um crime, razão pela qual se responde ao recurso interposto pelo Ministério Público; 3ª As conclusões do recurso delimitam o âmbito e conhecimento do mesmo. Analisadas as doutas conclusões constantes do recurso do Ministério Público, verifica-se que as mesmas não contêm a especificação dos factos que no entender do Recorrente Ministério Público estão incorretamente julgados, em claro incumprimento do disposto no nº 3 do art. 412º do CPP, que impõe um dever especial de especificação ao Recorrente, enquanto elemento fundamental na delimitação do objeto do recurso; 4ª Não existe contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, pois quando se alega este vício deve-se especificar, no texto da decisão — é aqui que incide a análise, reforça-se — a matéria da contradição, aquilo que está em contradição. Na verdade e como resulta do disposto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP, para que o vício se verifique, a contradição tem de ser contradição, e tem de ser insanável, isto é, não ser ultrapassável pelo tribunal de recurso com eventual recurso às regras da experiência ou elementos dos autos, o que não se verifica; 5ª Alega o Recorrente que existiu erro notório na apreciação da prova e como tal, devem ser dados como provados os factos indicados nas motivações do Recorrente – e não elencados nas conclusões como já invocado, fundamentando a sua discordância nas declarações do arguido e nas de outras testemunhas, cujos depoimentos foram parcialmente afastados pelo Tribunal a quo, por não se mostrarem credíveis; 6ª Analisados os excertos das declarações do arguido, não resulta qualquer imposição de alteração da matéria de facto considerada por não provada. De facto, a matéria de facto provada e não provada só pode vir a ser alterada se existirem outro meios de prova que imponham e obriguem a tal alteração, o que não sucede nos presentes autos; 7ª Das declarações do arguido, resulta que no dia do acidente, não existia ninguém naquela rua, estavam pessoas num restaurante que dista mais de 100 metros do local – declarações registadas a 01:00:26 e 01:00:30 da gravação digital da audiência de discussão e julgamento do dia ... de ... de 2024; 8ª Que quando passou pelo restaurante, estavam duas carrinhas que tapavam a visibilidade para os caixotes do lixo e qualquer outra coisa que estivesse nesse local – 08:48 a 09:19 da gravação digital e quando estava a terminar a passagem pelos carros estacionados, surge o peão, a andar a passo rápido – 09:10 da gravação digital; 9ª Os caixotes do lixo estavam no lado direito e o senhor vinha desse lado – 11:20 a 11:25 da gravação digital e que virou para o lado direito porque primeiro virou para o lado esquerdo, para se desviar do senhor mas ele continuou a andar – 11:25 a 12:00 da gravação digital; 10ª Da prova produzida, resulta que nenhuma responsabilidade pela eclosão do acidente pode ser assacada ao arguido, e não existe nos autos, qualquer prova que imponha decisão diferente da proferia, pois o que o Tribunal recorrido decidiu, fê-lo ao abrigo da livre apreciação da prova e devidamente fundamentado na douta sentença; 11ª O Recurso do Ministério Público ignora completamente a contribuição da infeliz vítima para a eclosão do acidente, não ponderando nem abordando sequer a conduta do peão enquanto sujeito de deveres na travessia de uma via nos termos do art. 101º do Código da Estrada; 12ª Ao invés, o Ministério Público exige em sede de comportamento, o que as normas legais não exigem, e tal apreciação constante da douta sentença ora em crise, não merece qualquer reparo; 13ª O Recorrente não aceita e discorda da decisão, mas os fundamentos apresentados no recurso, não colhem pois a sentença não padece dos vícios apontados, pois para se alterar o decidido em primeira instância é exigido que as concretas provas indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa da proferida, o que não se verifica: 14ª A prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do disposto no art. 127º do CPP, sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões do recorrente, selecionando e escolhendo os pontos de facto que considera incorretamente julgados, assim formatando e confinando os poderes de cognição dos Tribunais Superiores, o que representa a parcialidade na apreciação da prova, dado que a mesma, tem que ser sempre apreciada no seu conjunto e não em fragmentos, sendo exigível que “a matéria de facto só possa ser alterada se contrariar de forma notória as regras da experiência, da lógica, do senso comum, dos conhecimentos científicos; se assentar em métodos proibidos de prova ou em meios de prova subtraídos à livre apreciação do tribunal” (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotação art. 431º), o que não se verificou nos presentes autos; 15ª não padecendo a douta sentença de qualquer vício. Conclui pela improcedência do recurso. *** Os recursos foram admitidos, sendo que em relação à demandante cível apenas foi admitido quanto à parte cível. *** A Sra. PGA junto deste Tribunal da Relação pronunciou-se pela procedência do recurso aderindo à resposta apresentada pelo MP em primeira instância. *** Cumprido o artº 417º, n.º 2 do C.P. nada foi dito. II - Questões a decidir: Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. Art.º 119º, nº 1; 123º, nº 2; 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/6/1998, in BMJ 478, pp. 242, e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271). Tendo em conta este contexto normativo e o teor das conclusões apresentadas pelos arguidos recorrentes, há que analisar e decidir: Se a sentença padece dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP - contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; erro notório na apreciação da prova. Impugnação da matéria de facto – erro de julgamento; Preenchimento dos elementos constitutivos do crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 2 e 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, por referência aos artigos 11.º, n.º 2 e 3, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alínea c) e e), 101.º, n.º 3 e 103.º, n.º 2 todos do Código da Estrada. Da obrigação de indemnizar assente na responsabilidade civil por factos ilícitos. *** III – FUNDAMENTAÇÃO A sentença recorrida tem o seguinte teor (transcrição): Matéria de facto provada: De relevante para a decisão da causa, excluindo-se factos conclusivos e matéria de direito, resultou provada a seguinte matéria de facto: 1. No dia ........2020, pelas 20h50m, o arguido BB circulava com o veículo/motociclo matrícula ..-ZD-.., na Rua ... , em Almada, sentido ascendente, a uma velocidade que não foi possível apurar. 2. No aludido local, a faixa de rodagem configura uma estrada em linha reta sem separador, com pavimento em alcatrão, reservada a um único sentido de circulação e cujo limite de velocidade permitido para o local é de 50 km/h. 3. Nessa artéria não existe qualquer passagem destinada à travessia de peões. 4. Nas circunstâncias de tempo e local descritas em 1 as condições de visibilidade eram boas assim como as condições atmosféricas, sendo que o piso se encontrava limpo e seco. 5. Não existiam quaisquer fatores naturais que reduzissem a visibilidade dos utentes da via. 6. Encontravam-se estacionados um número de carros não concretamente apurado, mas pelo menos de dois, junto ao lado direito da via, estando parcialmente sobre a faixa de rodagem e próximos aos referidos caixotes. 7. O volume de tráfego era reduzido. 8. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar e sem que nada o fizesse prever, o ofendido GG iniciou a travessia de faixa de rodagem, do lado direito para o lado esquerdo da via, sem para tal fazer uso da passagem de peões ali existente a mais de 50 metros de distância. 9. O ofendido foi embatido pelo guiador do lado esquerdo do motociclo conduzido pelo arguido. 10. Por força do embate descrito o ofendido caiu desamparado na faixa de rodagem, onde ficou prostrado e imobilizado. 11. Como consequência direta e necessária do embate descrito, GG sofreu traumatismo crânio encefálico, com hematoma subdural, tendo sido submetido a intervenção cirúrgica. 