Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
84/19.8PHOER.L2-5
Relator: JOÃO GRILO AMARAL
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
VIOLAÇÃO AGRAVADA
COABITAÇÃO
COMPARTICIPAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/21/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: NÃO PROVIDOS
Sumário: I. Para justificar a necessidade da comunicação, exige o artigo 358º, nº 1 do Cód. Processo Penal, que a alteração, se a houver, tenha relevo para a decisão da causa, ou seja, impõe-se que se trate de uma alteração relevante.
II. Não é relevante a alteração que contende apenas com uma precisão que tem a ver com o modo de comunicação, que pode abranger diversas modalidades, radicando o aspecto fundamental na transmissão de uma determinada ideia ao receptor, neste caso a ofendida, sendo que esta ideia não se mostra alterada em qualquer das redacções.
III. Uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente na especificação a que alude o art.412º nº3 al.a) do Cód.Proc.Penal seja claro e completo, com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão, ou remissões em globo, ou remissões para “pedaços de vida”, para categorias dogmáticas ou para crimes.
IV. Nos termos do art.177º nº1 al.b) do Cód.Penal, o conceito coabitação pressupõe a partilha do mesmo espaço de habitação, um residir em comum, de modo que coabitar implique que o domicílio seja comum aos elementos que ali vivem, sendo que domicílio é comummente tido como a casa da residência, o local onde se mora, que se habita.
V. Tal conceito reveste-se de características de estabilidade e permanência que não permitem o enquadramento nele de alguém (vítima) que vai passar um fim de semana a casa de um familiar (arguida), como é caso dos autos.
VI. Atento o disposto no art.28º nº1 do Código Penal, as agravantes que têm por referência um determinado co-autor são transmissíveis aos demais co-autores, pelo que se em relação a um dos arguidos se verifica a existência de uma relação familiar com a vítima, e se foi com aproveitamento de tal relação que os factos ocorreram, tal circunstância agravativa, prevista na al.b) do nº1 do art.177ç do Código Penal, estende-se ao comparticipante.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum colectivo n.º 8419.8PHOE, que corre termos pelo Juízo Central Criminal de Sintra - Juiz 5, em que são arguidos AA, BB e outro, melhor identificados nos autos, foi proferido acórdão, no qual se decidiu [transcrição]:
“(…)
1. Absolver o arguido CC do crime de violação agravada, p. e p. 164º, n.º 2, alínea a), 177º, n.º 4 e nº 7, 14º, n.º1, 26º, n.º1, 30º, n.º1, todos do Código Penal, pelo qual vinha acusado.
AA
2. Absolver o arguido AA, do crime de violação agravada, p. e p. 164º, n.º 2, alínea a), 177º, n.º 4 e nº 7, 14º, n.º1, 26º, n.º1, 30º, n.º1, todos do Código Penal, pelo qual vinha acusado.
3. Absolver o arguido AA do crime de lenocínio de menores agravado, p. e p. pelo art. 175º, n.º 1 e n.º 2 alíneas a) e d) e 177º, n.º 4 e 7, 14º, n.º 1, 26º, 30º, nº1, do Código Penal, (na redacção da Lei nº 103/2015, de 24/9, em vigor à data dos factos), pelo qual vinha acusado.
4. Absolver o arguido AA do crime de coacção na forma tentada, p. e p. pelo art. 154º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, pelo qual vinha acusado.
5. Condenar o arguido AA pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 1, 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão. 6. Condenar o arguido AA pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 3, al. b), 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
7. Em cúmulo jurídico das penas parcelares, condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão.
BB.
8. Absolver a arguida BB do crime de lenocínio de menores agravado, p. e p. pelo art. 175º, n.º 1 e n.º 2 alíneas a) e d) e 177º, n.º 4 e 7, 14º, n.º 1, 26º, 30º, nº1, do Código Penal, (na redacção da Lei nº 103/2015, de 24/9, em vigor à data dos factos), pelo qual vinha acusada.
9. Condenar a arguida BB pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 1, 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
10. Condenar a arguida BB pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 3, al. b), 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão.
11. Condenar a arguida BB pela prática, em autoria material, de um crime de coacção na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154º, n.ºs 1 e 2 e 22.º, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão.
12. Em cúmulo jurídico das penas parcelares, condenar a arguida BB na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.
13. Absolver o arguido CC da totalidade do pedido indemnizatório.
14. Condenar os demandados/arguidos AA e BB no pagamento solidário a DD, da quantia de € 20.000,00 (vinte mil Euros), a título de indemnização devida por danos não patrimoniais, pela prática dos crimes cometidos na pessoa daquela, valor acrescido de juros de mora vencidos desde a notificação a que alude o art. 78º do Código de Processo Penal e dos juros vincendos até integral pagamento, à respetiva taxa legal.
15. Condenar os demandados/arguidos AA e BB no pagamento solidário a DD, da quantia de € 317,09, a título de indemnização devida por danos patrimoniais, valor acrescido de juros de mora vencidos desde a notificação a que alude o art. 78º do Código de Processo Penal e dos juros vincendos até integral pagamento, à respetiva taxa legal.
16. Condenar os arguidos AA e BB nas custas do processo, fixando a taxa de justiça individual em quatro U.C.`s (arts. 513.º e 514.º do CPP e art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa).
17. Condenar os arguidos AA e BB em custas da parte cível, nos termos do disposto no artigo 527.º do Cód. Proc. Civil, aplicável ex vi do artigo 523.º do Cód. Proc. Penal. (…)”
»
I.2 Recurso da decisão final
Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso os arguidos AA e BB para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
I.2.1 - Recurso interposto pelo arguido AA:
“(…)
A.
A convicção do tribunal assentou na concatenação ponderada do silêncio em audiência dos arguidos e arguida quanto ao imputado, com as declarações para memória futura prestadas pela ofendida menor, nas quais a menor se revelou integralmente credível.
B.
Assim, os factos dados como provados em 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 19,20, 22 e 26, e quanto ao arguido AA, não se podiam dar como provados, pelo que, vêm impugnados, dispondo, V. Exas., de todos os elementos para alterar a matéria de facto nos termos do art. 431º, do CPP, o que ora se reclama.
B. 1
o Tribunal a quo que formou a sua convicção, no que ao crime de abuso sexual respeita, nos pontos em comum das duas declarações da assistente DD se os factos imputados ao Recorrente foram tão somente presenciados pela testemunha necessariamente, o depoimento da sua mãe – EE -, assim como, o do Inspector da Policia Judiciária – FF, são, inequivocamente, depoimentos indirectos, e, como tal, não podem ser valorados, segundo o disposto no art. 129º, nº 1, do CPP, até mesmo porque, as declarações da DD apresentaram contradições, conforme já supra referenciado e dito pelo tribunal a quo, uma vez que, a DD não manteve em julgamento a versão relatada nas suas declarações para memória futura, em sede de inquérito.
1.
Os arguidos exerceram todos o seu direito ao silêncio, o qual se encontra garantido no nº1, do art. 32º da CRP, e concretizado, quer no art. 61º, nº1, d), como no art. 343º, nº 1, ambos do CPP.
2.
Pelo que, o único elemento de prova que o Tribunal considerou para fundamentar e justificar a condenação do Recorrente, naqueles crimes, foram as duas declarações da Assistente, as quais ocorreram com um intervalo de tempo de 6(seis) anos.
3.
Nesse período de tempo a Assistente amadureceu, teve oportunidade de falar com a mãe sobre o assunto, de ler as várias peças processuais constantes dos autos e as respectivas decisões, e bem assim, de construir uma nova narrativa, moldando o seu discurso áquilo que lhe era conveniente vir a ser dado como matéria de facto provada.
4.
De outro modo, nem o tribunal recorrido se precavia dizendo que apenas valorou os pontos comuns das duas declarações, nem salientava que apurou o que foi vivenciado pela Assistente e o que é fruto de memórias criadas de forma espontânea ou induzida por outrém.
Todavia,
5.
Atentando nas declarações prestadas pela DD para memória futura (dois anos após a prática dos factos), delas não decorre quem a obrigou a permanecer no quarto para assistir a actos sexuais, ou que palavras foram proferidas para a obrigar a ali ficar, nem a Assistente descreve de que forma é que foi utilizada, contra a sua vontade, no quarto, ou de que modo é que a mantiveram imobilizada no quarto para ela assistir ao que os Arguidos faziam, para que o Tribunal a quo considerasse provado que houve uma ordem nesse sentido, e que, desta forma, a DD tivesse sido obrigada a ver a tia e o companheiro desta a manterem relações sexuais, sendo certo que, tal como consta do ponto 20 da matéria de facto dada como provada, já aqui transcrito, percebe-se que a Assistente entrou e saiu, livremente, do quarto, não se encontrava submissa
B.11
C.
No que respeita ao pedido de indemnização civil que, de resto, dado como provado integralmente, chamamos à colação a vasta prova médica junta aos autos, porquanto a ofendida nada juntou ao processo, com excepção de uma receita médica e as facturas da aquisição desses medicamentos.
D.
Dúvidas não restam, da nossa perspectiva sustentada pela perícia médica junta aos autos sob fls 761 a 765, que a menor padece de um transtorno, ou se quisermos, de uma patologia do foro psiquiátrico.
E.
E, salvo o devido respeito, o que parece ter sucedido, in casu, é um aproveitamento dessa situação, para, de forma encapotada, a menor vir atribuir tais comportamentos e desequilíbrios aos factos que se imputa ao Recorrente, justificando, desde modo, a indemnização reclamada e na qual o Recorrente veio condenado a pagar.
F.
O arguido AA veio condenado, solidariamente, com a outra Arguida, no pagamento à ofendida da quantia de €20.000,00 a título de danos não patrimoniais, bem como, no pagamento, também solidário, de €317,09 a título de danos patrimoniais, e no pagamento dos respectivos juros de mora, á taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
G.
O Tribunal a quo dá como provada a matéria vertida no PIC, condena o recorrente no pagamento da indemnização peticionada, no entanto, não demonstra nem estabelece um nexo de causalidade entre aqueles danos e a actuação do Recorrente, enunciando apenas os documentos clínicos, quando do seu teor não resulta que os danos/patologias de que a menor sofre foram causados pela conduta do recorrente.
H.
O acórdão recorrido apoia-se na documentação médica, aliás, enumera esses documentos e alude ao Relatório Médico Legal (de Clínica forense), junto aos autos sob fls 761.765, estando patente no texto da sentença que: “(...) do mencionado acervo documental e pericial dos autos se constatava automutilação da menor, tratamento da mesma em pedopsiquiatria face a tentativa de suicídio, ameaças á menor, perícia á menor no INML (...)”, no entanto, não refere o Acórdão recorrido, o que levou a menor a ser seguida em pedopsiquiatria, nem diz o acórdão em crise, a razão de ser dessas tentativas de suicídio, que, contudo, serviram para condenar o recorrente no pagamento de uma indemnização.
I.
A condenação no pagamento de uma indemnização requer que os danos sofridos pela vítima sejam causa adequada da conduta do agente, tal como decorre do art. 483º, nº 1, do CC.
J.
E, da prova que o Tribunal a quo invoca para sustentar a condenação em apreciação (prova documental e a perícia médico legal) não resulta que a conduta do recorrente seja causa da perda de autoestima, depressão reactiva, exaustão emocional, medo e insegurança que a menor invoca (art. 20º, do PIC e dado como provado), nem que as tentativas de suicídio foram provocadas pela acção do arguido AA.
K.
Saliente-se, ainda, o que consta da Nota de Alta da Urgência Pediátrica do ..., datada de ........2019, dada pela Dra. GG, ..., designadamente na parte respeitante aos AF, onde se pode ler: “(...) Refere que não tinha intenção de morrer ( encontrou todas as caixas e ingeriu 10 risperidona e 4 oxcarbazepina) e que fez IMV apenas para chamar a atenção dos pais. Terá feito toma de forma impulsiva por não sentir a atenção dos pais, fala no excesso de trabalho da mãe e no facto do pai não passar muito tempo com ela, e com ideia de que a mãe ficaria de baixa com ela em casa após ingestão (...). Nega desencadeante ou qualquer conflito antes da ingestão, explicando que foi impulsivo. (...)Mostra arrependimento face ao sucedido e fala na SNG que teve de colocar ontem e que nunca tinha colocado antese fala nos avós que terão ficado muito tristes com a ingestão de ontem. Vai repetindo que desta vez teve a certeza que as pessoas gostam dela e não vai voltar a fazer”.
L.
Como facilmente se alcança, a depressão, a ansiedade e as tentativas de suicídio, entre o baixo rendimento escolar, não são o resultado/consequência dos factos imputados ao Recorrente, como quer fazer crer o Tribunal a quo, consubstanciam antes uma chamada de atenção da menor, que sente a falta da presença e do carinho dos pais, ao ponto de colocar em causa a própria vida, para ter a certeza de que a família gosta dela.
M.
Os danos físicos e emocionais de que sofre a menor não foram provocados pela conduta do Recorrente, de resto, como decorre da documentação médica supra referenciada e do relatório de perícia médico legal, junto a fls. 761-765, do qual merece destaque a existência na família, de várias patologias do foro psiquiátrico e o facto da mãe da menor mencionar que esta sempre teve dificuldade em lidar com a frustração e tem dificuldades em manter amizades.
N.
Da concatenação da informação médica supra referenciada nada faz depender os danos alegados pela menor da conduta criminosa do recorrente, nem o Tribunal a quo estabelece tal correlação, pese embora, utilize tais meios de prova para julgar procedente o PIC e condenar o recorrente no pagamento à ofendida de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, servindo-se apenas das passagens dos documentos supra que referem que a menor tentou suicídio e que necessita de acompanhamento, razão pela qual os factos que compõem o PIC não se podiam dar como provados, pelo que, vêm impugnados, dispondo, V. Exas., de todos os elementos para alterar a matéria de facto nos termos do art. 431º, do CPP, o que ora se reclama.
O. DA AGRAVAÇÃO:
O.1
O artigo 177º., nº.1, al.b) prevê a agravação dos mencionados crimes nos termos seguintes: “As penas previstas nos artigos 163º a 165º e 167º a 176º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima se encontrar numa relação familiar ou de coabitação com o agente e o crime for praticado com aproveitamento dessa situação”.
O.2
Ora, conforme resulta da motivação de recurso e dos relatórios elaborados pela DGRSP a coabitação entre o arguido AA e a arguida BB já havia terminado anos antes, e não há qualquer relação familiar entre o arguido AA e a ofendida.
O.3
Donde, não se encontra preenchido o elemento objectivo para a agravação prevista no artº 177, nº 1, al. b).
O.4
Defende o tribunal a quo que a relação familiar se encontra cabalmente demonstrada, mas não no que se refere ao arguido AA, sendo que tal pressuposto não se encontra preenchido quanto ao mesmo.
O.5
O acórdão recorrido, reconhece que Depois de terminado o relacionamento mantido com BB, alegadamente na sequência de uma crescente degradação da relação, o 1º arguido passou a viver sozinho, no espaço antes ocupado por ambos, dizendo à DGRSP sentir-se confortável com esta situação, agora sem conflitos nem tensões.
Os sentimentos que no início diz à DGRSP ter verdadeiramente nutrido por esta companheira, ter-se-ão para a DGRSP esvaído com o tempo, à medida que ela foi apresentando comportamentos que classifica como cada vez mais bizarros e imprevisíveis.
O.6
Resulta ainda do relatório social da arguida BB, junto aos autos em 01.06.2022 com a refª citius 21185911, que O relacionamento com AA, iniciado em 2014, que após os dois anos iniciais gratificantes passou a apresentar-se violento, terá terminado sem deixar na arguida particular emoção.
O.7
O artigo 177º., nº.1, al.b) prevê a agravação dos mencionados crimes nos termos seguintes: “As penas previstas nos artigos 163º a 165º e 167º a 176º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima se encontrar numa relação familiar ou de coabitação com o agente e o crime for praticado com aproveitamento dessa situação”.
O.8
Ora, conforme resulta da motivação de recurso e dos relatórios elaborados pela DGRSP a coabitação entre o arguido AA e a arguida BB já havia terminado anos antes, e não há qualquer relação familiar entre o arguido AA e a ofendida.
O.9
Donde, não se encontra preenchido o elemento objectivo para a agravação prevista no artº 177, nº 1, al. b).
O.10
Uma breve nota quanto à aparência da ofendida, que não aparentava e continua sem aparentar a idade biológica.
O.11
Já há data dos factos, a ofendida aparentava ser bastante mais velha do que os 12 anos biológicos.
O.12
O mesmo se infere do início das transcrições quando a Srª JIC comenta a maquilhagem da ofendida, sendo corroborado quer pelos relatórios médicos dos hospitais onde a menor foi acompanhada quer da perícia médica elaborada pelo IML junto aos autos em 28.04.2021 com a refª citius 18699041 Trata-se de uma jovem com idade aparente superior à real, vestida e maquilhada de forma ostensiva, mas adequada ao género, idade e estação do Ano.
O.13
Donde presumir que o arguido AA sabia a idade da ofendida, com quem privava ocasionalmente no decurso do período em que se relacionou amorosamente com a arguida BB, é uma presunção que fica ilidida as constantes observações anotadas em todos os relatórios médicos que foram juntos aos autos, inclusive na perícia do IML.
.
P. DA VALORAÇÃO DO SILÊNCIO
P.1
Em julgamento, o arguido é informado do direito a prestar declarações e do facto de não ser obrigado a prestá-las, sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo (artigo 342.º, n.º
1).
P.2
A nossa lei processual penal consagra de forma expressa e ampla o direito do arguido a não prestar declarações e a não responder a todas ou a parte das perguntas que lhe sejam colocadas pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais e ainda a proibição de se se extrair dessa opção processual alguma consequência contrária ao interesse do arguido.
P.3
Esta proibição impede que o juiz interprete o silêncio do arguido e lhe atribua qualquer significado probatório para estabelecer na sentença a prova dos factos desfavoráveis ou que simplesmente o valore como circunstância agravante da pena.
P.4
O silêncio não é tido como um elemento de prova sujeito ao princípio da livre apreciação e muito menos como um indício ou presunção de culpa.
P.5
É também comum o entendimento de que as regras dos artigos 343.º, n.º 1, e 345.º, n.º 1, do CPP consagram uma verdadeira proibição de prova. Por isso, se o tribunal fundar a sua convicção em qualquer ilação desfavorável ao arguido extraída do seu silêncio, a decisão estará inquinada por se basear numa prova nula.
P.6
Ora, resulta da motivação do acórdão de que se recorre que A convicção do tribunal assentou na concatenação ponderada do silêncio em audiência dos arguidos e arguida quanto ao imputado, com as declarações para memória futura prestadas pela ofendida menor, com o depoimento das testemunhas ouvidas e os documentos e prova pericial dos autos( fls 34 do acórdão recorrido) e da DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA que os arguidos usaram do direito ao silêncio quanto ao imputado, donde não foi possível confissão no que respeita a qualquer dos crimes apurados, nem demonstração de arrependimento pela prática dos factos (…) Assim, ponderadas ainda as demais agravantes e as atenuantes, designadamente (…) a não confissão dos factos, (…) as exigências de prevenção geral e especial e face à moldura penal aplicável tem- se por adequado fixar as seguintes penas concreta(…).
Ficando assim demonstrado de forma cabal que o direito ao silêncio exercido pelo arguido AA foi valorado como presunção de culpabilidade, e nesta medida, determinante para a formação da convicção do tribunal de que i) foi o autor material e na forma consumada e ii) não se arrependeu da prática do acto.
Ora, tal ilação é nula por violação do princípio ínsito no arº 343 CPP, nulidade que, desde já, se invoca com todas as legais consequências.
Q. DO DEPOIMENTO INDIRECTO
Q.1
A valoração do depoimento das testemunhas de ouvir dizer depende da observância de certos procedimentos que visam a assegurar o contraditório nos depoimentos das testemunhas.
Q.2
Ressalvadas as excepções previstas na parte final do nº 1 do art. 129, o depoimento indirecto só pode ser valorado como meio de prova, se o juiz proceder à sua confirmação através da audição das pessoas a quem a testemunha ouviu dizer.
Q.3
O acórdão recorrido atribui credibilidade à testemunha EE ao mencionar que a filha relatou que foi penetrada analmente pelo arguido AA, não constando estas declarações na transcrição das declarações prestadas pela ofendida para memória futura; que o 1º ou 2ª arguidos ligaram para o 3º também participar, o que a ofendida relata é que a minha tia quando estava no quarto ligou para ele ( cfr. minutos 0.06.52.0 da transcrição); que a menor viu o 3º arguido entregar dinheiro aos primeiros, quando o que a ofendida relata é que O luís ficou a dar dinheiro à minha tia (cfr. Minutos 0.10.33.0 da transcrição) (…) eu só vi ele dar dinheiro à minha tia (cfr. Minutos 0.10.35.0 da transcrição); que aquando dos factos foi dito “tem de ser anal senão engravidamos a miúda” – das declarações para memória futura prestadas pela ofendida nada disto se infere quanto ao arguido AA e nem a ofendida relatou de forma cabal, explícita e credível se foi penetrada pelo arguido AA; Assim, dever-se-á ter por reduzida a credibilidade prestada ao depoimento de ouvi dizer que a testemunha EE trouxe aos autos.
Q.4
Assim, dever-se-á ter por reduzida a credibilidade prestada ao depoimento de ouvi dizer que a testemunha EE trouxe aos autos.
R. ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
R.1
O erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto.
R.2
Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
R.3
No erro notório da apreciação da prova está em causa, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto.
R.4
E face ao que vimos expandindo, dúvidas não restam que da prova produzida, quer testemunhal, documental ou pericial não poderiam ter sido dado como provados, como foram, os factos nºs em 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 19,20, 22 e 26 que não estão provados.
R.5
Porquanto da prova produzida não resulta que os factos ali dados como provados tenham acontecido daquela forma.
S. FALTA DE EXAME CRITÍO DA PROVA E OMISSÃO DE FUNDAMENTAÇÃO
S.1
O Acórdão recorrido, desde logo, enferma de nulidade por falta de exame crítico das provas, violando, assim, o disposto no art. 374º, nº 2, do CPP, segundo o qual, “Ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
S.2
A fundamentação exigida pelo artigo supra referenciado não consiste na mera enunciação dos meios de prova utilizados, salientando que são credíveis, pois que, para que seja possível o recurso quanto á legalidade da decisão no domínio probatório, importa que a motivação do juízo em matéria de facto conste da decisão.
S.3
O acórdão em crise não apresenta o exame crítico na motivação da decisão de facto, donde resulta não haver qualquer possibilidade de controlo, pela via do recurso, da decisão da matéria de facto, nem mesmo da sua conformidade com as disposições legais em matéria de prova.
S.4
Pelo que, quando o Tribunal de Primeira Instância se limita a enumerar todos os meios de prova, salientando que se mostraram credíveis, quando se socorre do silêncio do arguido, quando se baseia numa prova testemunhal que consistiu em depoimentos indirectos, quando se serve quase em exclusivo das declarações para memória futura da menor fazendo questão de mencionar que as respostas da vítima não foram induzidas ou sugeridas pela Sra. Dra. Juiz, quando faz menção ao que consta do relatório pericial sem estabelecer um qualquer nexo de causalidade entre os factos imputados ao arguido AA e os danos que a vítima alega ter sofrido, não está, com o devido respeito, a fazer um exame crítico da prova, ou seja, não exterioriza o processo racional que serviu de base àquela decisão, está, salvo melhor opinião, tão somente a enunciar todo o material probatório que observou, no entanto, sem o correlacionar com os factos e com a conduta do Recorrente de modo a que se perceba o processo lógico que subjaz á condenação em apreço.
S.5
Perante a evidente falta de exame crítico e omissão de fundamentação em matéria de facto, o acórdão recorrido é nulo, por violação do disposto nos artigos 374º, nº 2 e 379º, a), ambos do CPP. (…).»
I.2.2 - Recurso interposto pela arguida BB:
(…)
I. A BB veio condenada:
a. Na pena de 4 (quatro) anos de prisão pelo crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pe art. 171º, n.º 1, 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal;
b. Na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, pelo crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art. 171º, n.º 3, al. b), 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal;
c. E, na pena de 6 (seis) meses de prisão, pelo crime de coacção na forma tentada, p. e p. pelo art. 154º, nº 1 e nº 2 do CP, em cúmulo jurídico, o tribunal quo condenou a aqui Recorrente na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.
II. Não se conformando com tal decisão veio dela interpor recurso, desde logo, invocando o vício do art. 379º, nº 1, b), do CPP do qual resulta a nulidade da sentença quando exista condenação por factos diversos dos descritos na acusação.
III. Atente-se, por isso, no ponto 30 do libelo acusatório “Desde então, por várias vezes, e em datas não concretamente apuradas, os Arguidos AA e BB disseram á menor que não contasse a ninguém o sucedido e que se o fizesse, a matavam”.
IV. Confrontando com a matéria de facto provada, concretamente, no ponto 25, o Tribunal á quo deu como provado que a BB“ (...) através de gestos, “disse” à menor que não contasse a ninguém o sucedido e que se o fizesse, a matava.”, e, bem assim, com matéria de facto não provada, no seu ponto 17, o Tribunal á quo não deu como provado que “Os arguidos BB e AA perseguiam DD através de mensagens via Instragram/Facebook, em tom ameaçador com as seguintes expressões “ amanha já tens uma surpresa”; “miúda vais morrer”.
V. Ressalta, desde logo, que a referência a “gestos” que indicarão que a Recorrente BB disse á DD para não contar a ninguém o sucedido e que se o fizesse a matava, foi sempre omitida e nunca antes referenciada pela Assistente, sendo tal facto omisso da acusação, que, de resto, a este propósito, é bastante geral e abstacta, pois não identifica quem disse o quê, onde, e em que altura.
VI. Impõe-se, por isso, fazer alusão ás declarações para memória futura, prestadas pela DD, dois anos após a prática dos factos, e que foram gravadas, ficheiro 20210701102557_4254528_2871337 *wma, encontrando-se transcritas nos autos, com data de 28.03.2022, com a referência no 20749759:
Minuto 0.10.45 – “Os meus tios no dia seguinte parece que não tinha acontecido nada. Não sei se eles são malucos, sinceramente! Parece que não tinha acontecido nada, eu dormi no sofá. Chorava baba e ranho e eles continuavam-me a bater, eu sofri isto durante uns dois, três anos porque era ameaçada, todos os dias eu recebia chamadas, todos os dias se eu contasse matavam a minha família ...e eu não consegui contar”..
VII. Todavia, são estes “gestos”, que, volvidos 8 (oito) anos sobre a prática dos factos, e, até então nunca mencionados ou referidos, e que por isso mesmo, não constam enunciados na acusação, consubstanciam a condenação da BB como autora de um crime de coação na forma tentada.
VIII. Ora, com o devido respeito, e, salvo melhor opinião, não se pode aceitar que a Recorrente seja condenada por factos não descritos na acusação, sobretudo, num processo penal que tem estrutura essencialmente acusatória (art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa), o que pressupõe uma correspondência entre a acusação e a condenação, e que aqui não sucedeu, aliás, os factos que se dão como provados revestem uma nova versão do tal ponto 30 da acusação, embora mais composta e precisa, sendo que o meio probatório subjacente é o mesmo, ou seja, as declarações da Assistente.
IX. O que nos leva a concluir que ela mentiu, atentas as contradições das declarações, e as tais memórias criadas de forma espontânea ou induzidas por terceiros, tal como é salientado no acórdão recorrido.
X. Assim, estando perante uma condenação por factos distintos dos constantes da acusação, o acórdão é nulo nesta parte, devendo ser reenviado ao tribunal de julgamento, atento o disposto no art. 379º, nº 1, b), do CPP, para que se dê conhecimento á BB de uma eventual alteração substancial ou não substancial de factos ( art. 358º e 359º do CPP), só assim se assegurando o seu direito ao exercício do contraditório, até mesmo , porque em abstracto, poderão estes factos enquadrarem-se no crime de ameaça, e há que apurar o preenchimento ou não dos elementos do tipo, tendo a Recorrente tem direito á sua defesa.
XI. A BB também recorre da matéria de facto provada, razão pela qual impugna a decisão ao abrigo do disposto, no art. 412º,nº 3, destacando, como matéria relevante para a apreciação do presente recurso a factualidade dada como provada sob os pontos 10, 11, 20 ,25, 26, 29, 30, 31 e 33, e toda a matéria do pedido de indemnização civil ( designadamente, a que consta dos pontos 71, 72, 75, 76, 77, 79 e 80) que no nosso entender, foi incorrectamente julgada, na medida em que, a prova produzida em sede de audiência e julgamento não permitiu sustentar tais factos, implicando, consequentemente, decisão diversa, alteração que nesta sede se reclama, com todas as legais consequências, ao abrigo do disposto no art. 431º, do CPP.
XII. A propósito da matéria dada como provada nos pontos 10, 11 e 20, a qual conduziu á condenação da Recorrente pela prática de uma crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelo art. 171º, nº 3, b), do CP, apraz discordar do tribunal á quo, porquanto, não resulta do teor do acórdão recorrido que a Assistente tenha sido amarrada, ou que a Recorrente tenha exercido sobre a DD qualquer acto que a imobilizasse, no sentido de a obrigar, ou, se quisermos, de a forçar a assistir, ou a ver, os actos de natureza sexual praticados pela Recorrente com o AA
XIII. Dá-se como provado, no ponto 10 da matéria de facto provada que: “Nessa altura, os arguidos BB e AA dirigiram-se para a cama e ordenaram à menor que permanecesse no quarto e que olhasse para eles”.
XIV. Por conseguinte, do ponto 11 resulta que: “Acto contínuo, a arguida BB colocou-se de joelhos, na cama, enquanto o arguido AA se colocou por detrás e introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, fazendo movimentos de vai e vem, assim mantendo relações sexuais de cópula completa na presença da menor”.
XV. Sendo que, no ponto 20 é dado como provado que: “Quando a menor entrou no quarto, os arguidos CC, BB e AA, continuaram a manter relações sexuais e a arguida BB a certa altura estava despida, com os joelhos e as mãos apoiadas na cama, e um dos outros arguidos estava atrás da mesma, mantendo relações sexuais de cópula completa”, daqui resultando á saciedade que a menor entrou e saiu do quarto a seu belo prazer, pelo que, tinha liberdade de movimento, não se encontrando presa, submissa e, bem assim, obrigada, a assistir ou a ver o que quer que fosse, não havendo, nesta senda, uma actuação da Recorrente sobre ela.
XVI. Sustenta o tribunal á quo que formou a sua convicção, no que ao crime de abuso sexual respeita, nos pontos em comum das duas declarações da assistente DD, conjugado com a demais prova, sendo certo que, além da DD, quem lá esteve foram os Arguidos, e estes exerceram o seu direito ao silêncio.
XVII. Pelo que, será de invocar as declarações prestadas pela DD para memória futura (dois anos após a prática dos factos), e delas não decorre quem a obrigou a permanecer no quarto para assistir a actos sexuais, ou que palavras foram proferidas para a obrigar a ali ficar, nem a Assistente descreve de que forma é que a fizeram permanecer, contra a sua vontade, no quarto, ou de que modo é que a mantiveram imobilizada no quarto, para que o Tribunal á quo considerasse provado que houve uma ordem nesse sentido, e que, desta forma, a DD tivesse sido obrigada a ver a tia e o companheiro desta a manterem relações sexuais, nada se diz sobre a forma de actuação da Recorrente sobre a DD, sendo certo que, tal como consta do ponto 20 da matéria de facto dada como provada, já aqui transcrito, percebe-se que a Assistente entrou e saiu, livremente, do quarto.
XVIII. As declarações a que nos referimos são as que infra se transcrevem: Minuto 0.09.58 ( Juiz) – Mas eles também faziam sexo com ela? Minuto 0.10.00 (Testemunha) – Sim. Também faziam., Minuto 0.10.02 ( Testemunha) – E obrigaram-me a ver, Minuto 0.10.03 (Juiz) – Hum, Minuto 0.10.04 ( Testemunha) – Amarraram-me a uma cadeira.
XIX. Todavia, das declarações agora prestadas pela DD em sede de audiência e discussão de julgamento não há menção ao facto dela ter sido amarrada a uma cadeira, tanto que, a esse propósito, nada consta na matéria de facto dada como provada, nos factos dados como não provados, tal também não vem descrito, e na douta acusação não se descreve que a Assistente esteve amarrada a uma cadeira.
