Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9633/20.8T8LRS.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: LOTEAMENTO
AUGI
DIVISÃO DE COISA COMUM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Só com a operação de loteamento nos termos do alvará nº 5/2001 de 14 de Maio relativo ao loteamento do Bairro do Casal do … Norte da AUGI I foi realizada a divisão da coisa comum em que encontrava o muro a que se reportam os autos.
II – Competia à apelante provar que, de acordo com a operação de loteamento, o muro integra a área do seu lote Y.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
AA instaurou acção declarativa comum contra BB pedindo:
«a) Ser a Ré condenada a proceder à demolição do novo muro construído no Lote X do loteamento do Bairro … Norte da AUGI I em … e que deu origem à invasão de parte de área do lote Y pertencente à Autora;
b) Que seja também condenada a reconstruir, a seu custo, o muro delimitador no preciso locar onde se encontrava erigido, há mais de 20 anos o muro derrubado;
c) Que seja em consequência condenada em repor a situação de invasão da área do lote Y da Autora»
Alegou, em síntese:
- é proprietária dos lotes Y e Z e a ré é proprietária do lote X constituídos pela operação de loteamento referida no alvará nº 5/2001 de 14 de Maio do Bairro … Norte da AUGI I inscrito na Conservatória do Registo Predial de …;
- no lote Y existia um muro, construído há mais de 20 anos, que o separava do lote X respeitando as áreas determinadas no loteamento;
- a ré demoliu esse muro construído sem autorização a autora,
- e está a construir um novo muro, ocupando parte do lote Y retirando assim mais de 27m2 de área do lote Y.
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A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção e em reconvenção pediu que a autora seja «condenada a pagar a meação do muro a construir e a demolição e retirada de entulho do anterior tudo no valor de € 1.595,00.».
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Na réplica, a autora defendeu pugnou pela improcedência da reconvenção.
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Realizada a audiência final, foi proferida sentença com este dispositivo:
«Pelo que, em face do exposto, o tribunal decide:
a) Julgar a ação intentada pela Autora AA totalmente improcedente, por não provada, e absolver a Ré BB de todos os pedidos contra si deduzidos.
b) Julgar o pedido reconvencional deduzido pela Ré BB improcedente, por não provado, e, em consequência, absolver a Autora AA do mesmo.
c) Julgar improcedentes os pedidos de condenação de litigância de má fé apresentados pelas partes.».
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Inconformada, apelou a autora, terminando a alegação com estas conclusões:
«1. O Tribunal a quo na sentença ora recorrida decidiu, “julgar a ação intentada pela Autora AA totalmente improcedente, por não provada, e absolver a Ré BB de todos os pedidos contra si deduzidos; julgar o pedido reconvencional deduzido pela Ré BB improcedente, por não provado, e, em consequência, absolver a Autora AA do mesmo; julgar improcedentes os pedidos de condenação de litigância de má fé apresentados pelas partes”.
2. O Tribunal a quo determinou na douta sentença, que “(…) não se demonstrou que a Ré tenha, com a demolição do muro antigo e início de construção de um novo muro delimitador dos lotes, atentado contra o direito de propriedade da Autora, apropriando-se ilegitimamente de uma área de cerca de 27 m2 do lote Y. Pelo contrário, estas obras apenas vieram “repor a legalidade”, concedendo a cada um dos lotes as áreas que lhes foram atribuídas pelo alvará de loteamento n. º5/2001.”
3. No entanto, e salvo o devido respeito pelo Exmo. Senhor Juiz de Direito do tribunal a quo, não se pode concordar com o entendimento vertido na sentença ora recorrida, conforme se passará a explicar.
4. Desde logo que no tribunal de primeira instância, foram dados como não provados os factos i), ii), iii), e iv), deviam ter sido dados como provados, pelo que foram incorretamente os julgados (cfr. artigo 640.º n.º 1, al. a) do CPC).
5. O alvará de loteamento em causa nos presentes autos omitiu todos os muros, incluindo os antigos, que eram exatamente a delimitação dos próprios lotes, com as áreas integrantes dos próprios lotes. Todavia, e de acordo com os factos dados como provados pelo Tribunal a quo, já existia um muro implantado no lote Y propriedade da Recorrente, separador dos lotes X e Y que esse mesmo alvará não considerou.