12. Tal levou a que se mantivesse na ..., onde se manteve sempre com prognóstico reservado e deterioração progressiva do seu estado de saúde, vindo a falecer no dia ........2020. 13. Tais lesões foram causa adequada, direta e necessária da morte de GG. Do Pedido de Indemnização Civil deduzido pelo ISS: 14. GG era beneficiário do Instituto de Segurança Social e tinha o NISS .... 15. O ..., através do Centro Nacional de Pensões, relativamente ao beneficiário GG, pagou subsídio por morte e pensões de sobrevivência a AA, viúva do beneficiário, no valor de € 13.344,66. Do Pedido de Indemnização Civil deduzido por AA: 16. Imediatamente a seguir ao sinistro verificado, a demandante ficou sozinha, a residir na sua habitação e sem qualquer apoio além do de seu filho, HH, e esposa deste. 17. A demandante ficou sem conseguir dormir descansada. 18. A demandante sofreu com o internamento e a morte do ofendido. 19. A demandante necessitou em virtude disso de ingerir ansiolíticos, calmantes, tudo destinado a minorar o seu sofrimento e ansiedade pela presença, e melhoras, do seu companheiro de uma vida. Mais se provou que: 20. A demandada celebrou contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n.º ... com o tomador de seguro, ..., incluindo o veículo – motociclo – com a matrícula ..-ZD-... 21. O arguido não tem antecedentes criminais averbados ao seu certificado de registo criminal. Sobre as condições socioeconómicas do arguido: 22. O arguido é servente da construção civil. 23. Aufere mensalmente € 820,00 líquidos. 24. Vive em casa da sua sogra com esta e sua esposa. 25. Despende mensalmente € 134,95 em crédito de um motociclo. 26. Completou o 6.º ano de escolaridade. * Matéria de facto não provada: Com relevância para a decisão da causa resultaram como não provados os seguintes factos: A. Nas circunstâncias referidas em 9 o embate ocorreu quando o ofendido se encontrava já muito perto do final da travessia da faixa de rodagem. B. Ao avistar o peão o arguido travou o veículo. C. O arguido agiu com violação dos deveres objetivos de cuidado, atenção e prudência a que estava obrigado enquanto condutor, não observando as precauções de exigência exigidas pelo exercício da condução, que o arguido conhecia e sabia estar obrigado, conduzindo desatento aos demais utentes da via e não regulando a velocidade do veiculo bem como as manobras face à aproximação do peão de modo a que pudesse, em condições de segurança e perante qualquer obstáculo ou circunstância, imobilizar o veiculo que conduzia. D. Não adequou o arguido a sua condução à via em que circulava, não agindo com o zelo e diligência que lhe competiam e de que era capaz no ato de condução os quais, a terem sido adotados pelo arguido, teriam configurado meio idóneo a afastar-se do ofendido e a evitar o embate naquele e, em consequência, a morte de GG. E. Mais não tomou os cuidados devidos no que tange à circulação automóvel, não chegando sequer a prever com consequência possível da sua condução a ocorrência do acidente descrito e as lesões dali decorrentes para o peão, as quais forma causa direta e necessária da morte do ofendido. F. Em tudo, agiu o arguido de forma livre, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei. G. A demandante teve de suportar custos no montante de € 193,41, dos tratamentos efetuados no dia do sinistro. H. Dado o internamento do falecido a demandante dirigiu-se diariamente ao ..., e mais tarde ao ..., na .... I. A demandante suportou a quantia de € 2188,79 das despesas de funeral do sinistrado. Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto: O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e global de toda a prova produzida em audiência, bem como da prova documental que consta dos autos, tendo em consideração as regras da experiência de vida e o senso comum. O arguido prestou declarações tendo vindo apresentar uma versão que não se mostra totalmente credível. Analisemos a mesma. Antes de mais importa referir que o arguido confirma as condições espácio-temporais bem como as condições da via, excetuando quanto à circunstância de existirem duas carrinhas na via. Segundo o arguido o ofendido surgiu da sua direita onde se localizavam os caixotes de lixo e que não lhe foi possível evitar o embate ainda que tenha procurado desviar-se, primeiro para a esquerda e, quando o ofendido continuou a percorrer o percurso de volta à sua habitação o arguido refere ter procurado virar para a direita, para contornar o ofendido, todavia face à forma inopinada como surgiu e o escasso tempo e distância, não lhe foi possível. No que concerne à circunstância de o arguido ter mencionado a existência de duas carrinhas em sentido contrário, o mesmo não se mostra estribado por qualquer outro elemento dos autos e, face à situação de se tratar de uma via de sentido único e estreita não se afigura como plausível que as mesmas se encontrassem em sentido contrário, pelo que é de afastar as declarações do arguido nesse particular. De igual forma não se afigura credível a versão do arguido quanto aos jovens que procuraram furtar a sua moto, tanto mais que não consta de qualquer auto – tendo mencionado que participou à polícia dessa questão quando a mesma chegou – nem estribado por qualquer outra prova. O arguido referiu ainda passar habitualmente naquele local, conhecendo a sua configuração. No que concerne à velocidade o arguido refere que se encontrava a circular a cerca de 40 km/h. A circunstância de o arguido mencionar que atuaria de forma diferente e circularia no local a cerca de 10 km/h cremos que se trata de ter resultado de um evento traumático (denotando-se que marcou profundamente o arguido) sendo natural que o mesmo tenha tal reação, ainda que o mesmo refere que tal não evitaria o embate. Da própria declaração do arguido de fls. 6 “Eu condutor de uma mota vindo da ... para a ... ao passar por dois carros que estavam estacionados e só vendo o senhor que estava a despejar o lixo logo a seguir aos carros atravessou a estrada e só vi o senhor quando estava encima dele não pude travar de repente embati no senhor com o lado esquerdo da mota e projetando o senhor ao chão” denota que o mesmo refere que existiam carros – o que não é posto em causa pelo agente da PSP que elaborou a participação de acidente – [sendo que não menciona a existência de carrinhas] e é desde logo referido que não conseguiu proceder à travagem por o senhor ter atravessado. Em sede de audiência, e devido à impossibilidade de a mesma comparecer por anomalia psíquica superveniente, foram lidas as declarações prestadas por AA constantes a fls. 215, sendo que a demandante informa a forma como se sentiu e que o seu marido era cuidadoso e todos os dias ia colocar o lixo e que o mesmo lhe dizia que não conseguiu desviar-se do motociclo, devido à sua excessiva velocidade, facto determinante para o atropelamento. Ora, de tal depoimento [indireto] denota-se que podem ter ocorrido duas situações – ou o ofendido não teve sequer tempo de reação para procurar evitar o embate ou o ofendido se procurou desviar do motociclo, - indicando ainda que o mesmo circularia a excessiva velocidade. Contudo, como infra se irá melhor expor, revela-se que o arguido não circulava a mais de 40 km/h, sendo a velocidade máxima permitida no local de 50 km/h e, tratando-se o ofendido de pessoa ágil [conforme indicado pelas testemunhas não obstante a idade do mesmo] mostra-se compatível com a versão do arguido que refere a tentativa de evasão para os dois sentidos, pois que o ofendido poderá ter procurado desviar-se mantendo a trajetória de regresso à sua habitação, o que poderá ter feito de forma rápida por forma a tentar evitar o embate, credibilizando, nessa parte, a versão do arguido, e dificultando a manobra de evasão ao não ter em consideração a reação do arguido [de se desviar]. Por outro lado, caso não tenha sido possível a reação por parte do peão, torna-se evidente que a distância que separava o veículo do mesmo, aquando do início do atravessamento era muito curta, de tal forma que não tenha permitido sequer uma reação e, considerando a velocidade a que o arguido circulava, o momento em que ambos se tornam visíveis um ao outro, terá que coincidir com uma distância extremamente curta para não permitir uma qualquer