XX. Ademais, justificando as contrariedades nas declarações da Assistente, é esclarecido pelo Tribunal á quo, aquando da explicação para formação da sua convicção, no que ao crime de abuso sexual, p. e p. pelo art. 171º, nº 3, b) respeita, na vertente de submeter a DD a assistir a actos sexuais, cfr. página 54, que, “Pese embora a assistente DD tenha referido que os arguidos bateram-lhe com uma panela, uma extensão, cinto, desferiram-lhe estaladas e socos, também não se acreditou que tivesse sido agredida dessa maneira, pois não terá ficado com marcas no corpo, o que não se afigura muito plausível numa criança de apenas de 12 anos de idade e, ademais, os factos ocorreram no Verão, estação em que o vestuário permite ver mais o corpo e nenhum familiar se apercebeu de qualquer marca.”
XXI. Nesta senda, impõe-se também chamar á colação a prova pericial que foi carreada para os autos, designadamente, os relatórios juntos ao processo, por peritos e médicas que assistiram a DD, designadamente:
A. Relatório da Perita HH, junto aos autos em 18.04.2021, de onde resulta, para o que aqui importa neste momento, que: “Durante o jantar percecionou algumas situações que a deixaram inquieta, como comentários, toques ou olhares que não consegue descrever e que na altura, dada a sua ingenuidade, não se apercebeu do que estaria a acontecer. A DD, referiu ter sido conduzida até o quarto dos tios onde foi despida e posteriormente envolvida em práticas sexuais com coito vaginal e sexo oral com os intervenientes”.
B. Relatório Dra. II ( 15.02.24) – resulta que “Pelo que consta nos registos, na consulta de 25/3 partilhou que tinha contado ao primo, filho de uma tia-avó materna, que teria sido vítima de abuso sexual por parte da mãe deste e do seu companheiro”.
XXII. Concatenada a prova supra referenciada, é nossa convicção que não resultou provado que a Recorrente tivesse actuado sobre a Assistente, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objectos pornográfico, o que nos leva, forçosamente a concluir que inexistem elementos probatórios que confirmem a matéria dada como provada nos pontos 10, 11 e 20.
XXIII. Daqui decorre que, não se logrou provar o crime de abuso sexual de menor na vertente a que alude a alínea b), do nº 3, do art. 171º, do CP, e que implica, necessariamente, uma actuação sobre o menor.
XXIV. Ora, a actuação sobre o menor mais não é do que, satisfazer com ele ou através dele, por meio de processos de características sexuais, interesses ou impulsos de relevo, que todavia não têm, estes, de possuir necessariamente natureza sexual, mas podem ser de natureza diferente, nesse sentido, vide Comentário Conimbricense do Código Penal, de Jorge Figueiredo Dias, art. 171º, nº3, b), acrescentando o Professor que, a participação do menor se basta a qualquer título, na conversa, na leitura, no espectáculo ou na observação do objecto pornográfico, pelo que, o menor serve de modelo, actor ou participante.
XXV. Com efeito, não resultando provada a actuação da Recorrente sobre a DD, porquanto, a Assistente entrava e saia do quarto quando e como queria, não se logrou provar o elemento objectivo do tipo, impondo-se a absolvição da Recorrente quanto ao tipo de ilícito previsto no art. 171º, nº3, b) do CP , também não podendo integrar a matéria de facto provada, a que consta dos pontos, 26, 29, 30 e 33 , pelas razões anteriormente expostas e demonstradas.
XXVI. No que concerne á matéria de facto provada constante do ponto 25 – “Mas antes de a entregar à mãe a arguida BB disse à DD que não contasse à mãe o sucedido e que se o fizesse, a matava e desde então, por várias vezes, e em datas na concretamente apuradas, a arguida BB, através de gestos, “disse” à menor que não contasse a ninguém o sucedido e que se o fizesse, a matava.” Sempre se dirá que não encontra sustentação nos meios probatórios valorados e tidos em conta pelo tribunal á quo na formação da sua convicção, o mesmo sucedendo com a matéria que resulta provada no ponto 31 – “Agiu a arguida BB de forma livre, deliberada e livremente, com o propósito de evitar que a menor relatasse a terceiros o sucedido, mediante a ameaça de crime contra a vida, resultado que não atingiu por motivos alheios à sua vontade, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei”.
XXVII. Note-se que a menor foi entregue pela tia e pelo companheiro desta, matéria essa dada como provada no ponto 24, do qual resulta que “No dia seguinte, os arguidos AA e BB levaram a menor ao emprego da mãe”.
XXVIII. Todavia, a Recorrente e o AA exerceram o seu direito ao silêncio, garantido no art. 32º,nº1, da CRP e realizado no art. 61º, nº1, d) e 343º, nº 1, ambos do CPP, pelo que, mais uma vez, a única pessoa a presenciar os “alegados” gestos foi a Assistente.
XXIX. Consequentemente, o único elemento a valorar para se fazer prova destes gestos são as declarações da DD.
XXX. Conforme supra explanado, foram nestas declarações, criticamente apreciadas, que o Tribunal á quo se apoiou para dar como provada a matéria do ponto 25.
XXXI. Não obstante, reitere-se que, nem na douta acusação se refere que a Recorrente fez gestos ( passar a mão pelo pescoço), nem das declarações para memória futura resulta que a Assistente tenha descrito que a tia gesticulou um corte no pescoço para a obrigar a ficar em silêncio.
XXXII. Ademais, se por um lado a DD não se manteve em silêncio, razão pela qual este processo existe, por outro, ela não nunca descreveu que a tia lhe fazia gestos – passar a mão pelo pescoço – seja na altura em que a Recorrente e o AA levaram a Assistente até á mãe, seja posteriormente, em contactos/visitas, pois que, a DD e a mãe, continuaram a frequentar a casa da tia.
XXXIII. Apoiamo-nos, a esse propósito, nas declarações para memória futura da DD, designadamente, nas seguintes passagens transcritas nos autos: Minuto 0.10.45 (testemunha) – “(...) Chorava baba e ranho e eles continuavam-me a bater, eu sofri isto durante uns dois, três anos porque era ameaçada, todos os dias eu recebia chamadas, todos os dias se eu contasse matavam a minha família.. e eu não consegui contar”. Minuto 0.11.41 ( testemunha) – Eles telefonaram á minha mãe, a minha mãe lembra-se também, a dizer que tinham um almoço com o filho JJ..” Minuto 0.11.49 (testemunha) – “que é o filho dela. E de repente desapareceram. Deixaram-me ainda distante do trabalho da minha mãe e eu tive de andar a pé aquilo tudo, até o trabalho da minha mãe(..)”.
XXXIV. Ora, é manifesta a ausência a qualquer gesto feito pela Recorrente, nem esta imputa á tia a autoria das ameaças por telefone.
XXXV. Nesta senda, o tribunal recorrido até dá como não provado, no ponto 17, da matéria de facto não provada, que “Os arguidos BB e AA perseguiram DD através de mensagens via Instagram/Facebook, em tom ameaçador com as seguintes expressões “amanhã já tens uma surpresa”, “miúda vais morrer”.”
XXXVI. Aqui chegados, forçoso é concluir que da prova em que se alicerçou o Tribunal recorrido para condenar a Recorrente na prática de um crime de coação na forma tentada, não se retira de forma inequívoca que a Tia quando foi levar a DD á mãe, a obrigou a não contar a ninguém o que se teria passado, dizendo que se o fizesse a matava e que até gesticulou a ameaça de morte ao passar a mão pelo pescoço, pois que, a alusão a “gestos”, só surgiu aquando da repetição do julgamento, que teve lugar 8 (oito) anos após os factos, cremos nós, por isso mesmo, tratar-se evidentemente, de uma memória induzida por terceiros, ou até, quiçá, criada pela própria Assistente.
XXXVII. Destarte, atentas as contradições entre o que disse a menor em sede de declarações para memória futura ( prestadas num momento mais próximo da data dos factos e por isso, mais susceptível de não incorrer em lapsos de memória, por ter mais presente aquilo que terá alegadamente vivenciado) e o que veio a dizer volvidos 6 ( seis) anos, sobre as anteriores declarações, em sede de julgamento, tendo o tribunal á quo a plena consciência de que este novo discurso da menor poderia estar minado de memórias criadas espontaneamente ou induzidas por terceiro, não se pode aceitar que se considerem provados os factos descritos no ponto 25 da matéria de facto provada, nunca antes narrados pela própria Assistente.
XXXVIII. Por conseguinte, não se provando, a esse respeito, quem disse o quê, como e quando, e, ainda, se houve ou não houve gestos, impõe-se, consequentemente uma decisão diversa, da que resultou do acórdão recorrido a propósito da imputação á Recorrente do crime de coação na forma tentada p. e p. pelo art. 154º, nº 1 e nº 2, do CP.
XXXIX. No que tange ao pedido de indemnização civil, o mesmo foi julgado procedente, quer quanto ao pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais ( no valor de €20.000,00), como relativamente ao pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais ( no montante de €317,09), fundamenta o Tribunal a quo tal condenação nos factos provados que integram a prática pela Recorrente e pelo AA, de dois crimes de abuso sexual de crianças e ainda um crime de coação na forma tentada, quanto à Sra. D. BB, na pessoa da Assistente, pela sua gravidade, pelas sequelas e sofrimento causados, nos termos considerados provados.
XL. O tribunal á quo encontrou apoio para tal condenação nas declarações da mãe da Assistente, bem como na vasta documentação clínica junta aos autos, seja por iniciativa oficiosa do Tribunal, como a requerimento dos Arguidos.
XLI. Em relação ao depoimento da mãe da DD, é de relembrar que, sendo um depoimento indirecto, ao abrigo do art. 129º, nº 1, do CPP, não pode, naturalmente, ser validado e valorado com tamanho peso, visto que, esta não presenciou todos os factos, contou aquilo que a filha lhe relatou e, mesmo assim, apresentou contradições com o que a DD disse, a título de exemplo, resulta do acórdão recorrido, quando o Tribunal se encontra a explicar como formou a sua convicção, que “No que tange às divergências entre o referido por DD e sua mãe, quanto à forma como foi efectuado o telefonema na noite em que os factos ocorreram – videochamada ou simples chamada e quem teve a iniciativa de o fazer-, são pormenores que é natural não se recordarem, apenas podendo ter por certo que a arguida BB terá dito à mãe da assistente ou a DD disse a sua mãe, a mando da arguida, que se iam deitar cedo, com a finalidade da mãe da DD não voltar a telefonar nessa noite”,
XLII. Também não nos podemos alhear ao facto daquela senhora, até á altura da repetição do julgamento, ter tido oportunidade de ler não só os relatórios de perícia médico legal, como as peças processuais apresentadas pelos vários intervenientes no processo, as decisões anteriores, além de, como foi Assistente até ao momento em que a filha atingiu a maioridade e esteve representada por advogado, recebeu, evidentemente, aconselhamento jurídico, o que poderá ter levado aquela testemunha a preparar a sua narrativa, na direção que lhe convinha.
XLIII. Convém ainda ressalvar que, não sendo a Sra. testemunha EE dotada de conhecimentos médicos e/ou técnicos, não pode estabelecer nexos de causalidade entre o estado emocional e psicológico da filha e os alegados factos pelos quais aquela terá passado.
XLIV. No que respeita á documentação médico-legal junta aos autos e que sustentou, fortemente, a condenação da Recorrente no pagamento de uma indemnização á menor, quer por danos patrimoniais, quer por danos não patrimoniais, entendemos que, por si só, não podem validar tal condenação, ora atente-se no que refere o acórdão recorrido, designadamente quando se diz:
“Aliás, as diversas tentativas de suicídio e as crises de ansiedade e pânico da DD são referidas e resultam da vasta documentação clínica junta aos autos, de fls. 167, 173, 174, 245 a 246, 249, 250, 290 a 580, 731 a 740, 1465 a 1477: em 07.08.2018, ingestão de corpo estranho; de 19.11.2018 a 21.11.2018 ficou internada intoxicação voluntária medicamentosa; em 11.12.2018 tomou medicamentos “não para suicidar mas para chamar a atenção da mãe”;12.12.2018, tomou medicamentos na escola - ... 2019, tomou comprimidos e desde ... de 2018 verbaliza que quer morrer; ........2019 – sobredosagem e envenenamento; ........2019 – intoxicação medicamentosa voluntária; ........2019 – sobredosagem e envenenamento; ........2020 – ideação suicida ansiosa; ........2020 – auto agressão (tentou-se estrangular a casa de banho do hospital); ........2020 – ingestão voluntária de lâminas; em ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2020, teve crises de ansiedade e algumas de pânico.
XLV. Da nossa perspectiva, é de todo relevante perceber e apurar o factor desencadeador das tentativas de suicido e dos ataques de pânico e ansiedade, facto de resto ignorado pelo Tribunal recorrido, porquanto, só mediante a prova inequívoca de que esse comportamento da DD foi provocado pela conduta da Recorrente, e que de outro modo, a Assistente não teria praticado estes actos, é que se encontra justificada a procedência do pedido de indemnização, nos termos do disposto no art. 483º, nº 1, do CC, e, legitimada a responsabilidade da Recorrente.
XLVI. Atente-se no que consta, de forma clara, evidente e sem margem para dúvidas, dos documentos médicos, designadamente, da Nota de Alta da Urgência Pediátrica do ..., datada de 11.12.2018, pela Dra. KK, ..., na qual se pode ler que “a menor teve uma retenção no 6o ano por baixo rendimento escolar” e revela querer estar mais tempo com a mãe, pois afirma “quero estar mais tempo com ela” verbalizando tristeza e raiva (..)” e ainda se pode ler “ansiedade reactiva em contexto escolar”.
XLVII. Repare-se, também, na Nota de Alta da Urgência Pediátrica do ..., datada de ........2019, dada pela Dra. LL, ..., onde se pode ler na parte respeitante a: 1. “HDA (...) Hoje a mãe terá encontrado uma faca na mala da DD, razão pela qual se dirigiu ao ... . A mãe relaciona a alteração do comportamento com o regresso ás aulas, depois de ter estado 3 dias em casa com amigdalite “ , 2. “Na observação da adolescente :Adolescente com idade aparente superior á real .Fácies triste. Vigil, calma e colaborante. (...) A DD relaciona a IMV com o facto de ter estado novamente com quem teve conflitos e de quem foi vítima de bullying. Verbaliza vontade de morrer, referindo ter colocado na faca na mala na passada 6of para se matar na escola, espetando-a no peito.”
XLVIII. Saliente-se, ainda, o que consta da Nota de Alta da Urgência Pediátrica do ..., datada de ........2019, dada pela Dra. GG, ..., designadamente na parte respeitante aos AF, onde se pode ler:
“(...) Refere que não tinha intenção de morrer ( encontrou todas as caixas e ingeriu 10 risperidona e 4 oxcarbazepina) e que fez IMV apenas para chamar a atenção dos pais. Terá feito toma de forma impulsiva por não sentir a atenção dos pais, fala no excesso de trabalho da mãe e no facto do pai não passar muito tempo com ela, e com ideia de que a mãe ficaria de baixa com ela em casa após a ingestão (...). Nega desencadeante ou qualquer conflito antes da ingestão, explicando que foi impulsivo. (...)Mostra arrependimento face ao sucedido e fala na SNG que teve de colocar ontem e que nunca tinha colocado antes e fala nos avós que terão ficado muito tristes com a ingestão de ontem. Vai repetindo que desta vez teve a certeza que as pessoas gostam dela e não vai voltar a fazer”.
XLIX. Em 06.05.2019, e, de acordo com o aditamento nº 1 á participação com o NPP 130958/2019, entregue nos autos com a referência nº 14642585, a DD já era acompanhada por psicólogo e já se encontrava sinalizada pela CPCJ da ... por “furtos e agressões por parte de colegas da escola”.
L. Por seu turno, atente-se no Relatório de Perícia Médico-Legal – psiquiatria – de fls. 761 a 765 – relativo ao exame realizado em ........2021, pela perita médica Dra. HH, do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses de Lisboa, do qual resulta que:
LI. Existem na família antecedentes de várias patologias do foro psiquiátrico, designadamente, “Irmão de 10 anos com suspeita de Perturbação do Espectro do Autismo; Tio avô paterno com problema de deficiência mental; Tia avó paterna com problemas comportamentais, e a tia avó materna ( arguida neste processo) que sofre de esquizofrenia e doença bipolar”.
LII. A mãe considera que a filha tem dificuldade em manter amizades e não sabe lidar com a frustração “ A mãe descreveu a DD como uma jovem muito frágil e intensa nas suas emoções, o que terá motivado as várias tentativas de suicídio na sequência de sentir-se pouco apoiada ou traída pelas pessoas da sua confiança (...) Uns meses após os eventos, a DD confessou à mãe o sucedido junto dos tios. Posteriormente, a DD referiu também que o primo (filho destes familiares e que anteriormente as apoiava), também teve comportamentos abusivos de cariz sexual com ela. (...) No entanto, tem dificuldade em assumir compromissos e cumprir ordens e horários. A mãe referiu que a DD é uma jovem sociável, fazendo amizades com facilidade, mas tendo dificuldade em mante-̂las ao longo do tempo. “
LIII. Do exame objectivo ressaltamos a parte em que a DD refere ter sofrido abusos por parte do primo uns tempos depois, o primo ter-se-á aproveitado da vulnerabilidade da DD para abusar dela, referindo a jovem ter tido relações sexuais com ele em várias ocasiões.
LIV. Á pergunta “A menor relata e demonstra comportamentos sexualizados que denunciem ter sido vítima de abusos sexuais por parte dos arguidos, os seus tios AA e BB e do arguido CC? , foi respondido, “Da observação realizada, a DD não revelou nenhum tipo de alteração do comportamento durante a avaliação pericial que sugira ter sido vítima de abuso sexual. Nem todos os abusos prossupõem sintomatologia associada, sendo também esta, muito díspar entre as crianças e jovens. “
LV. À pergunta “A menor revela stress pós traumático”, foi respondido que, “A DD apresenta também traco̧s desadaptativos da Personalidade tipo Borderline tornando a DD uma jovem que se autogere por impulso na procura da sua satisfação pessoal imediata. Este tipo de problemáticas potenciam relacionamentos instáveis assim como comportamentos de risco. Na génese destas problemáticas existe frequentemente uma falha emocional por parte dos cuidadores primários. Considera-se necessário que a jovem mantenha o acompanhamento psicoterapêutico e psiquiátrico”.
LVI. Ora, o supra exposto no relatório melhor identificado, encontra correspondência nas declarações para memória futura da DD quando ela refere que foi abusada pelo primo durante um ano e sete meses, cfr. minuto 0.12.15 ( testemunha) “Contei ao meu primo MM, que abusou de mim durante um ano e sete meses”.
LVII. Com efeito, se os alegados factos com os tios ocorreram numa noite do ... de 2017, e se após essa noite, é a própria DD que relata ter sido abusada durante um ano e sete meses pelo primo, tendo ocorrido a primeira ida ao médico ocorre em ...de 2018, trata-se da altura coincidente com o fim dos abusos do primo que se prolongaram no tempo, ao contrário do episódio com a tia e o AA que foi caso único e pontual ( uma noite).
LVIII. Por outro lado, é de reforçar que a DD já tinha manifestado junto do corpo médico que sentia a falta da mãe, atente-se na Nota de Alta da Urgência Pediátrica do ..., datada de 11.12.2018, pela Dra. KK, ..., é que “a menor teve uma retenção no 6o ano por baixo rendimento escolar” e revela querer estar mais tempo com a mãe, pois afirma “quero estar mais tempo com ela” verbalizando tristeza e raiva (..)” e ainda se pode ler “ansiedade reactiva em contexto escolar”, pelo que, faz sentido o que é dito pela perita HH, quanto á falha emocional da Assistente com origem nos cuidadores primários, cfr. o que se transcreveu no art. 70º.
LIX. Não se pode também desvalorizar a informação clínica da Dra. II, ... no ..., que começou a seguir a DD em ..., cfr. relatório junto aos autos em ........2024, de onde destacamos o seguinte:” Comecei a acompanhar a DD em ... de 2019. Nessa altura houve uma melhoria nos primeiros meses, com posterior agravamento a partir de ... de 2019. Anos mais tarde percebemos que este agravamento estaria provavelmente relacionado com outra situação abusiva a que estava exposta, mas que não tinha conseguido partilhar com a família e/ou os técnicos nem pedir ajuda. Ao longo do seguimento com a DD destacou-se sempre esta dificuldade em verbalizar o que acontecia/sentia/pensava, usando estratégias inconscientes para libertar tensão ( sintomas conversivos) ou ingestões medicamentosas voluntárias quando “ já não aguentava mais”. Esta dificuldade parece prender-se com experiências de desprotecção que foi tendo ao longo da vida.(...) Destaca-se, ainda, que a nível escolar houve um impacto muito significativo. A DD teve um aproveitamento regular até ao 6º ano de escolaridade. Teve a primeira retenção no 6º ano, tendo concluído o 6º ano no ano lectivo seguinte, mas nunca mais conseguiu prosseguir a escolaridade (...)”
LX. NN, desempenha funções de técnica superior na ..., teve intervenção no relatório junto aos autos a fls. 712 e 713. (..)A DD tinha comportamentos autolesivos, não ia à escola, tinha muitas crises de ansiedade, desmaiava e a escola tinha de chamar o INEM. (...) Os comportamentos auto lesivos já eram reportados em 2019. Referiu que a DD foi vítima de bullying na escola, mas também era agressora. Fisicamente a DD era uma jovem “grande” e investia muito na sua imagem, na roupa e cabelo. Apenas tem o 6.º ano de escolaridade. A mãe da DD referiu uma situação em casa de um familiar e que só após muito tempo a DD lhe contou e também relatou outra situação de abuso com um primo.
LXI. De acrescentar ainda que a Dra. OO ,..., no relatório junto em ........2029 fala em “quadro de ansiedade”, sem queixas associadas a alegados factos praticados pelos Arguidos.
LXII. Ponderada a matéria constante da prova documental aqui referenciada, não se consegue estabelecer um nexo causal entre os danos físicos e morais da Assistente e a conduta da Recorrente, a ponto de se poder concluir, de forma inequívoca que, não fosse a actuação da tia, a DD era uma menina equilibrada, sem comportamentos impulsivos e auto lesivos, que visam chamar a atenção, não teria reprovado o 6º ano, não teria mudado várias vezes de escola e não se envolvia em conflitos com as colegas de escola.
LXIII. Em concreto, não resulta uma correlação entre os danos sofridos pela Assistente e a conduta da tia, ou seja, nenhuma das peritas e/ou médicas, relata que a tal ansiedade, as tentativas de suicídio e o fraco aproveitamento escolar, são causa directa da actuação da Recorrente, elemento vinculativo para que se possa imputar á Tia a responsabilidade pelo pagamento de uma indemnização, ao abrigo do art. 483º, do CC.
LXIV. Destarte, a Dra. HH atribui os comportamento de risco ( tentativas de suicídio e ingestão medicamentosa voluntária), a uma falha emocional dos cuidadores primários, defendendo a necessidade da DD manter acompanhamento psiquiátrico, quando refere no relatório supra identificado que “A DD apresenta também traços desadaptativos da Personalidade tipo Borderline tornando a DD uma jovem que se autogere por impulso na procura da sua satisfação pessoal imediata. Este tipo de problemáticas potenciam relacionamentos instáveis assim como comportamentos de risco. Na génese destas problemáticas existe frequentemente uma falha emocional por parte dos cuidadores primários. Considera-se necessário que a jovem mantenha o acompanhamento psicoterapêutico e psiquiátrico”.
LXV. Por seu turno, a DD também confessa á Dra. LL que ingeriu medicamentos como forma de escape á situação de bullying que vivenciava na escola , razão pela qual esta ... relata no relatório já supra identificado que “ (...) A DD relaciona a IMV com o facto de ter estado novamente com quem teve conflitos e de quem foi vítima de bullying. Verbaliza vontade de morrer, referindo ter colocado na faca na mala na passada 6of para se matar na escola, espetando-a no peito.”
LXVI. Ressalta, do vasto suporte clínico, duas causas devidamente especificadas como geradoras da ansiedade, tentativas de suicídio e ingestão voluntária de medicamentos, são: a falha emocional por parte dos cuidadores primários ( a DD sempre referiu ter necessidade de passar mais tempo com a mãe e de ter atenção da mãe), e os problemas na escola relacionados com a situação de bullying.
LXVII. No que concerne aos abusos que a Assistente sofreu durante mais de um ano pelo primo MM, é dito que estes determinaram um agravamento do estado clínico da DD, vide o relatório já supra identificado da Dra. II, ..., de onde se destaca a seguinte afirmação “Comecei a acompanhar a DD em .... Nessa altura houve uma melhoria nos primeiros meses com posterior agravamento a partir de ... de 2019. Anos mais tarde percebemos que este agravamento estaria provavelmente relacionado com outra situação abusiva a que estava exposta”.
LXVIII. Aqui chegamos, forçoso será concluir que, os factos dados como provados respeitantes ao pedido de indemnização civil, mormente, os descritos nos pontos 71, 72, 75, 76, 77, 79 e 80, em face dos elementos probatórios em análise, e aqui identificados, apreciados e transcritos, não podem ser considerados provados, pelo que, vêm impugnados, dispondo V. Exas., de toda a prova para alterar a matéria de facto provada, nos termos do art. 431º, do CPP, o que ora se reclama, daqui resultando decisão diversa da que consta no acórdão recorrido, o mesmo é dizer que, a Recorrente deverá ser absolvida do pagamento de uma indemnização á Assistente.
LXIX. Não passando despercebido o facto desta ter apresentado apenas uma factura no montante de €317,09 gastos em medicação ( cfr. ponto 74 dos factos provados), quando pelas médicas que observaram a Assistente e cujos relatórios aqui invocamos e reproduzimos, vinham dizendo que a DD carece de manter acompanhamento psicoterapêutico e psiquiátrico.
LXX. É convicção inabalável da Recorrente que o Tribunal á quo violou grosseiramente todo o comando normativo dos artigos 40º, 70º ,71º, nº 1 e nº 2 e 73º, todos do CP.
LXXI. Relembre-se que, em cumulo jurídico, foi aplicada á Recorrente a pena única 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.
LXXII. É sabido que, de acordo com o estipulado no artigo 71o do CPP, a medida concreta da pena a aplicar a um Arguido deve ser fixada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, bem como todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo do crime, deponham a favor ou contra o agente.
LXXIII. As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem, assim, contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
LXXIV. No que tange ao agente, o legislador manda atender às condições pessoais do mesmo, à sua condição económica, à gravidade da falta de preparação para manter uma conduta ilícita e a consideração do comportamento anterior ao crime.
LXXV. In casu, para a determinação da medida concreta da pena aplicada à Recorrente, o Tribunal á quo teve em especial consideração o elevado grau das razões de prevenção geral, atenta a natureza do bem jurídico protegido, bem como, a considerável ilicitude dos factos em função da agravação do n º4 e do n º7 do art. 177º, do CP e o grau de culpa do Recorrente.
LXXVI. A favor da Recorrente, entendemos que merece destaque, pese embora o Tribunal recorrido não se tenha apoiado nisso, a sua inserção familiar e social, a estabilidade da vida amorosa, o cumprimento da terapêutica farmacológica prescrita e a ausência de noticia da prática de novas condutas punidas por lei, tudo factores que, salvo melhor opinião, ainda que referenciados no acórdão recorrido, na parte referente a outros factos provados relativos á BB, mormente, o que consta dos pontos 51, 53, 55, 59, 60, 61, acabaram por não pesar na decisão final, que condenou a Recorrente numa pena única de prisão efectiva de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses, tendo em atenção apenas e só os fins de prevenção geral em detrimento dos fins de prevenção especial.
LXXVII. Ora, pesando para o tribunal á quo a prevenção geral em detrimento da prevenção especial, o resultado foi a aplicação á Recorrente de uma pena desajustada, inadequada e incorrectamente fixada.
LXXVIII. Sobretudo quando do acórdão recorrido resulta que, para a escolha da medida concreta da pena foi tido em conta “(...) A não assunção dos factos pelos arguidos, não demonstrando o mais ténue arrependimento e contrição pelos factos praticados”, leva -nos a concluir que a Arguida, ao fazer uso do direito ao silêncio, veio a ser prejudicada, porquanto, tendo optado por permanecer em silêncio, direito garantido no art. 32º, nº1, da CRP, concretizado no art. 61º, g) e no art. 343º, no 1, ambos do CPP, não confessou os factos nem mostrou arrependimento, e tal serviu para fundamentar a medida da pena.
LXXIX. Mesmo admitindo que o recurso não tenha provimento no que toca á falta de prova para se imputar á Recorrente a prática de um crime de abuso sexual de criança agravado p. e p. pelo art. 171º, nº 3, b) e 177º, nº 1, b), ambos do CP e de um crime de coação na forma tentada, p. e p. pelo art. 154ºnº 1 e nº2 do CP, nos termos já expostos, para onde remetemos, evitando-se a sua repetição, sempre se dirá que a pena, por si só aplicada pela prática do crime de coação na forma tentada, é amplamente excessiva.
LXXX. Note-se que o tipo legal em apreço admite em alternativa, a aplicação de uma pena privativa da liberdade e uma pena não privativa da liberdade ( ou pena de multa), de acordo com o que decorre do art. 154º, nº 1 do CP.
LXXXI. Ademais, o crime verifica-se tão somente na forma tentada, sendo por isso a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada ( art. 23º, nº 2, do CP).
LXXXII. Para não aplicar á Recorrente uma pena de multa, o acórdão recorrido apoiou-se nos antecedentes criminais daquela e no facto de não ter mostrado arrependimento.
LXXXIII. Ora, a tia da DD não foi condenada anteriormente por um crime de coação, nem dos autos resultou provado que a Recorrente tenha por hábito ameaçar ou constranger pessoas com um mal importante, para que estas pratiquem um acto ( acção ou omissão).
LXXXIV. A pena anterior já transitou e foi cumprida, não podendo o cidadão ficar rotulado.
LXXXV. Tudo esgrimido, não há fundamento para a aplicação de uma pena privativa da liberdade pela prática de um crime de coação na forma tentada, a qual deverá ser substituída pena de multa., sob pena da violação do disposto no art. 40º, 70º, 71º e 73º, do CP.
LXXXVI. Admitindo-se, que a pretensão formulada pela Recorrente é julgada procedente, pelos motivos supra expostos e demonstrados, no que respeita á falta de prova que sustente a condenação da tia da DD, pela pática de um crime de coação na forma tentada, p. e p. pelo art. 154ºnº 1 e nº2 do CP e um crime de abuso sexual de criança agravado p. e p. pelo art. 171º, nº 3, b) e 177º, nº 1, b), ambos do CP, ou, ainda que por mera hipótese o Tribunal venha a confirmar a imputação destes crimes á Recorrente, mas substitua, na sequência do supra referenciado, a pena de seis meses de prisão efectiva pelo crime de coação na forma tentada por uma pena de multa, impõe-se equacionar a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena nos termos prevenidos descritos no art. 50.º do Código Penal.
LXXXVII. De relembrar que, a pena suspensa, embora funcione como substitutiva da prisão, não pode ser vista como forma de clemência ou graça.
LXXXVIII. Além disso, a suspensão da execução da pena de prisão visa afastar o delinquente da criminalidade sob ponderação dos inevitáveis efeitos negativos da reclusão ( quebra das ligações familiares e outras, perda de emprego, efeito estigmatizante, exposição ao contágio criminal etc.)
LXXXIX. Outrossim, o prognóstico favorável- formulado no momento da decisão e não ao da prática dos crimes – não é um juízo de certeza envolvendo sempre uma margem de risco perfeitamente aceitável no presente caso, visto que, o perfil criminológico da Recorrente está muito longe do traçado para o típico sexual offender.
XC. Ora, no caso concreto, atente-se no relatório social da Recorrente junto aos autos, designadamente, o que se dá como provado nos pontos 51, 53, 55, 59, 60, 61.
XCI. É certo que a Recorrente tem antecedentes criminais, cfr ponto 46 da matéria de facto dada como provada, no entanto, a sentença transitou em julgado em ........2011, e, as pessoas não podem ficar rotuladas pelo seu passado, não obstante ter cometido um erro, já cumpriu a pena aplicada .
XCII. Ademais, importa salientar o enquadramento familiar da Recorrente, a estabilidade financeira decorrente dos apoios de que beneficia, o cumprimento da terapêutica farmacológica, a circunstância do risco de repetição das condutas criminosas se encontrar fortemente atenuado, pois que, não há notícia de contactos com a Assistente, nem esta se insere no círculo familiar com quem a Recorrente se relaciona, e as características especificas dos crimes, em particular o contexto psicossociológico e a ausência de motivos excessivamente censuráveis autorizam, salvo melhor opinião, a prognose de que a suspensão da execução da pena permitirá uma adequada satisfação das exigências preventivas e de reintegração – art. 40º do CP.