6. Muro esse que a Recorrida demoliu, sem qualquer aviso ou comunicação à Recorrente, para permitir a concretização da construção da sua moradia e à construção de um novo muro delimitador em local diverso do muro derrubado, com vista à legalização dos afastamentos da sua construção e retirar mais de 27 de área efetiva ao lote da A.
7. O que consubstanciou a prática de um ato ilícito no âmbito da responsabilidade civil extracontratual da Recorrida, que pretendeu violar dolosamente o direito de propriedade a toda a área inscrita em nome da Recorrente.
8. Sendo que, não existiu qualquer autorização da Câmara Municipal de … ou um projeto de demolição do muro que legitimasse tal ação, tendo toda a obra da Recorrida sido feita voluntária e unilateralmente, de forma ilegal.
9. A Câmara Municipal de … entendeu que a não existência de muros no alvará não determina a inexistência de qualquer muro no loteamento, mas sim que a demolição fosse feita por acordo dos proprietários.
10. No entanto, esse acordo não existiu e a Recorrida demoliu o muro delimitador, inserido na propriedade da Recorrente, sem a sua autorização ou comunicação, imiscuindo-se indevidamente e ilegalmente na sua propriedade, para permitir a concretização da construção da sua moradia e à construção de um novo muro delimitador em local diverso do muro derrubado.
11. Nos termos do disposto no art.º 1305º do C.C., “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei.” O direito de propriedade inclui a possibilidade de delimitar fisicamente o terreno para proteger e demarcar os seus limites.
12. O muro em causa foi construído na década de 80, pelo que, mesmo quando a compra do terreno pela Recorrente foi realizada, o muro já era propriedade inerente do seu terreno, independentemente do alvará.
13. Logo, não se pode aceitar como não provado que “quando foi aprovado o loteamento camarário referido no ponto 1, o mesmo foi realizado tendo em conta, para a delimitação das áreas do loteamento, a existência, entre os lotes X e Y de um muro delimitador pertencente à Autora”, tendo em consideração que o muro foi completamente desconsiderado, apesar de existir naquela propriedade há mais de 40 anos, e mesmo antes da emissão do alvará de loteamento, datado de 14/05/2001.
14. O que é confirmado pelo Perito e Engenheiro técnico CC, ao minuto 19:59 (12/09/2024), sobre o facto de o muro existir há mais de 20 anos: “em termos de documentação existe, quer, não só no processo de loteamento, peças em que esse muro está demarcado, como também na planta cadastral já não existe, no entanto, no projeto apresentado pela Sra. BB, ela própria registou lá esse muro como existente, e onde aparece esse muro antigo e aparece outro que fica ao lado. Portanto, ela própria declara que o muro estava lá.”, e ao minuto 11:11 “Porque é que então existe um processo de loteamento que não bate certo com o real? Porque nesse processo de loteamento a estrema não coincide com o muro antigo que lá estava, que era de facto a estrema real, a estrema legal”.
15. Para além de que, o alvará de loteamento não estabeleceu qualquer ónus ou encargo de demolição do muro da Recorrente, tal como acontecia para outros lotes, facto que é confirmado pelos peritos em julgamento: “quando dizem (…) que os lotes resultam da emissão do alvará de loteamento e quando dizem que não foram respeitados os muros é porque terão de concluir, sim ou não, se os muros foram ignorados no loteamento.” , ao que ambas as inquiridas responderam que “não há ónus de demolição”(DD) e “não, não, não há.” (EE) (18:14 minutos); Porém o lote Y não tem esse ónus.” (CC) (07:19 minutos – 12/09/2024)
16. Ficando ainda mais explícito pelas declarações do Sr. CC, “quer dizer que todos os muros a demolir e todas as construções que existiam nesses prédios, (…) têm o ónus em que “no lote tal é para demolir muro tal (…) Porém o lote Y não tem esse ónus.” (07:19 – 12/09/2024).
17. Sendo que, a justificação apresentada para a ausência de tal menção no alvará de loteamento, foi que a mesma deveria estar subentendida.
18. Reitera-se o facto de que o alvará não tem nem deverá ter aplicação retroativa, como a parte contrária está a fazer crer, pelo que não poderia prejudicar os diretos adquiridos com a construção do muro delimitador, nos termos do art.º 12º do C.C., aplicável in casu ao alvará de loteamento, na medida em que a lei apenas dispõe para o futuro, e deve respeitar os direitos adquiridos dos particulares.