reação. No que concerne à circunstância de ter procurado verificar se alguém circulava na estrada o depoimento [indireto] é omisso. Por outro lado, tal denota, face à velocidade que era imprimido pelo arguido, que no momento em que o ofendido se terá apercebido do motociclo a distância seria já muito curta [caso contrário permitiria uma reação com sucesso], vincando a ideia de que o arguido já se encontrava próximo do local quando o ofendido iniciou a travessia. Já a testemunha LL apresentou um depoimento que não se mostra completamente credível, quer por referir de forma contraditória ora que assistiu aos factos ora que concluiu pela sua ocorrência, e ora indicando que o ofendido já se encontrava a um passo de casa ora já mencionando que o mesmo se encontrava no meio da via. Acresce que a testemunha refere que o ofendido estava a colocar a chave na porta de casa, o que contraria quer o depoimento de JJ que refere que o ofendido havia deixado a porta de casa aberta, como contraria as declarações do arguido, e do local provável do embate face ao constante do croqui. Contudo foi relevante que a testemunha tenha mencionado há sempre carros lá estacionados e que acha que naquele dia era só um que estava estacionado mais à frente do restaurante antes dos caixotes, não conseguindo precisar se existia alguma carrinha, mas assegurando a existência de pelo menos um carro. A testemunha JJ não apresentou qualquer credibilidade ao Tribunal pela forma como depôs e tendo em consideração que a mesma menciona que, do local onde se encontrava, se estivesse estacionado algum carro, não poderia ver quaisquer dos factos, assegurando que não se encontrava aí qualquer veículo estacionado, o que contraria toda a demais prova produzida em sede de audiência [declarações do arguido, depoimentos de todas as demais testemunhas] Acresce que aquela refere que o ofendido bateu com a cabeça no poial da sua habitação o que não se mostra compaginado com a demais prova, já que o ponto de embate, onde o mesmo ficou se localizava a cerca de 1,75m da parede. Por outro lado, vem a mesma, contrariamente ao indicado por todos os demais intervenientes indicar que não é comum existirem carros estacionados naquele local [sendo a mesma moradora próxima]. Também quando instada a explicar a razão de ciência para mencionar que o ofendido já se encontrava a regressar à sua habitação e não a sair da mesma, aquela insistiu em se escudar no seu conhecimento, mas sem lograr indicar os motivos até que a certo passo indica ter assistido a tal quando em outro momento da sua inquirição indica que não havia visualizado. Assim, o seu depoimento é de afastar in totum. Já no que respeita à testemunha NN, agente da PSP há que notar que o mesmo, quando da sua inquirição em sede de audiência de julgamento declarou abundantemente não ter memória precisa sobre os factos, tendo inclusivamente sido lidas parte das suas declarações prestadas em inquérito, constantes de fls. 266 das quais constam, no que releva: “perto do restaurante existem sempre carros estacionados, que incidem sobre a faixa de rodagem, que o arguido não fez qualquer ultrapassagem, limitou-se a passar pelos referidos carros. // Que os factos ocorreram de noite, não estava a chover, que a estrada só tem um sentido, tem iluminação e não existia qualquer obstáculo. (…) A testemunha refere que quando chegou ao local dos factos, a vítima estava sentada nos degraus do prédio. (…) A testemunha refere que o embate ocorreu quando a vítima estava a 1,75 metros da parede, ou seja, já estava mais perto do final da sua travessia”. Pese embora a testemunha tenha declarado em audiência que não se recorda de veículos no local mas que o faria constar do croqui caso existissem, vem contradizer as suas declarações em inquérito que a nosso ver foram prestadas com memória mais vívida face ao momento temporal em que ocorreram. Acresce que a própria testemunha quando instada acerca do croqui menciona que faria igualmente constar a existência de caixotes de lixo, os quais não constam do croqui pelo que é patente a forma incompleta como o mesmo foi realizado. Ademais das suas declarações em sede de inquérito fica patente ao Tribunal a existência de carros estacionados junto aos caixotes do lixo, condicente com o depoimento de LL, e, pelo uso do plural do agente retira-se que seriam pelo menos dois carros estacionados. Foram relevantes as medições que o mesmo efetuou sendo o total da via 5,25m [ficando a dúvida se tal incluía os contentores e/ou carros], a distância entre o local provável de embate [indicado pelo arguido] e a parede 1,75m e entre o local provável de embate e a traseira do motociclo 5,25m [o que revela que a moto teria apenas percorrido 5,25m após o embate]. Note-se que não existiam marcas de travagem ou arrastamento do motociclo [o que vem reforçar a versão do arguido no que se reporta à travagem e tentativa de evasão e indicia a velocidade pois que caso a mesma fosse superior existiriam, certamente, marcas de arrastamento]. Em julgamento a testemunha, de forma credível e apelando à sua experiência profissional, indica que o motociclo estaria a circular a velocidade não superior a 40km/h face à distância para a mota imobilizar o que está de acordo com as declarações do arguido. As testemunhas AA, nora do ofendido e OO, filho do ofendido, vieram de forma escorreita e credível descrever os sentimentos da demandante bem como das consequências do internamento e morte do ofendido para aquela. A testemunha PP companheira do arguido abonou, de forma credível, da sua personalidade e veio relatar como aquele se sentiu após os factos. No caso em apreço não há qualquer testemunha que tenha presenciado os factos na sua totalidade, nem tampouco as mesmas se revelaram totalmente credíveis conforme já se expôs. Assim, em conjugação com o depoimento das testemunhas e as declarações do arguido, o Tribunal atendeu aos elementos constantes da participação de acidente sendo que a mesma permite apurar as características do local, e posição final do veículo e vestígios, porquanto a dinâmica aí impressa resulta do que, alegadamente, arguido terá indicado em sede de participação de acidente. No que concerne à caracterização das lesões apresentadas pelo ofendido bem como às causas das mesmas o Tribunal considerou o teor do relatório de autópsia de fls. 269 e 270 cujo juízo técnico-científico o Tribunal está subtraído a apreciar nos termos do art. 163.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, conjugado ainda com os elementos clínicos de fls. 32 a 179 que permitiram igualmente estabelecer nexo causal entre o embate e a morte do ofendido. Quanto à apólice de seguro o Tribunal atendeu ao documento junto pela demandada, no que concerne aos factos do pedido de indemnização civil do Instituto da Segurança Social considerou-se o teor das certidões juntas pela mesma. Quanto aos factos do pedido de indemnização civil da demandante AA o Tribunal valeu-se das suas declarações em sede de inquérito bem como do depoimento das testemunhas que AA e OO que depuseram com credibilidade sobre tais factos. Chegados a este ponto impera concluir que existe prova cabal nos autos de que o ofendido se encontrava a efetuar a travessia fora de passagem para peões [que não existia no local] e, por outro lado, que o arguido não tenha abrandado o veículo junto ao local do embate pelo menos até ter notado o ofendido. De facto, não foi possível compreender em que moldes ocorreu o acidente, designadamente porque motivo o ofendido se encontrava naquele local [se se atravessou inopinadamente e quanto tempo decorreu desde a sua entrada na faixa de rodagem até ao embate, se o mesmo confirmou que poderia atravessar a via em segurança], as diferentes movimentações do motociclo e ofendida, não sendo possível compreender cabalmente a dinâmica do mesmo já que o arguido não apresentou total credibilidade nas suas declarações. Assim não há elementos nos autos que permitam assacar uma condução descuidada por parte do arguido, nem a violação de qualquer norma estradal que as pudesse demonstrar. Atente-se que o arguido circulava dentro do limite de velocidade estabelecido para o local, tinha veículos estacionados à sua