XCIII. Entendemos que, com a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, a definir e delinear, pela DGRSP, ficam reforçadas as necessidades de prevenção geral e especial, que se impõe ao caso concreto, assim se respeitando e cumprindo o que o legislador prevê em matéria de suspensão da execução da pena de prisão – art. 50º do CP. (…)
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Os recursos foram admitidos, nos termos do despacho proferido em .../.../2025, com os efeitos de subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito suspensivo.
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I.3 Resposta ao recurso pelo Ministério Público
Efectuada a legal notificação, o Ministério Público junto da 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pelos arguidos, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões:
I.3.1 Relativamente ao arguido AA:

(…)
1.O arguido foi condenado pela prática, em coautoria material, na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p., pelos artigos 171º, nº 1, 177º, nº 1, al. b) e nº 4, do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p., pelos artigos 171º, nº 3, al. b), 177º, nº 1, al. b) e nº 4, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão, em cúmulo jurídico na pena única de 4 anos e 9 meses de prisão.
2. Como é jurisprudência pacifica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergente da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no artigo 410º, nº 2 do CPP, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do artigo 379º, nº 2 e 410º, nº 3 do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.
3. Em rigor, as questões suscitadas pelo recorrente redundam, assim, numa mera discordância em relação à forma como o Tribunal apreciou e valorou a prova produzida.
4. Sucede que, ao atacar a deliberação recorrida com base na credibilidade que o Tribunal Coletivo deu, ou não, às declarações das testemunhas, o recorrente põe em causa a norma ínsita no artigo 127º do Código de Processo Penal, que determina que o juiz julgue segundo as regras de experiência e a sua livre apreciação.
5. De acordo com este princípio, o Tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que a opção seja devidamente explicitada e convincente de acordo com aquelas duas vertentes.
6. Aliás, atente-se que o Tribunal a quo, na motivação da decisão sobre a matéria de facto, realizou uma aprofundada exposição/análise crítica dos meios de prova que perante si foram produzidos e analisados de forma geral e por referência a cada meio de prova (acórdão).
7. Os factos dados como provados e não provados resultam de forma manifesta da prova pessoal e real, pelo que bem andou o Tribunal recorrido.
8. Efetivamente, lida a integralidade da motivação da matéria de facto integrante do Acórdão, que analisou as versões dos factos trazidas a julgamento, esclarecendo de forma cabal, aprofundada e inteiramente coerente as razões pelas quais atendeu ou não às mesmas, sempre em atenção às regras de experiência comum e da normalidade do acontecer, e apelando de forma conjugada aos demais elementos probatórios mobilizados para os autos.
9. O certo é que, como bem salienta o douto Tribunal Coletivo, as declarações prestadas pela menor foram corroboradas pelo que foi dito também pelas testemunhas EE (mãe da DD), valoração do relatório da Dra.II, a Sra. Perita Dra. HH, FF, inspetor da Polícia Judiciária, também o relatório de Perícia médico-legal – psiquiatria de fls. 761 a 765, foram prestados esclarecimentos em julgamento pela Sra. Perita Dra. HH, NN (educadora de infância, funções de técnica superior na ...), Prof.ª Dra. PP Perita Médica do INML que efetuou a perícia de fls. 110 e 111 e ouvida em esclarecimentos), Dra. KK (médica psiquiatra de urgência na ...).
10. Por outro lado, também nós, acompanhando a douta argumentação do Tribunal a quo, não poderemos deixar de salientar que o arguido por não ter prestado declarações desconhecesse a sua versão sobre os factos.
11. Resulta assim do texto do acórdão ora recorrido que o tribunal não teve qualquer dúvida na fixação da matéria de facto, nem a mesma enferma de qualquer insuficiência, contradição ou erro notório na apreciação da prova. Pelo que não se vislumbra que a factualidade provada tivesse sido incorretamente julgada, conforme pretende o recorrente.
12. Por todo o exposto, temos por liquido que a conjugação de todos os meios de prova enunciados na motivação da matéria de facto, criticamente analisados e ponderados pelo tribunal, resulta à evidencia que foi totalmente acertada a deliberação sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo.
13. Em suma, repisando as considerações que inicialmente já tecemos, a mera discordância por parte do recorrente em relação à apreciação/valoração da prova feita pelo tribunal a quo não traduz qualquer erro de julgamento, sendo antes uma consequência lógica e inevitável do principio da livre apreciação da prova.
14. Pelo exposto, deverá manter-se incólume, por não merecer qualquer censura, a matéria de facto fixada em 1ª instância.
Nestes termos e, nos mais de Direito, deverão V. Exas. negar provimento do recurso interposto pelo arguido.
Vossas Excelências não deixarão, porém, de fazer a acostumada JUSTIÇA! (…).”
I.3.2 Relativamente à arguida BB:

(…)
1.A arguida foi condenada pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p., pelos artigos 171º, nº 1, 177º, nº 1, al. b) e nº 4, do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p., pelos artigos 171º, nº 3, al. b), 177º, nº 1, al. b) e nº 4, do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão e, de um crime de coação na forma tentada, p. e p., pelo artigo 154º, nºs 1 e 2 do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão.
2. Como constitui entendimento pacifico, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso! Constata-se que, as conclusões apresentadas não são mais do que a reprodução da integralidade da motivação apresentada!
3. Aliás, atente-se que o Tribunal a quo, na motivação da decisão sobre a matéria de facto, realizou uma aprofundada exposição/análise crítica dos meios de prova que perante si foram produzidos e analisados de forma geral e por referência a cada meio de prova (acórdão).
4. Os factos dados como provados e não provados resultam de forma manifesta da prova pessoal e real, pelo que bem andou o Tribunal recorrido.
5. Relativamente à invocada nulidade decisão, art.º 379º, nº 1, al. b) do CPP (condenação por factos diversos da acusação) Sempre se dirá que confrontando os factos dados como provados, no ponto 25 e os factos constantes da acusação no ponto 30, que a pretensão da Recorrente é por em causa a prova produzida em sede de audiência de julgamento, porquanto foi acrescentada aos factos provados a concretização do que vinha descrito na acusação, ou seja, “através de gestos”.
6. Com a descrição mais pormenorizada efetuada no douto acórdão, não altera os factos descritos na acusação, apenas os concretiza de forma mais precisa. Alegar que tal concretização dos factos integra a nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, al. b) do CPP, demonstra o desespero da Recorrente, em invocar algo que sabe não existir.
7. Efetivamente, lida a integralidade da motivação da matéria de facto integrante do Acórdão, que analisou as versões dos factos trazidas a julgamento, esclarecendo de forma cabal, aprofundada e inteiramente coerente as razões pelas quais atendeu ou não às mesmas, sempre em atenção às regras de experiência comum e da normalidade do acontecer, e apelando de forma conjugada aos demais elementos probatórios mobilizados para os autos.
8. O certo é que, como bem salienta o douto Tribunal Coletivo, as declarações prestadas pela menor foram corroboradas pelo que foi dito também pelas testemunhas EE (mãe da DD), valoração do relatório da Dra. II, a Sra. Perita Dra. HH, FF, inspetor da Polícia Judiciária, também o relatório de Perícia médico-legal – psiquiatria de fls. 761 a 765, foram prestados esclarecimentos em julgamento pela Sra. Perita Dra. HH, NN (educadora de infância, funções de técnica superior na ...), Prof.ª Dra. PP Perita Médica do INML que efetuou a perícia de fls. 110 e 111 e ouvida em esclarecimentos), Dra. KK (médica psiquiatra de urgência na ...).
9. Por outro lado, também nós, acompanhando a douta argumentação do Tribunal a quo, não poderemos deixar de salientar que a arguida por não ter prestado declarações desconhecesse a sua versão sobre os factos.
10. Assim, o tribunal teve em consideração toda a prova produzida em julgamento, bem como toda a prova documental e pericial constante dos autos.
11. Por todo o exposto, temos por liquido que a conjugação de todos os meios de prova enunciados na motivação da matéria de facto, criticamente analisados e ponderados pelo tribunal, resulta à evidencia que foi totalmente acertada a deliberação sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo.
12. O crime de abuso sexual de crianças do artigo 171º, nº 1 do Código Penal corresponde a pena de prisão de 1 a 8 anos. Com as agravantes que passam a ser de 1 ano e 4 meses (limite inferior) e 10 anos e 8 meses de prisão (limite superior). Ao crime de abuso sexual de crianças do artigo 171º, nº 3, do Código Penal corresponde a pena de prisão de 1 mês até 3 anos (artigo 41º, nº 1, do Código Penal). Com as agravantes, que passam a ser de 1 mês e 10 dias (limite inferior) e 4 anos de prisão (limite superior). Quanto ao crime de coação corresponde a pena de prisão de 1 mês (artigo 41º, nº 1 do Código Penal), até 3 anos ou pena de multa.
13. O Tribunal a quo considerou todo o circunstancialismo e a atuação da arguida, a ilicitude dos factos é elevada, a culpa da arguida, que se revela elevada, a merecer bastante censura ética jurídica, sendo que agiu com dolo intenso, na sua modalidade mais grave, o dolo direto, as circunstâncias e o modo em que os factos ocorreram, a motivação da prática dos factos pelos dois arguidos, tendo agido com o fim, censurável, de satisfazer a sua lascívia e os desejos sexuais com a menor, sobrinha neta da arguida, condutas que ofendem, em elevado grau, os sentimentos gerais de pudor sexual.
14. A não assunção dos factos pela arguida, não demonstrando o mais ténue arrependimento e contrição pelos factos praticados; as consequências da prática dos factos, não sendo arrojado imaginar que DD não apagará da memória este episódio; os graves antecedentes criminais da arguida, em especial relevo para a pretérita condenação, em dois crimes da mesma natureza.
15. Vem a recorrente alegar que o tribunal pelo facto de a arguida se remeter ao silêncio não poderia ter sido considerado na medida da pena! Parece-nos que o facto de a arguida se remeter ao silêncio não a pode prejudicar, mas também não a pode beneficiar, isso para dizer, que a arguida ao não querer prestar declarações, não pode considerar-se que assumiu os factos, e que demostrou arrependimento!!
16. Assim, considerando a reiteração do comportamento da arguida, revelando falta de assimilação e sentido crítico da sua conduta, na violação do mesmo bem jurídico.
17. A arguida perante o facto de ter antecedentes criminais da mesma natureza, como supra se referiu, não seria possível que depois de ter sofrido uma pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução, voltasse a praticar novo crime e da mesma natureza, voltasse a ser condenada em pena de prisão suspensa na sua execução.
18. O Tribunal a quo ponderou todos estes fatores, não podemos deixar de concordar com o douto acórdão proferido nos presentes autos, ora recorrido, considerando, a natureza do crime, ponderou todas as circunstâncias a que aludem os artigos 40.º e 71.º, n.º s 1 e 2, do Código Penal.
19. Em suma, o Tribunal a quo fez uma correta e perfeita ponderação da medida da pena tendo em consideração o grau de culpa da arguida e as necessidades de prevenção geral e especial, pelo que o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura, antes, pelo contrário, integral confirmação.
20. A arguida perante o facto de ter antecedentes criminais da mesma natureza, como supra se referiu, não seria possível que depois de ter sofrido uma pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução, voltasse a praticar novo crime e da mesma natureza, voltasse a ser condenada em pena de prisão suspensa na sua execução.
21. A pena de prisão aplicada não é suscetível de ser suspensa na sua execução.
22. Pelo exposto, também nesta parte, estamos absolutamente de acordo com as razões expendidas pelo Tribunal a quo, pelo que entendemos que a pena de prisão efetiva aplicada à arguida é a única que se mostra adequada, pois não se impunha aqui a sua substituição ou suspensão, considerando a impossibilidade legal.
Nestes termos e, nos mais de Direito, deverão V. Exas. negar provimento do recurso interposto pelo arguido. Vossas Excelências não deixarão, porém, de fazer a acostumada JUSTIÇA!!”
I.4 Resposta ao recurso pela assistente DD
Efectuada a legal notificação, a assistente respondeu ao recurso interposto pelos arguidos, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões:
I.4.1 Relativamente ao arguido AA:

(…)
1. O objecto do recurso, e portanto da análise que se pede a esta Relação, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos art.ºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no art.º 410º do CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso. Por sua vez;
2. As conclusões devem, de entre o mais, resumir as razões do pedido (artº 412º CPP) e, levando ao extremo esse desiterato conclusivo redutor poderá dizer-se, que, apesar da confusa ordem e do elencar das inconformidades, o objecto do recurso a que se responde é;
1) Impugnação (alegadamente) ampla da matéria de facto (artº 412º, nº 3 do CPP) dirigida apenas aos crimes de abuso sexual de menor no contexto da al. B) do nº 3 do artº 171º do CP e pedido de indemnização (falta de nexo de causalidade);
2) Falta de exame crítico da prova e omissão de fundamentação;
3) Erro notório da apreciação da prova;
4)Valoração do silência do arguido e de testemunhos indirectos;
5)Agravação da pena por via da ligação familiar à vítima;
3. Portanto, importa desde já realçar e anotar, pela repercussão que esse aspecto tem no contexto do que é posto em causa pelo recurso, o recorrente aceita e conforma-se com a decisão do Tribunal a quo no que toca às tipologias mais ofensivas e graves porque foi condenado, bem como quanto à medida da pena e susceptibilidade de suspenção desta.
4. Desde já se adianta que, a decisão recorrida não enferma de qualquer nulidade, irregularidade ou vício, fez correcta interpretação e aplicação do direito aos factos apurados e é justa – talvez até branda - na escolha e na medida da pena de prisão efectiva no que respeita ao recorrente.
5. Quanto ao primeiro ponto objecto do recurso, que se subdivide em segmentos recursivos em sede de Impugnação ampla da matéria de facto (artº 412º, nº 3 do CPP) deve dizer-se, como questão prévia, que o recorrente não cumpriu - de resto nem o levou às conclusões - o ónus imposto pelos nºs 3 e 4 do dito artº 412º, do CPP, pelo que, num primeiro momento, tal recurso nem pode prosseguir, contudo, por cautela de patrocinio sempre se diz que;
6. Quanto ao crime de abuso sexual de menor no contexto da al. B) do nº 3 do artº 171º do CP, falece totalmente de razão a pretensão do recorrente. Com efeito;
7. Partindo do que ficou assente nos pontos 10, 11 e 20 dos factos provados, retira uma peregrina e temerária conclusão conducente à absolvição porque, diz, “(…)daqui resultando á saciedade que a menor entrou e saiu do quarto, pelo que, tinha liberdade de movimento, não se encontrando presa, submissa e, bem assim, obrigada, a assistir/ver/observar, o que quer que fosse, nem a Recorrente lhe dirigiu qualquer palavra, quiçá, nem se apercebeu que a menor ( à data) ali entrou.”
8. Logo, apesar da profiqua prova da situação de quase “reclusão” da menor o recorrente quer convencer o Tribunal - esta Veneranda Relação - de que a menor, sobrinha-neta de 12 anos da companheira, também co-arguida condenada, num contexto dramático de coacção sexual tétrica e horrivel, estava com a sua vontade livre e determinada.
9. Este segnento do recurso é de tal modo incoerente e inventivo que a simples leitura dos factos provados, e sua fundamentação, esclarece a sua falta de razoabilidade. Não podendo deixar de decair e com censura na argumentação fundamentadora dessa falência.
10. No que toca à questão de prova do pedido de indemnização, onde procura desconstruir o nexo de causalidade entre os crimes e os danos (sofrimento) da vitima, mais do que uma reprovação técnico-juridica, urge invocar um total e inaceitável frieza, desinteresse, desculpabilização, ausência de empatia e sentido de auto-critica a todos os niveis deplorável.
11. Recorrenda a citações dos inúmeros relatórios e pareceres médicos, “recortando-os” numa busca descontextualizada do que neles se lê, tenta desviar essa responsabilidade, avonde esplanada nos documentos, se lidos com seriedade e rigor, para, no limite do absurdo, na pessoa da mãe da assistente, ora recorrida e na… escola.
12. É um esforço de exegese e “corte e costura” lamentável, até porque, e a recorrida por dever deontológico e moral, fez esse trabalho na sua Resposta, basta a esta Relação ler, por exemplo, a perícia medico legal de 2021 - que o recorrente não impugnou! – para perceber até que ponto é insusbsistente o que o Recorrente pretende.
13. Está declarado clara e indubitavelmente que na origem dos males da DD, estão de forma insidiosa e inequivoca, os actos do recorrente (e dos outros intervenientes) e a indemnização arbitrada apenas peca por pequena pois, para lá do que sofreu na altura e durante os anos de medo até relatar os factos, é convição da psiquiatra que subscreveu a pericia que; “(…) A DD, há 3 anos que se encontra em acompanhamento psiquiátrico, tendo apoio de diferentes intervenções terapêuticas mas tendo ainda um longo caminho para percorrer até a sua estabilização. “
14. Em sede de Erro notório da apreciação da prova (artº 410º CPP), é convicção da recorrida que o recorrente, talvez por descuido ou engano, nem sequer percepcionou o erro crasso da invocação, pois, é completmente insubsistente a alegação desse vício em face da sentença a quo, que está no antípoda do que esse comando do processo penal regula e, até oficiosamente, promove.
15. Portanto, no que aqui releva, o espectro quer da ilicitude quer, sobretudo, da culpabilidade assenta sempre no padrão mais grave possivel e essa aferição é rigorosa e bem feita pelo Tribunal a quo.
16. De uma forma parcelar o recorrente pretende encontrar deconformidades da decisão que subsumiu a falta de exame crítico da prova e omissão de fundamentação, valoração ilegal do silência do arguido e de testemunhos indirectos e, por fim, agravação da pena por via da ligação familiar à vítima, de cuja fisionomia pretende ainda fazer nascer um alegado engano quanto à idade desta.
17. Todos estes aspectos do recurso, que se rebateram e com remissões para provas concretas dos autos, são momentos de puro devaneio recursivo infundado e infundamentado, sem qualquer hipótese de provimento.
18. O recorrente, que continua a desvalorizar as suas graves condutas, entende nada ter a ver com os danos da vitima, entende, no fundo, dever ser absolvido do crime do artº 171,º, nº 3, al. b) do CP, que defende não ter praticado, quando bem sabe o que fez e, apesar da prova cabal, poderosa, certa e segura que foi produzida e analizada pelo Tribunal a quo, com grande ponderação e parcimónia, ainda tem o devaneio desculpante de pugnar pela nulidade da decisão, sem qualquer razão ou fundamento válido.
Nesta conformidade, nos termos expostos, e nos mais que Vossas Excelências venham a suprir, deve o recurso do arguido/recorrente AA ser, na sua totalidade, julgado improcedente e rejeitado, mantendo-se e confirmando-se, a decisão da Comarca, por ser inatacável e um caso exemplar de apreciação dos factos e da aplicação da Lei, representando um notável momento daquilo que se pede e espera dos Tribunais, desde a primeira instância:
JUSTIÇA
(…)
I.4.2 Relativamente à arguida BB:

(…)
1. O objecto do recurso, e portanto da análise que se pede a esta Relação, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos art.ºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no art.º 410º do CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso. Por sua vez;
2. As conclusões devem, de entre o mais, resumir as razões do pedido (artº 412º CPP) e, levando ao extremo esse desiterato conclusivo redutor poderá dizer-se que, o objecto do recurso a que se responde è;
1) Nulidade da sentença por condenação por factos diversos dos descritos na acusação, relativamente ao crime de coacção agravada na forma tentada (ex vi da al.b) do nº 1 do artº 379ºCPP);
2) Impugnação ampla da matéria de facto (artº 412º, nº 3 do CPP) dirigida a três segmentos apenas e assim ordenados;
A) crime de abuso sexual de menor no contexto da al. B) do nº 3 do artº 171º do CP e, repetindo-se;
B) Ao crime de coacção agravada na forma tentada;
C) Matéria do pedido de indemnização civil (ausência de nexo causal entre os danos da vitima e a conduta da arguida)
3) Medida concreta da pena e, por fim,
4) Presumindo a procedência de algum dos motivos de recurso anteriores, suspensão de execução da pena.
3. Portanto, importa desde já realçar e anotar, pela repercussão que esse aspecto tem no contexto do que é posto em causa pelo recurso, a recorrente aceita e conforma-se com a decisão do Tribunal a quo no que toca às tipologias mais ofensivas e graves porque foi condenada.
4. Desde já se adianta que, a decisão recorrida não enferma de qualquer nulidade, irregularidade ou vício, fez correcta interpretação e aplicação do direito aos factos apurados e é justa na escolha e na medida da pena de prisão efectiva no que respeita à arguida (apenas se podendo até imputar-lhe alguma “brandura”, mormente no que toca à absolvição de um dos arguidos, e ao crime de lenocinio).
5. Quanto a pretendida nulidade da sentença por condenação por factos diversos dos descritos na acusação, relativamente ao crime de coacção agravada na forma tentada (ex vi da al.b) do nº 1 do artº 379ºCPP) nenhuma razão assiste à recorrente.
6. A recorrente pretente, neste segmento do seu recurso, por via do que se pode designar de “preciosismo de linguagem”, rebuscar uma causa de nulidade, extraindo-a do que verteu nas conclusões III a X das suas alegações de recurso.
7. Colocando em confronto o ponto 30 dos factos da acusação com o ponto 25 dos factos provados da sentença a quo, faz surgir uma, em seu entender, “nulidade” por via de, ex nuovo, ter sido referido um gesto com sentido ameaçador.
8. Esquecendo que, o elemento incriminador não reside nesse “gesto”, mas no conjunto de ameaças no sentido de silenciar a vitima. (ex vi das declarações para memória futura aos minutos 10.45); “eu sofri isto durante uns dois, três anos porque era ameaçada, todos os dias eu recebia chamadas, todos os dias se eu contasse matavam a minha família ...e eu não consegui contar”) ou, como consta da sentença recorrida “Desde então, por várias vezes, e em datas não concretamente apuradas, os Arguidos AA e BB disseram á menor que não contasse a ninguém o sucedido e que se o fizesse, a matavam.”.
9. A jurisprudência é pacífica (e antiga) a considerar que a eventual ”alteração de factos da acusação”, seja ela substancial ou não, apenas releva quando tenha importância para a discussão da causa e se tiver repercussões agravativas na medida da punição ou na estratégia de defesa do arguido (vide por ex. o Ac. do STJ de 11/11/1952; BMJ,421,309) pois não há alteração de factos quando os factos provados representam um minus relativamente aqueles (Ac. STJ de 12/11/2003, Proc. 1216/03; SASTJ, nº 75,93).
10. Desta regra resulta que, desde que o arguido tenha conhecimento e esteja munido, face à acusação, de todos os elementos constitutivos e a possibilidade de os contraditar, a possibilidade de vir a ser condenado por um crime que represente um minus, perante a acusação, é desnecessária qualquer comunicação de alteração de factos ou qualificação jurídica. Esta realidade demonstra à saciedade a total incoerência do que a recorrente pretende neste segmento do seu recurso, condenado à sucumbência.
11. Quanto ao segundo ponto objecto do recurso, que se subdivide em três segmentos recursivos em sede de Impugnação ampla da matéria de facto (artº 412º, nº 3 do CPP) deve dizer-se, como questão prévia que a recorrente não cumpriu o ónus imposto pelos nºs 3 e 4 do dito artº 412º pelo que, num primeiro momento, tal recurso nem pode prosseguir, contudo, por cautela de patrocinio sempre se diz que;
12. Quanto ao crime de abuso sexual de menor no contexto da al. B) do nº 3 do artº 171º, do C P, falece totalmente de razão a pretensão da recorrente. Com efeito;
13. Partindo do que ficou assente nos pontos 10, 11 e 20 dos factos provados, retira uma peregrina e temerária conclusão conducente à absolvição da recorrente porque, diz, “(…)daqui resultando á saciedade que a menor entrou e saiu do quarto, pelo que, tinha liberdade de movimento, não se encontrando presa, submissa e, bem assim, obrigada, a assistir/ver/observar, o que quer que fosse, nem a Recorrente lhe dirigiu qualquer palavra, quiçá, nem se apercebeu que a menor ( à data) ali entrou.”
14. Logo, apesar da profiqua prova da situação dequa se “reclusão” da menor a recorrente quer convencer o tribunal - esta Relação - de que a menor, sobrinha-neta de 12 anos, num contexto dramático de coacção sexual tétrica e horrivel, estava com a sua vontade livre e determinada...
15. Este segmento do recurso é de tal modo incoerente e inventivo que a simples leitura dos factos provados, e sua fundamentação, esclarece a sua falta de razoabilidade. Não podendo deixar de decair e com adequada censura.
16. Segue-se a inconformidade, agora por via dos factos, para o crime de coacção, mas a falta de coerência e sustentação mantem-se, até porque assenta na mesma questão do "gesto“.
17. Neste segmento, considera-se que a recorrente resvala para considerações à volta da validade/credibilidade da prova e de um insinuante valorizar negativo do silêncio em juizo mas, a realidade que ressalta dos autos é uma coerência e cautela exemplares em sede da apreciação da prova e dos principios a que esta se sujeita. E não invoca nada que IMPONHA decisão diversa da tomada.
18. No que toca à questão de prova do pedido de indemnização, onde procura desconstruir o nexo de causalidade entre os crimes da recorrente e os danos (sofrimento) da vitima, mais do que uma reprovação técnico-juridica, urge invocar uma total e inaceitável frieza, desinteresse, desculpabilização, ausência de empatia e sentido de auto- critica a todos os niveis censurável.
19. Recorrendo a citações dos inúmeros relatórios e pareceres médicos, “recortando-os” numa busca descontextualizada do que neles se lê, tenta desviar essa responsabilidade, avonde esplanada nos documentos, se lidos com seriedade e rigor, para, no limite do absurdo, a pessoa da mãe e a…escola, caracteística tipica desta tipologia criminal.
20. É um esforço de exegese e “corte e costura” que se lamenta, até porque - e a recorrida por dever deontológico e moral, fez esse trabalho na sua Resposta -, basta a esta Veneranda Relação ler, por exemplo, a perícia medico legal de 2021 - que a recorrente não impugnou! - para perceber até que ponto é insusbsistente o que a Recorrente pretende.
21. Está declarado clara e indubitavelmente que na origem dos males da DD, estão de forma insidiosa e clara, os actos da tia (e dos outros intervenientes) e a indemnização arbitrada apenas peca por pequena pois, para lá do que sofreu na altura e durante os anos de medo até relatar os factos, é convição da psiquiatra que subscreveu a pericia que; “(…) A DD, há 3 anos que se encontra em acompanhamento psiquiátrico, tendo apoio de diferentes intervenções terapêuticas mas tendo ainda um longo caminho para percorrer até a sua estabilização. “
22. Quanto à medida da pena, e embora a ideia subjacente ao recurso, que não discute os crimes mais graves, seja a de tentar desconstruir dois crimes laterais, para assim, lograr uma redução de medida da pena, sempre se dirá que, atento os limites possiveis a pena é certa e ajustada, talvez até branda.
23. Lido e relido o que o Tribunal a quo referiu aplicável a cada um destes factores, temos que, a fls.44 se lê;
(…)
24. Portanto, no que aqui releva, o espectro quer da ilicitude quer, sobretudo, da culpabilidade assenta sempre no padrão mais grave possivel. De resto, em sede de justificação para o cúmulo efectuado diz a sentença a quo a fls.46;
(…)
25. Assim sendo, não se nos afigura qualquer resquicio de inconformidade legal em sede de medida da pena e, de resto, é quase até afrontoso do Tribunal a quo afirmar neste recurso, como faz a recorrente, que é sua convicção inabalável ter o Tribunal recorrido violado grosseiramente as normas da Lei que regulam esta matéria… quando, até porque tendo expendido doutrina de conformação certeira e avisada (vide artºs 91º a 96º das alegações), não ignora que não lhe assiste qualquer razão, portanto, neste aspecto é um segmento do recurso nitidamente votado ao insucesso.
26. Por fim, e dependente do sucesso, que não se antevê, dos segmentos anteriores, a recorrente “juga-se” elegível para ver a pena de prisão ser suspensa na sua execução.
27. Tal pretensão é totalmente descabida e basta ler o que se escreveu nas conclusões 23 e 24 para assumir essa impossibilidade.
28. De resto, ao vir a Juizo “reclamar” essa possibilidade, acaba por dar ainda mais razões a esta Veneranda Relação para afastar essa possibilidade, pois os requisitos essenciais à sua decretação, in casu, não estão verificados, ainda que minimamente, pelo contrário, como, aliás, resulta da exuberante prova, como a recorrente não ignora. Quer dizer;
29. A recorrente, que continua a desvalorizar as suas graves condutas, entende nada ter a ver com os danos da vitima, entende, no fundo, dever ser absolvida dos crimes de coação e do crime do artº 171,º, nº 3, al. b) do CP, que defende não ter praticado, quando bem sabe o que fez e como fez, não parece estar em condições de merecer do Tribunal tal consideração. De resto o Acórdão recorrido sobre isso (embora para o co-arguido) já disse algo de valor aplicável à recorrente;
(…)
Nesta conformidade, nos termos expostos, e nos mais que Vossas Excelências venham a suprir, deve o recurso da arguida/recorrente BB ser, na sua totalidade, julgado improcedente e rejeitado, mantendo-se e confirmando-se, a decisão da Comarca, por ser inatacável e um caso exemplar de apreciação dos factos e da aplicação da Lei, representando um notável momento daquilo que se pede e espera dos Tribunais, desde a primeira instância:
JUSTIÇA (…)
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I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da improcedência dos recursos, não apresentando conclusões, mas aduzindo:
(…)
Ambos os recorrentes pretendem lançar a dúvida e a incerteza sobre o que a ofendida DD, agora “assistente”, mas na altura com 12 anos de idade, presenciou e vivenciou privada em absoluto, por medo e temor, da sua liberdade e vontade de determinação, defendendo que existem memórias que foram criadas e induzidas por terceiros ou até pela própria.
Com efeito, para além dos arguidos, que optaram pelo seu direito ao silêncio, apenas DD presenciou e vivenciou os factos.
Por isso, foi fundamental para a PROVA e subsequentes condenações as declarações para memória futura prestadas pela DD, em sede de inquérito, e as declarações que ela veio a prestar em sede julgamento, por webex, 6 seis) anos após aquelas.
Na verdade, conforme é jurisprudência pacífica, os menores que prestam declarações para memória futura, em crimes de abuso sexual, não deverão, salvo quando se mostre de todo indispensável, o que se entendeu ser o caso, ser ouvidos também em audiência de julgamento, pois seria obrigá-los a vivenciar, de novo, os factos de que foram vítimas e, ao fim e ao cabo, sujeitá-los a uma nova “violência” (Cfr., entre outros, nesse sentido, o acórdão do TRP de 24/9/2020, cujo relator é o Ex.mo Desembargador João Pedro Maldonado, in www.dgsi.pt).
O contraditório é, na sua plenitude, exercido aquando da tomada de declarações para memória futura.
Em sede do crime da coação porque vinha a QQ acusada, o Tribunal apenas concretizou com mais precisão o quadro factual desse crime, “através de gestos”.
E a arguida foi condenada pelo referido crime, mas na forma tentada e por isso com pena especialmente atenuada o que representa um minus em relação à Acusação do MP, pelo que não há qualquer “alteração de factos (substancial ou não) da acusação” a gerar uma nulidade processual.
Além de que, a “tia” QQ ao agir do modo descrito pretendeu criar na menor um sentimento de medo e de inquietação, por forma a constrangê-la na sua liberdade de decisão e ação, com o propósito de a determinar a não contar a ninguém o que tinha acontecido, o que previu, quis e apenas não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade.
Nos artigos 19º a 42º a recorrente pretende discutir a matéria atinente à sua condenação pelo crime de abuso sexual de crianças da al.b) do nº 3, do artº 171º do CP, mas uma vez mais não lhe assiste qualquer razão.
Da prova recolhida e analisada à luz das regras da experiência resulta à saciedade que ambos os arguidos agiram com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais, bem sabendo que a sua conduta colocava em causa o são desenvolvimento psicológico e afetivo e a consciência sexual da menor, não obstante estarem cientes da idade, imaturidade e inexperiência sexual da menor DD e da relação familiar existente, bem sabendo que esta em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão, e que aqueles comportamentos prejudicavam o seu normal desenvolvimento.