19. De acordo com o Parecer do Conselho Consultivo da PGR, n.º P000332016: “Vale isto por dizer que o tempo que rege o ato é, no caso das licenças e comunicações prévias de obras de edificação, em área abrangida por operação de loteamento, antecipado para o momento em que esta se constitui, na parte que seja especificada no alvará ou título equivalente.”
20. O Perito CC para explicar a divergência referiu que “porque é obvio que eu para conseguir saber se as estremas dela (…) estavam de acordo com os metros de referência do loteamento, tive que começar por um ponto de referência. E o ponto de referência, o que é que era? Era o lote confinante (…) E, de facto, a frente deste lote está certa, a frente do lote da BB também está certa, não de acordo com o processo de loteamento, não de acordo com a compra que a AA fez.” (16:52); “as colegas fizeram só a sua peritagem em função do processo de loteamento, ou seja, nós estamos a considerar só a parte administrativa, (…) o loteamento em si. Porém, na minha opinião, (…) deve ser considerado tudo no seu global e anteriormente existe um outro processo (…) em que foi deliberado que (…) esse muro continuo é que demarcava a estrema.” (10:32 minutos - 12/09/2024).
21. E acrescentou que “o muro que foi feito novo não foi feito exatamente no sítio do antigo. E, portanto, há uma divergência de 27m, ou seja, o muro novo foi feito mais à frente, ou seja, a ocupar de facto o terreno que confronta com o da AA. Não foi feito paralelamente, ainda por cima, foi feito na diagonal. (…) os limites que dominaram a porção de terra que era do terreno da AA, era exatamente esse muro clandestino, portanto, era essa a estrema.”
22. O princípio da proporcionalidade e adequação da medida administrativa (art.º 7º do C.P.A.) em que mesmo que o muro fosse considerado incompatível com o alvará, deveriam ter sido tomadas medidas menos gravosas do que a demolição total do muro, como a sua reconstrução, sendo esta medida desproporcional e injusta.
23. A reconversão de AUGI, regulada pela Lei n.º 91/95, enquanto ação de legalizar um terreno que foi criado ilegalmente, não é apenas o processo de loteamento, mas sobretudo a divisão de uma coisa comum, isto é, a individualização do terreno por lotes.
24. Este processo permite legalizar a posse da propriedade, ou seja, permite consolidar os direitos adquiridos pelos proprietários dos terrenos, legalizando a sua titularidade.
25. Tal como decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, em 07/05/1998, no processo n.º 0016962: “Daí decorre que a emissão do alvará, por si, não é um acto constitutivo de direitos, mas tão só um acto formalmente definidor do conteúdo de um acto constitutivo anterior: o loteamento, ou outro.” (sublinhados nossos)
26. O que se traduz na proteção dos direitos adquiridos expresso nos arts.º 2º e 266º da C.R.P., esclarecendo que a Administração Pública deve atuar com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, tal como o art.º 10º do C.P.A.
27. O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 556/2003, de 12/11, processo n.º 188/03 refere: “O Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, (…) que o princípio do Estado de direito democrático (…) postula 'uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas', razão pela qual 'a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar (…), terá de ser entendida como não consentida pela lei básica”.
28. Para além de que, a Recorrente disse (10:23 minutos – 12/09/2024) que “eu já gostei dos próprios lotes só por estarem murados”.
29. Facto este que a Sra. DD, não teve em consideração como refere ao (09:58 minutos - dia 12/09/2024) “depois do muro estar criado naquele loteamento, não interessando o que estava lá em preexistências porque não foi isso que foi considerado, ou seja, era cumprir o que está no loteamento.”.
30. Assim, a Recorrente adotou uma conduta lesiva direitos, nos termos do art.º 335º do C.C., não respeitando o direito de propriedade da Recorrente, nem as edificações que existentes antes da sua obra e que permitem delimitar as propriedades.
31. Estando a Recorrente impedida de construir a sua casa, dizendo “Estou impedida, no sentido de se há um processo em Tribunal, que não está definido onde está localizado o muro, isso vai colidir com estremas de habitação, com todo espaço em redor, porque não deve puder construir, possivelmente, a minha casa. Eu não vou estar a começar um projeto com uma coisa que não está definida por lei (…) porque não quero ultrapassar a lei e quero fazer as coisas com base naquilo que fica decidido neste Tribunal.” (16:13 minutos – 12/09/2024).