direita, não sendo expectável a um condutor médio que de forma inopinada um peão se lance na faixa de rodagem, como o arguido refere que terá ocorrido e da forma por si descrita [e demais indícios da concatenação da prova como supra fomos expondo] parece ter-se dado. Assim sendo, e face ao conjunto de fatores que se foram indicando, consideramos que não resultam como provados os factos atinentes a tal violação. Pois que, da prova carreada não se mostra possível verificar que o arguido tivesse falta de atenção ou lhe fosse exigível, naquelas concretas circunstâncias que tivesse adotado conduta distinta e adequado a sua velocidade de outra forma. A situação em apreço, de nos depararmos com veículos estacionados, ocupando parte da faixa de rodagem já estreita, não é expectável que um peão surja [distintamente v.g. da situação em que um autocarro se encontra parado na berma da estrada, sendo aí expectável a movimentação de passageiros] sem se assegurar que não circulam veículos [e não existindo qualquer passagem para peões]. Ademais a falta de recção em tempo útil do ofendido ou do arguido [sendo que o arguido se encontrava a velocidade não concretamente apurada mas no máximo a 40 km/h] denotam a rapidez da aproximação até ao embate, vindo credibilizar a possibilidade de o ofendido se ter lançado, sem se assegurar da existência de veículos, de forma inopinada para a via. Acresce que o local onde ocorreu o embate denota que o arguido não se encontrava muito próximo à direita pois nesse caso teria embatido no ofendido com esse lado do motociclo. É de frisar que dispõe o art. 99.º, n.º 2, al. a) do Código da Estrada prevê que os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos nos seguintes casos: a) Quando efetuem o seu atravessamento;” De igual forma estatui o art. 101.º n.º 1 do Código da Estrada que os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente. Note-se que não é possível descartar-se, ab initio e sem quaisquer elementos outras possibilidades – como seja a precipitação inopinada do ofendido na via sem se ter assegurado que poderia fazê-lo e bem assim que tal fosse visível ao arguido. Ora, como regra para a decisão há que se atender ao princípio do in dubio pro reo, isto é, produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, o juiz deve decidir a favor do arguido dando como não provado o facto que lhe é desfavorável1 . Assim, a prova realizada exige para a formação da decisão uma “prova para além de qualquer dúvida razoável”, valorando-se a favor do arguido quando exista uma situação de non liquet. Ora, se não for possível formular um juízo de certeza, tem que prevalecer o princípio do in dubio pro reo por se verificar a existência de uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos. No caso em apreço, não resulta indubitável que o arguido tenha agido sem o cuidado que deveria ter e de que era capaz, desconhecendo-se as circunstâncias do acidente, designadamente se o ofendido se atravessou inopinadamente na via de forma rápida, obstaculizando a uma reação por parte do arguido, impedindo a formulação de um juízo de culpa sobre a condução por parte do arguido. Acresce que não era exigível a um homem nas vestes de bonus pater famílias quando colocado na situação do arguido em tomar outras precauções tanto mais que a circunstância de aquele referir ter procurado efetuar duas manobras de evasão denotam que o mesmo seguiria com atenção à via. A travessia de peões de forma inopinada não é inédita, não sendo expectável a um condutor que tal ocorra, ainda para mais numa noite de Inverno, num local em que existiam carros parados que poderiam diminuir a visibilidade, tanto do peão, como do condutor. Os antecedentes criminais encontram-se certificados nos autos. No que tange ao valor das despesas de funeral o Tribunal levou em consideração que foi pago pela Segurança Social à demandante subsídio de funeral motivo pelo qual tal facto se dá como não provado. No que respeita às despesas com a assistência médica, uma vez que o documento junto se trata de uma mera simulação de factura, não se apura que o referido valor tenha sido despendido, pelo que resulta igualmente como não provado. Quanto aos factos dados como não provados, além do que já supra se expôs especificamente, assim resultaram face à ausência de prova cabal quanto aos mesmos. III. Enquadramento jurídico: Uma vez descrita a matéria de facto, importa atentar no enquadramento jurídico da mesma. Ao arguido vem imputada a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio por negligência, p.p. pelo art. 137.º, nº1 do Código Penal. A - Do crime de homicídio por negligência: Ora, in casu, a lei prevê e pune expressamente o homicídio negligente (artigo 137º do Código Penal). Prevê tal preceito que: 1 - Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2 - Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos. O arguido vem acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo art. 137.º, nºs 1 e 2, do Código Penal, nos termos do qual quem matar outra pessoa por negligência grosseira é punido com pena de prisão até cinco anos. O bem jurídico tutelado por este tipo de ilícito é a vida humana, ou seja, a vida de outra pessoa já nascida. Estamos, portanto, no âmbito dos chamados crimes contra a vida, de entre os quais o homicídio assume sempre particular relevo, atendendo ao bem jurídico que nele está em causa. Com efeito, a vida é considerada como o mais precioso dos bens, sendo que como tal é tratada pela nossa Constituição, que consagra a inviolabilidade da vida humana (artigo 24º nº Trata-se de um crime de resultado, cujo tipo objetivo consiste em matar outrem, não se tratando de tipo de execução vinculada sendo, pois, irrelevante a forma pela qual é verificado o resultado, podendo ser por ação ou omissão (art. 10.º do Código Penal). Isto é, como violação de um dever de cuidado objetivo, faz parte do tipo de ilícito, como censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que o agente é capaz, é elemento de culpa. Note-se que a própria definição legal de negligência, plasmada no art° 15° do Código Penal prevê que " Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.", Ou seja, a violação do cuidado objetivamente devido, que corresponde ao tipo de ilícito e de que é capaz, isto é capacidade instrumental (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar, segundo o seu conhecimento e capacidades pessoais), que corresponde ao tipo de culpa. 2 Tem, assim, de haver sempre a violação de um dever de cuidado e capacidade instrumental. Esta capacidade instrumental é a capacidade que detém o homem médio. Quando se refere homem médio, trata-se daquele como definido por Figueiredo Dias - homem médio pertencente à categoria intelectual e social do círculo de vida do agente. Assim, há que analisar não só aquilo que é previsível e evitável para a generalidade das pessoas, mas também se para aquela pessoa em concreto, era previsível e evitável que um certo acontecimento se desse. A estrutura típica do crime negligente é então integrada pela violação do dever objetivo de cuidado e pelo nexo de imputação objetiva, consequentemente, trata-se de crime de resultado Uma das obrigações decorrentes do dever de cuidado consagrado nas normas jurídicas é a perceção de uma situação de perigo e, consequentemente, a sua correta avaliação de modo a evitar a produção do resultado, a ofensa do bem jurídico protegido pela norma incriminadora. A lesão de bens jurídicos é consequência de não serem tomadas determinadas precauções e estas dependem necessariamente do conhecimento do perigo. Na arquitetura objetiva da infração em apreço são então de considerar os seguintes elementos essenciais: o sujeito; a conduta; o evento; e o nexo de imputação objetiva. Quanto ao sujeito ativo deste tipo de crime, ele pode ser qualquer pessoa singular. Do mesmo modo, o sujeito passivo terá de ser pessoa humana já completamente nascida e com vida. No que se refere à conduta, terá que existir uma ação ou omissão pela qual o agente realiza o resultado proibido por lei, o facto humano provocador da morte de alguém. Matar entende-se por suprimir a vida humana, sendo que essa supressão se pode dar quer por efeito de uma