A DD foi obrigada, a sofrer a prática de atos profundamente ofensivos para a sua honra, além de a sujeitarem a profunda humilhação e sofrimento.
Por outro lado, os arguidos não revelam qualquer arrependimento e insistem em descredibilizar a ofendida já muito vitimizada.
Ora, o Tribunal Coletivo fez uma cuidada análise em relação ao depoimento da vítima e teve em consideração toda a prova produzida em julgamento, bem como toda a prova documental e pericial constante dos autos.
Assim sendo e no demais, acompanhamos o teor das bem estruturadas Respostas ao recurso apresentada pela nossa Ex.mª Colega junto do tribunal recorrido.
Por fim, uma palavra final para expressamos a nossa firme oposição a uma eventual redução das penas aplicadas, uma vez que, em nosso entender, elas são justas e adequadas, em função da culpa revelada e das exigências de prevenção (art. 71.º n.º 1, do Cód. Penal).
Termos em que, emitimos parecer no sentido da improcedência total dos recursos. (…)
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I.5. Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao dito parecer.
I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, com dispensa de vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], e da doutrina2, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal3.
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II.2- Apreciação do recurso
Assim, face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões decidendas a apreciar são as seguintes:
a) De saber se a sentença recorrida é nula nos termos do art. 379º nº1 al.b) do Cód. de Processo Penal, por violação do disposto no art. 358º do Cód. de Processo Penal.
b) Se o acórdão recorrido é nulo nos termos do disposto no art. 374º nº2 do Cód. de Processo Penal, por violação do disposto no art.379º nº1 al.a) do Cód.Processo Penal;
c) De saber se se verifica no acórdão recorrido algum dos vícios previstos no art. 410º nº2 do Cód. de Processo Penal.
d) Do erro de julgamento
d.1) Pelo arguido recorrente AA - se o acórdão recorrido se encontra ferido de erro de julgamento (art. 412º, nº 3, do CPP), impugnando este os factos dados como provados sob os pontos 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 19,20, 22 e 26 no que a si diz respeito.
d.2) Pela arguida recorrente BB - se o acórdão recorrido se encontra ferido de erro de julgamento (art. 412º, nº 3, do CPP), impugnando esta os factos dados como provados sob os pontos 10, 11, 20 ,25, 26, 29, 30, 31 e 33, 71, 72, 75, 76, 77, 79 e 80 no que a si diz respeito.
e) Do agravamento das molduras penais, nos termos do art.177º do Cód.Penal.
f) Da qualificação dos factos enquanto consubstanciadores por parte da recorrente BB da prática de um crime de abuso sexual de criança agravado e de um crime de coacção
g) Saber se a opção pela escolha de pena de prisão no crime de coacção para a recorrente BB, nos termos do art.70º do Cód.Penal é excessiva e desadequada.
Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, de forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes.
Vejamos.
II.3 - Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objecto de recurso]:
a. É a seguinte a matéria de facto considerada como provada pelo tribunal colectivo em 1ª Instância :
(…)
a) Matéria de facto provada
De relevante para a decisão resultaram provados os seguintes factos:
1. Desde meados de 2014, os arguidos BB e AA viviam como se de marido e mulher se tratassem e residiam na ..., concelho de ....
2. A arguida BB é tia-avó materna da menor DD, nascida em .../.../2005, e mantinha com a mesma e com a progenitora desta uma relação de grande proximidade.
3. Em data que não foi possível concretizar, mas que se situa no ... de 2017, a arguida BB convidou a sobrinha DD para ir passar um fim-de-semana a sua casa, dizendo-lhe que estaria sozinha, o que a progenitora da menor consentiu, vindo a menor a pernoitar na referida residência.
4. Já após a menor se encontrar em casa dos arguidos, o arguido AA surgiu no local.
5. Então, em hora não concretamente apurada, mas depois do jantar, sem que nada o fizesse prever, a arguida BB dirigiu-se para a casa de banho e, no regresso à sala de jantar, surgiu nua perante a menor.
6. De seguida, a arguida BB e o arguido AA disseram à menor para se despir, o que esta recusou.
7. De seguida a arguida BB e o arguido AA agarraram na DD por um braço e levaram a menor para o quarto.
8. Então, a arguida BB e o arguido AA tiraram a roupa que a menor trazia despida.
9. O arguido AA também se despiu, ficando totalmente nu.
10. Nessa altura, os arguidos BB e AA dirigiram-se para a cama e ordenaram à menor que permanecesse no quarto e que olhasse para eles.
11. Acto contínuo, a arguida BB colocou-se de joelhos, na cama, enquanto o arguido AA se colocou por detrás e introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, fazendo movimentos de vai e vem, assim mantendo relações sexuais de cópula completa na presença da menor.
12. De seguida o arguido AA aproximou-se da menor, que permanecia despida, e com uma das mãos, tocou na vagina desta, acariciando-a.
13. Após, o arguido AA agarrou na mão da menor, colocou-a no seu pénis erecto e efectuou movimentos de cima para baixo e de baixo para cima.
14. Nessa altura, o arguido AA disse à menor para colocar o seu pénis na boca.
15. A arguida BB mexeu nos seios e vagina da DD.
16. No mesmo dia e local, a certa altura os arguidos AA e BB decidiram contactar o arguido CC para que este se dirigisse à residência dos arguidos.
17. Assim, na execução desse propósito, a arguida BB telefonou ao arguido CC e, cerca de 15 minutos depois, este surgiu na residência sita na ....
18. Aí chegado, o arguido CC dirigiu-se ao quarto dos arguidos BB e AA e manteve relações sexuais com estes, enquanto a menor permanecia no quarto.
19. A certa altura disseram à DD para sair do quarto, para ficar à porta que dá para a sala, mas logo de seguida o arguido AA foi buscá-la, a qual permanecia despida, e ordenou-lhe que fosse para o quarto dos arguidos, apesar de a menor dizer que não queria ir.
20. Quando a menor entrou no quarto, os arguidos CC, BB e AA, continuaram a manter relações sexuais e a arguida BB a certa altura estava despida, com os joelhos e as mãos apoiadas na cama, e um dos outros arguidos estava atrás da mesma, mantendo relações sexuais de cópula completa.
21. Antes do arguido CC abandonar a residência dos arguidos entregou à arguida BB quantia monetária.
22. Em circunstâncias não apuradas o AA puxou os cabelos de DD.
23. Por várias vezes DD chorou.
24. No dia seguinte, os arguidos AA e BB levaram a menor ao emprego da mãe.
25. Mas antes de a entregar à mãe a arguida BB disse à DD que não contasse à mãe o sucedido e que se o fizesse, a matava e desde então, por várias vezes, e em datas na concretamente apuradas, a arguida BB, através de gestos, “disse” à menor que não contasse a ninguém o sucedido e que se o fizesse, a matava.
26. Ao actuar da forma descrita, agiram os arguidos AA e BB com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais e lascívia, os quais não souberam nem quiseram refrear, conforme satisfizeram, utilizando para tanto a menor DD, indiferente à idade desta e às consequências de tal actuação sobre a mesma, mantendo na presença desta actos sexuais de cópula completa.
27. Ao agirem da forma descrita, os arguidos AA e BB aproveitaram-se da relação familiar que a arguida mantinha com a menor, sua sobrinha, com quem conviviam frequentemente, aproveitando-se assim da proximidade e da autoridade que resultava dessa mesma relação.
28. Os arguidos AA e BB sabiam a idade de DD, bem sabendo que, em função dessa idade, a mesma não tinha suficiente discernimento para se auto-determinar sexualmente, nem para avaliar as condutas levadas a cabo pelos arguidos e não poderia consentir ou anuir nas mesmas.
29. Mais sabiam os arguidos AA e BB que, ao actuarem da forma supra descrita, perturbavam e prejudicavam, de forma séria, o desenvolvimento da menor e a sua autodeterminação sexual, que ofendiam os seus sentimentos de criança e punham em causa o normal e são desenvolvimento psicológico, afectivo e sexual da mesma, como afectaram.
30. Agiram ainda os arguidos AA e BB, de comum acordo, com o propósito concretizado de praticar actos de natureza sexual com a menor DD, indiferentes à idade desta, e às consequências de tal actuação sobre a mesma, para assim satisfazer os seus impulsos sexuais e de lascívia, bem sabendo que a sua actuação era adequada a molestar sexualmente a menor e causar-lhe, mal-estar, vergonha e humilhação, como causou, o que quiseram.
31. Agiu a arguida BB de forma livre, deliberada e livremente, com o propósito de evitar que a menor relatasse a terceiros o sucedido, mediante a ameaça de crime contra a vida, resultado que não atingiu por motivos alheios à sua vontade, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
32. Ao agirem da forma descrita, os arguidos AA e BB aproveitaram-se sempre da situação de vulnerabilidade de DD, bem sabendo que a mesma tinha, à data, 12 anos de idade.
33. Os arguidos AA e BB actuaram, de comum acordo, livre, deliberada e conscientemente, com intenção de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente.
(Mais se provou quanto ao arguido AA)
34. No âmbito do processo n.º 495/99.3PAPNI, do (extinto) 2.º Juízo do Tribunal de Peniche, por factos de ........1999, decisão de 07.11.2001, transitada em julgado em 21.10.2002, foi condenado pela prática de dois crimes de homicídio simples, um deles na forma tentada e outro na consumada, de dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário e um de sequestro, na pena única de 16 anos de prisão.
Por decisão do TEP, de 07.04.2016, nessa data transitada, pena de prisão foi declarada extinta pelo cumprimento, com efeitos reportados a 29.10.2015.
35. Em 2017, AA vivia em união de facto com a arguida BB, em habitação arrendada inserida numa quinta localizada em ....
36. O relacionamento afetivo perdurou entre 2014 e 2020, caracterizando-se por uma crescente degradação, permanecendo o arguido sozinho após a rutura conjugal na mesma habitação e residindo há cerca de três meses com uma nova companheira nessa morada, que desenvolve atividade como empregada doméstica interna nessa quinta.
37. À data dos factos o arguido AA dedicava-se à distribuição de lenha do negócio de um dos irmãos, situação que continua a manter, conciliando com alguns pequenos trabalhos na área da construção civil e cultivo de uma horta na própria quinta e cujos produtos comercializa.
38. Estes rendimentos, a par da pensão de reforma de que é beneficiário no valor mensal de 300 EUR, têm permitido assegurar sem dificuldades a sua subsistência e o pagamento das suas despesas domésticas.
39. AA é um dos 13 filhos de um casal de condição humilde, caracterizando-se o enquadramento familiar por instabilidade e comportamentos de agressividade protagonizados pelo pai, quer na relação conjugal quer na interação com os descendentes, agravados pelos seus hábitos excessivos de álcool.
40. O ambiente negativo era minimizado pelas características e qualidades da figura materna, elemento que se constitui significativo no decurso da trajetória de vida do arguido.
41. Decorrente do agravamento da relação com o pai, AA optou por abandonar a casa de família aos 14 anos, integrando o agregado de uma das irmãs, iniciando nessa altura o seu processo de autonomização pessoal.
42. Apesar de ter estado integrado no sistema de ensino durante vários anos, registou elevado absentismo e desmotivação, sem qualquer intervenção por parte da família, completando apenas a antiga 2ª classe.
43. Precocemente, ingressou no mercado de trabalho a partir dos 15 anos com motosserras em trabalhos para clientes particulares, demonstrando uma atitude empreendedora transversal ao seu percurso vivencial e pouco tempo depois conseguiu adquirir um eucaliptal em Peniche, que viria a ser destruído na sequência de um incêndio, dedicando-se depois à comercialização do peixe, primeiro como assalariado e depois por conta própria.
44. O percurso laboral viria, entretanto, a ser interrompido pelo cumprimento de pena em que foi condenado no período empreendido entre .../.../1999 e .../.../2013.
45. AA teve vários relacionamentos afetivos e uniões de facto no decurso da sua trajetória, tedo um filho, atualmente com 33 anos, com quem continua a estabelecer proximidade relacional.
(Mais se provou quanto à arguida BB)
46. No âmbito do processo n.º 3737/08.2TACSC, do (extinto) 1.º Juízo Criminal de ..., por factos de ........2008, decisão de 16.02.2011, transitada em julgado em ........2011, a arguida foi condenada pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, um deles p. e p. pelo artigo 170.º e 171.º, n.º 3, al. b), do Código Penal – pena de 1 ano e 6 meses de prisão – e o outro p. e p. pelo artigo 170.º e 171.º, n.º 1, do Código Penal – pena de 2 anos de prisão. Em cúmulo das duas penas parcelares foi condenado na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, com regime de prova.
Por decisão de 19.12.2014, a pena foi declarada extinta, nos termos do artigo 57.º, do Código Penal, com efeitos reportados a 09.03.2014.
47. O relacionamento afectivo entre a arguida BB e o arguido AA perdurou até 2020, sendo tido pela arguida como instável e não gratificante.
48. Nessa altura, BB desenvolvia funções no apoio domiciliário no ... após ter-se habilitado com um curso de formação profissional na área da …, atividade que perdurou mais de um ano, sendo o seu último trabalho formal.
49. Conciliava essas funções com o negócio da … a que o companheiro se dedicava, pese embora refira que ela é que assumia as responsabilidades financeiras do agregado.
50. A arguida teve outras experiências profissionais em áreas indiferenciadas no decurso da sua vida, nomeadamente na …, nas … e numa ….
51. Após a rutura conjugal, a arguida passou a residir sozinha, em habitação de realojamento social que lhe foi atribuída em .../2021 no ..., em ....
52. BB mantém um relacionamento afetivo desde .../2023 com um indivíduo do local de residência, relação que avalia como sexualmente ajustada, gratificante e de entreajuda, negando ambos incidentes ou desadequação na interação.
53. O atual companheiro tem-se constituído um apoio importante para a arguida.
54. A arguida, natural de ..., viria a imigrar para Portugal com a família com cerca de dez anos, após a independência daquele país, sendo proveniente de um enquadramento de origem instável, conflituoso e violento, tendo dois irmãos, um deles que viria a cometer suicídio.
55. Presentemente mantém algumas interações com a mãe, com o irmão e com os filhos, embora privilegie e valorize a relação que estabelecia com o pai, entretanto falecido.
56. Com um percurso escolar referido como regular e que permitiu habilitar-se com o nono ano de escolaridade, aos 17 anos, a arguida não prosseguiu os estudos por ter engravidado, sendo na altura pressionada pelo pai para contrair casamento com o progenitor do descendente, relação que viria a perdurar apenas durante alguns meses, ficando o menor aos cuidados dos avós.
57. Pouco depois constituiu um novo relacionamento afetivo do qual resultou um outro filho, que lhe viria a ser retirado e institucionalizado, por falta de condições para os progenitores cumprirem as suas responsabilidades parentais.
58. Ao longo da sua vida BB estabeleceu relacionamentos afetivos e teve uniões de facto instáveis caracterizadas por comportamentos de agressividade e de desrespeito protagonizados pelos parceiros, alguns deles com problemas de alcoolismo.
59. Decorrente de vários problemas de saúde, foi-lhe determinada uma incapacidade de 75% constante em atestado médico de incapacidade multiuso, datado de .../.../2020, situação que impossibilita a sua reintegração profissional, beneficiando de uma Prestação Social para a Inclusão no valor mensal de 780 EUR.
60. A arguida é acompanhada em várias especialidades médicas na sequência de doença oncológica e outras patologias, tendo sofrido um enfarte em .../2023.
61. BB é igualmente acompanhada em consulta de psiquiatria na ... desde 2012 por “Perturbação Depressiva Major, Perturbação Distimica e Personalidade Emocionalmente Instável”, cumprindo a terapêutica farmacológica prescrita.
62. A arguida não reconhece melhorias significativas na sua estabilidade pessoal, registando episódios anteriores de tentativas de suicídio que motivaram internamentos hospitalares.
63. Em termos de características pessoais, sobressai comprometimento na aquisição de competências socioemocionais, nomeadamente dificuldades em autorregular as suas emoções que se repercute em instabilidade e tendência para atos impulsivos na interação quando contrariada ou frustradas as suas expetativas, centrando-se na satisfação imediata das suas necessidades.
64. A arguida tende a apelar à compreensão dos outros face ao seu sofrimento interno decorrente da patologia psiquiátrica que assume repercussões no seu funcionamento pessoal.
(Mais se provou quanto ao arguido CC)
65. O certificado do registo criminal do arguido CC não averba qualquer condenação.
66. CC vive em ..., tendo acolhido há cerca de quatro anos SS, sua companheira e a filha desta, de trinta e seis anos e os seus dois filhos menores que saíram de casa em ...de 2023, dado que a habitação não reunia as condições suficientes para o seu enquadramento.
67. CC encontra-se desempregado desde ...de 2021, tendo exercido atividade na ….
68. Encontra-se reformado desde ... de 2023, recebendo uma pensão social no valor de 300 euros.
69. Tem como despesas regulares os pagamentos relativos à renda mensal, no valor de 300 euros, e despesas com água e luz, cerca de 100 euros e restantes despesas com a saúde e alimentação, sendo ajudado esporadicamente pelo irmão.
70. O arguido CC apresenta uma imagem pouco positiva de si, fraca capacidade de autocritica e lacunas ao nível das representações adequadas nas relações com o outro, abusando do consumo de álcool.
(Do pedido de indemnização civil)
71. Em consequência da conduta dos arguidos AA e BB e também por ter tido alguns problemas com colegas da escola, no ano de ... DD começou a apresentar sinais de instabilidade emocional, tristeza constante e irritabilidade, que resultou em depressão e em ...de ..., passou por uma crise de ansiedade, com intenção de tirar a própria vida, que a levou a ingerir vários medicamentos, com o propósito de se livrar de todas as perturbações que vinha sofrendo e passou a, por diversas veses, tentar o suicídio.
72. Perturbações estas também decorrentes de estar a ser coagida/ameaçada pela arguida BB, para que não contasse à mãe tudo que lhe fizeram.
73. Em ... de 2018 DD passou a ter acompanhamento psiquiátrico, tomando medicação diaria para a ansiedade e stress.
74. Em consequência das crises de ansiedade à assistente foi prescrita medicação que toma desde 2018, tendo feito 37 meses de tratamento, no que gastou € 8,57 por mês, totalizando (37x8,57€) € 317,09€ (trezentos e dezassete euros e nove cêntimos), que gastou em medicação nesses 37 meses.
75. Em consequência do comportamento dos arguidos AA e BB, a assistente teve medo, sentiu-se humilhada e envergonhada, ficou negativamente afectada no seu desenvolvimento pessoal, psicológico, comunicação, relação com as demais pessoas, desenvolvimento escolar.
76. Antes do ocorrido a menor não tinha crises de ansiedade e não necessitava de tomar medicação para a ansiedade e tinha aproveitamento escolar.
77. Após os factos perpetrados pelos arguidos, a nível escolar reprovou duas vezes no 7º ano de escolaridade.
78. Após os factos passou a ser uma pessoa que faz amizades curtas, não se deixa relacionar por muito tempo com as demais pessoas, de irritabilidade fácil.
79. Os comportamentos dos arguidos BB e AA causaram na assistente perda de autoestima, depressão reactiva, exaustão emocional, medo, insegurança e stress pós-traumático.
80. A assistente necessita de acompanhamento psiquiátrico até a sua estabilização e para superar o “trauma” decorrente dos comportamentos dos arguidos AA e BB. (…)
b. São os seguintes os factos dados como não provados pelo tribunal de 1ª Instância :
(…)
b) Matéria de facto não provada.
1. Que o arguido AA tenha ejaculado para a mão de DD.
2. Que quando o arguido AA lhe disse para colocar o seu pénis na boca, a arguida DD se tenha recusado, fugindo para a sala.
3. O arguido AA empurrou a menor para cima de cama e disse-lhe que se colocasse de joelhos.
4. Como a menor recusou, o arguido AA muniu-se de um cinto e, com o mesmo, desferiu várias pancadas nas costas da menor, assim a obrigando a colocar-se na referida posição, o que a menor fez.
5. De seguida, o arguido AA colocou-se por detrás da menor DD e introduziu o seu pénis erecto no ânus desta, efectuando movimentos de vai e vem e apesar da menor chorar e pedir ao arguido que parasse, este continuou com tal conduta, agarrando-a e desferindo várias palmadas nas nádegas da menor.
6. Após alguns minutos, o arguido AA disse ao arguido CC: “agora é a tua vez e o arguido CC colocou-se por detrás da menor, introduziu o seu pénis erecto no ânus da menor, efectuando movimentos de vai e vem, enquanto a agarrava com as mãos e lhe dizia “vai sua puta”, pese embora a menor chorasse e lhe pedisse que cessasse com tal conduta.
7. De seguida, quando o arguido CC largou a menor DD e se afastou da cama, a arguida BB disse a este que lhe devia entregar a quantia de € 150,00 em contrapartida pelos actos sexuais que o mesmo havia mantido com a menor.
8. Que o arguido CC tenha entregue ao arguido AA qualquer montante monetário.
9. O concreto valor da quantia que o arguido CC entregou à arguida.
10. Que tenha sido o arguido AA quem contactou o arguido CC
11. O arguido AA e a arguida BB decidiram contactar o arguido CC para que este praticasse actos de natureza sexual com a menor DD, mediante o pagamento de uma quantia monetária.
12. Agiu o arguido AA em conjugação de esforços e intenções, com o propósito concretizado de forçar a menor DD à prática de actos sexuais de coito anal, para assim satisfazer o seu instinto sexual, usando de força física e de agressões para vencer a resistência que lhe foi imposta pela menor e imobilizá-la, mediante o recurso à força física, desferindo-lhe várias pancadas no corpo e colocando-a na impossibilidade de resistir.
13. Agiu o arguido CC, com o propósito concretizado de forçar a menor DD à prática de actos sexuais de coito anal, para assim satisfazer o seu instinto sexual, usando de força física e de agressões para vencer a resistência que lhe foi imposta pela menor e imobilizá-la, mediante o recurso à força física, desferindo-lhe várias pancadas no corpo e colocando-a na impossibilidade de resistir.
14. Agiram os arguidos AA e BB com o propósito concretizado de através da força física, fomentar a prostituição da mesma com um terceiro, para assim obterem para si proventos económicos resultantes das relações de cópula e outros actos de natureza sexuais praticados pela menor, como obtiveram.
15. Por várias vezes, e em datas na concretamente apuradas, o arguido AA disse à menor que não contasse a ninguém o sucedido e que se o fizesse, a matava.
16. Que o arguido AA agiu com o propósito de evitar que a menor relatasse a terceiros o sucedido, mediante a ameaça de crime contra a vida, resultado que não atingiu por motivos alheios à sua vontade.
17. Os arguidos BB e AA perseguiam DD através de mensagens via Instagram/Facebook, em tom ameaçador com as seguintes expressões “amanhã já tens uma surpresa”; “miúda vais morrer”.
18. Que tenha sido exclusivamente em consequência do comportamento dos arguidos que a assistente DD sofreu de reprovação escolar e de dificuldade de concentração.
19. A assistente sofreu, em consequência da apurada conduta dos arguidos, sentimentos de vulnerabilidade com isolamento social e períodos de despersonalização com perda de prazer em várias actividades.
20. Em consequência directa da conduta dos arguidos a menor viu-se humilhada e desrespeitada por amigos e familiares.
(…)
c. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo tribunal de 1.ª Instância :
(…)
Nos termos do artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal impõe-se agora proceder a uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
Os arguidos em sede de julgamento não quiseram prestar declarações.
Por sua vez, a testemunha EE, de 38 anos de idade, empregada de balcão, solteira, mãe de DD (com quem sempre viveu), referiu que após muito tempo sem contactar a arguida BB, sua tia, reaproximaram-se e passaram a conviver, frequentando a casa daquela. A arguida BB vivia com o arguido AA, como se de marido e mulher se tratassem e no ano de 2017 a tia dizia-lhe que mantinham tal relação desde há quatro anos. Conhecia o arguido CCpor ser amigo da sua tia e do arguido AA e certa vez foram jantar a casa destes e o arguido CC também lá se encontrava a jantar, não se recordando se tal ocorreu antes ou depois da data dos factos.
Certo dia, no ano de 2017, no período de férias escolares do Verão da DD, a arguida comunicou a esta testemuha, que se sentia sozinha, pois o companheiro estava ausente esse fim de semana na apanha da pera (é do conhecimento comum que esta fruta costuma ser apanhada no mês de ...) e pediu-lhe para deixar a DD passar o fim de semana com ela. Permitiu que DD passasse o fim de semana com a tia, pois estava convicta que o arguido AA estaria ausente e se soubesse que ele estaria presente, não o teria permitido, pois não tinha suficiente confiança naquele. Foi numa sexta feira que a DD foi para casa da arguida. Não era usual a filha DD ir sozinha para casa da arguida, costumando as visitas ser efectuadas em família, tendo sido a única vez que dormiu na casa da tia desacompanhada dos seus familiares. A intenção era passar o fim de semana, no entanto antes de terminar o fim de semana e sem a avisar, ou no sábado ou no domingo, a tia e AA foram levá-la ao seu de trabalho, justificando-se com um compromisso. Na noite em que a filha ficou na casa da arguida falou com a DD e a tia (falou mais com a tia) por videochamada, tendo sido referido que já tinham jantado e iam dormir, tendo estranhado por ainda ser muito cedo (referiu que a filha tinha telemóvel e ligou para o seu telemóvel). Pensa que foi no dia seguinte que a foram levar ao trabalho e que a DD só lá dormiu uma noite. A casa da tia fica situada no meio do mato, existindo apenas próximo uma casa cujos ocupantes são idosos. Após os arguidos procederem à entrega da filha no seu local trabalho, nada notou naquela, tendo a DD dito que não queria ir logo para casa, insistindo muito que queria ir apanhar ar, dar uma volta.
Certo dia, em ... do ano de 2019, esta testemunha encontrava-se a caminho de sua casa quando a filha DD lhe disse que tinha algo para contar e quando lhe relatou o ocorrido estava nevosa e chorosa. Porém a primeira pessoa a quem a filha contou foi ao primo MM, filho da arguida. Nesta parte, mais se valorou as folhas de suporte de fls. 57 a 62, contendo fotografias das mensagens de WhatsApp, sendo que a DD começa por escrever a sua mãe “Eu tenho uma coisa guardada a muito tempo”, acrescentando “O helder e a mena tentaram me abusar sexualmente”, “A mena bateu me” “E o helder obg a despir”, “Obrigou me a bater” “Punheta”, “É por isso que n estou bem”, referindo que foi há “1 ano” e não contou à mãe “Pk tinha medo”.
Mais referiu a testemunha EE que a DD foi-lhe contando o ocorrido ao longo de um ano, aos poucos, não conseguindo relatar todo o comportamento dos arguidos, tendo-lhe dito que contara à sua médica os pormenores (nesta parte também se valorou o relatório da Dra. II, - “na consulta de ... (ano de 2019), partilhou que tinha contado ao primo, filho de uma tia-avó materna, que teria sido vítima de abuso sexual por parte da mãe dste e do seu companheiro. Na consulta encontava-se ambivalente com a revelação, por um lado aliviada, mas por outro com receio pela repercussão intra-familiar”). No primeiro dia em que desabafou consigo, a filha contou-lhe que a tia e o arguido AA tocaram-lhe nas partes íntimas e que a obrigaram a vê-los a ter relações sexuais. Apenas mais tarde fez referêcia ao arguido CC, conhecido por CC e disse que a obrigaram a tocar o pénis do arguido AA; decorrido uns meses contou-lhe que os dois arguidos tiveram sexo anal com a menor. A DD não contou mais cedo o ocorrido por medo, porque a tia BB fazia-lhe sinais gestuais indicando que não deveria falar (colocando o dedo indicador à frente da boca) e que se o fizesse cortava-lhe o pescoço (passando a mão pelo próprio pescoço, numa trajetória perpendicular, simulando uma ação de corte da garganta, gesto comunicacional comumente reconhecido com esse significado). No final do ano de ... DD começou a ter acompanhamento psicológico, pois a DD alterou o seu comportamento na escola, tornou-se mais rebelde. Até ao 6.º ano de escolaridade (com 12 anos) nunca tivera qualquer retenção e após deixou de ter aproveitamento escolar. Após a data dos factos, na escola teve problemas com umas colegas, que a perseguiram, lhe tiraram o telemóvel e a atacaram com um xizato e tendo ido passar um fim de semana com os avós, pela primeira vez tomou comprimidos. Relatou os padecimentos da menor após a data dos factos, com várias tentativas de suicídio, episódios de automutilação e idas ao hospital, que se mantiveram mesmo após a DD lhe ter contado o que acontecera na casa da tia. Aliás, as diversas tentativas de suicídio e as crises de ansiedade e pânico da DD são referidas e resultam da vasta documentação clínica junta aos autos, de fls. 167, 173, 174, 245 a 246, 249, 250, 290 a 580, 731 a 740, 1465 a 1477: em 07.08.2018, ingestão de corpo estranho; de 19.11.2018 a 21.11.2018 ficou internada intoxicação voluntária medicamentosa; em 11.12.2018 tomou medicamentos “não para suicidar, mas para chamar a atenção da mãe”; 12.12.2018, tomou medicamentos na escola - ... 2019, tomou comprimidos e desde ... de 2018 verbaliza que quer morrer; ........2019 – sobredosagem e envenenamento; ........2019 – intoxicação medicamentosa voluntária; ........2019 – sobredosagem e envenenamento; ........2020 – ideação suicida ansiosa; ........2020 – auto agressão (tentou-se estrangular a casa de banho do hospital); ........2020 – ingestão voluntária de lâminas; em ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2019, ........2020, teve crises de ansiedade e algumas de pânico.
Anteriormente à data dos factos a DD era uma criança “normal”, não era depressiva.
Posteriormente à data dos factos a DD chegou a ir passar uns dias na casa da arguida, mas sempre acompanhada da avó materna e do irmão, assim como a testemunha EE continou a ir a casa da tia com a DD, tendo posteriormente a DD referido que nesssas situações era ameaçada pela tia, que lhe fazia sinal para não falar sobre o ocorrido.
Depois de apresentarem a queixa esta testemunha chegou a receber mensagens por Whatsapp do númeo da tia, com a expressão “bum”, como se fosse uma bomba, pelo que a bloqueou. Após, através de perfis falsos do Facebook, alguns com a fotografia da tia, outros com a fotografia do seu filho mais velho, recebeu mensagens ameaçadoras, mas não pode ter a certeza que foram remetidos pela tia.
A filha disse-lhe que na noite em questão bateram-lhe com uma tomada e panela nas costas.
Referiu a testemunha EE que aquando do nascimento da sua filha DD a sua tia BB visitou-a na maternidade, pelo que, conjuntamente com o convívio que matinham antes dos factos ocorrerem, a arguida BB necessariamente sabia a idade da DD e também por via dessa convivência com a DD, sua família – mãe, avó materna e irmão – com os arguidos BB e AA, este também necessariamente teria conhecimento da idade da DD, ou seja, que esta tinha apenas 12 anos de idade. (Também CC antes dos factos jantou com a família da DD, tendo necessariamente tido oportunidade de se aperceber da sua idade e imaturidade). Aliás, durante o julgamento por testemunhas e pela Sr. Perita Dr.ª HH foi referido que a DD aparentava ter mais idade do que a real, mas tais pessoas tiveram contacto com a DD em data posterior aos factos. Conforme referiu a Sr. Perita Dr.ª HH, em 2021, quando examinou DD, esta aparentava ter uma idade superior à real, mas era imatura, o que contrastava com a sua imagem. A roupa que trajava, os acessórios que usava e a sua própria constituição física, fazia com que uma jovem de 16 ou 18 anos pudesse ter uma aparêcia física parecida. No entanto realçou o facto de a DD ter uma aparência muito “enfeitada”, significa que está “mascarada” pela dificuldade em lidar com a sua imagem real. E, conforme resultou do conjuto da prova, foi após a ocorrência dos factos que a DD passou a ter uma personalidade problemática, com diversas tentativas de suicídio, situações de automutilação, crises de ansiedade, sendo natural que se “mascarasse” pela dificuldade em lidar com a sua imagem.
No entanto, aos 12 anos de idade, as crianças vestem-se de uma forma mais simples e não se enfeitam com maquilhagem e acessórios como o fazem as adolescentes, sendo mais difícil aparentar uma idade dois anos superior à real. Aliás, a própria DD disse em julgamento que aos 12 anos de idade vestia-se como uma criança. A própria Sr. Perita Dr.ª HH, referiu que em 2021, quando examinou DD, esta era imatura para a idade, pelo que, num plano de normalidade, aos 12 anos de idade também o seria, o que seria percepcionável nas conversas que teria com os arguidos, ou com terceiros na presença dos arguidos.