32. Nem é compreensível como pode a douta sentença, a fls. 9, considerar que “nos termos do disposto no artigo 6.º n.º 1 al. i) do DL n.º 595/99 a Ré tinha o direito (tal como esse direito também assistia à Autora) de demolir o muro antigo uma vez que o mesmo era ilegal, mesmo sem necessidade de comunicar e pedir autorização prévia à Câmara Municipal de … para o efeito.”
33. A testemunha FF referiu que “as estremas foram feitas, portanto, primeiro pelo loteador lá com a colocação nas estacas do terreno, depois pelos proprietários que puseram os ... que abriram os cabocos fizeram os muros. E, a partir daí, é que pode haver alterações, se as pessoas não respeitarem aquilo que fizeram inicialmente. (…) De outra forma, não. Não há hipótese. Eu comprei um espaço, que vem desta linha a esta (…) o meu espaço tem de ser mantido para toda a vida.” (07:05 minutos - 18/09/2024).
34. Pelo que, não se pode concordar com o entendimento da sentença recorrida ao decidir que “os particulares estavam, portanto no direito de proceder às demolições necessárias para usufruto dos lotes que se constituíram com a emissão do alvará de loteamento n. º5/2001”, pois a Recorrida imiscuiu-se indevidamente no terreno da Recorrente para proceder às obras do seu entendimento e à demolição do muro.
35. Não é de todo percetível que igualmente seja emitido um alvará que colide com os direitos legalmente constituídos dos proprietários e que sejam permitidas obras que continuem a perpetuar essa mesma violação.
36. Todo o entendimento da douta sentença segue erradamente o pensamento da Recorrida, salvo o devido respeito, em que apenas considera o alvará de loteamento e o que daí se seguiu, esquecendo-se do que já existia no referido terreno.
37. A Recorrente referiu que “da parte da Câmara, a resposta que eu tive de funcionários, foi que, realmente, não poderiam intervir nessa situação, que era uma questão entre proprietários, ao que eu pelo menos solicitei se havia alguma indicação por parte da Câmara de …, para a demolição do muro, ao que me foi dada uma resposta negativa.” (06:44 minutos - 12/09/2024)
38. Sendo que, o Sr. CC afirmou que “seria simples se assim fosse, e de facto era isso que a Câmara tinha que fazer, o técnico tinha que pegar no processo de loteamento e avaliar o projeto que era apresentado, e ver se estava em conformidade (…) o problema é que não estava.” (31:05 minutos - 12/09/2024).
39. Importa ainda referir que, a técnica superior de arquitetura da Câmara Municipal, Sra. GG, também não imputa a responsabilidade à Câmara, descartando-a para o projetista que fez o loteamento.
40. Pelo exposto, entendemos que não merece razão o vertido na douta sentença, que deu razão à Ré, legitimando as obras que a mesma realizou, tendo em consideração que as mesmas foram realizadas de modo ilegal e em incumprimento, quer com os direitos da Recorrente, quer com as normas legais em vigor.
41. Assim atendendo ao que foi supra exposto, devem ser dados também como provados os seguintes factos i), ii), iii), e iv), dado como não provados na douta sentença, os factos:
a. “Quando foi aprovado o loteamento camarário referido no ponto 1, o mesmo foi realizado tendo em conta, para a delimitação das áreas do loteamento, a existência, entre os lotes X e Y de um muro delimitador pertencente à Autora.
b. A ré demoliu o muro referido em 4 com o intuito de dissimular violações construtivas e fê-lo sem aviso prévio ou comunicação à Autora.
c. A Ré começou a fazer estaleiro de obra no lote Y pertencente à Autora.
d. A construção da Ré de um novo muro veio a retirar 27 m2 de área efetiva ao lote n.º Y pertencente à Autora.”