conduta ativa (utilização de um meio idóneo para produzir diretamente a morte) quer por intermédio de uma conduta omissiva (falta de atuação capaz de evitar o efeito letal). No caso, e tratando-se de comportamentos negligentes, é necessário que o agente viole um dever objetivo de cuidado. A afirmação de um tal dever de cuidado far-se-á caso a caso, em função das particulares circunstâncias da atuação do agente, constituindo auxiliares importantes nessa determinação as normas jurídicas que impõem aos seus destinatários deveres e regras de conduta no âmbito de atividades perigosas (por exemplo, as normas de circulação rodoviária”)3 . No que respeita ao tipo subjetivo, trata-se de um ilícito negligente que admite, assim, negligência consciente e inconsciente, sendo esta quando o agente omite deveres e diligências a que nas circunstâncias e segundo os seus conhecimentos pessoais está obrigado e não previu, como podia, a realização do crime, e em relação à primeira, quando, tendo-a previsto, confiou em que não teria lugar . A negligência consiste na violação do cuidado a que o agente está obrigado, de acordo com os conhecimentos e as capacidades do homem médio pertencente à categoria social e profissional do agente. Impõe-se, assim, a existência de um dever objetivo de cuidado cujo âmbito de proteção se destine a tutelar o bem jurídico ofendido pelo agente. Ou seja, o preenchimento do tipo implicará que: i) se esteja perante uma situação em que é objetivamente previsível a concretização de determinado perigo; ii) exista um dever de cuidado objetivo que vincule o agente a não ultrapassar o risco permitido; iii) o resultado surja exclusivamente em consequência da conduta descuidada e, nessa medida, ilícita do agente, devendo o resultado concretizar os perigos que se pretendiam salvaguardar com o fim ou esfera de proteção da norma de cuidado. Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03.08.2009 no âmbito do processo n.º 151/99.2PBCLD.L1-5, em que foi relator Simões de Carvalho no qual se refere que para existir negligência é necessário, desde logo, que se esteja perante uma situação em que é objetivamente previsível o perigo de uma determinada ação ou omissão. Na verdade, apenas a previsibilidade objetiva do perigo da ação ou da omissão pode criar no agente um determinado dever de agir ou de se abster. Torna-se, pois, necessário que uma pessoa de capacidade medianamente diligente, perante a mesma situação, pudesse prever o perigo de determinada ação ou omissão, ou seja, a chamada previsibilidade objetiva. No entanto, tal não basta para existir negligência. Como é manifesto, ela pressupõe a inobservância do cuidado adequado a impedir a ocorrência do resultado típico. Destarte, é necessário, para que se esteja perante uma conduta negligente, a ausência do cuidado que efetivamente poderia impedir o evento que a própria norma pretende evitar. Como se mencionou supra, a conduta negligente pressupõe que o agente se encontrava em condições de cumprir com as exigências objetivas de cuidado, isto é, para que exista culpa negligente é necessário que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que estava obrigado 6 . Assim, o tipo de culpa negligente abrange a previsibilidade subjetiva (individual) do resultado típico. Distingue-se, então, a negligência consciente que traduz a conduta do agente que representa como possível a realização do facto que preenche o tipo de crime; da negligência inconsciente em que o agente não chega a representar a possibilidade de realização do facto, ficando excluída a previsibilidade individual. Assim sendo, em sede do tipo de culpa a negligência pressupõe o não uso da diligência devida, segundo as circunstâncias em concreto, para evitar o resultado. A negligência consiste, pois, em qualquer das suas modalidades, consciente e inconsciente na omissão de um dever objetivo de cuidado e de diligência: o dever de não confiar leviana ou precipitadamente na não produção do facto ou o dever de ter previsto tal facto e de ter tomado as diligências necessárias para o evitar. Para apurar da negligência há então que fazer um juízo ex ante; o aplicador tem de se reportar ao tempo em que os factos ocorreram e pensar como é que o homem médio, nas circunstâncias e com os conhecimentos do agente, teria valorado aquela concreta situação, se teria ou não percecionado o perigo para o bem jurídico. Em seguida, o comportamento será depois confrontado com a atuação concreta do agente, concluindo-se pela atuação negligente sempre que o agente tenha atuado de modo desconforme à conduta devida naquelas circunstâncias. Ora, não obstante a ocorrência do embate e de tal ter resultado na morte de BB, não se verificou como provada a violação de cuidado por parte do arguido. No caso em apreço não resultou que o arguido tenha atuado com descuido, nem tampouco que não tenha adaptado a velocidade às condições em que circulava, resultando como não provados os factos a isso atinentes. Ademais não se verificou que o arguido tenha atuado a título doloso ou negligente. Assim, uma vez que não se apuraram como preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime, faltando algum dos elementos do tipo objetivo e subjetivo de ilícito, impõe-se a absolvição do arguido da prática do crime, sem necessidade de maiores considerandos. IV - Do Pedido de Indemnização Civil: Nos presentes autos os demandantes AA e Instituto da Segurança Social IP apresentaram pedido de indemnização civil contra a arguida, a seguradora ..., peticionando a condenação solidária das demandadas na quantia global de € 13.344,66 ao ISS, IP, acrescida de juros de mora e € 12.382,20 à demandante AA, sendo € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais e € 2.382,20 a título de danos patrimoniais. Nos termos do disposto no art. 129.º do Código Penal a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil. Há ainda que verificar se os factos que foram dados como provados preenchem os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito. Ora, prevê o art. 483.º, n.º 1 do Código Civil aquele que, com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, ficando obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação. Desta forma, facilmente se apreendem quais os pressupostos de que depende o direito de indemnização, a saber, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Só com o preenchimento de todos estes pressupostos surge o direito do lesado a ser indemnizado. Analisemos então cada um dos pressupostos facto, ilicitude, a imputação do facto ao lesante (a título de culpa), o dano e um nexo de causalidade entre o facto e o dano. Em relação ao facto este constitui uma conduta voluntária do agente que tanto pode consistir numa ação como numa omissão. Em segundo lugar, no que concerne ao requisito da ilicitude a mesma prende-se com a violação de direitos absolutos alheios e ainda à violação de normas legais destinadas a proteger interesses alheios. O terceiro requisito consubstancia-se na culpa. Ora, a culpa abrange o dolo e a mera culpa ou negligência. Neste sentido importa verificar se era exigível uma outra atuação por parte do agente. Em quarto lugar é necessária a existência de um dano, isto é, uma lesão de direitos ou interesses alheios juridicamente tutelados. Por fim, há que atentar no requisito do nexo de causalidade adequada. Tal pressuposto implica que, entre o facto e o dano, de acordo com a teoria da causalidade adequada, o dano produzido seja, de forma abstrata uma consequência normal desse facto. Assim, pretende verificar-se se o facto é adequado à verificação daquele dano atendendo às circunstâncias conhecidas do agente ou que deveria conhecer.” *** Cumpre analisar os fundamentos do recuso interposto pelo Ministério Público. Dos vícios decisórios: contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova – 410.º, n.