Referiu a mãe da DD que esta passou a ser medicamente acompanhada em finais de ..., após ter sido atacada por colegas, porém tal necessidade não significa que tenha exclusivamente como causa o comportamento de que foi vítima por parte das colegas, pois os abusos que relatou ter sido vítima dos arguidos e que ocultava das demais por si, só por si são suficientes para desestabilizar emocionalmente uma criança/jovem, podendo até dificultar o gerir de outros problemas, mormente com colegas.
A testemunha FF, inspetor da Polícia Judiciária, efectuou diligências investigatórias nos presentes autos, procedendo à inquirição de testemunhas. Referiu que aquando das declarações para memória futura, a menor cruzou-se no Tribunal com a tia e companheiro e teve que ser conduzida às urgências, o que resulta de fls. 117, 128 e 129, dos autos (sendo sintomático do nível de ansiedade que os factos subjacentes a este processo lhe causaram e ainda causam). O primeiro depoimento da menor, na Polícia Judicária (em ........2019 – cfr. fls. 68), foi muito sofrido. A DD aparentava ter mais idade do que a real, pela sua constituição e forma como se vestia.
Valorou-se o Relatório de Perícia Médico-Legal – psiquiatria - de fls. 761 a 765, sendo examinanda DD, tendo o exame sido realizado em ........2021, realizado pela perita médica Dr.ª HH, Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses de Lisboa, no qual se pode ler que DD “Mantém acompanhamento em consultas de Pedopsiquiatria pela Dra. II no ... por motivos de ansiedade. Nas peças processuais constam os registos de idas ao Serviço de urgência por sintomatologia ansiosa e tentativas de suicídio relacionadas com eventos de vida negativos. Na sequência de uma tentativa de suicídio, foi internada na .... Tem acompanhamento psicoterapêutico em consultas de psicomotricidade e de psicologia. Atualmente se encontra medicada com Aripirazol 10mg ao pequeno almoço – fármaco antipsicótico que atua no controle da impulsividade e da ansiedade. Em termos académicos, referiram que a DD reprovou duas vezes o 7º ano na sequência dos eventos que deram início a este processo. Atualmente se encontra num Curso de Educação e Fromação com equivalência ao 9º ano, tendo perdido o interesse e motivação pela escola.”.
A mãe descreveu a DD como uma jovem muito frágil e intensa nas suas emoções, o que terá motivado as várias tentativas de suicídio na sequência de sentir-se pouco apoiada ou traída pelas pessoas da sua confiança. A DD sempre teve dificuldade em lidar com a frustração. No entanto, a mãe refere que após os eventos que deram início a esta perícia passou a ser muito mais impulsiva e intempestiva na forma como vivenciava as emoções negativas. A mãe refere não ter sentido alterações na forma de ser da DD aquando dos alegados abusos para além de ter começado a ter crises de ansiedade, os comportamentos de automutilação e as tentativas de suicídio. Uns meses após os eventos, a DD confessou à mãe o sucedido junto dos tios. Posteriormente, a DD referiu também que o primo (filho destes familiares e que anteriormente as apoiava), também teve comportamentos abusivos de cariz sexual com ela.
“EXAME OBJECIVO
A DD encontrava-se na sala de espera junto da mãe em atitude calma. Trata-se de uma jovem com idade aparente superior à real, vestida e maquilhada de forma ostensiva, mas adequada ao género, idade e estação do ano. Com cuidados de higiene mantidos. Aspecto muito investido, apresentando pestanas postiças e extensões, fato que contrasta com a sua postura tímida e reservada. Orientada no tempo e no espaço e com atenção captável e fixável”.
“O discurso foi pouco espontâneo, elaborado e organizado. Apresentou corretas capacidades percetivas, compreensivas e narrativas. Não apresentou alterações nas suas capacidades de armazenar e evocar memórias de curto, médio e longo prazo. Estado de humor neutro, com afetos geralmente aplanados. No entanto, emocionou-se na evocação do sucedido. Não se apuraram alterações da perceção nem do pensamento que denotassem sintomatologia psicótica. Sem ideação suicida nem outros pensamentos auto ou heteroagressivos.
A DD referiu que a sua vida e a sua forma de estar mudaram desde o dia que os tios abusaram dela. Tornou-se mais triste e começou a ser mais impulsiva. Iniciou um quadro de crises de ansiedade e insónia, tendo pesadelos frequentes com o sucedido, crises de pânico (que dificultavam a sua permanência nas aulas), pensamentos intrusivos de morte e necessidade de realizar comportamentos auto-lesivos para gerir a sua dor. Referiu um sentimento de vazio permanente e uma impossibilidade de olhar- se ao espelho por sentir nojo dela própria, pelo que começou a modificar o seu aspeto físico com maquilhagem, extensões e outros, referindo sentir-se desprotegida e pensar mais no sucedido quando retira os adereços”.
Ao quesito “1. A menor relata e demonstra comportamentos sexualizados que denunciem ter sido vítima de abusos sexuais por parte dos arguidos, os seus tios AA e BB e do arguido CC?”
A resposta: “Da observação realizada, a DD não revelou nenhum tipo de alteração do comportamento durante a avaliação pericial que sugira ter sido vítima de abuso sexual. Nem todos os abusos prossupõem sintomatologia associada, sendo também esta, muito díspar entre as crianças e jovens. No entanto, foram referidas alterações comportamentais e emocionais com impacto no funcionamento global secundária e coincidente cronologicamente, com os alegados abusos. Também se identificou na DD um grande desconforto emocional associado à lembrança e narrativa dos abusos sexuais aos quais foi alvo”.
Aos quesitos colocados:
“2. Os factos verbalizados pela menor aparentam ter sido vivenciados?
3. Ou denotam ter sido induzidos/imaginados?” pode-se ler “Dadas as alterações emocionais e comportamentais relatadas, assim como o impacto visível que teve a evocação dos factos, a perita pronuncia-se afirmativamente acerca do quesito numero 2. A DD não aparentou sofrer de nenhum tipo perturbação psicótica que pudesse justificar um relato alheio à realidade. O seu discurso foi organizado e não fantasioso. Não se apuraram ganhos secundários na possibilidade de poder ter inventado o seu relato, pelo que se considera que é genuíno e não manipulado. Não foi possível comparar ou confrontar os relatos da DD com os obtidos noutras ocasiões por não existirem nas peças processuais enviadas.
Aos colocados quesitos “4. Tais factos afectaram psíquica e mentalmente a menor? 5. De que forma e com que intensidade?”, foi respondido “Parece existir uma quebra no funcionamento global na DD coincidente com o início dos alegados abusos sexuais, passando a ter alterações do humor, alterações do comportamento e atentando contra a sua integridade física. A DD, há 3 anos que se encontra em acompanhamento psiquiátrico, tendo apoio de diferentes intervenções terapêuticas mas tendo ainda um longo caminho para percorrer até a sua estabilização. Em muitas ocasiões, os abusos sofridos durante a infância ou adolescência, sobretudo em contexto intra-familiar, têm um grande impacto ao longo da vida, condicionando a qualidade dos relacionamentos interpessoais na idade adulta, e causando estados emocionais instáveis”.
Ao quesito “6. A menor revela sequelas emocionais / físicas dos acontecimentos que vivenciou?” a resposta foi “A DD apresenta uma personalidade instável, com início coincidente com os alegados abusos aos que foi submetida”.
Ao quesito “7. A menor revela stress pós-traumático?” a resposta “Da avaliação realizada, considera-se que a RR apresenta, segundo o Diagnóstico e DD das Perturbações Mentais da ... (DSM5), de uma Perturbação de Stress Pós-
Traumático 309.81 (F43.10), sendo os alegados abusos sofridos os eventos estressores e desencadeantes desta patologia. A DD apresenta também traços desadaptativos da Personalidade tipo Borderline tornando a DD uma jovem que se autogere por impulso na procura da sua satisfação pessoal imediata. Este tipo de problemáticas potenciam relacionamentos instáveis assim como comportamentos de risco. Na génese destas problemáticas existe frequentemente uma falha emocional por parte dos cuidadores primários, Considera-se necessário que a jovem mantenha o acompanhamento psicoterapêutico e psiquiátrico”.
Ao quesito “8. A menor apresenta capacidade para testemunhar?”, foi respondido “A DD é uma jovem com competências cognitivas dentro da normalidade. As suas capacidades percetivas, narrativas e mnésicas encontram-se mantidas. Não se apuraram alterações da perceção nem do pensamento. Apesar do impacto emocional que a evocação dos fatos provocou na DD, considera-se que esta tem capacidade para testemunhar, devendo ser salvaguardada a sua integridade psíquica com a finalidade de evitar uma vitimização secundária”.
Em julgamento foram prestados esclarecimentos pela Sr. Perita Dr.ª HH, tendo esta esclarecido que no que tange à DD, julga que antes de 2017 esta não tomava medicamentos. Em 2021, quando foi examinada, DD aparentava ter uma idade superior à real, mas era imatura, o que contrastava com a imagem. A roupa que trajava, os acessórios que usava e a sua própria constituição física, fazia com que uma jovem de 16 ou 18 anos pudesse ter uma aparêcia física parecida.
A DD sentia uma grande culpa por os envolvidos nos actos serem familiares, com quem tinha ligação (os tios avós, tendo também referido a presença de outro indivíduo). No início foi muito difícil para a DD em relatar o ocorrido, era algo que a magoava. Quando se falava no evento havia uma carga emocional muito grande, o que não acontecia quando abordava as demais questões. No entanto a DD relatou sem hesitações, foi expontânea e coerente ao contar o que passou. Referiu que os traços desadaptativos da Personalidade tipo Borderline caracterizam-se por viver num estado limite, caracterizado por instabilidade, dificuldade em modelar emoções, “hoje está bem e amanhã está mal”, bem como dificuldade em lidar com o abadono. Na sua origem pode estar num conjunto de factores, mas os abusos dentro da família são os que têm maior poder. Em relação a data anterior à realização da perícia, não se pode pronunciar pois não conheceu a DD. No entanto há claramente uma disrupção em termos emocionais, não podendo dizer quando surgiu. Este evento traumático (abusos sexuais - a ser provado) é suficiente para provocar as alterações do comportamento da DD e que ainda poderá vir a sofrer no futuro. Aliás, o facto de a DD ter uma aparência muito “enfeitada”, significa que está “mascarada” pela dificuldade em lidar com a sua imagem real.
Referiu que no seu relatório deixou exarado “Da observação realizada, a DD não revelou nenhum tipo de alteração do comportamento durante a avaliação pericial que sugira ter sido vítima de abuso sexual”, porque a DD teve um comportamento adequado e ajustado, mormente não revelou qualquer alteração do pensamento.
Quando falava dos factos fazia-o com uma emocionalidade expressa muito grande, não hesitando nas palavras, aparentando terem sido vivenciados na primeira pessoa.
NN, educadora de infância, desempenha funções de técnica superior na ..., teve intervenção no relatório junto aos autos a fls. 712 e 713. Em ... de 2019 o processo da DD chegou à DD, contactou a arguida e mãe e a medida proposta foi de apoio junto da mãe. A DD tinha comportamentos autolesivos, não ia à escola, tinha muitas crises de ansiedade, desmaiava e a escola tiha de chamar o INEM. A DD esteve na escola em ..., depois na escola de ..., no externato de ..., na .... Houve um pedido de acolhimento de emergência que não se veio concretizar. Entretanto por via de reestruturação da ..., o processo da DD foi para outra equipa e sabe que o processo foi arquivado. Os comportamentos autolesivos já eram reportados em 2019. Referiu que a DD foi vítima de bullying na escola, mas também era agressora.
Fisicamente a DD era uma jovem “grande” e investia muito na sua imagem, na roupa e cabelo. Apenas tem o 6.º ano de escolaridade. A mãe da DD referiu uma situação em casa de um familiar e que só após muito tempo a DD lhe contou e também relatou outra situação de abuso com um primo.
A Dra. LL, médica no hospital ..., pedopsiquiatria, em ... fazia urgências pediátricas no .... Não se recorda da DD, nem encontrou registos que a tenha acompanhado. Elaborou um relatório médico, mas não consegue dizer mais que o que lá se encontra escrito. DD terá entrado nos seus serviços devido a ingestão medica voluntária e a mãe ter-se-á dirigido ao hospital por ter encontrado uma faca na mala da filha, o que lhe terá sido transmitido pela mãe. Na altura a DD terá referido relacionar esta ingestão por ter sido vítima de bullying por parte de uma colega da escola.
A perita médica do INNML, Prof.ª Dra. PP, especialista em medicina legal, efectuou a perícia que se enconta junto no apenso, a fls. 110 e 111, em ... de ... de 2019 e ouvida em esclarecimentos, referiu que a menor DD não tinha alterações cognitivas, porém tinha humor depressivo, apresentava cicatrizes no corpo com grande probabilidade de serem por auto-mutilação. A DD estava a ser examinada para ser avaliada pelas feridas que tinha na cara e nos punhos (no exame consta como história do evento “terá sido agredida com instrumento cortante xizato”), porém focou dois aspectos que numa menor são importantes: 1) o contexto familiar – mãe, avó e irmão de 8 anos – os pais estariam separados e referiu “o meu pai não me vai buscar” - revelador de pouco contacto com o pai - e 2) ao lhe perguntar se queria dizer algo mais, se as cicatrizes no braço esquerdo foram feitas por outrem, uma vez que era destra, de forma expontânea a DD referiu que fora abusada pela tia e marido da tia, ficando a olhar no vácuo, sem continuar. Ou seja, estava a ver uma lesão corporal e depara-se com “uma miúda depressiva, com comportamentos auto-lesivas e que me diz isto”. Assim, podemos concluir que, para a DD, era o sofrimento decorrente de ter sido “abusada pela tia e marido da tia”, que a levava a se automutilar no braço (e não o facto de ter sido agredida por uma colega ou outra qualquer razão).
A Dra. KK, presentemente médica psiquiátrica de urgência na ..., e em 11.12.2018 teve um contacto com a DD, do qual não se recorda concretamente, apenas tendo acesso à informação que se encontra escrita. Tudo o que se encontra escrito foi descrito pela DD e sua mãe, sentia-se ansiosa, por ameaças e com a ingestão de medicamentos não pretendia o suicídio, tendo sim intenção comunicacional, sendo uma chamada de atenção para a necessidade de estar com a mãe (processo clínico de urgência, de fls. 328 a 330 e 1475 e 1476).
A Dra. OO, psiquiatra no hospital de ..., viu a DD, à data ainda menor de idade, em contexto de urgência, do hospital em psiquiatria, tendo sido determinado o seu internamento. Juntamente com outras colegas, a Dra. OO acompanhou o internamento, no âmbito de um quadro de ideação suicida, com risco de passagem ao acto. Tal ocorreu o ano de 2019 e não voltou a acompanhar a DD.
Em cumprimento do determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no dia 29-02-2024, ouviu-se a assistente DD em declarações. No entanto, a certa altura das suas declarações comunicou que não se encontrava em condições para continuar o seu depoimento, necessitando de, pelo menos, duas semanas para se habituar à ideia que terá que relatar tudo o que vivenciou, pelo que se determinou a interrupção das suas declarações, a fim de se restabelecer. Apesar de várias tentativas, infrutíferas devido à sua instabilidade emocional, para se continuar a ouvir DD que, entretanto, ficou grávida, de forma a não se prejudicar a sua saúde optou-se por apenas a ouvir em declarações em data posterior ao nascimento da criança. Esta a razão pela qual apenas em 06-03-2024 se contiuou a ouvir a assistente DD em declarações e uma vez que não se mostrava psicologicamente capaz de se deslocar a este Tribunal a fim de prestar declarações nos presentes autos, atentos os factos em causa nos mesmos e na ausência de qualquer oposição por parte de todos os intervenientes processuais,foi ouvida através de videoconferência – Webex. As suas declarações foram muito sofridas e dolororosas, com momentos de choro. Relatou que a arguida BB é sua tia-avó materna e era muito sua amiga e de sua mãe, mantendo uma relação de grande proximidade. Nas férias escolares do ... de 2017 a arguida BB convidou-a para ir passar um fim-de-semana a sua casa, por estar sozinha, tendo a sua mãe consentido. Foi para casa da sua tia numa sexta-feira. Quando se encontrava na casa da tia o arguido AA surgiu no local, mal jantaram e a tia passou a ter um comportamento muito estranho, parecia que tinha enlouquecido, arremessando alguns pratos para o chão e gritando. A arguida BB dirigiu-se à casa de banho e quando regressou à sala de jantar estava nua (a casa era muito pequena – sala e cozinha conjunta, um pequeno quarto e casa de banho). De seguida, a arguida BB e o arguido AA disseram-lhe para se despir, o que esta recusou, pelo que a agarraram por um braço e levaram-na para o quarto e despiram-na. O arguido AA também se despiu, ficando totalmente nu. Os arguidos BB e AA dirigiram-se para a cama e obrigaram-na a permanecer no quarto a vê-los fazer sexo. A arguida BB colocou-se de joelhos (de gatas), na cama, enquanto o arguido AA tinha relações sexuais com ela. O arguido AA com uma das mãos, tocou na vagina da DD acariciando-a, assim como agarrou na mão da assistente, colocou-a no seu pénis erecto e efectuou movimentos de cima para baixo e de baixo para cima (não referiu que ejaculou, pelo que não se considerou provado). O arguido AA disse à menor para colocar o seu pénis na boca, o que fez por ser obrigada (ou seja, não recusou e fugiu para a sala, conforme consta da acusação, razão pela qual não se considerou provado este segmento e não se considerou provado o “sexo oral” pois configuraria outro crime, pelo qual o arguido não vem acusado). A arguida BB mexeu nos seus seios e vagina. A certa altura a tia efectuou um telefonema e decorridos poucos minutos o arguido CC (que já conhecia de um anterior jantar na casa da tia em que participara com a família) surgiu na residência e dirigiu-se ao quarto dos arguidos BB e AA e manteve relações sexuais com estes, enquanto a assistente permanecia no quarto. A dado momento disseram à DD para sair do quarto, para ficar à porta que dá para a sala, mas logo de seguida o arguido AA foi buscá-la - permanecia nua -, e ordenou-lhe que fosse para o quarto dos arguidos, apesar de a menor dizer que não queria ir. Quando a menor entrou no quarto, os arguidos CC, BB e AA, continuaram a manter relações sexuais e a arguida BB a certa altura estava despida, com os joelhos e as mãos apoiadas na cama, e um dos outros arguidos estava atrás da mesma, mantendo relações sexuais de cópula completa. Mais referiu a assistente DD que, primeiramente o arguido AA e posteriormente o arguido CC, introduziram o pénis erecto no ânus da assistente, efectuando movimentos de vai e vem. Quando terminaram, antes do arguido CC abandonar a residência dos arguidos entregou à arguida BB quantia monetária (fica-se sem saber qual o valor e a que propósito tal quantia foi entregue: para pagamento de qualquer dívida anterior? Para pagamento do sexo que teve com a arguida BB? Desconhece-se). Em momento que não logrou concretizar o AA puxou os cabelos de DD e por esta querer sair do quarto o arguido AA munido de um cinto, desferiu pancadas nas suas costas. Nessa noite por várias vezes chorou. No dia seguinte, os arguidos AA e BB levaram a menor ao emprego da mãe. Porém, antes de a entregar a arguida BB disse à DD que não contasse à mãe o sucedido e que se o fizesse, a matava e desde então, por várias vezes, quando ia com a sua família a casa da tia, esta com a mão e dedos fazia-lhe o gesto para não falar e que lhe cortava o pescoço (não fez qualquer referência a que o arguido AA a tivesse ameaçado, pelo que se considerou tal facto não provado). À data dos factos apenas tinha 12 anos e vestia-se como uma criança, pelo que facilmente saberiam a sua idade. Só muito mais tarde teve coragem para contar o ocorrido a sua mãe.
Estas declarações foram criticamente conjugadas com as declarações para memória futura de DD, de fls. 821 e 822, encontrando-se o seu depoimento gravado no Citius. Aliás, a requerimento de todos os ilustres advogados e sem qualquer oposição por parte do Ministério Público, consideram-se como reproduzidas as declarações que a ofendida DD, prestou em sede de inquérito, sem necessidade de as voltar a ouvir em julgamento.
Nessas declarações a assistente DD referiu que os factos ocorreram no Verão, foi numa sexta feira passar o fim-de-semana a casa da tia da mãe e ficou todo o fim-de-semana. (Ora, do conjunto das declarações da assistente resulta sempre do relato do que padeceu que apenas lá permaneceu uma noite)
A tia ligara à mãe a chorar, a dizer que não tinha ninguém e que o marido tinha ido à apanha da pêra e pediu para a assistente ficar lá a dormir. Gostava muito da tia. No entanto, nesse dia à noite aparece o AA e a tia disse-lhe “olha o jantar já está feito”. “Ao jantar houve uma grande guerra… era pratos a voar, era coisas fora do normal. BB foi à casa de banho e apareceu nua levaram-me para o quarto. Eu disse-lhe que não! Eu disse “tia, mas o que é que se passa? O que é que se passa aqui?”, e… eu quero-me ir embora! Ela diz “liga à tua mãe agora”, a minha mãe ainda se lembra dessa chamada, não sei se tem como… de eu dizer, era tão cedo ainda, eram oito da noite, e a minha mãe achou estranho, “mãe vou dormir”. “Eles levaram-me para o quarto, os dois tiraram-me a roupa, bateram-me, chegaram-me a bater com panelas. Viraram-me, bateram-me aqui na zona das costas e do rabo”. À pergunta “Obrigaram-te a ter algum tipo de ato sexual com alguém?”, respondeu “Sim”. O senhor AA, que até chamaram um senhor que eu na altura não sabia quem era, CC”. “A minha tia quando estava no quarto ligou para ele.ele chegou pouco tempo, porque ele mora ali perto. À pergunta “E quando ele chegou já te tinham feito algum tipo de… violência, abuso… sexual contigo e o quê? A resposta foi “Já… agora já sei o que é, sexo anal”. “E depois quando o outro senhor chegou, foi o senhor AA e…” À pergunta “e o outro senhor?” respondeu “que me violaram”.
Referiu que antes do CC chegar, a tia tocou-lhe na vagina e nas maminhas.
O arguido AA obrigou-a a fazer sexo oral.
À pergunta “e masturbá-lo, tu também masturbas-te ou não?” a resposta foi não, mas acrescentou “Ele também mandou segurar no pénis” (ou seja, a assistente não compreendeu bem o que significa “masturbar”).
A menor “disse” que um abusou dela no rabinho e outro na boca ao mesmo tempo. Não disse quem é que foi que abusou no rabinho e quem abusou na boca
Referiu que os arguidos também faziam sexo com a tia e obrigaram-na a ver.
O arguido CC deu dinheiro à tia. “Não sei quanto dinheiro é que era, não faço a mínima. Eu só vi ele a dar dinheiro à minha tia”.
Mais declarou: “eu dormi no sofá. Chorava baba e ranho e eles continuavam-me a bater, eu sofri isto durante uns dois, três anos porque era ameaçada, todos os dias eu recebia chamadas, todos os dias se eu contasse matavam a minha família… e eu não consegui contra”. Ficou dois anos sem contar à mãe.
Na apreciação da prova teve-se sempre em especial atenção apurar da existência de indícios de a então menor de idade poder eventualmente ter falsas memórias, ou seja, memórias que não condizem com a realidade, criadas de forma espontânea ou induzidas por um terceiro de forma dirigida. Isto porque, para além dos arguidos, que optaram pelo seu direito ao silêncio, apenas DD presenciou e vivenciou os factos.
Dos pontos em comum das duas declarações da assistente DD, conjugado com a demais prova no sentido que aquele efectivamente foi abusada sexualmente pela tia-avó e companheiro, o Tribunal formou a convicção quanto aos factos provados.
No que tange ao sexo anal, ponderando as divergências nas duas declarações da assistente, conjugado com o facto de à data ter apenas 12 anos de idade, sem experiência a nível sexual - como a própria referiu -, custa a acreditar que não tivesse ficado com mazelas físicas muito dolorosas e a sua mãe não se apercebesse das mesmas. Assim, considerou-se como não provados tais factos. No entanto tal não retira credibilidade ao seu depoimento, quanto ao mais que se considerou provado.
Pese embora a assistente DD tenha referido que os arguidos bateram-lhe com uma panela, uma extensão, cinto, desferiram-lhe estaladas e socos, também não se acreditou que tivesse sido agredida dessa maneira, pois não terá ficado com marcas no corpo, o que não se afigura muito plausível numa criança de apenas de 12 anos de idade e, ademais, os factos ocorreram no Verão, estação em que o vestuário permite ver mais o corpo e nenhum familiar se apercebeu de qualquer marca.
No que tange às divergências entre o referido por DD e sua mãe, quanto à forma como foi efectuado o telefonema na noite em que os factos ocorreram – videochamada ou simples chamada e quem teve a iniciativa de o fazer-, são pormenores que é natural não se recordarem, apenas podendo ter por certo que a arguida BB terá dito à mãe da assistente ou a DD disse a sua mãe, a mando da arguida, que se iam deitar cedo, com a finalidade da mãe da DD não voltar a telefonar nessa noite.
Documentalmente mais se valorou: Auto de Notícia de fls. 17-18; Aditamento de fls. 704, Folha de Suporte de fls. 57-62; Assento de Nascimento de fls. 115; a receita médica e as facturas da aquisição desses medicamentos, de fls. 906 verso a 910, relatinamente ao preço dos medicamentos.
Para o apuramento da factualidade respeitante às condições sociais e familiares dos arguidos relevaram os respectivos relatórios sociais elaborados pela DGRSP, juntos aos autos.
Finalmente, a inexistência de condenações quanto ao arguido CC e existência, no que tange aos arguidos AA e BB, foi alcançada a partir do teor dos respectivos certificados de registo criminal junto aos autos e ainda, quanto à condenação da arguida, a Certidão da sentença proferida no processo n.º 3737/08.2TACSC, de fls. 156-164.
Quanto aos factos dados como não provados os mesmos foram assim considerados em face do supra referido, bem como da ausência/insuficiência de prova, para os considerar provados.
(…)
d. É a seguinte a fundamentação relativa à qualificação jurídica dos factos:
(…)
Do crime de violação
Os arguidos AA e CC encontram-se acusados pela prática de um crime de violação agravada, p. e p. 164º, n.º 2, alínea a), 177º, n.º 4 e nº 7, 14º, n.º 1, 26º, n.º1, 30º, n.º1, todos do Código Penal, em coautoria material e na forma consumada.
Dispõe o artigo 164º do Código Penal, com a epígrafe “Violação”, com a redacção dada pela Lei n.º 45/2023, de 17-08, em vigor a partir de 01-10-2023:
“1 - Quem constranger outra pessoa a:
a) Sofrer ou praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) Sofrer ou praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de um a seis anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer ou a praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima”.
Dispunha o artigo 164º do Código Penal com a redacção dada pela Lei n.º 101/2019, de 09-06, em vigor a partir de 01-10-2019:
“1 - Quem constranger outra pessoa a:
a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de um a seis anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima”.
Por fim, dispunha o artigo 164º do Código Penal com a redacção dada pela Lei n.º 83/2015, de 05 de Agosto, em vigor a partir de 04-09-2015, ou seja, à data dos factos:
“1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos”.
No caso dos autos, da simples leitura da factualidade considerada provada, emerge a forçosa conclusão de que se não mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal do crime de violação em que os arguidos AA e CC vêm incursos, razão pela qual terão os mesmo de ser absolvidos.
Dos crimes de abuso sexual de criança
Os arguidos AA e BB vêm acusados de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art. 171º, n.º 1, 177º, n.º 1 b) e n.º 4, 14º, n. º1, 26º, 1º, 30º, n.º1 e do Código Penal, em autoria material e na forma consumada e um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art. 171º, n.º 3 b), 177º, n.º 1 b) e n.º 4, 14º, n. º1, 26º, 1º, 30º, n.º 1 e do Código Penal, em coautoria material e na forma consumada.
Dispõe o art.º 171º do Código Penal, com a epígrafe “Crime de abuso sexual de criança”:
“1 - Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170.º; ou
b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos;
c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais;
é punido com pena de prisão até três anos.
4 - Quem praticar os actos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.
5 - A tentativa é punível”.
Estamos, assim, perante um tipo de crime cujos elementos objectivos consistem na prática de um acto sexual de relevo que envolva a participação, activa ou passiva, de um menor de 14 anos, sendo esta a idade que, para a lei, serve de fronteira entre a infância e a adolescência.
Constitui, por sua vez, elemento subjectivo, o conhecimento dos elementos objectivos típicos por parte do agente e a vontade de agir de forma a preenchê-los.
O bem jurídico protegido por esta norma incriminadora é a liberdade e a autenticidade de expressão ao nível da sexualidade, de pessoas que, situadas abaixo de determinado nível etário, não são ainda suficientemente capazes para se autodeterminarem a esse nível, protegendo-se, assim, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, dos abusos que sobre ela podem ser perpetrados, aproveitando-se da sua imaturidade.
Visa-se proteger a autodeterminação sexual “face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade” (Jorge de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 541).
Considera-se acto sexual todo aquele comportamento que, “de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica”, independentemente do motivo da actuação do agente (Jorge de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 447-448).
Por sua vez, acto sexual de relevo, serão apenas aqueles que não se reportem a actos insignificantes ou bagatelares, e que representem um entrave com importância para a liberdade de determinação da vítima.
Dentro da previsão normativa inserta no artigo 171.º do Código Penal são distinguidas diversas situações, de acordo com gravidade objectiva de cada uma, sendo que a “cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos”, previstas no n.º 2, não constituindo conditio sine qua non para o preenchimento dos elementos do tipo objectivo (acto sexual de relevo) e respectiva moldura abstracta da punição, relevará, todavia, ao nível da pena a aplicar em concreto.Por fim, o tipo de ilícito em análise constitui um crime de perigo abstracto, na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o livre desenvolvimento físico e psíquico do menor ou o dano correspondente podem ou não vir a verificar-se.
Por sua vez a modalidade de acção no caso da alínea b), n.º 3, do art.171.º, do Código Penal, é o agente actuar sobre menor de 14 anos de idade, por meio de conversa, escrito, espectáculo (visual, sonoro) ou objecto pornográficos.
O conceito de “pornográfico” terá que ver com a representação ou apresentação de pessoa envolvida em comportamento sexual explicito, nomeadamente para fins sexuais.
Deste modo, impõe-se em concluir que a conduta dos arguidos AA e BB, agindo sempre conjuntamente e de comum acordo, integra todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171º, n.º 1, do Código Penal – despiram a menor de 12 anos de idade, o arguido AA com uma das mãos, tocou na vagina desta, acariciando-a, bem como agarrou na mão da menor, colocou-a no seu pénis erecto e efectuou movimentos de cima para baixo e de baixo para cima e a arguida BB mexeu nos seios e vagina da DD.
Assim como a conduta dos arguidos AA e BB, agindo sempre conjuntamente integra todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171°, n.° 3, alínea b), do Código Penal - obrigaram a menor a vê-los, bem como a ver o arguido CC a ter relações sexuais.
Cumpre analisar se estes crimes são agravados, nos termos do artigo 177, do Código Penal.
Dispõe o artigo 177.º, do Código Penal, sob a epígrafe “Agravação” com as alterações da Lei n.º 15/2024, de 01-29, em vigor a partir de 01-03-2024:
“1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.
2 - As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 175.º
3 - As penas previstas nos artigos 163.º a 167.º e 171.º a 174.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível.
4 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º, 171.º a 175.º, nos n.os 1 e 2 do artigo 176.º e nos artigos 176.º-A e 176.º-C são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas.
5 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º, 171.º a 174.º e 176.º-C são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.
6 - As penas previstas no artigo 176.º-C são agravadas de um quarto, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados contra vítima menor de 18 anos.
7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º, no n.º 1 do artigo 176.º e no artigo 176.º-C são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 16 anos.
8 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 175.º, no n.º 1 do artigo 176.º e no 176.º-C são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.
9 - A pena prevista no artigo 176.º-C é agravada de um terço se a vítima for pessoa particularmente vulnerável, em razão de deficiência, doença ou gravidez.
10- Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena”.
Dispunha o artigo 177.º, do Código Penal, com as alterações dadas pela Lei n.º 40/2020, de 2020-08-18, em vigor a partir de 2020-09-01:
“1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.