º 2, al. b) e c), do CPP. Antes entrarmos na análise da questão suscitada pelo Ministério Público cumpre precisar o seguinte. Como resulta da lei, o Tribunal da Relação pode conhecer da questão de facto por duas vias: - a primeira através da impugnação alargada com apelo à prova gravada, se tiver sido suscitada, conforme resulta do artigo 431º do CPP; - a segunda pela análise dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP. Quanto à primeira situação, estamos perante um típico erro de julgamento, previsto no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Neste caso - erro de julgamento - o recurso pretende a reapreciação da prova gravada ou documentada perante o tribunal recorrido, havendo que a ouvir em sede de recurso. Numa situação como esta, a apreciação do recurso não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova gravada ou constante de documentos ou outros meios de prova inseridos no processo, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP. Cumpre precisar que nestas situações, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento sobre aquela matéria a ter lugar perante o tribunal da relação, com base na audição de gravações, antes constituindo um mero “remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Quanto ao recurso da decisão facto com base nos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP, cumpre referir que esta norma legal estabelece que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e o erro notório na apreciação da prova. Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso, como resulta do artigo 426º do CPP, o reenvio do processo, caso não os possa suprir, para novo julgamento. Alegou o recorrente Ministério Público, embora sem concretizar, que o tribunal recorrido ao dar como não provado o facto de o ofendido não ter iniciado a travessia e de não estar já mais perto do fim da mesma no momento do embate (facto b) dos factos não provados) e ao dar como não provado os factos relativos ao elemento subjetivo (factos não provados c), d), c) e f) ) cometeu um erro notório na apreciação da prova e uma contradição insanável da fundamentação. Quanto ao vício previsto pela alínea b) do n.º 2 do artigo 410º, como é dito no AC do STJ de 24-2-2016 no processo nº 502/08.0GEARLR.E1.S1: “verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação - quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão. Como diz Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal anotado, II volume, 2. Edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, p.379. «[p]or contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.» Da análise feita à sentença recorrida não identificamos, nem tão pouco o Ministério Público, em sede de recurso, identificou qualquer facto que, ao mesmo tempo, tenha sido dado como provado e não provado, pelo não existe uma contradição entre factos provados e não provados. Em todo o caso, analisando o facto provado 9 (o ofendido foi embatido pelo guiador do lado esquerdo do motociclo conduzido pelo arguido) e o facto não provado A) (Nas circunstâncias referidas em 9 o embate ocorreu quando o ofendido se encontrava já muito perto do final da travessia da faixa de rodagem), não se vislumbra qualquer contradição. Com efeito, o que consta como provado é parte do motociclo que embateu na vítima, sendo que não ficou provado o local da faixa de rodagem onde se deu o embate. Deste modo, não existe qualquer contradição entre estas duas realidades. Quanto ao erro notório previsto no artigo 410º nº 2 al. c) do CPP é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da análise do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência. Como é jurisprudência pacífica só há erro notório na apreciação da prova quando for de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores e resulta do próprio texto da decisão. Existe este erro quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria, com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Este vício ocorre quando o tribunal, no seu processo de apreciação da prova, valoriza e dá como provado ou não provado certos factos, contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados e isso é percetível pela simples leitura da decisão e não passa despercebido ao cidadão comum. Isto é, o erro tem de ser detetável no próprio texto e contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. Tendo em conta o caso concreto, da leitura feita à decisão recorrida, em particular dos factos e motivação colocados em causa pelo recorrente, não resulta nos factos provados e não provados algo que não possa ter acontecido, ou que exista algum facto provado obtido através de uma valoração da prova feita contra as regras da experiência ou contra critérios legais previamente fixados. Na verdade, os factos estão descritos de forma clara e percetível, mostram-se fundamentados de forma lógica e com base em prova produzida, estando em conformidade com a mesma. Em suma, da simples leitura direta e objetiva da sentença sob recurso, considerado em si mesmo, não ressalta a verificação do vício de erro notório na apreciação da prova. Cumpre dizer que a apreciação deste invocado vício não consiste numa apreciação e julgamento da prova, mas apenas verificar se a decisão contém alguns dos vícios acima apontados. Em face do exposto, por não se verificarem os vícios decisórios invocados pelo Ministério Público o recurso improcede quanto a este segmento. Vejamos agora, uma vez que o Ministério Público cumpriu as formalidades exigidas no artigo 412º nº 3 do CPP, o recurso relativo à matéria de facto pela via da impugnação ampla da matéria de facto. Cumpre reafirmar que a impugnação ampla da decisão da matéria de facto traduz-se no meio adequado a reverter o erro de julgamento, o qual se verifica quando a prova produzida em audiência, analisada e valorada no seu conjunto, não podia conduzir à decisão de facto (factos provados ou não provados) nos termos fixados na sentença. Com isto o recorrente visa uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo em relação aos concretos pontos que considera incorretamente julgados, através da avaliação ou reavaliação das provas que, do seu ponto de vista, impõem uma decisão diversa da recorrida. Quanto a este segmento do recurso, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, por via do recurso amplo, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. Quanto a esta especificação, a mesma deve fazer-se por referência ao consignado na ata, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012). No caso, analisado o recurso constata-se que o recorrente MP indicou concretamente os pontos de facto que considera incorretamente julgados (facto 9 e factos não provados c), d) e) e f)) e indicou as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença (declarações do arguido prestadas em sede de audiência de julgamento, depoimento do agente da PSP, a própria declaração subscrita pelo arguido no dia do acidente e das medições, do croqui juntas aos autos de fls. 3 a 6 e as regras da experiência. Deste modo, o recorrente deu total cumprimento das formalidades previstas no artigo 412º nº 3 e 4 do CPP, dado que procedeu à especificação da concreta prova em que funda a sua impugnação, ou seja, indicou as concretas passagens por referência ao consignado na ata. Vejamos se existe erro de julgamento quanto ao alegado facto 19 e factos não provados c), d) e) e f)). Antes de entrarmos na avaliação dos concretos elementos de prova que, no entender do MP, impõem uma decisão diversa quanto à decisão de facto, cumpre analisar o valor probatório do elemento de prova relativo à declaração do arguido, subscrita por este, no dia do acidente (...-...-2020) perante o agente da PSP que tomou conta da ocorrência e elaborou o auto de notícia. Na verdade, a resposta a esta questão condiciona o valor probatório a extrair deste elemento de prova (declaração subscrita pelo arguido no dia do acidente de fls 6). Cumpre recordar, conforme consta da ata de julgamento, que o arguido foi confrontado com o teor de fls. 6 no decurso da audiência. A declaração em causa foi prestada no dia ...-...-2020, dia do acidente, muito antes do arguido ter sido constituído como tal. De acordo com o MP, um dos motivos da sua divergência quanto à decisão de facto, radica na circunstância de entender que, em face das contradições evidentes das declarações do arguido prestadas em audiência com a declaração subscrita pelo mesmo no dia do acidente, o tribunal deveria ter desconsiderado totalmente as declarações prestadas em sede de audiência e dar como provado todos os factos relativos ao elemento subjetivo do crime. Constata-se, assim, que um dos vetores de argumentação do recorrente prende-se com o valor probatório a atribuir ao auto de notícia e à declaração subscrita pelo arguido antes deste ter sido constituído como arguido e perante um agente da PSP. Conforme resulta do artigo 125º do CPP, no processo penal vigora o princípio da legalidade da prova segundo o qual, são admissíveis os meios de prova que não forem proibidos por lei. Daqui decorre que são admissíveis, para além dos meios de prova tipificados na lei, todos os que o não estando, não sejam por ela proibidos. Quanto às declarações de arguido estas são um meio de prova tipificado, estando previstas, enquanto tal, designadamente, nos arts. 140º, 141º, 143º, 144º, 343º, 345º e 361º, todos do CPP e são, igualmente, um instrumento de defesa. Assim, depois de conhecer os factos que lhe são indiciariamente imputados no processo, o arguido pode, negar a sua prática, de forma motivada ou não, produzir confissão ou exercer o direito ao silêncio. Quanto ao que consta de fls. 6, verifica-se que a declaração do arguido, inserta no formulário da PSP, denominado auto de descrição do acidente, no qual assume a sua intervenção no acidente, traduz-se num ato processual documentado, elaborado pelo agente que tomou conta da ocorrência e não, como parece ser o entendimento do recorrente, um documento ou um auto de declarações. Quanto a esta questão, diz Tiago Calhado Milheiro, in Comentário Judiciário do Código do Processo Penal, Tomo II, p. 506/507 que «Deverá distinguir-se documentos enquanto meio de prova qua tale e atos processuais documentados (v.g. autos ou atas). Se é certo que estes últimos se podem apelidar de documentos (documentos intra-processuais ou latu sensu por contraposição com documentos extra-processuais ou stricto sensu) são diferenciáveis os dois conceitos em termos penais. O legislador “separa” a disciplina normativa entre o regime da prova por documento e os atos processuais (…). Cumpre referir que a valoração de declarações e depoimentos (formalmente) produzidos, na qualidade de lesado, de arguido ou de testemunha, antes da audiência de julgamento, e aqui reproduzidos, apenas pode ocorrer nos casos expressamente previstos e desde que verificados os necessários pressupostos, conforme se estipulado nos artigos 355º, 356º e 357º do CPP. Quanto ao arguido é legalmente admissível a leitura na audiência de julgamento, para efeitos de valoração de prova, de declarações prestadas por aquele que nela exerça o direito ao silêncio, desde que tais declarações tenham sido feitas perante autoridade judiciária, desde que o arguido tenha estado assistido por defensor e desde que tenha sido previamente informado de que, não exercendo o direito ao silêncio, as declarações a prestar poderão ser usadas no processo, para efeitos de prova, mesmo que seja julgado na ausência ou na audiência de julgamento não preste declarações. Tendo em conta o caso concreto, facilmente se constata que não estamos perante declarações prestadas pelo arguido em sede de inquérito ou da instrução, única situação em que seria possível a sua valoração, desde que verificados os pressupostos supra enunciados. Assim, não se tratando de declarações de arguido formalmente prestadas no inquérito, não será possível, como pretende o MP, atribuir qualquer valor probatório, ainda que apenas para demonstrar eventuais incongruências das declarações prestadas em audiência, a uma declaração por escrito, prestada por alguém interveniente num acidente de viação e perante um agente da PSP. Na verdade, como se pode ler no voto vencido constante no CR. TRL de 16-1-2025 no processo nº 1129/19.7PAMTJ.L1-9 “Vale tudo por dizer que, valorar-se aquela declaração por escrito, como assunção da intervenção no acidente equivale a elevá-la «à categoria de “confissão” pré-processual. E isso está vedado ao tribunal. Desde logo (…) pelas cautelas de que o efeito confessório é rodeado pela ordem jurídica» e porque aceitar o declarado por escrito «como equiparado a “confissão” é inviabilizar direitos, designadamente o direito ao silêncio e, aliás, ao próprio direito a um julgamento em audiência pública, redundando em completa negação da imediação e da oralidade e, “máxime”, do acusatório». É certo que aquela declaração escrita foi proferida muito antes do arguido ter sido constituído como arguido, mas seguramente foi num momento em que já era suspeito da prática de um crime. O suspeito não é, ainda, um sujeito processual, com um estatuto específico, mas “goza já de certos direitos, a saber: seja qual for a origem e a consistência da suspeita, não pode, em caso algum, ser obrigado a fornecer provas ou a prestar declarações auto-incriminatórias” (Paulo Sousa Mendes, Estatuto de Arguido e Posição Processual da Vítima, RPCC, Ano 17º, p. 603). Assim sendo, estando em causa uma declaração escrita feita pelo arguido a mesma, por não ter sido produzida ao abrigo das regras previstas nos artigos 57º a 67º e 141º do CPP, não constitui prova válida estando, deste modo, o tribunal impedido de fazer qualquer juízo valorativo quanto ao conteúdo dessa declaração. Com efeito, “As declarações prestadas fora do quadro legal que integra e compõe o estatuto processual de arguido não podem ser usadas contra este, nem podem ter qualquer outra valia no prosseguimento da investigação, nomeadamente aproveitadas contra outros suspeitos. Elas não podem ser fruídas porque nascem de um método proibido de prova e constituem prova proibida” AC do TRE de 9-10-2012 processo nº 199/11.0GDFAR.E1. Nesta conformidade, estando o tribunal impedido de atribuir qualquer valor probatório à declaração do arguido que consta de fls. 6, decai o primeiro argumento invocado pelo recorrente para sustentar que o tribunal deveria ter desconsiderado totalmente as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência e dar como provado todos os factos relativos ao elemento subjetivo do crime. Vejamos agora o segundo elemento de prova que o MP convocou para justificar o erro de julgamento quanto à valoração feita às declarações do arguido prestadas em audiência de julgamento. Esse elemento de prova consiste no depoimento da testemunha NN, agente da PSP. Quanto a esta testemunha, cumpre referir que a mesma não presenciou os factos, apenas compareceu no local após o acidente, o que faz com que todo o seu conhecimento, quanto à dinâmica do acidente, tenha sido fundado na conversa que manteve com o arguido no local do acidente. Esta testemunha apenas revelou um conhecimento direto quanto às características da via, estado do tempo e ausência de rastos de travagem. Deste modo, perante a ausência de conhecimento direto quanto ao acidente e à sua dinâmica, nenhum valor probatório poderá ser extraído deste depoimento, muito menos para concluir, como pretende o MP, pelo erro de julgamento quanto aos factos relativos ao elemento subjetivo do crime imputado ao arguido. Vejamos agora se é possível apontar à decisão recorrida um erro de julgamento quanto aos factos não provados por violação das regras da experiência comum. Como se pode ler no AC. do STJ de 6-7-2022 no processo nº 3612/07.6TBLRA.C2.S “As regras da experiência são “ou o resultado da experiência da vida ou de um especial conhecimento no campo científico ou artístico, técnico ou económico e são adquiridas, por isso, em parte mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, em parte mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria”, que permitem fundar as presunções naturais, não abdicando da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extração de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil”. Prossegue o mesmo acórdão dizendo que que “as regras da experiência não são meios de prova, instrumentos de obtenção de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além da hipótese a que respeitem, permitindo atingir continuidades, imediatamente, apreensivas nas correlações internas entre factos, conformes à lógica, sem incongruências para o homem médio e que, por isso, legitimam a afirmação de que dado facto é a natural consequência de outro, surgindo com