2 - As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 175.º
3 - As penas previstas nos artigos 163.º a 167.º e 171.º a 174.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível.
4 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 175.º, nos n.os 1 e 2 do artigo 176.º e no artigo 176.º-A são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas.
5 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 174.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.
6 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 16 anos;
7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º e 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.
8 - Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena”.
Dispuha o artigo 177.º, do Código Penal, com as alterações dadas pela Lei n.º 101/2019 de 2019-09-06 em vigor a partir de 2019-10-01:
“1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.
2 - As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 175.º
3 - As penas previstas nos artigos 163.º a 167.º e 171.º a 174.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível.
4 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 175.º, nos n.os 1 e 2 do artigo 176.º e no artigo 176.º-A são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas.
5 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 174.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.
6 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 16 anos;
7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 14 anos.
8 - Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena”.
Por fim, à data dos factos, dispunha o referido artigo 177.º, alterado pela Lei n.º 103/2015, de 2015-08-24, em vigor a partir de 2015-09-23:
“1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
2 - As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 175.º
3 - As penas previstas nos artigos 163.º a 167.º e 171.º a 174.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível.
4 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 175.º, nos n.os 1 e 2 do artigo 176.º e no artigo 176.º-A são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas.
5 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 174.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.
6 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos.
7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.
8 - Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena”.
No caso em apreço a menor tinha ido passar um fim de semana a casa da arguida BB, sua tia-avó, que ali vivia como se de marido e mulher se tratasse com o arguido AA.
Durante o período em que esteve na casa dos dois arguidos, verifica-se uma situação de coabitação, que, não emergindo de fontes de relações familiares, alarga a tutela penal a situações de facto em que as pessoas envolvidas abusam de uma relação de confiança.
Assim, quanto ao arguido AA verifica-se esta agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Ademais, os crimes foram cometido conjuntamente por estes dois arguidos, razão pela agravação do artigo 177.º, n.º 4, do Código Penal.
Outrossim, no que tange à arguida BB, tia-avó da vítima, ainda se verifica a circunstância qualificativa, de a vítima “se encontrar numa relação familiar”, tendo os crimes sido praticados com aproveitamento desta relação.
Ademais, existia entre a menor e a tia avó uma proximidade relacional que acentua a carga de ilicitude da conduta punível, de traição do ambiente supostamente protector e afectivo que deveria pautar essa relação familiar.
Ao nível da agravação, por força do n.º 8 do art. 177º, concorrendo mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.
As alterações legislativas posteriores ocorridas (e enunciadas supra) não são, em concreto, mais favoráveis aos arguidos. Não existe nenhum regime concretamente mais favorável ao agente que importe ponderar.
Actualmente, os comportamento dos arguidos AA e BB continua criminalizado nos mesmos termos
Os arguidos serão, porém, punido pela lei penal em vigor aquando da data da prática dos factos, tal como determina o art. 2º, n.º 1 do Código Penal.
Concluindo, os arguidos AA e BB são condenados pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art. 171º, n.º 1, 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, 14º, n.º 1, 26º, 30º, n.º1, do Código Penal, em coautoria material e na forma consumada e pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art. 171º, n.º 3, al. b), 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, 14º, n.º 1, 26º e 30º, n.º 1, do Código Penal, em coautoria material e na forma consumada.
Para além de típica, a actuação dos arguidos é também ilícita, porque violadora do bem jurídico protegido pela tutela pena, não se tendo apurado quaisquer causas susceptíveis de excluir a ilicitude ou a culpa, tendo sempre agido com dolo directo (artigo 14.º, do Código Penal).
Do crime de lenocínio de menores
Os arguidos AA e BB também se encontram acusados da prática de um crime de lenocínio de menores agravado, p. e p. pelo art. 175º, n.º 1 e n.º 2 alíneas a) e d) e 177º, n.º 4 e 7, 14º, n.º 1, 26º, 30º, nº1, e do Código Penal, (na redacção da Lei nº 103/2015, de 24/9, em vigor à data dos factos), em co-autoria material e na forma consumada.
No que concerne ao crime de lenocínio de menores, dispõe o artigo 175.º, do Código Penal:
“1 - Quem fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição de menor ou aliciar menor para esse fim é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2 - Se o agente cometer o crime previsto no número anterior:
a) Por meio de violência ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho;
d) Actuando profissionalmente ou com intenção lucrativa; ou
e) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; é punido com pena de prisão de dois a dez anos”.
Ora, atenta a matéria fática dada como provada não se logrou provar os elementos típicos deste ilícito.
Donde emerge a forçosa conclusão de que se não mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal do crime lenocínio de menores de que os arguidos AA e BB vêm acusados, razão pela qual serão absolvidos.
Do crime de coacção (na forma tentada)
Aos arguidos AA e BB é também imputada a prática, em coautoria material, de um crime de coação, na forma tentada, previsto e punido, pelo artigo 154º, n.º 1 e 2 do Código Penal.
O artigo 154º do Código Penal, que tipifica o crime de coacção, estatui o seguinte:
“1. Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Antes de entregar a menor à mãe a arguida BB disse à DD que não contasse à mãe o sucedido e que se o fizesse, a matava e desde então, por várias vezes, e em datas na concretamente apuradas, a arguida BB, através de gestos, “disse” à menor que não contasse a ninguém o sucedido e que se o fizesse, a matava.
Agiu a arguida BB de forma livre, deliberada e livremente, com o propósito de evitar que a menor relatasse a terceiros o sucedido, mediante a ameaça de crime contra a vida, resultado que não atingiu por motivos alheios à sua vontade, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
No contexto em que esta expressão foi dita e de todo o circunstancialismo apurado, afigura-se susceptível de configurar a ameaça com mal importante.
No entanto, pese embora a ameaça da arguida BB, DD acabou por contar à mãe o que os arguidos lhe fizeram, ou seja, a arguida só não conseguiu os seus objectivos, por razões exteriores à sua vontade (artigos 22.º e 23.º, do Código Penal).
Destarte, a arguida BB será condenada pelo crime de coação na forma tentada, de que vem acusada.
Quanto ao arguido AA, terá de ser absolvido deste crime, pois não se provou factualidade susceptivel de configurar a prática deste ilícito por aquele. (…)”
e. É a seguinte a fundamentação relativa à determinação das consequências penais no caso :
(…)
DA MEDIDA CONCRETA DAS PENAS A APLICAR.
Ao crime de abuso sexual de crianças do artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal corresponde a pena de prisão de 1 a 8 anos.
Com as agravantes modificativas ope legis previstas no n.º 1, al. b) e n.º 4, do artigo 177.º do Código Penal, é elevado em um terço, quer o limite mínimo, quer o limite máximo daquela pena, que passam a ser de 1 ano e 4 meses (limite inferior) e 10 anos e 8 meses de prisão (limite superior).
Ao crime de abuso sexual de crianças do artigo 171.º, n.º 3, do Código Penal corresponde a pena de prisão de 1 mês até 3 anos (artigo 41.º, n.º 1, do Código Penal).
Com as agravantes modificativas ope legis previstas no n.º 1, al. b) e n.º 4, do artigo 177.º do Código Penal, é elevado em um terço, quer o limite mínimo, quer o limite máximo daquela pena, que passam a ser de 1 mês e 10 dias (limite inferior) e 4 anos de prisão (limite superior).
Por sua vez ao crime de coacção corresponde pena de prisão de 1 mês (artigo 41.º, n.º 1, do Código Penal), até 3 anos ou pena de multa.
Nos termos do disposto no artigo 23.º n.º 2 do Código Penal, a tentativa do crime praticado pela arguida BB é punida com uma pena especialmente atenuada. É assim imperativa a aplicação do disposto no artigo 73.º do Código Penal.
Por aplicação da atenuação especial, por se tratar de crime de forma tentada, o limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço e o limite mínimo mantém-se no mínimo legal – 1 mês - (arts. 23.º, n.º 2 e 73.º, n.º 1, als. a) e b) e art. 41.º, n.º 1 do C.P.).
No que tange ao crime de coacção, na forma tentada, importa ter presente o preceituado no artigo 70.º do Código Penal, no sentido que sempre que sejam, em alternativa, aplicáveis pena privativa e pena não privativa da liberdade, impõe-se que o Tribunal exerça um juízo de preferência à segunda, quando entenda que esta realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
Este preceito espelha o princípio da subsidiariedade do direito penal e o carácter nocivo das penas detentivas da liberdade, como uma das ideias fundamentais subjacente ao sistema punitivo do nosso Código Penal: a «reacção contra as penas institucionalizadas ou detentivas, por sua própria natureza lesivas do sentido ressocializador que deve presidir à execução das reacções penais» (Robalo Cordeiro, in «Escolha e Medida da Pena», Jornadas de Direito Criminal, CEJ, p. 238).
Ora, no caso concreto, verifica-se que a arguida BB tem antecedentes criminais por crimes graves e não revelou em julgamento qualquer consciência critica ou arrependimento do seu comportamento. Ademais, ponderando o grau de ilicitude e culpa de toda a actuação da arguida, a pena de multa não se basta, para exprimir o juízo de censura sobre a sua conduta e satisfazer as finalidades de prevenção geral e especial, impondo-se a opção pela pena de prisão.
Importa aferir, em face da factualidade apurada, dos critérios previstos no artigo 71.º do Código Penal.
Quanto à medida da pena, diga-se que a dosimetria concreta da pena nos termos dos artigos 71º, nº 1 e 2, do Código Penal, a qual deve respeitar os limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, considerada a finalidade das penas indicada no artigo 40.º, do Código Penal, havendo ainda que atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo do crime, possam depor a favor do arguido ou contra ele, designadamente, às enunciadas exemplificativamente no artigo 71º, nº 2, do Código Penal.
No entanto, a pena tendo como suporte axiológico uma culpa concreta, a sua individualização pressupõe proporcionalidade entre a pena e a culpabilidade, e não esquecendo as exigências de prevenção e de reprovação do crime, a execução deve nortear-se num sentido pedagógico e ressocializador e, em caso algum, a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa, sob pena de violação do princípio “de proibição de excesso” (artº. 40.º, nº 2, do C.Penal).
As necessidades de prevenção geral positiva são aqui particularmente relevantes e elevadas, decorrentes por um lado do sentimento de repulsa e indignação da comunidade perante os abusos sexuais praticados, mormente dentro de ambiente familiar e/ou equiparado, e por outro também da forte incidência da criminalidade de índole sexual com crianças, na sociedade portuguesa actual, sendo revelador o elevado número de processos atinentes a crimes desta natureza que nestes últimos anos têm sido julgados neste Tribunal e, outrossim, do alarme social que lhe está hoje associado, tudo a impor especiais necessidades de restabelecer a confiança e segurança da Colectividade nas normas jurídicas que protegem o livre desenvolvimento psíquico e sexual das crianças, e o pleno respeito pela sua integridade física e psíquica.
Com o recurso à prevenção especial pretende dar-se resposta às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.
Dentre as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do citado artigo 71.º, perfilam-se o grau da ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente, a sua situação económica, a conduta anterior e posterior ao facto.
No caso em apreço, importa considerar:
- O grau de ilicitude de cada uma das condutas dos arguidos;
- a culpa dos arguidos, que se revela elevada, a merecer bastante censura ética jurídica, sendo que agiram com dolo intenso, na sua modalidade mais grave, o dolo directo -cf. al. b) do n.º 2 do art.º 71.º do CP;
- As circunstâncias e o modo em que os factos ocorreram;
- A motivação da prática dos factos pelos dois arguidos, tendo agido com o fim, censurável, de satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais com a menor, sobrinha neta da arguida, condutas estas que ofendem, em elevado grau, os sentimentos gerais de pudor sexual, ademais;
- A não assunção dos factos pelos arguidos, não demonstrando o mais ténue arrependimento e contrição pelos factos praticados;
- As consequências da prática dos factos, não sendo arrojado imaginar que DD não apagará da sua memória este episódio;
- Os graves antecedentes criminais dos dois arguidos, com especial relevo para a pretérita condenação da arguida em dois crimes da mesma natureza:
O arguido AA, no âmbito do processo n.º 495/99.3PAPNI, do (extinto) 2.º Juízo do Tribunal de Peniche, por factos de ........1999, decisão de 07.11.2001, transitada em julgado em 21.10.2002, foi condenado pela prática de dois crimes de homicídio simples, um deles na forma tentada e outro na consumada, de dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário e um de sequestro, na pena única de 16 anos de prisão.
A arguida BB, no âmbito do processo n.º 3737/08.2TACSC, do (extinto) 1.º Juízo Criminal de ..., por factos de ........2008, decisão de 16.02.2011, transitada em julgado em ........2011, a arguida foi condenada pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, um deles p. e p. pelo artigo 170.º e 171.º, n.º 3, al. b), do Código Penal – pena de 1 ano e 6 meses de prisão – e o outro p. e p. pelo artigo 170.º e 171.º, n.º 1, do Código Penal – pena de 2 anos de prisão. Em cúmulo das duas penas parcelares foi condenado na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, com regime de prova.
A apurada situação pessoal dos arguidos.
De relevante a favor dos arguidos, nada se apurou.
Assim sendo, atentas as molduras penais aplicáveis, ponderando todo o circunstancialismo e factores supra descritos, a elevada culpa dos arguidos, as exigências de prevenção e o desvalor da sua conduta, tem-se por adequado fixar as seguintes penas, de acordo com a facticidade que corporiza cada um dos crimes:
AA
1. pena de 4 (quatro) anos de prisão pelo crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art. 171º, n.º 1, 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal;
2. pena de 2 (dois) anos de prisão pelo crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art. 171º, n.º 3, al. b), 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal;
BB.
3. pena de 4 (quatro) anos de prisão pelo crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art. 171º, n.º 1, 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal;
4. pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, pelo crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo art. 171º, n.º 3, al. b), 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal;
5. pena de 6 (seis) meses de prisão, pelo crime de coacção na forma tentada.
No que toca à pena a aplicar em cúmulo, postula o artigo 77º do Código Penal:
“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais levada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
Ora, no caso, as resoluções criminosas e contornos das situações, revelam que os arguidos apresentam um desvio da sua personalidade no domínio sexual, assim como uma personalidade deformada perante os mais elevados valores e respeito pela individualidade no seu âmago mais íntimo.
As circunstâncias do caso em apreciação apresentam um acentuado grau de ilicitude global, manifestado no número, na natureza e gravidade dos crimes praticados, nos bens jurídicos violados na área dos direitos de personalidade da menor abusada.
Há que ter em conta o elevado alarme social que este tipo de actuações criminosas suscita na comunidade, com repercussões altamente negativas também em sede de prevenção geral.
A pena unitária tem de responder à valoração, no seu conjunto e interconexão, dos factos e personalidade do arguido.
Assim, considerando o número e a natureza das infracções, a conexão e estreita ligação entre os crimes cometidos, que se traduz em condutas violadoras da liberdade de autodeterminação sexual, do direito da menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, valorando o ilícito global perpetrado, a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade dos arguidos, tendo em conta a moldura do concurso que vai, quanto ao arguido AA, de 4 anos a 6 anos de prisão e quanto à arguida BB de 4 anos a 6 seis anos e 9 meses, julgamos justa e adequada aplicar:
Ao arguido AA a pena única de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão.
À BB a pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.
Da suspensão da execução da pena
À face da pena única de prisão aplicada ao arguido AA – 4 anos e 9 meses de prisão – impõe-se equacionar a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena nos termos prevenidos no artigo 50.º do Código Penal, que dispõe: “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime, e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Porém, as necessidades elevadas de prevenção especial acima enunciadas, derivadas das circunstâncias do caso concreto, nomeadamente a natureza dos crimes em causa, o facto de o arguido não ter reconhecido minimamente o mal praticado e não ter manifestado qualquer arrependimento e a gravidade dos seus antecedentes criminais, impedem a formulação de qualquer prognóstico favorável à execução de uma pena na comunidade e conduzem à conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que a pena de prisão terá de ser efectiva.
(…)
f. É a seguinte a fundamentação relativa ao pedido de indemnização civil:
(…)
Pedido de indemnização civil:
DD deduziu pedido de indemnização civil contra os três arguidos/demandados (junto a fls. 901 a 908 dos autos), peticionando a sua condenação no valor total de € 20.317,09, (vinte mil e trezentos e dezassete euros e nove cêntimos) dos quais € 20.000,00 são a titulo de danos não patrimoniais que com a sua conduta os arguidos lhe causaram e € 317,09 a título de danos patrimoniais, decorrentes da medicação que toma desde o ano de ..., acrescidos de juros de mora desde a prática dos factos até integral pagamento.
Dispõe o artigo 129.º do Código Penal que «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil».
Implicando a prática de uma de uma infracção penal, a lesão de direitos patrimoniais ou não patrimoniais de terceiros, ressarcimento de tais lesões deve, em consequência do princípio da adesão consagrado no artigo 71.º, do Código de Processo Penal, ser deduzido no processo penal.
Estabelece o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil: «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Tais danos são tanto os não patrimoniais como os patrimoniais, aqueles valorados equitativamente, conforme decorre do artigo 496.º, n.º 3 do Código Civil, estes levando em conta a possível reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento danoso («Princípio da Reposição Natural»), ponderados os critérios resultantes dos artigos 562.º, 564.º e 566.º do citado diploma, sendo que, face ao artigo 563.º, em relação a ambos os tipos de danos terá que verificar-se o respectivo nexo causal.
Quanto aos danos de natureza não patrimonial impõe-se trazer à colação o disposto no art.º 496.º, n.º 1, do Cód. Civil, onde se prescreve que: “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
Esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela que «a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada) (...). Não se enumeram os casos de danos não patrimoniais que justificam uma indemnização. Diz-se apenas que devem merecer, pela sua gravidade, a tutela do direito. Cabe, portanto, ao tribunal, em cada caso, dizer se o dano é ou não merecedor de tutela jurídica».
No que tange à fixação do montante da indemnização, a lei estabelece o recurso à equidade, cabendo, assim, aos tribunais, determinar o que é equitativo e justo em cada caso, mas indicando o caminho a seguir para determinação do montante da indemnização, ou seja, fixando os critérios dentro dos quais a equidade vai operar.
Tais critérios são a gravidade dos danos, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e outrossim, as demais circunstâncias do caso concreto – artigo 494.º, aplicável ex vi do artigo 496.º, n.º 3, 1.ª parte, ambos do Código Civil.
Na perspectiva da indemnização nos termos da responsabilidade civil pode afirmar-se que dano ou prejuízo é toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.
Não tendo o arguido CC sido condenado por qualquer crime, quanto a este improcede da totalidade do pedido indemnizatório.
Já em face dos factos que resultaram provados, verificamos que os factos perpetrados pelos arguidos AA e BB e que integram a prática por estes de dois crimes de abuso sexual de crianças e ainda um crime de coação na forma tentada, quanto à arguida BB, na pessoa da demandante, pela sua gravidade, pelas sequelas e sofrimento causados, nos termos considerados provados, o que aliás resulta das regras da experiência comum, atentos os factos praticados pelos arguidos na sua pessoa, merecem indiscutivelmente a tutela do direito.
Nestes termos e, perante o exposto, estão reunidos os pressupostos de que depende a efectivação da responsabilidade civil destes dois arguidos para com a ofendida e, consequente obrigação de indemnização, no que concerne aos não patrimoniais peticionados.
Assim, na fixação dos montantes indemnizatórios, no que se reporta aos danos não patrimoniais, rege o disposto no art.º 494.º do Cód. Civil, ali se referindo que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do agente e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.
Ora considerando por um lado, a situação económica dos arguidos AA e BB e da lesada, os danos morais sofridos pela menor e, o modo como foram perpetrados os factos que impuseram a condenação dos arguidos e as consequências que o comportamento dos arguidos teve na menor e por certo continuarão a ter, conforme resulta da factualidade provada - julga-se equitativo fixar a indemnização devida pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante em € 20.000,00 (vinte mil Euros), nos termos peticionados.
Também procede o pedido na condenação dos arguidos, a título de danos patrimoniais, dos gastos que a demandante teve com medicamentos desde ..., pois resultou da prova que a demandante necessita (e necessitará) de tomar medicamentos (e de acompanhamento especializado psicológico) e, não obstante, não tenha junto aos autos todos os respectivos recibos, de acordo com um plano de normalidade do valor das respectivas despesas em medicamentos e recorrendo à equidade (artigo 566.º n.º 3, do Código Civil), o peticionado valor de € 317,09, a título de ressarcimento pelo pagamento dos medicamentos, afigura-se muito adequado.
Sobre as referidas quantias acrescem ainda os juros de mora vencidos desde a notificação a que alude o art. 78º do Código de Processo Penal e dos vincendos até integral pagamento, à respetiva taxa legal - artigos 805º, n.º 3, segunda parte, e 806º, n.º 1, ambos do Código Civil.
(…)
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II.4- Apreciemos, então, as questões a decidir.
a) De saber se a sentença recorrida é nula nos termos do art. 379º nº1 al.b) do Cód. de Processo Penal, por violação do disposto no art. 358º do Cód. de Processo Penal.
A arguida/recorrente BB ocupa parte da sua pretensão recursória com a invocação de que o acórdão recorrido se mostra afectado de nulidade em virtude de a mesma ter sido condenada por factos distintos dos constantes da acusação, sustentando-se na redacção do ponto 30 desta em contraponto com o facto dado como provado no ponto 25 do acórdão, e bem assim do ponto 17 dos factos não provados.
Desde logo se saliente que se mostra destituído de fundamento argumentativo o apelo que a recorrente faz à prova produzida, traduzindo uma confusão de conceitos, pois que a nulidade, a verificar-se, terá apenas a ver com contraponto entre os factos que a mesma vem acusada e os factos dados como provados, nada tendo a ver com qualquer erro de julgamento, como a mesma parece sustentar nesta parte.
Vejamos.
Uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal consiste na designada vinculação temática do tribunal significando que o objecto do processo penal é aquele da acusação (ou da pronúncia), sendo esta que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado. Constitui ainda (a vinculação temática), a «pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido» assegurando os direitos de contraditoriedade e audiência - Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, edição 2004, pág. 145.
Já Gomes Canotilho e Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 1ª edição, vol. I, fls. 522, nota XI, a propósito do princípio do acusatório, referem : «O princípio acusatório é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório). A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador”.
Ora, o pleno exercício pelo arguido, em sede de julgamento, das garantias de defesa que lhe assistem, tem como pressuposto a estabilização do objecto processual logo que este tenha sido fixado pela acusação ou pela pronúncia, quando esta exista, objecto esse que, de acordo com o disposto nos arts. 283º ou 308º do Cód. de Processo Penal, se compõe obrigatoriamente de uma narrativa factual e de um certo enquadramento jurídico-penal dos factos narrados.
Nesta ordem de ideias, qualquer alteração do objecto processual tem de ser necessariamente excepcional e tem de ocorrer de modo a deixar ao arguido a oportunidade de reorganizar a sua defesa, na medida necessária, o que equivale a dizer, em concreto, dentro dos condicionalismos definidos pelos arts. 358º e 359º do Cód. de Processo Penal.
É, pois, precisamente neste fundamental enquadramento que surge o instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o qual visa, precisamente, que em sede de julgamento sejam asseguradas as garantias de defesa ao arguido, pretendendo a lei processual penal que este não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, ou por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente – isto é, que venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender.
Como se resumiu no Ac.RE de 13/05/2014, proc. 359/11.4PATVR.E1, «O instituto procedimental da alteração de factos [cfr. artigo 1.º n.º 1 alínea f) do CPP] tem por escopo assegurar as garantias de defesa do arguido, prevenindo um julgamento e uma condenação com base em materialidade de facto diversa daquela que, oportunamente, maxime, na acusação, lhe tenha sido comunicada – artigo 32.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP)».
Os mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º do Cód. de Processo Penal viabilizam, pois, a prossecução das finalidades do processo penal, garantindo os direitos de defesa do arguido e o processo justo.
Dando cumprimento processual às exigências assim colocadas, e na parte que aqui particularmente importa considerar, dispõe em especial o art. 358º do Cód. de Processo Penal, sob a epígrafe «Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia» o seguinte :
«1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.»
E é a consideração da absoluta essencialidade do respeito pelos princípios em causa nesta matéria que se traduz em quanto se dispõe, entretanto no nº1, alínea b) do art. 379º do Cód. de Processo Penal, que liminarmente comina de nula a sentença «que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».
Descendo ao caso dos autos, e tomando em consideração que o artigo 1º, nº 1, alínea f) do Código de Processo Penal, define a alteração substancial dos factos como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, tem obviamente de reconhecer-se que não ocorreu, no caso em apreço, uma tal alteração. A arguida vinha acusada nesta parte da prática, como autora material, de um crime de coacção na forma tentada, p. e p. pelo art. 154º, n.º 1 e 2 do Código Penal.
A putativa «alteração dos factos» não representou, por isso, qualquer agravamento da posição da arguida, não lhe sendo por essa via imputado crime diverso, nem resultando agravados os limites máximos das sanções aplicáveis.
Importa, ainda assim, averiguar se a alteração da redação introduzida pelo Tribunal recorrido corresponde, efetivamente, a uma alteração dos factos que constituem o objeto do processo, na medida em que não ocorreu qualquer comunicação dessa alteração, prévia à decisão.
Analisando os dois textos aqui em causa, sustentáculo da nulidade invocada, resulta da acusação a seguinte substancialidade fáctica:
“30 - Desde então, por várias vezes, e em datas não concretamente apuradas, os Arguidos AA e BB disseram á menor que não contasse a ninguém o sucedido e que se o fizesse, a matavam”.
Já dos factos provados no acórdão resulta o seguinte:
“25. Mas antes de a entregar à mãe a arguida BB disse à DD que não contasse à mãe o sucedido e que se o fizesse, a matava e desde então, por várias vezes, e em datas na concretamente apuradas, a arguida BB, através de gestos, “disse” à menor que não contasse a ninguém o sucedido e que se o fizesse, a matava.”
Da comparação que se deixa exposta resulta evidente a sem razão dos argumentos avançados pela recorrente.
Comparados os dois textos, torna-se claro que ambos descrevem a mesma realidade. A redação adotada pelo coletivo de juízes que procedeu ao julgamento apresenta-se apenas como uma particularização dos factos, em conformidade com a valoração da prova que entendeu resultar da audiência de julgamento, sem que, todavia, se impute à arguida mais do que o que já constava da acusação.
Neste sentido, não existe uma alteração dos factos da acusação (enquanto realidades do mundo físico e psíquico plasmadas no texto acusatório), mas antes uma diversa descrição de uma mesma realidade, o que não exige qualquer comunicação prévia, por não existirem factos novos (no sentido de «não descritos»), atendendo a que o julgador não está vinculado às concretas palavras contidas na acusação, mas apenas à facticidade que as mesmas descrevem (a vinculação é temática e não semântica).
Neste caso, a precisão tem a ver com o modo de comunicação, que pode abranger diversas modalidades, radicando o aspecto fundamental na transmissão de uma determinada ideia ao receptor, neste caso a ofendida, sendo que esta ideia não se mostra alterada em qualquer das redacções.
Para justificar a necessidade da comunicação à arguida, exige o artigo 358º, nº 1 do Código de Processo Penal, que a alteração, se a houver, tenha relevo para a decisão da causa. Ou seja, impõe-se que se trate de uma alteração relevante. No caso, nenhuma das referidas modificações introduzidas no texto acusatório merece tal qualificação.
Entende a recorrente que “em abstracto” tal poderia contender com o preenchimento ou não do crime de ameaça, mas não aduziu qualquer argumento que permita substanciar tal afirmação, nem a mesma tem qualquer cabimento, dado que, como vimos referindo, o “pedaço de vida” continua a ser o mesmo.
Em conclusão, não tendo o tribunal a quo introduzido qualquer alteração no objeto do processo tal como o mesmo foi conformado pela acusação, nada havia a comunicar à arguida, nos termos previstos nos artigos 358º e/ou 359º do Código de Processo Penal, e também não pode concluir-se que a arguida tenha sido condenada por factos diversos dos descritos na acusação, pelo que não se verifica a invocada nulidade do acórdão recorrido.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
b) Vejamos se o acórdão recorrido é nulo nos termos do disposto no art. 374º nº2 do Cód. de Processo Penal, por violação do disposto no art.379º nº1 al.a) do Cód.Processo Penal;
Sustenta o recorrente/arguido AA, que teria ocorrido a violação do disposto no art.374º nº2 do Cód.Processo Penal, uma vez que teria existido falta de exame crítico das provas.
Vejamos:
O artigo 205º nº1 da Constituição da República Portuguesa consagra que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Sublinhe-se que a necessidade de fundamentar as decisões judiciais é uma das exigências do processo equitativo, um dos Direitos consagrados no artigo 6º/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que se traduz num elemento de transparência da justiça inerente a qualquer acto processual.
Aquele princípio constitucional encontra consagração nos termos do disposto no art. 379º do Cód. de Processo Penal, que prevê em especial os motivos pelos quais a sentença penal pode ser afectada de nulidade.
Ora, o nº1, alínea a) do citado art, 379º do Cód. de Processo Penal, comina de nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374º/2/3/b), do mesmo código.
Na parte que aqui importa considerar, o art. 374º do Cód. de Processo Penal, versando sobre os requisitos da sentença, estipula no seu referido nº2 o chamado dever de fundamentação da sentença, determinando que em tal sede «ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Como escreve o Conselheiro Oliveira Mendes (em “Código de Processo Penal Comentado”, 5ª edição, pág. 1168), essa fundamentação reforçada «visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a actividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da actividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a Revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - artigo 32º, nº1, da Constituição da República».
É na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador, do mesmo passo se viabilizando a possibilidade de controlo da decisão, de forma a impedir a avaliação probatória caprichosa ou arbitrária e deve ser conjugada com o sistema de livre apreciação da prova.
Assim, a fundamentação da decisão deve obedecer a uma lógica de convencimento que permita a sua compreensão pelos destinatários, mas também pelo tribunal de recurso.
Essa lógica de convencimento e de possibilidade de controlo por via de recurso, porém, apenas se impõe na medida do necessário para a compreensão da decisão, da sua lógica intrínseca, de modo a que não possa apresentar-se como arbitrária ou injustificada – não porque o fosse, mas porque indemonstrada a sua justificação.
Contudo, não se exige, numa fastidiosa explanação, transformando o processo oral em escrito, que se descreva todo o caminho tomado pelo juiz para decidir, todo o raciocínio lógico seguido. A lei impõe, isso sim, uma enunciação suficiente, ainda que sucinta, para persuadir os destinatários e garantir a transparência da decisão.
Como se refere no Ac.RL de 08/01/2020, proc. 133/17.4PGSXL.L1-3, “O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental, mas bastante, que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte e desde que torne percetível e sindicável, em instância de recurso, as razões da convicção do Tribunal do julgamento, quanto aos factos, não se verificará a nulidade emergente da falta de exame crítico das provas (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03 e Ac. do STJ de 3.10.2007, processo 07P1779, Ac. da Relação de Lisboa de 10.07.2018, processo nº 106/15.1PFLRS.L1-5 in http://www.dgsi.pt; Ac. da Relação de Évora de 07.03.2017, Processo 246/10 Jus Net 1781/2017 Marques Ferreira (in "Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal", Livraria Almedina, 1988, pág. 228) Sérgio Poças, Da sentença penal – Fundamentação de facto, Revista “Julgar”, n.º 3, p. 21 e segs.).
Ou seja, se a fundamentação da decisão deve obedecer a uma lógica de convencimento que permita a sua compreensão pelos destinatários, mas também pelo tribunal de recurso, essa lógica de convencimento e de possibilidade de controlo por via de recurso apenas se impõe na medida do necessário para a compreensão da decisão, da sua lógica intrínseca, de modo a que não possa apresentar-se como arbitrária ou injustificada.
Como refere o Ac.STJ de 27/05/2009, proc.1511/05.7 PBFAR.S1, “A fundamentação decisória não tem que preencher uma extensão épica, sem embargo de dever permitir ao seu destinatário directo e à comunidade mais vasta de cidadãos, que sobre o julgado exerce um controle indirecto, apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal decisão. Para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do CPP, reclama do juiz o exame crítico das provas, que é a sua descrição e o juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório, ou seja, a crítica porque umas merecem credibilidade e outras não, impondo que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada.
O que significa que o dever de fundamentação deverá ter–se por satisfeito mediante uma exposição que, ainda que sintética, expresse suficientemente o exercício de exame critico sobre as distintas fontes de prova, e permita percepcionar os motivos da opção do tribunal pelo resultado de tal exercício que vem a consagrar na decisão da matéria de facto, opção essa deverá ser tanto mais fundamentada quanto maior for a dualidade que resulte da prova produzida.