toda a probabilidade forte, próxima da certeza, sem receio de se incorrer em injustiça, por não estar contaminado pela possibilidade física, mais ou menos arbitrária, impregnado de impressões vagas, dubitativas e incredíveis” Segundo o MP, os factos dados como não provados deveriam ter sido dados como provados dado que estes decorrem de forma natural e lógica dos factos dados como provados na sentença. Quanto a esta possibilidade, cumpre precisar que nas situações em que não existe prova direta quanto a determinado facto, nomeadamente quanto aos aspetos subjetivos do crime, é possível, através de um facto conhecido fazer a transição ou a prova de um facto desconhecido. Neste processo terão de intervir, naturalmente, as presunções naturais, juízos de avaliação, procedimentos lógicos e intelectuais que permitam, de forma fundada, afirmar, segundo as regras da experiência, que aquele facto, anteriormente não provado por prova direta, é a natural e normal consequência, para além de toda a dúvida razoável (o mais exigente standard de prova) daquele ou daqueles factos conhecidos. Assim, tudo consiste em saber se os factos que o tribunal recorrido considerou não provados, por ausência de prova direta, nomeadamente por o arguido não os ter confessado, são uma consequência natural e lógica dos factos provados. Ora, não tendo ficado provado que o arguido ao empreender a sua condução tenha violado, de forma objetiva, qualquer norma do código da estrada, nomeadamente relativa à velocidade empreendida naquela concreta via, conjugado com o facto de o acidente ter ocorrido à noite e numa via com aquelas concretas características, não é possível concluir, como pretende o MP, que o arguido agiu com violação dos deveres objetivos de cuidado, atenção e prudência a que estava obrigado enquanto condutor, não observando as precauções de exigência exigidas pelo exercício da condução, que o arguido conhecia e sabia estar obrigado, conduzindo desatento aos demais utentes da via e não regulando a velocidade do veiculo bem como as manobras face à aproximação do peão de modo a que pudesse, em condições de segurança e perante qualquer obstáculo ou circunstância, imobilizar o veiculo que conduzia. Como não é possível concluir que o arguido não adequou a sua condução à via em que circulava, não agindo com o zelo e diligência que lhe competiam e de que era capaz no ato de condução os quais, a terem sido adotados por aquele, teriam configurado meio idóneo a afastar-se do ofendido e a evitar o embate naquele e, em consequência, a morte de GG. Deste modo, partindo do conceito do que são as regras da experiência comum, não é possível concluir que pelo facto de uma pessoa ser interveniente num acidente de viação, quando na sua condução não violou qualquer norma relativa às regras de condução, e em consequência disso provoca uma ofensa na integridade física ou a morte de alguém, que essa pessoa agiu com violação dos deveres objetivos de cuidado, atenção e prudência a que estava obrigado enquanto condutor. Na verdade, as regras da lógica e do normal acontecer não legitimam, sem mais, a afirmação de que o facto relativo à violação dos deveres de cuidado é a natural e normal consequência do facto do arguido ter conduzido, ter embatido na vitima e ter provocado a morte desta. Cumpre dizer que neste processo de raciocínio não se poderá nunca confundir o que são regras de convencimento, naturalmente legitimas e pessoais, com o que são regras de experiência comuns. Há que ter em atenção, também, que neste tipo de acontecimentos, onde a realidade é muito dinâmica devido à rapidez e à forma súbita com que os factos acontecem, não é possível estabelecer padrões de normalidade nem regras absolutas, o que faz com que a lógica resultante da experiência comum não possa valer só por si. Assim sendo, aquilo que é afirmado pelo MP em sede de alegações poderá ser, o que se aceita perfeitamente, regras ou convencimento pessoal da pessoa que recorre, mas isso não faz com que se tornem regras comuns à generalidade das pessoas a impor uma alteração de decisão de facto com base em erro de julgamento. Em suma, o que se verifica no caso concreto não é um erro de julgamento quanto à apreciação da prova, mas sim uma crença subjetiva, que é perfeitamente legitima, do recorrente na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido proferida pelo próprio. Deste modo, após analisada a prova, incluindo a audição integral das declarações do arguido, verifica-se que a argumentação desenvolvida pelo tribunal recorrido é racional e lógica, em nada contrariando as regras da lógica e da experiência. Da leitura da motivação de facto sobressai uma explicação exaustiva e correta, não só quanto à credibilidade que mereceram as declarações do arguido, como justifica a inverosimilhança da versão apresentada pelas duas testemunhas JJ e LL. E note-se que a prova não pode ser avaliada de modo descontextualizado, fazendo ainda sentido, os factos provados, no contexto de toda a prova produzida e no episódio de vida ocorrido no dia em causa. De tudo isto resulta que a argumentação desenvolvida no recurso do MP não permite concluir que tenha ocorrido uma incorreta apreciação das provas, e do exame crítico da sentença emerge a justificação da sobrevalorização das declarações do arguido em detrimento das do depoimento das duas testemunhas que estavam no local e do convencimento do tribunal na demonstração dos factos provados e não provados. Assim, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal recorrido formou a sua convicção valorando os diferentes meios de prova sem obediência a critérios legais pré-fixados, mas sempre de acordo com as regras da experiência. A convicção formou-se na prova livremente apreciada de acordo com as regras da experiência, da lógica, da razão e dos conhecimentos técnicos necessários ao caso. Termos, pois, em que perante o que se deixou exposto se mantém intangível a matéria de facto, acima descrita, fixada pelo tribunal a quo Deste modo, não tendo havido modificação da matéria de facto pertinente para a subsunção jurídica, fica, inelutavelmente, prejudicada a segunda questão que se colocava, a subsunção dos factos que o recorrente pretendia que fossem considerados provados, ao crime de homicídio negligente com a consequente determinação da medida da pena. Mostra-se, assim, totalmente improcedente o recurso interposto pelo MP. Quanto ao recurso interposto pela demandante cível. Por despacho de ...-...-2024, por falta de legitimidade da demandante AA [art. 401.º a contrario], foi rejeitado o recurso interposto pela mesma na parte que versa sobre a vertente criminal. Sobre este despacho não incidiu qualquer reclamação pelo que se mantêm a sua validade e efeitos jurídicos produzidos. Deste modo, quanto à impugnação da matéria de facto relativa à vertente criminal, factos descritos na acusação, perante a não admissão do recurso está este tribunal impedido de conhecer a impugnação suscitada pela recorrente. Assim, resta apenas apreciar se existe obrigação da demandada pagar a quantia indemnizatória reclamada no pedido cível. Tendo em conta o pedido, não se suscitam dúvidas que nos encontramos no domínio da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, prevista no artº. 483º e ss. do Cód. Civil. Como é entendimento pacífico, são pressupostos, cumulativos, dessa responsabilidade: a existência de facto voluntário pelo agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Ora, mantendo-se inalterada a matéria de facto fica afastado, desde logo, a presença de factos demonstradores de um facto culposo, o que faz com que não estejam reunidos os pressupostos da obrigação de indemnizar, razão pela qual improcede, também, o recurso interposto pela demandante cível. IV–Dispositivo Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em: Negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público mantendo-se na integra a sentença recorrida. Em negar provimento ao recurso interposto pela demandante cível. Sem custas pelo MP estar isento. Custas cíveis pela demandante cível Notifique Lisboa, 09-10-2025 (Elaborado e integralmente revisto pelo relator) Ivo Nelson Caires B. Rosa Ana Marisa Arnêdo Marlene Fortuna |