Como referencia o Ac.RP de 09/12/2015, proc. 9/14.7T3ILH.P1, «O exame crítico da prova consiste na enumeração das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção. (…) A razão de ser da exigência da exposição, dos meios de prova, é não só permitir o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, mas também assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova
Efectuadas estas genéricas considerações, revertamos às questões em concreto suscitadas pelo arguido/recorrente nesta parte do seu recurso.
Sucede que da análise do acórdão recorrido logo ressalta que não merece acolhimento a censura nesta parte efectuada pelo recorrente, pois que aquele é claro, quer no elenco da matéria de facto, quer das provas consideradas em sustento da mesma, mais patenteando um exame crítico dessa prova produzida nos autos, mormente em sede de audiência de julgamento, sendo da leitura do mesmo (acórdão) possível reconduzir racionalmente as razões probatórias que determinaram que o tribunal a quo formasse a sua convicção e percepcionar as conclusões jurídicas a que chegou, e quanto a toda a matéria de facto provada.
Em bom rigor, e como acima se aludiu, só existe violação do artigo 374º nº2 do Cód. de Processo Penal, se houver uma falta absoluta da indicação dos motivos que fundamentam a decisão e faltar exame crítico das provas que servem para formar a convicção do tribunal.
Ora, o que da fundamentação da sentença resulta é que da conjugação dos diversos meios de prova que lhe era legítimo avaliar – nomeadamente do depoimentos das testemunhas, prova documental e recurso a presunções judiciais –, resultou, no entender do tribunal a quo, a demonstração de todos os factos que constam da matéria de facto provada, mais se expressando os motivos pelos quais aqueles depoimentos se entenderam como credíveis ou não.
Em suma, lida a fundamentação em causa, não restam dúvidas de que o tribunal elenca e justifica os motivos em que sustenta, na sua convicção, a demonstração de toda a matéria de facto provada – e, nesta medida, fica muitíssimo aquém da fronteira que delimita a existência da falta de fundamentação.
Se esse exercício se mostra adequadamente efectuado, e se as conclusões probatórias a que chega o tribunal recorrido são passíveis de censura, essa é uma questão diversa, e que se situa a jusante da omissão de explicitação dos motivos pelos quais se chegou àquelas. Ou seja, a nulidade que aqui vem suscitada, e prevista no art. 379º nº1 al.a) do Cód. de Processo Penal ocorrerá quanto se verificar ausência de exame crítico das provas produzidas e não quando o exame efectuado pelo tribunal seja susceptível de censura.
Tanto é assim que se constata haver o próprio recorrente percebido as explicações do tribunal a quo, e até pretende rebater materialmente as mesmas, nos moldes que adiante melhor se explanará.
Considera–se, pois, que através da análise que efectuou, o tribunal a quo faz, de forma adequada e suficiente, a descrição exigida pelo art. 374º nº2 do Cód. de Processo Penal do percurso lógico seguido na decisão que tomou e das razões da sua convicção, não merecendo tal decisão a consideração do vício de nulidade por falta de exame crítico da prova invocado pelo arguido e recorrente.
Pelo exposto, é de julgar improcedente esta parte do recurso.
c) De saber se se verifica no acórdão recorrido algum dos vícios previstos no art. 410º nº2 do Cód. de Processo Penal.
Veio o arguido/recorrente AA impugnar o acórdão condenatório proferido nos autos em sede de decisão da matéria de facto consignada no mesmo, referindo que na decisão recorrida existe um dos vícios previstos no art. 410º nº2 do Cód. de Processo Penal, aludindo à verificação do erro notório na apreciação da prova.
Como decorre do disposto no art. 428º do Cód. de Processo Penal, as Relações, em sede de recurso, conhecem de facto e de Direito.
Pois bem, a decisão da matéria de facto adoptada em primeira instância pode ser sindicada em sede de recurso por duas vias alternativas :
– no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º nº2 do Cód. de Processo Penal,
– ou através da designada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º/3/4/6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410.º, cuja indagação, como resulta imposto do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento ; no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal.
Nesta parte importa considerar quanto respeita à arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410º – a designada impugnação restrita da matéria de facto
Assim, estabelece a disposição em causa que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum :
a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;
b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ;
c) o erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, como acima já se enunciou, em qualquer das apontadas hipóteses, qualquer dos vícios deverá traduzir–se em falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão devendo ser patentes e perceptíveis à leitura do restrito teor da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios. Assumem–se, pois, como erros de lógica intrínsecos na construção da sentença, a relevar da contextualização interna da estrutura da mesma, ainda que congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico-socialmente situado.
Cumpre realçar que não sustenta a configuração de tais vícios, o esgrimir de argumentos opinativos quanto ao mérito do julgamento de facto a que o tribunal chegou e que verteu no texto da decisão, nem a mera crítica ao processo formativo cognitivo–racional que sustentou uma tal apreciação factual ou valoração probatória – a menos que ofendam em tal grau o senso comum que por isso não viabilizem sequer a validação do acto de julgamento efectuado.
No que ao caso nos interessa, o erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis.
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
“Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido”. (Ac.RC. de 24/04/2018, proc.1086/17.4T9FIG.C1)
Resumindo, o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo.
Tal erro já não se verifica se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício.
Importa, porém, não esquecer, quando a este vício – erro notório na apreciação da prova – que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, tal como o dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada, sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável.
Por fim, relembre-se, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detectar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
Isto dito, e passando a apreciar a argumentação recursória do arguido, a primeira nota que logo se impõe é a de constatar que a leitura das alegações e das conclusões patenteia enorme confusão no que tange à delimitação dos vícios processuais que, em sede de impugnação da decisão de facto, imputa à sentença recorrida.
Na verdade, pese embora, como se disse, o recorrente aludir à verificação de vícios de lógica intrínseca da sentença que se mostram previstos no art. 410º nº2 do Cód. de Processo Penal, o exercício a que na verdade procedeu é o da crítica à forma como o tribunal a quo valorou elementos de prova dos autos, manifestando a sua discordância quanto a tal valoração, e apelando a segmentos dessa mesma prova, tal como produzida nos autos, para sustentar a sua discordância.
Na realidade, não deflui de qualquer segmento das alegações do arguido a concreta invocação de algum ponto ou passagem da decisão recorrida que suscite a respectiva caracterização no âmbito de qualquer dos vícios previstos no art. 410º nº2 do Cód. de Processo Penal.
As conclusões apresentadas, que sustentam a existência dos vícios referidos no citado artigo 410º são disso reflexo, porquanto, segundo o recorrente, “da prova produzida não resulta que os factos ali dados como provados tenham acontecido daquela forma. E não estão provados desde logo por não corresponderem às declarações para memória futura da ofendida nem encontrarem suporte nos relatórios médicos e periciais junto aos autos”, antes estando conexionados com a apreciação da prova que o mesmo fez ao longo do recurso.
Ora, compulsada a fundamentação deduzida pelo Tribunal a quo, não se vislumbra qualquer vício de fundamentação, qualquer erro notório, com as características que acima lhe assinalámos, que importe a conclusão de que o Tribunal de julgamento errou na valoração da prova, da mesma retirando conclusões que não lhe seria legítimo retirar.
Toda a alegação do recorrente remete para a apreciação da prova por parte do Tribunal a quo, mas não sustenta a existência de qualquer um dos vícios acima referidos.
Mas, e para que dúvidas não persistam, percorrida a matéria de facto provada em causa nesta situação, e bem assim a respectiva motivação, bem como a decisão jurídico–penal adoptada a jusante daquelas, não se descortina qualquer erro patente (ou sequer menos patente) de raciocínio por parte do tribunal a quo, não se revelando qualquer dos passos em causa, de todo, errático ou incongruente; também não se detecta qualquer contradição intrínseca na parte da decisão e fundamentação de facto, revelando–se ademais a matéria factual decidida suficiente para a decisão jurídico–penal que vem a ser depois adoptada.
Nenhum dos vícios plasmados no nº2 do art. 410º do Cód. de Processo Penal se considera, pois, verificado.
Pelo exposto, é de julgar improcedente esta parte do recurso.
d) Do erro de julgamento (art. 412º, nº 3, do CPP)
d.1) Pelo arguido recorrente AA - se o acórdão recorrido se encontra ferido de erro de julgamento (art. 412º, nº 3, do CPP), impugnando este os factos dados como provados sob os pontos 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 19,20, 22 e 26 no que a si diz respeito.
O erro de julgamento, consagrado no artigo 412º nº3 do Cód. de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado ; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, ampliando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal – isto é, nesta situação o recurso quer reapreciar concretos segmentos de prova produzida em primeira instância, havendo assim que a reproduzir tale quale em segunda instância, por forma a apreciar da verificação da específica deficiência suscitada.
Notar–se–á, não obstante, que nos casos de tal impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, mas antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, e sempre na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exactamente por o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituir um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, os aludidos erros que o recorrente deverá expressamente indicar, que se impõe a este o ónus de proceder a uma especificação sob três vertentes, conforme estabelecido no art. 412º nº3 do Cód. de Processo Penal, onde se impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar :
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados,
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida,
c) as provas que devem ser renovadas.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens [das gravações] em que se funda a impugnação [não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos], pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes [n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal]4.
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso].
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
Em suma, para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, quais as provas [específicas] que impõem decisão diversa da recorrida, demonstrando-o, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as [se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados] ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos [quando na ata da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens].
“Importa, portanto, não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente [sublinhado nosso]. (Acórdão do TRL, desta 5.ª Secção, datado de 16-11-2021, Processo n.º 1229/17.8PAALM.L1-5).
Vejamos esta parte do recurso do arguido AA.
In casu, entende o recorrente arguido que o tribunal a quo não deveria ter dado como provado os seguintes factos provados:
6. De seguida, a arguida BB e o arguido AA disseram à menor para se despir, o que esta recusou.
7. De seguida a arguida BB e o arguido AA agarraram na DD por um braço e levaram a menor para o quarto.
8. Então, a arguida BB e o arguido AA tiraram a roupa que a menor trazia despida.
10. Nessa altura, os arguidos BB e AA dirigiram-se para a cama e ordenaram à menor que permanecesse no quarto e que olhasse para eles.
11. Acto contínuo, a arguida BB colocou-se de joelhos, na cama, enquanto o arguido AA se colocou por detrás e introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, fazendo movimentos de vai e vem, assim mantendo relações sexuais de cópula completa na presença da menor.
12. De seguida o arguido AA aproximou-se da menor, que permanecia despida, e com uma das mãos, tocou na vagina desta, acariciando-a.
13. Após, o arguido AA agarrou na mão da menor, colocou-a no seu pénis erecto e efectuou movimentos de cima para baixo e de baixo para cima.
19. A certa altura disseram à DD para sair do quarto, para ficar à porta que dá para a sala, mas logo de seguida o arguido AA foi buscá-la, a qual permanecia despida, e ordenou-lhe que fosse para o quarto dos arguidos, apesar de a menor dizer que não queria ir.
20. Quando a menor entrou no quarto, os arguidos CC, BB e AA, continuaram a manter relações sexuais e a arguida BB a certa altura estava despida, com os joelhos e as mãos apoiadas na cama, e um dos outros arguidos estava atrás da mesma, mantendo relações sexuais de cópula completa.
22. Em circunstâncias não apuradas o AA puxou os cabelos de DD.
26. Ao actuar da forma descrita, agiram os arguidos AA e BB com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais e lascívia, os quais não souberam nem quiseram refrear, conforme satisfizeram, utilizando para tanto a menor DD, indiferente à idade desta e às consequências de tal actuação sobre a mesma, mantendo na presença desta actos sexuais de cópula completa.
Ora, analisadas as conclusões do recurso facilmente se constata que o recorrente, pese embora a aparência de que o faz, não cumpriu verdadeiramente o ónus de impugnação especificada, em obediência ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal, não satisfazendo as conclusões apresentadas, a exigência da tríplice especificação legalmente imposta, nos casos de impugnação ampla.
E, por outro lado, uma leitura da motivação resulta o mesmo.
Na verdade, o recorrente indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas a partir daí constrói uma pretensão recursiva que fica muito aquém dos pressupostos para a apreciação de um pretenso erro de julgamento.
Na verdade, não refere em relação à prova produzida em audiência de julgamento as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (limitando-se a apelar a considerações genéricas, mormente em relação ao depoimento da ofendida em audiência de julgamento).
Mas acima de tudo, não explica porque é que os elementos apontados dessa forma deficiente impõem decisão diversa da recorrida, o que é bem diferente, ou seja, nunca referindo ou explicitando o motivo porque tal impõem uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal.
Aliás, do que nos é dado a aperceber o recorrente socorre-se do recurso apresentado aquando do proferimento do primeiro acórdão dos autos, e reiterando as dúvidas que na altura ali invocou, para numa adaptação forçada, pretender impugnar a matéria de facto, mas sem nunca indicar qual o suporte probatório para tal (para além da sua própria dúvida).
Transmuta tal para pugnar o seu entendimento que se a ofendida depôs duma maneira e agora depôs doutra (que não concretizou), logo o tribunal não poderia ter dado como provado tais factos, ao contrário do que o tribunal afirmou de forma expressa, na numa análise crítica da prova.
Se assim é, o recorrente limita-se a discordar do entendimento do tribunal recorrido, mas nunca referindo ou explicitando o motivo porque é que a sua análise impõe uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal.
Na verdade, exigia-se que o recorrente – à semelhança do que a lei impõe ao juiz – fundamente a imperiosa existência de erro de julgamento, desmontando e refutando a argumentação expendida pelo julgador.
Tendo em conta a utilização do verbo impor (cfr. art.º 412.º, n.º 2, al. b), do C.P.P.), não basta estar demonstrada a mera possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal, o que, aliás, é comum verificar-se, sendo necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo tribunal recorrido (cfr. acórdão da RP, de 05-06-2024, proc. n.º 466/21.5PAVNG.P1 ).
In casu, o que o recorrente verdadeiramente pretende é contrapor a sua posição à prova que foi produzida em audiência de julgamento, é fazer vingar a sua própria leitura da referida prova, ou as dúvidas que nela pretende ver, insurgindo-se contra o facto de o Tribunal ter considerado assente os factos como o fez, afirmando tão só “Pelo que, o único elemento de prova que o Tribunal considerou para fundamentar e justificar a condenação do Recorrente, naqueles crimes, foram as duas declarações da Assistente, as quais ocorreram com um intervalo de tempo de 6(seis) anos. Nesse período de tempo a Assistente amadureceu, teve oportunidade de falar com a mãe sobre o assunto, de ler as várias peças processuais constantes dos autos e as respectivas decisões, e bem assim, de construir uma nova narrativa, moldando o seu discurso áquilo que lhe era conveniente vir a ser dado como matéria de facto provada.”, o que nada mais retracta que a sua visão da prova, ma que afinal serviu para a prova do facto 14 que o recorrente não coloca em causa.
Aliás, atente-se que o recorrente nunca refere a total motivação do Tribunal a quo ou a tenta desmontar, fazendo tábua rasa da convicção que este, de forma exaustiva e categórica, enuncia enquanto sustentáculo dos factos provados e não provados.
Vejamos o cerne da motivação, tal como explanada pelo tribunal recorrido:
“Na apreciação da prova teve-se sempre em especial atenção apurar da existência de indícios de a então menor de idade poder eventualmente ter falsas memórias, ou seja, memórias que não condizem com a realidade, criadas de forma espontânea ou induzidas por um terceiro de forma dirigida. Isto porque, para além dos arguidos, que optaram pelo seu direito ao silêncio, apenas DD presenciou e vivenciou os factos.
Dos pontos em comum das duas declarações da assistente DD, conjugado com a demais prova no sentido que aquele efectivamente foi abusada sexualmente pela tia-avó e companheiro, o Tribunal formou a convicção quanto aos factos provados.
No que tange ao sexo anal, ponderando as divergências nas duas declarações da assistente, conjugado com o facto de à data ter apenas 12 anos de idade, sem experiência a nível sexual - como a própria referiu -, custa a acreditar que não tivesse ficado com mazelas físicas muito dolorosas e a sua mãe não se apercebesse das mesmas. Assim, considerou-se como não provados tais factos. No entanto tal não retira credibilidade ao seu depoimento, quanto ao mais que se considerou provado.
Pese embora a assistente DD tenha referido que os arguidos bateram-lhe com uma panela, uma extensão, cinto, desferiram-lhe estaladas e socos, também não se acreditou que tivesse sido agredida dessa maneira, pois não terá ficado com marcas no corpo, o que não se afigura muito plausível numa criança de apenas de 12 anos de idade e, ademais, os factos ocorreram no Verão, estação em que o vestuário permite ver mais o corpo e nenhum familiar se apercebeu de qualquer marca.
No que tange às divergências entre o referido por DD e sua mãe, quanto à forma como foi efectuado o telefonema na noite em que os factos ocorreram – videochamada ou simples chamada e quem teve a iniciativa de o fazer-, são pormenores que é natural não se recordarem, apenas podendo ter por certo que a arguida BB terá dito à mãe da assistente ou a DD disse a sua mãe, a mando da arguida, que se iam deitar cedo, com a finalidade da mãe da DD não voltar a telefonar nessa noite.”
É sobre esta motivação que o recorrente nenhuma prova indica, de forma válida, que imponha sentido diverso da decisão, para além das suas próprias dúvidas, e do sistemático recurso ao que disse a ofendida aquando das declarações para memória futura.
Mas é o próprio tribunal recorrido que perante as divergências com que se deparou, valorou o depoimento da ofendida, agora presencial, nos moldes acima retractados (depoimento esse que o recorrente nunca aborda, como se praticamente não tivesse existido).
In casu, o caminho trilhado pelo tribunal a quo apresenta-se lógico e inteligível, de acordo com os critérios legais de admissibilidade e de apreciação das provas, sendo crítico na análise dos elementos probatórios que lhe foram apresentados.
Poderá o recorrente divergir ou não concordar, no contexto de uma ponderação própria sua, com aquela avaliação e conclusão probatória efectuada pelo tribunal a quo, mas de forma alguma isso, e as objecções alegadas, impõem qualquer alteração àquilo que, em termos de matéria de facto provada, tal conclusão se traduz.
No fundo, limita-se a relatar a divergência entre a sua convicção pessoal sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, mas sem nunca os contrapor ou escalpelizar, apelando sistematicamente a uma dúvida que só existe na versão que pretende que seja aceite.
Como resulta claramente da motivação da matéria de facto supra transcrita, o tribunal a quo deu explicou porque considerou os factos em apreço como provados e, designadamente, de que forma valorou a prova, não se descortinando a existência de qualquer interpretação ilegal, designadamente, qualquer interpretação inconstitucional do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que impusesse a este Tribunal apreciar.
Sobre tal circunspecto importa salientar que o recorrente, sem nunca invocar a nulidade do depoimento da testemunha EE, sustenta que à mesma lhe deveria ser “reduzida credibilidade”, uma vez que se trata de depoimento de ouvir dizer, terminando por afirmar que se deveria colocar em causa se a ofendida “foi penetrada pelo arguido AA”.
A validade do depoimento em causa não está em causa, como o recorrente bem sabe, dado que, nos termos do artº129º do Cód.Processo Penal, a testemunha DD foi inquirida em audiência de julgamento, pelo que o depoimento daquela é livremente valorável nos termos do art.127º do mesmo diploma5.
Para além disso, mais uma vez o recorrente apela às alegações de recurso iniciais, que nada têm a ver com o acórdão proferido nos autos, dado que agora foi dado como não provado que tal facto tenha acontecido, como resulta do ponto 5 dos factos não provados, pelo que não se compreende a pretensão do recorrente.
E, do mesmo modo, refere o mesmo que o direito ao silêncio do recorrente teria contra si valorado em termos de formação da convicção do tribunal, como se uma presunção de culpabilidade se tratasse (ponto P das conclusões).
Mais uma vez, apelando, ao primeiro acórdão proferido nos autos, que não o acórdão ora em recurso, transcreve segmentos de trechos ali existentes que não figuram actualmente. pelo que se mostra destituída de sentido tal invocação.
Em suma, não demonstra o recorrente a existência de qualquer erro de julgamento.
Não tem assim qualquer provimento esta pretensão recursiva.
*
Conforme resulta do ponto 38 e 39 da motivação, e que se traduz nos pontos B e C das conclusões, o recorrente, depois de impugnar especificadamente os factos 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 19,20, 22 e 26, afirma de modo vago um conjunto de prova que no seu entender inquinaria o pedido de indemnização civil.
Ora, a impugnação deste obedece exactamente aos mesmos requisitos que vimos salientando para a parte criminal, não existindo distinção nenhuma decorrente do disposto no art.412º do Cód.Processo Penal.
Ora, nesta parte, o recorrente arguido desde logo nem sequer indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados. Remete para uma categoria dogmática, mas em momento algum esclarece qual o exacto ponto ou pontos, de entre os provados, relativamente ao qual pretende expor os motivos da sua discordância (socorrendo-se, ao invés e de forma limitada, de numeração do pedido de indemnização civil).
E isto não se faz em globo, ou por remissão para “pedaços de vida”, para crimes, ou para categorias dogmáticas, como faz o recorrente.
Uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão.
Conforme refere Sérgio Poças6, “Em primeiro lugar e tendo em atenção o que fica exposto, o recorrente no corpo motivador e depois nas conclusões — com as especificidades próprias, acima assinaladas — deve especificar, isto é, identificar devidamente, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados. Como todos estaremos de acordo, esta questão é nuclear. Como o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas, como vimos, apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo.
De facto, não podem ficar dúvidas sobre quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados.
Assim nesta especificação — as palavras valem — serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão.
(…)
Na verdade, é preciso que o recorrente identifique devidamente o facto, o ponto de facto, que foi dado como provado, se é o caso, e não devia tê-lo sido, na sua perspectiva, como é óbvio. Assim se, v. g. o tribunal a quo deu como provado no ponto 2 da matéria de facto (provada) que «o arguido tinha no bolso do casaco 20 gramas de heroína», se o recorrente entende que este facto foi incorrectamente julgado (que deveria ter sido dado como não provado), tem, no mínimo, de dizer clara e expressamente sob o título de «Pontos de facto incorrectamente julgados»: 1. Toda a factualidade descrita no ponto 2 da matéria de facto provada. (Isto, se não transcrever aquela factualidade).”
Refere o AC.RC de 05/01/2011, proc. 888/04.6TAVIS.C1, “ 1.A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.”
O recorrente nada disto faz, limitando-se a introduzir “no que respeita ao pedido de indemnização civil”.
Ora, o pedido de indemnização civil pressupõe facto voluntário praticado pelo agente lesante, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano7, desconhecendo-se o que é que o recorrente pretende efectivamente impugnar, de entre todos os que ali se possam subsumir.
Conforme refere o Ac.RL de .../.../2009, proc. 4/05.7TAACN.C1, “Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Este circunstancialismo inviabiliza a reapreciação da matéria de facto pela via da impugnação ampla, no que a esta questão diz respeito.
d.2) Pela arguida recorrente BB - se o acórdão recorrido se encontra ferido de erro de julgamento (art. 412º, nº 3, do CPP), impugnando esta os factos dados como provados sob os pontos 10, 11, 20 ,25, 26, 29, 30, 31 e 33, 71, 72, 75, 76, 77, 79 e 80 no que a si diz respeito.
Reiteramos todas as considerações acima tecidas sobre a apreciação do erro de julgamento, o qual implica por parte do recorrente o ónus de proceder a uma especificação sob três vertentes, conforme estabelecido no art. 412º nº3.
Vejamos esta parte do recurso da arguida BB.
In casu, entende o recorrente arguido que o tribunal a quo não deveria ter dado como provado os seguintes factos provados:
10. Nessa altura, os arguidos BB e AA dirigiram-se para a cama e ordenaram à menor que permanecesse no quarto e que olhasse para eles.
11. Acto contínuo, a arguida BB colocou-se de joelhos, na cama, enquanto o arguido AA se colocou por detrás e introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, fazendo movimentos de vai e vem, assim mantendo relações sexuais de cópula completa na presença da menor.
20. Quando a menor entrou no quarto, os arguidos CC, BB e AA, continuaram a manter relações sexuais e a arguida BB a certa altura estava despida, com os joelhos e as mãos apoiadas na cama, e um dos outros arguidos estava atrás da mesma, mantendo relações sexuais de cópula completa.
25. Mas antes de a entregar à mãe a arguida BB disse à DD que não contasse à mãe o sucedido e que se o fizesse, a matava e desde então, por várias vezes, e em datas na concretamente apuradas, a arguida BB, através de gestos, “disse” à menor que não contasse a ninguém o sucedido e que se o fizesse, a matava.
26. Ao actuar da forma descrita, agiram os arguidos AA e BB com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais e lascívia, os quais não souberam nem quiseram refrear, conforme satisfizeram, utilizando para tanto a menor DD, indiferente à idade desta e às consequências de tal actuação sobre a mesma, mantendo na presença desta actos sexuais de cópula completa.
29. Mais sabiam os arguidos AA e BB que, ao actuarem da forma supra descrita, perturbavam e prejudicavam, de forma séria, o desenvolvimento da menor e a sua autodeterminação sexual, que ofendiam os seus sentimentos de criança e punham em causa o normal e são desenvolvimento psicológico, afectivo e sexual da mesma, como afectaram.
30. Agiram ainda os arguidos AA e BB, de comum acordo, com o propósito concretizado de praticar actos de natureza sexual com a menor DD, indiferentes à idade desta, e às consequências de tal actuação sobre a mesma, para assim satisfazer os seus impulsos sexuais e de lascívia, bem sabendo que a sua actuação era adequada a molestar sexualmente a menor e causar-lhe, mal-estar, vergonha e humilhação, como causou, o que quiseram.
31. Agiu a arguida BB de forma livre, deliberada e livremente, com o propósito de evitar que a menor relatasse a terceiros o sucedido, mediante a ameaça de crime contra a vida, resultado que não atingiu por motivos alheios à sua vontade, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
33. Os arguidos AA e BB actuaram, de comum acordo, livre, deliberada e conscientemente, com intenção de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente.
71. Em consequência da conduta dos arguidos AA e BB e também por ter tido alguns problemas com colegas da escola, no ano de ... DD começou a apresentar sinais de instabilidade emocional, tristeza constante e irritabilidade, que resultou em depressão e em ... de 2018, passou por uma crise de ansiedade, com intenção de tirar a própria vida, que a levou a ingerir vários medicamentos, com o propósito de se livrar de todas as perturbações que vinha sofrendo e passou a, por diversas veses, tentar o suicídio.
72. Perturbações estas também decorrentes de estar a ser coagida/ameaçada pela arguida BB, para que não contasse à mãe tudo que lhe fizeram.
75. Em consequência do comportamento dos arguidos AA e BB, a assistente teve medo, sentiu-se humilhada e envergonhada, ficou negativamente afectada no seu desenvolvimento pessoal, psicológico, comunicação, relação com as demais pessoas, desenvolvimento escolar.
76. Antes do ocorrido a menor não tinha crises de ansiedade e não necessitava de tomar medicação para a ansiedade e tinha aproveitamento escolar.
77. Após os factos perpetrados pelos arguidos, a nível escolar reprovou duas vezes no 7º ano de escolaridade.
79. Os comportamentos dos arguidos BB e AA causaram na assistente perda de autoestima, depressão reactiva, exaustão emocional, medo, insegurança e stress pós-traumático.
80. A assistente necessita de acompanhamento psiquiátrico até a sua estabilização e para superar o “trauma” decorrente dos comportamentos dos arguidos AA e BB.
Ora, analisadas as conclusões do recurso facilmente se constata que a recorrente, pese embora a aparência de que o faz, não cumpriu verdadeiramente o ónus de impugnação especificada, em obediência ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal, não satisfazendo as conclusões apresentadas, a exigência da tríplice especificação legalmente imposta, nos casos de impugnação ampla.
E, por outro lado, uma leitura da motivação resulta o mesmo.
Na verdade, a recorrente indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas tal como o recorrente anteriormente analisado, não refere em relação à prova produzida em audiência de julgamento as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (limitando-se a apelar a considerações genéricas, mormente em relação ao depoimento da ofendida em audiência de julgamento – v.d. ponto XIX, XXIX), e igualmente não explica porque é que os elementos apontados dessa forma deficiente impõem decisão diversa da recorrida, nunca referindo ou explicitando o motivo porque tal impõem uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal8.
No caso vertente, em relação aos factos 10 e 11, a recorrente apenas coloca em causa que a vítima tenha sido obrigada a assistir a actos sexuais dos arguidos e sustenta o seguinte silogismo: se aquela disse uma coisa na altura das declarações para memória futura e agora disse algo diferente (que não explicita), logo o tribunal não o poderia ter valorado, segundo a leitura que faz da prova.
Reiteramos igualmente a parte já transcrita sobre a motivação que o tribunal recorrido fez sobre a dicotomia entre os dois depoimentos da vítima e no cuidado que teve em expressar a valoração que fez da prova, recorrendo, inclusive a presunções naturais.
Em matéria de formação da convicção do julgador, rege o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo excepções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o Tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal.
Sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável. O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
E é esta convicção que a recorrente não ataca, para além da afirmar o seu desacordo para com a mesma.
Mas isso não é a indicação de meios probatórios que imponham conclusão diversa. O que realmente resulta das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal da arguida recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal recorrido firmou, e que no entendimento da recorrente não deveria ter firmado, sobre os factos, nada mais.
Veja-se relação à impugnação do facto sob o ponto 25, em que a recorrente, mais uma vez, se limita a pretender fazer vingar a sua própria leitura da referida prova, insurgindo-se contra o facto de o Tribunal ter considerado assente os factos como o fez, esclarecendo que, segundo a sua leitura, tal facto “só surgiu aquando da repetição do julgamento, que teve lugar 8 oito) anos após os factos, cremos nós, por isso mesmo, tratar-se evidentemente, de uma memória induzida por terceiros, ou até, quiçá, criada pela própria Assistente.
É tão só a opinião da recorrente, que face ao tempo decorrido faz tais conjecturas, mas sempre sem indicar qualquer prova que o sustente, não esquecendo que a mesma não impugnou o restante conjunto de factos que sobre os actos praticados sobre a vítima, e a motivação probatória do tribunal recorrido é a mesma.
Não podemos esquecer que a convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Ou seja, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, o Tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.
Não interessa, assim, neste recurso, o que os juízes desta Relação decidiriam se tivessem efectuado o julgamento em primeira instância. Também não está em causa o modo como decidiria o recorrente se fosse o Juiz a quo. Na verdade, o recurso em matéria de facto não tem por finalidade a realização de um segundo julgamento, mas tão só a apreciação da decisão proferida na 1ª instância, apreciação essa limitada ao exame [controlo] dos elementos probatórios valorados pelo tribunal recorrido e feita à luz das regras da lógica e da experiência, mas sempre sem colidir com os fundamentos da decisão que só a imediação e a oralidade permitem atingir - imediação e oralidade que não estão presentes no julgamento do recurso, porque aos juízes do tribunal superior apenas são facultados registos [em suporte magnético].
E o que vimos afirmado vale na íntegra, para o modo como a recorrente pretende defender a existência de erro de julgamento relativamente aos factos 71, 72, 75, 76, 77, 79 e 80, mas em que verdadeiramente a recorrente apenas pretende colocar em causa a existência de um nexo causal entre a actuação da recorrente e as consequências a nível psicológico da vítima.
Mais uma vez, a recorrente nunca ataca a convicção expressa pelo tribunal, e certamente por desatenção, não atentou que aquele, no seu art.71º dos factos provados estabelece uma relação de concausalidade entre o comportamento dos arguidos e bem assim “por ter tido alguns problemas com colegas da escola” e os comportamentos tidos pela vítima a partir de ..., o que fica reforçado pela facto não provado 18 e 19.
Limita-se a transcrever partes de relatórios médicos (por vezes truncados como é o caso do ponto LIV, relativo ao relatório de perícia médico legal), mas mais uma vez nunca ataca a convicção do tribunal espelhada na motivação da matéria de facto, que se socorre do conjunto de relatórios médicos, dos esclarecimentos prestados em audiência por alguns daqueles, do depoimento da ofendida e de sua mãe (nesta parte a recorrente, mais uma vez, não indica as concretas passagens dos depoimentos que entendem que seriam relevantes para a demonstração do erro de julgamento), antes pretendendo ela própria criar uma narrativa do que teria levado às tentativas de suicido da vítima: os problemas na escola e uma pretensa falta emocional por parte de cuidadores primários.
Mas a primeira delas consta dos factos provados como sendo concausal dos comportamentos da ofendida, pelo que nem se compreende o alcance desta parte do recurso, que não a reafirmação do que o tribunal a quo já perfilhou, e a segunda não é uma causa, mas sim uma circunstância que poderia ter sido obstativa aos comportamentos ou ao seu agravamento.
Para que dúvidas não hajam sobre as consequências dos actos dos arguidos sobre a ofendida, veja-se o que resulta dos quesitos na íntegra do relatório de perícia médico-legal de fls.761 e ss.:
“Ao quesito “1. A menor relata e demonstra comportamentos sexualizados que denunciem ter sido vítima de abusos sexuais por parte dos arguidos, os seus tios AA e BB e do arguido CC?”
A resposta: “Da observação realizada, a DD não revelou nenhum tipo de alteração do comportamento durante a avaliação pericial que sugira ter sido vítima de abuso sexual. Nem todos os abusos prossupõem sintomatologia associada, sendo também esta, muito díspar entre as crianças e jovens. No entanto, foram referidas alterações comportamentais e emocionais com impacto no funcionamento global secundária e coincidente cronologicamente, com os alegados abusos. Também se identificou na DD um grande desconforto emocional associado à lembrança e narrativa dos abusos sexuais aos quais foi alvo”.
Aos quesitos colocados:
“2. Os factos verbalizados pela menor aparentam ter sido vivenciados?
3. Ou denotam ter sido induzidos/imaginados?” pode-se ler “Dadas as alterações emocionais e comportamentais relatadas, assim como o impacto visível que teve a evocação dos factos, a perita pronuncia-se afirmativamente acerca do quesito numero 2. A DD não aparentou sofrer de nenhum tipo perturbação psicótica que pudesse justificar um relato alheio à realidade. O seu discurso foi organizado e não fantasioso. Não se apuraram ganhos secundários na possibilidade de poder ter inventado o seu relato, pelo que se considera que é genuíno e não manipulado. Não foi possível comparar ou confrontar os relatos da DD com os obtidos noutras ocasiões por não existirem nas peças processuais enviadas.
Aos colocados quesitos “4. Tais factos afectaram psíquica e mentalmente a menor? 5. De que forma e com que intensidade?”, foi respondido “Parece existir uma quebra no funcionamento global na DD coincidente com o início dos alegados abusos sexuais, passando a ter alterações do humor, alterações do comportamento e atentando contra a sua integridade física. A DD, há 3 anos que se encontra em acompanhamento psiquiátrico, tendo apoio de diferentes intervenções terapêuticas mas tendo ainda um longo caminho para percorrer até a sua estabilização. Em muitas ocasiões, os abusos sofridos durante a infância ou adolescência, sobretudo em contexto intra-familiar, têm um grande impacto ao longo da vida, condicionando a qualidade dos relacionamentos interpessoais na idade adulta, e causando estados emocionais instáveis”.
Ao quesito “6. A menor revela sequelas emocionais / físicas dos acontecimentos que vivenciou?” a resposta foi “A DD apresenta uma personalidade instável, com início coincidente com os alegados abusos aos que foi submetida”.
Ao quesito “7. A menor revela stress pós-traumático?” a resposta “Da avaliação realizada, considera-se que a RR apresenta, segundo o Diagnóstico e DD das Perturbações Mentais da ... (DSM5), de uma Perturbação de Stress Pós- Traumático 309.81 (F43.10), sendo os alegados abusos sofridos os eventos estressores e desencadeantes desta patologia. A DD apresenta também traços desadaptativos da Personalidade tipo Borderline tornando a DD uma jovem que se autogere por impulso na procura da sua satisfação pessoal imediata. Este tipo de problemáticas potenciam relacionamentos instáveis assim como comportamentos de risco. Na génese destas problemáticas existe frequentemente uma falha emocional por parte dos cuidadores primários, Considera-se necessário que a jovem mantenha o acompanhamento psicoterapêutico e psiquiátrico”.
Ao quesito “8. A menor apresenta capacidade para testemunhar?”, foi respondido “A DD é uma jovem com competências cognitivas dentro da normalidade. As suas capacidades percetivas, narrativas e mnésicas encontram-se mantidas. Não se apuraram alterações da perceção nem do pensamento. Apesar do impacto emocional que a evocação dos fatos provocou na DD, considera-se que esta tem capacidade para testemunhar, devendo ser salvaguardada a sua integridade psíquica com a finalidade de evitar uma vitimização secundária”.” (sublinhados nossos),
E da tomada de esclarecimentos à perita resulta que explicou ao tribunal o segmento que a recorrente invoca em favor da sua tese, truncando-o, explicitando “Referiu que no seu relatório deixou exarado “Da observação realizada, a DD não revelou nenhum tipo de alteração do comportamento durante a avaliação pericial que sugira ter sido vítima de abuso sexual”, porque a DD teve um comportamento adequado e ajustado, mormente não revelou qualquer alteração do pensamento. Quando falava dos factos fazia-o com uma emocionalidade expressa muito grande, não hesitando nas palavras, aparentando terem sido vivenciados na primeira pessoa.”
E o tribunal recorrido salientou ainda um depoimento:
“A perita médica do INNML, Prof.ª Dra. PP, especialista em medicina legal, efectuou a perícia que se enconta junto no apenso, a fls. 110 e 111, em ... de ... de 2019 e ouvida em esclarecimentos, referiu que a menor DD não tinha alterações cognitivas, porém tinha humor depressivo, apresentava cicatrizes no corpo com grande probabilidade de serem por auto-mutilação. A DD estava a ser examinada para ser avaliada pelas feridas que tinha na cara e nos punhos (no exame consta como história do evento “terá sido agredida com instrumento cortante xizato”), porém focou dois aspectos que numa menor são importantes: 1) o contexto familiar – mãe, avó e irmão de 8 anos – os pais estariam separados e referiu “o meu pai não me vai buscar” - revelador de pouco contacto com o pai - e 2) ao lhe perguntar se queria dizer algo mais, se as cicatrizes no braço esquerdo foram feitas por outrem, uma vez que era destra, de forma expontânea a DD referiu que fora abusada pela tia e marido da tia, ficando a olhar no vácuo, sem continuar. Ou seja, estava a ver uma lesão corporal e depara-se com “uma miúda depressiva, com comportamentos auto-lesivas e que me diz isto”. Assim, podemos concluir que, para a DD, era o sofrimento decorrente de ter sido “abusada pela tia e marido da tia”, que a levava a se automutilar no braço (e não o facto de ter sido agredida por uma colega ou outra qualquer razão).”
É evidente o acerto da decisão do tribunal recorrido.
Erro de julgamento seria, face a estes elementos, entender que a actuação dos arguidos não teria provocado qualquer dano psicológico na ofendida, alteração comportamental, ou não teria a virtualidade de desencadear actos lesivos da própria vida ou saúde.
Saliente-se que a censura quanto à forma como ocorreu a convicção do tribunal não pode assentar, simplisticamente, no ataque da fase final de tal convicção, antes havendo que residir na violação de passos para a formação da mesma, sob pena de inadequada interpretação do disposto naquele artigo 127.º do Código de Processo Penal, não obstante a liberdade de apreciação esteja limitada por critérios de legalidade, da lógica, da experiência, dos conhecimentos científicos e, assim, configurando uma liberdade de acordo com um dever.9
Por seu lado, segundo o acórdão do STJ de 27-05-2010, proc11/04.7GCABT.C1.S1, “sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”
Tal não significa que a apreciação, eminentemente subjectiva, conducente a conferir maior ou menor credibilidade de um depoimento, é insindicável, pois ao julgador é imposto o dever de explicitar as razões da sua convicção pessoal, na fundamentação da decisão, isto é, que revele não só os motivos por que certo depoimento mereceu maior credibilidade do que outro, mas também que explicite o raciocínio lógico que utilizou na apreciação global e lógica de toda a prova, e, no presente caso, o Tribunal a quo fê-lo.
E se os critérios subjectivos expressos pelo julgador se apresentarem com o mínimo de consistência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçar uma convicção sobre a verdade dos factos, para além da dúvida razoável, tal juízo há de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento.
Como resulta claramente da motivação da matéria de facto supra transcrita, o tribunal a quo deu, respetivamente, como provados e não provados os factos, explicando, de forma razoável, lógica, racional e plausível, porque assim o fez. No caso, explicou porque considerou os factos em apreço como provados e não provados, respetivamente, e, designadamente, de que forma valorou a prova, não se descortinando a existência de qualquer interpretação ilegal, designadamente, qualquer interpretação inconstitucional do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que impusesse a este Tribunal apreciar.
O Tribunal a quo deixou claro que a decisão sobre a matéria de facto, designadamente nos pontos impugnados pelo recorrente, assentou na ponderação dos elementos de prova que, à luz das regras da experiência comum, designadamente nas provas testemunhais, documentais bem como em presunções naturais10, as quais elencou e analisou e do mesmo modo procedeu relativamente aos factos não provados.
Impõe-se, pois, concluir que a decisão recorrida não se encontra ferida de qualquer erro de julgamento, nos termos do art. 412º, nº 3 do C.P.P..
Improcede, assim, igualmente esta parte do recurso.
e) Do agravamento das molduras penais, nos termos do art.177º do Cód.Penal.
O recorrente AA num discurso confuso insurge-se contra a agravação da moldura penal encontrada pelo tribunal a quo, atento o disposto no art.177º do Cód. Penal.
Ora, desde logo, a argumentação do mesmo pressupõe um erro de julgamento não invocado, relativamente à relação que o mesmo tem ou teve com a co-arguida, e até quanto à cognoscibilidade da idade da ofendida, que o mesmo insere neste capítulo das conclusões.
Sucede que o mesmo não impugnou validamente os pontos 1º 2º, 3º, 27º, 28º e 32º, 35º e 36º pelo as considerações que o mesmo tece sobre factos que deveria ser tidos em conta são totalmente inócuas.
No entanto, sobre a questão de direito, outras considerações importa tecer.
O acórdão recorrido entendeu qualificar a conduta do arguido recorrente nos seguintes termos:
“No caso em apreço a menor tinha ido passar um fim de semana a casa da arguida BB, sua tia-avó, que ali vivia como se de marido e mulher se tratasse com o arguido AA. Durante o período em que esteve na casa dos dois arguidos, verifica-se uma situação de coabitação, que, não emergindo de fontes de relações familiares, alarga a tutela penal a situações de facto em que as pessoas envolvidas abusam de uma relação de confiança. Assim, quanto ao arguido AA verifica-se esta agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.”
Não se afigura correcto tal entendimento, que entende que a circunstância agravativa da conduta do recorrente se deveria a uma pretensa situação de coabitação em que se encontraria a ofendida.
Afigura-se-nos que a coabitação pressuporá a partilha do mesmo espaço de habitação, um residir em comum, de modo que coabitar implique que o domicílio seja comum aos elementos que ali vivem, sendo que domicílio é comummente tido como a casa da residência, o local onde se mora, que se habita.
Assim o conceito de coabitação reveste-se de característica de estabilidade e permanência que não permitem o enquadramento nele de alguém (vítima) que vai passar um fim de semana a casa de um familiar (neste caso a arguida, que essa sim, vive em coabitação com o arguido), como é caso dos autos.
Mas ainda assim, tal não implica a absolvição do arguido recorrente pela alínea em causa.
Resultava da matéria de facto provada que:
“27. Ao agirem da forma descrita, os arguidos AA e BB aproveitaram-se da relação familiar que a arguida mantinha com a menor, sua sobrinha, com quem conviviam frequentemente, aproveitando-se assim da proximidade e da autoridade que resultava dessa mesma relação.”
Em função de tal o tribunal a quo qualificou a conduta da arguida BB:
“Outrossim, no que tange à arguida BB, tia-avó da vítima, ainda se verifica a circunstância qualificativa, de a vítima “se encontrar numa relação familiar”, tendo os crimes sido praticados com aproveitamento desta relação. Ademais, existia entre a menor e a tia avó uma proximidade relacional que acentua a carga de ilicitude da conduta punível, de traição do ambiente supostamente protector e afectivo que deveria pautar essa relação familiar. Ao nível da agravação, por força do n.º 8 do art. 177º, concorrendo mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena. As alterações legislativas posteriores ocorridas (e enunciadas supra) não são, em concreto, mais favoráveis aos arguidos. Não existe nenhum regime concretamente mais favorável ao agente que importe ponderar.”
Ora, atento o disposto no art.28º nº1 do Código Penal, “1 - Se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respectiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora”, ou seja, atento o caso em apreço, as agravantes que têm por referência um determinado co-autor são transmissíveis aos demais co-autores (vd.José Mouraz Lopes, in Crimes Sexuais, 2ªed.pag.250 e Paulo Pinto de Albuquer, Comentário do Código Penal, anotação ao art.177º, nota3).
Dito de outro modo, em todas as situações de comparticipação em factos cuja ilicitude dependa de qualidades ou relações especiais do agente, basta que um deles detenha essas qualidades para que a pena aplicável se estenda a todos os outros comparticipantes (salvo se a norma incriminadora comportar outro sentido).
Deste modo, sendo certo que se verifica uma relação familiar entre a arguida BB, e foi com aproveitamento de tal relação que os factos ocorreram, tal circunstância agravativa estende-se ao comparticipante, neste caso o recorrente AA.
Não existe assim, qualquer alteração à qualificação jurídica efectuada dado que se subsume ainda na mesma alínea do art.177º do Cód.Penal.
Improcede assim a pretensão recursiva do recorrente.
f) Da qualificação dos factos enquanto consubstanciadores por parte da recorrente BB da prática de um crime de abuso sexual de criança agravado e de um crime de coacção
Entende a recorrente BB que não deveria ter sido condenada pelo crime de de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 3, al. b), 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal e pelo crime de coacção na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154º, n.ºs 1 e 2 e 22.º, do Código Penal, suportando tal na falência probatória da prova.
Como acima foi já referido, tal pretensão recursiva não teve procedência, pelo que soçobra igualmente a presente questão.
g) Saber se a opção pela escolha de pena de prisão no crime de coacção para a recorrente BB, nos termos do art.70º do Cód.Penal é excessiva e desadequada
Dentro de um emaranhado de considerações, a primeira questão recursiva suscitada pela recorrente BB, no que às sanções penais diz respeito, prende-se com a opção efectuada pelo tribunal recorrido que entendeu, na alternativa entre pena de prisão e multa relativamente ao crime de coacção, optar pela aplicação à arguida de uma pena de prisão, invocando que tal seria desajustado e inadequado, pugnando assim pela aplicação tão só de uma pena de multa.
De acordo com o art. 40º do Cód. Penal, as finalidades das penas são a protecção de bens jurídicos e a socialização do agente do crime, determinando-se que a culpa constitui o seu limite.
Como factores de escolha e graduação da pena concreta há a considerar os parâmetros dos arts. 70º e 71º do Cód. Penal.
A primeira destas disposições determina que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Já o art. 71º do Cód. Penal estabelece que tal determinação deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção da prática de condutas criminalmente puníveis, devendo atender-se a todas as circunstâncias que - não fazendo parte do tipo de crime - depuserem a favor ou contra o arguido.
Ora, apreciando o acórdão recorrido, logo resulta que foram objecto de ponderada apreciação os elementos preponderantes para a opção pela pena de prisão em vez de qualquer alternativa não privativa da liberdade como pena principal.
Este, após discorrer de forma apropriada e pertinente sobre as finalidades das penas e os critérios de escolha das mesmas em concreto, termina referindo que « No que tange ao crime de coacção, na forma tentada, importa ter presente o preceituado no artigo 70.º do Código Penal, no sentido que sempre que sejam, em alternativa, aplicáveis pena privativa e pena não privativa da liberdade, impõe-se que o Tribunal exerça um juízo de preferência à segunda, quando entenda que esta realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
Este preceito espelha o princípio da subsidiariedade do direito penal e o carácter nocivo das penas detentivas da liberdade, como uma das ideias fundamentais subjacente ao sistema punitivo do nosso Código Penal: a «reacção contra as penas institucionalizadas ou detentivas, por sua própria natureza lesivas do sentido ressocializador que deve presidir à execução das reacções penais» (Robalo Cordeiro, in «Escolha e Medida da Pena», Jornadas de Direito Criminal, CEJ, p. 238).
Ora, no caso concreto, verifica-se que a arguida BB tem antecedentes criminais por crimes graves e não revelou em julgamento qualquer consciência critica ou arrependimento do seu comportamento. Ademais, ponderando o grau de ilicitude e culpa de toda a actuação da arguida, a pena de multa não se basta, para exprimir o juízo de censura sobre a sua conduta e satisfazer as finalidades de prevenção geral e especial, impondo-se a opção pela pena de prisão..»
É entendimento que se sufraga integralmente.
E ao contrário do que a recorrente entende, não existe qualquer violação do seu direito ao silêncio.
A arguida, ao usar do seu inquestionável direito ao silêncio, com respaldo constitucional, necessária e inerentemente optou também por não manifestar perante o tribunal de julgamento, uma qualquer postura de arrependimento, que, a ter acontecido, certamente acresceria ao elenco dos factores a considerar a favor da mesma. Não o tendo feito, não podendo, é certo, ser prejudicado por isso, certamente também não poderá beneficiar do que poderia advir de uma manifestação de juízo de auto-censura, em audiência.
Se é verdade que todo e qualquer arguido tem o direito de não se auto-incriminar e de se remeter ao silêncio sem que isso o possa prejudicar, não é menos verdade que o silêncio não o pode beneficiar, sem que daí se viole qualquer direito constitucional.
E é isso que o tribunal recorrido sustenta, fundando-se nos antecedentes criminais da arguida e não podendo apelar a qualquer juízo de auto-crítica que se repercuta numa menor dimensão das necessidades de prevenção especial.
Sendo as finalidades das penas a protecção de bens jurídicos e a socialização do agente do crime, e passando o critério de escolha entre pena privativa e não privativa da liberdade quando alternativas (como é o caso), pela salvaguarda da realização adequada e suficiente daquelas finalidades, afigura–se acertada a opção decidida pelo tribunal a quo, não tendo aqui o relevo pretendido pela recorrente o facto de não estarmos perante uma reiteração de condutas criminosas homótropas.
Não se trata aqui apenas de estarmos perante a mera circunstância de a arguida haver já anteriormente incorrido na prática de factos ilícitos, mas sim tendo em atenção a gravidade daqueles, a que acresce a reiteração de condutas criminosas nos autos, que impedem a opção por pena diversa da detentiva.
Improcede, assim, esta primeira parte do recurso interposto.
h) De saber se a medida concreta da pena única de prisão aplicada à arguida é excessiva.
Apreciemos, pois, a restante questão suscitada no recurso qual seja a da inadequação, por excesso, da medida concreta da pena única de prisão que vimos fixada à arguida BB.
A recorrente sustenta que a pena de 5 anos e 3 meses seria desajustada, inadequada e incorrectamente fixada, para a partir daí fundar a pretensão de a mesma ser suspensa na sua execução.
Verdadeiramente, apenas coloca em causa um dos elementos tidos em conta pelo Tribunal a quo, aquando da determinação da pena, para além de salientar que outro peso deveria ter sido atribuído aos a si favoráveis.
Fundamental é que do recurso apresentado a recorrente não coloca em causa as penas parcelares aplicadas, mas tão só a pena única encontrada (pontos LXXVI).
Vejamos a única questão em debate:
Como é consabido, e dispensa aturadas considerações nesta sede, o concurso de crimes (e penas) relevante para efeitos de cúmulo jurídico vem regulado no art. 77º do Cód. Penal, que no seu nº1 dispõe "quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente".
O sistema do concurso de penas por cúmulo jurídico numa pena conjunta foi adoptado para evitar a eventual ultrapassagem do limite da culpa do agente criminoso, e que poderia decorrer de um sistema de acumulação material onde ocorresse a mera soma das penas em que o arguido tivesse sido condenado. Por isso que o sistema da pena conjunta implica uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente, nomeadamente, através da combinação das penas parcelares que não perdem a natureza de fundamentos da pena do concurso.
Em conformidade, e por forma a respeitar integralmente uma tal avaliação conjunta, são pressupostos basilares do cúmulo jurídico :
- a uniformidade subjectiva, isto é, que todos os crimes tenham sido cometidos pelo mesmo arguido,
- a coerência temporal, isto é, que o arguido os tenha praticado antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer um,
- e a coesão sancionatória, ou seja, e que as penas parcelares em que o arguido foi condenado sejam da mesma natureza, nos termos do art. 77º nº3 do Cód. Penal.
No que tange ao exercício material conducente à determinação da punição única pelos crimes em concurso, o mesmo opera em primeiro lugar pela determinação das penas parcelares em que a arguida foi condenada, que in casu se reconduzem a uma pena de 4 anos pelo crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 1, 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal, uma pena de 2 anos 3 e meses pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 3, al. b), 177º, n.º 1, al. b) e n.º 4, do Código Penal, e uma pena de 6 meses de prisão pela prática de um crime de coacção na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154º, n.ºs 1 e 2 e 22.º, do Código Penal, dosimetria essa que a arguida não recorreu (sustentando apenas as questões anteriormente já apreciadas).
Em segundo lugar, e de acordo com o determinado no nº2 do art. 77º do Cód. Penal, deverá, por um lado, ter–se como limite mínimo da pena única a aplicar, aquele correspondente à pena parcelar mais elevada de entre aquelas em concurso; e deverá. por outro lado, proceder–se à soma de todas as aludidas penas parcelares, obtendo-se assim o limite máximo da moldura abstracta aplicável – sendo, todavia, que, nos termos da regra do mesmo art. 77º nº2 do Cód. Penal, a pena única aplicável, tendo “como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”, não pode “ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de multa ".
Finalmente, assim determinados os limites máximo e mínimo da moldura punitiva aplicável, cumprirá então fixar a medida concreta da pena única dentro dessa moldura penal.
Nesta fixação da medida concreta da pena conjunta, deverá atender-se, por um lado, aos critérios gerais de determinação da pena, e, por outro, ao critério especial dos casos de concurso de penas, previstos pelo art. 77° nº1 do Cód. Penal – critérios que entre si se conjugam.
Assim, e em primeiro lugar, a determinação da medida da pena desde logo através dos critérios gerais de escolha e graduação da pena concreta, havendo assim a considerar em especial os parâmetros do art. 71º do Cód. Penal : essa determinação deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção da prática de condutas criminalmente puníveis, devendo atender-se a todas as circunstâncias que -não fazendo parte do tipo de crime- depuserem a favor ou contra o arguido.
Depois, a determinação da medida da pena nos casos de concurso obedecerá aos critérios especiais de determinação do art. 77º nº1 do Cód. Penal, onde se dispõe que são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
A apreciação do conjunto dos factos fornecerá uma visão integrada de condutas praticadas pelo agente (imagem global do ilícito), permitindo verificar se entre os factos criminosos existe uma ligação ou conexão relevante. A ligação ou conexão relevante entre factos visa apurar se o agente pretendeu com determinado conjunto de factos executar um plano, ou se há uma gravidade na conduta, não detectável em cada crime individualmente, mas claramente perceptível na sua globalidade.
A avaliação da personalidade do agente visa revelar se, da apreciação do conjunto dos factos praticados pelo agente, se extrai um figurino geral de personalidade do agente do crime, em termos de determinar a tendência ou a propensão para a prática de um determinado tipo de crime ou para a ofensa de determinados bens jurídicos. No âmbito da avaliação da personalidade, será ainda relevante, procurar compreender em que medida poderá a pena influenciar o arguido, em termos de dissuasão de uma delinquência futura.
Assim, com a fixação da pena conjunta se procura sancionar o agente nos limites da respectiva culpa, sendo esse o sentido e significado de encontrar uma punição assente na reavaliação dos factos (não dos factos individualmente considerados, mas especialmente do respectivo conjunto; isto é, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente) em conjunto com a personalidade do arguido (impondo–se assim, e nomeadamente, verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime, ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa).
As penas conjuntas visam, pois, corresponder ao sancionamento de um determinado trecho de vida do arguido condenado por pluralidade de infracções, sendo que, como refere Cristina Líbano Monteiro (em “A Pena ‘Unitária’ do Concurso de Crimes”, RPCC, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166) – citada no Ac. do S.T.J. de 10/01/2013, proc. 218/06.2PEPDL.L3.S1 –, «o código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto, para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma “unidade relacional de ilícito”, portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente. A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares, à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes».
É profusa a jurisprudência produzida a propósito deste exercício de determinação da pena única aplicável em caso de concurso de crimes.
Assim, a título de mero exemplo, pode ler-se no Ac. STJ de 31/03/2011, proc. 201/08.3JELSB.E1.S1, «I - Na medida da pena são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que o cúmulo jurídico de penas não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas. Com efeito, a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto. II - Como esclareceu o autor do Projecto do CP, no seio da respectiva Comissão Revisora, a razão pela qual se manda atender na determinação concreta da pena unitária, em conjunto, aos factos e à personalidade do delinquente, é de todos conhecida e reside em que o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário, de onde resulta, como ensina Jescheck, que a pena única ou conjunta deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente. III - Posição também defendida por Figueiredo Dias, ao referir que a pena conjunta deve ser encontrada, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique, relevando, na avaliação da personalidade do agente sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sem esquecer o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro daquele, sendo que só no caso de tendência criminosa se deverá atribuir à pluriocasionalidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura da pena conjunta».
Também no Ac.STJ de 12/10/2011, proc. 484/02.2TATMR.C2.S1 se escreveu que «A pena única ou conjunta deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se, em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente».
Finalmente, referência para o Acórdão do mesmo S.T.J. de 18/01/2012, proc. 34/05.9PAVNG.S1, onde se exarou que «Perante concurso de crimes e de penas, há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, encarado na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado e atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projecção nos crimes praticados ; enfim, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os concretos factos ajuizados, a uma análise da função e da interdependência entre os dois elementos do binómio, não sendo despicienda a consideração da natureza dos crimes em causa, da verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, até porque o modelo acolhido é o de prevenção, de protecção de bens jurídicos. (…) Todo este trabalho de análise global se justifica tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados pelo(a) condenado(a) é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma ‘carreira’, ou se, diversamente, a feridente repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de factores meramente ocasionais ».
Mas no que respeita à apreciação da pena única fixada pela 1.ª instância, não podemos deixar de atentar, seguindo o paralelismo da jurisprudência quanto à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no seguinte:
A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”.
A censura que o tribunal de recurso pode opinar sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses factores na decisão final.
É função do recurso (…), antes de tudo, analisar criticamente, os “parâmetros” da determinação de sanções.” (Cfr. Acs. do STJ de 09-05-2002, in CJ do STJ, 2002, Tomo 2, pág. 193 e de 27-05-2009, processo n.º 09P0484)
“Os poderes cognitivos do STJ, como se sabe, abrangem no tocante a esta matéria, entre outras, a avaliação dos factores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, ao menos quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada”.11
Conforme refere o Ac. STJ de 18/05/2022, proc. 1537/20.0GLSNT.L1.S1, “A sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.
Perante tais considerandos, forçoso será concluir que o Tribunal de 2ª Instância apenas deverá intervir alterando o quantum da pena concreta quando ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
Ou seja, mostrando-se respeitados os princípios basilares e as normas legais aplicáveis no que respeita à fixação do quantum da pena e respeitando esta o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir, alterando a pena fixada na decisão recorrida, pela simples razão de que, nesse caso, aquela decisão não padece de qualquer vício que cumpra reparar.
In casu, temos que, de acordo com as regras enunciadas, a moldura penal a ter em conta na fixação das penas únicas tem por limite mínimo o de 4 anos de prisão (pena de prisão parcelar mais elevada daquelas em concurso), e como limite máximo o de 6 anos e 9 meses (soma das penas de prisão em concurso).
Escusamos de repetir os factores que foram ponderados pelo Tribunal a quo e que militam em favor e em desfavor da arguida, dado que, à excepção do seguinte, não foram alvo de crítica.
Sustenta a arguida que teria sido prejudicada por ter usado o seu direito ao silêncio, argumento que já acima foi rebatido, porquanto apenas resulta do acórdão recorrido que a falta de arrependimento impede que se possa valorar tal elemento ao nível da alteração da personalidade dos arguidos, e logo, das necessidades de prevenção especial.
Repete-se, se é verdade que todo e qualquer arguido tem o direito de não se auto-incriminar e de se remeter ao silêncio sem que isso o possa prejudicar, não é menos verdade que o silêncio não o pode beneficiar, sem que daí se viole qualquer direito constitucional.
Apelando à jurisprudência citada, cabe indagar se a pena única se encontra manifestamente desadequada ao caso concreto, sendo certo que a mesma correspondeu a uma compressão das penas parcelares residuais um puco acima de 1/3.
Ora face aos contornos do presente caso é inequívoco que não.
Pese embora a recorrente pretenda “esvaziar” a sua conduta de qualquer carga negativa, cumpre nesta sede em particular realçar que os factos praticados pelos arguidos e que integram a sua condenação por crimes de abuso sexual de menores revelam por parte de ambos, e principalmente por parte da arguida recorrente, uma personalidade de tal modo desviante e imune ao respeito pelo ser humano que impede uma maior compressão das penas.
Tendo em conta o nexo espacio-temporal existente entre os crimes, os motivos envolventes da sua prática, em que os mesmos estão ligados por um determinado enquadramento historico-sucessivo somos levados a concluir que tal pluriocasionalidade radica na própria personalidade da arguida, impedindo que a pena se possa situar junto de qualquer limite mínimo, sendo aliás crível que a arguida possam voltar a praticar actos semelhantes, tanto mais que foi já condenada pelo mesmo crime.
Pese embora não sustentar qualquer alternativa, o certo é que a fixação de pena mais baixa traduziria invariavelmente sanções punitivas manifestamente desajustadas à gravidade dos factos punidos e da personalidade da arguida neles revelados.
Aqui chegados, e tomando em conta o acima referido e os parâmetros conjugados dos arts. 40º, 71º e 77º do Cód. Penal – tendo, pois, especialmente em atenção a globalidade dos factos, avaliando a interconexão entre os crimes do concurso e quanto se mostra possível descortinar evidenciarem os mesmos no que tange à personalidade da arguida –, julga–se que o exercício de fixação da pena única dentro da moldura legal penal supra assinalada, se mostra ajustada e adequadamente efectuado pelo tribunal a quo, não merecendo censura.
Concomitantemente, prejudicada se mostra a averiguação da possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão, atenta a limitação prevista no art.º 50 do Código Penal.
Improcede assim esta pretensão recursória da recorrente.
*
Improcedem, portanto, na sua totalidade, os recursos interpostos pelos arguidos.
*
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos AA e BB, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelos arguidos recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UCS [artigo 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique nos termos legais.
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Lisboa, 21 de Outubro de 2025
(O presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
Os Juízes Desembargadores,
João Grilo Amaral
Alda Tomé Casimiro
Ester Pacheco dos Santos
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1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
4. Conforme acórdão do S.T.J, n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012.
5. Vd.Ac.RL de 05/04/2011, proc.728/06.1GBVFX.L1-5, Ac.RC de 18/04/2012, proc. 431/09.0GCACB.C1 e Ac.RP de 11/12/2024, proc.13/24.7PAVFR.P1,
6. In “Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº10, pag.31 e 32
7. cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Vol. I, 4ª ed., 1987, pag. 471.
8. Mas a confusão patente na motivação e nas conclusões vai mais longe, porque em partes a recorrente discorda do tribunal porque não estão lá os factos que estavam na acusação “XII. A propósito da matéria dada como provada nos pontos 10, 11 e 20, a qual conduziu á condenação da Recorrente pela prática de uma crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelo art. 171º, nº 3, b), do CP, apraz discordar do tribunal á quo, porquanto, não resulta do teor do acórdão recorrido que a Assistente tenha sido amarrada, ou que a Recorrente tenha exercido sobre a DD qualquer acto que a imobilizasse, no sentido de a obrigar, ou, se quisermos, de a forçar a assistir, ou a ver, os actos de natureza sexual praticados pela Recorrente com o AA.”, para depois entrar no ponto XV em matéria de direito, relativa a qualificação jurídica, que nada tem a ver com o erro de julgamento.
9. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, 1.º vol., pág. 202.
10. Como se refere no Ac.RP de 18/03/2015, proc. 400/13.6PDPRT.P1) «I – Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum. II – Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), pelo que não pode ser excluída a prova por presunções (art. 349.º do Cód. Civil), em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.».
11. Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, pág. 197