Devendo em conformidade ser proferida outra douta sentença que tenha em conta estes aludidos factos.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., deve:
- Ser a sentença recorrida ser revogada, por violação do RJUE, C.C. e princípios fundamentais de Direito Administrativo, supra enunciados por via dela ser considerado procedente o Recurso apresentado;
- Ser a Ré condenada a proceder à demolição do novo muro construído no lote X do Bairro do … Norte da AUGI, em …, que originou a invasão de parte da propriedade do lote Y pertencente à Autora;
- Ser a Ré também condenada a reconstruir, aseu custo, o muro delimitador no preciso local onde antes se encontrava erigido há mais de 20 anos e que foi derrubado, por aquela, como forma de reposição do direito da Recorrente à delimitação da sua propriedade;
- Que seja em consequência a Ré condenada a repor a situação da área do lote Y da autora»
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A ré contra-alegou, defendendo a confirmação da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos apelantes, sem prejuízo de questões que sejam de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:
- se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto
- e se deve ser julgada procedente a acção
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III – Fundamentação
A) Na sentença vem dado como provado:
1. Encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de …, sob a ficha 1711/20020128, o alvará nº 5/2001 de 14 de Maio, relativo ao loteamento do Bairro do Casal do … Norte da AUGI I com a correspondente constituição de lotes.
2. A Autora é proprietária desde 5 de junho de 2015 dos lotes Y e Z do loteamento referido em 1., sendo o primeiro constituído por uma área de 435 m 2 e o segundo constituído por uma área de 394,7 m2.
3. A Ré é proprietária é proprietária do lote X do loteamento referido em 1., constituído por uma área de 476m2.
4. O lote n.º Y pertencente à Autora confina a nascente com o lote n.º X pertencente à Ré e a poente com o lote 14, também propriedade da Autora.
5. Previamente à data da aquisição do lote Y por parte da Autora, em Junho de 2015, existia um muro implantado no lote Y com arranque junto à Rua ...
e término a tardoz no interior do lote, sendo que este muro percorria toda
a estrema em desacordo com a medida de delimitação dos lotes definida pelo alvará de loteamento n. º 5/2001.
6. A Ré procedeu à demolição do muro antigo referido no ponto 5. e iniciou a edificação de um novo muro delimitador, tendo apenas procedido à construção das fundações do mesmo.
7. O novo muro erigido pela Ré encontra-se implantado entre os lotes X e Z, distando 14,43m da estrema do lote W na frente e 17,89m medidos a partir do anexo erigido no lote W a tardoz.
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B) E vem dado como não provado:
i) Quando foi aprovado o loteamento camarário referido no ponto 1, o mesmo foi realizado tendo em conta, para a delimitação das áreas do loteamento, a existência, entre os lotes X e Y de um muro delimitador pertencente à Autora.
ii) A ré demoliu o muro referido em 4 com o intuito de dissimular violações construtivas e fê-lo sem aviso prévio ou comunicação à Autora.
iii) A Ré começou a fazer estaleiro de obra no lote Y pertencente à Autora.
iv) A construção da Ré de um novo muro veio a retirar 27 m2 de área efetiva ao lote n.º Y pertencente à Autora.
v) A demolição do muro antigo e a construção de um muro novo tem o custo de € 1.595,00.
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C) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Sustenta a apelante que deve ser julgado provado:
«i) Quando foi aprovado o loteamento camarário referido no ponto 1, o mesmo foi realizado tendo em conta, para a delimitação das áreas do loteamento, a existência, entre os lotes X e Y de um muro delimitador pertencente à Autora.
ii) A ré demoliu o muro referido em 4 com o intuito de dissimular violações construtivas e fê-lo sem aviso prévio ou comunicação à Autora.
iii) A Ré começou a fazer estaleiro de obra no lote Y pertencente à Autora.
iv) A construção da Ré de um novo muro veio a retirar 27 m2 de área efetiva ao lote n.º Y pertencente à Autora.»
Baseia a sua pretensão nas razões expostas no relatório pericial pelo perito que nomeou, engenheiro técnico CC e esclarecimentos por este prestados na audiência final, nos depoimentos das testemunhas FF, HH, II e GG, e manifestando a sua discordância quanto às razões expostas no relatório pericial pela peritas arquitecta DD nomeada pela ré e engenheira civil EE, nomeada pelo tribunal e esclarecimentos por estas prestados na audiência final.
Mas, analisado toda a prova documental, o relatório pericial e toda a prova gravada na audiência final concluímos que inexiste erro de apreciação pela 1ª instância.
Decorre da escritura pública junta aos autos em 30/05/2021 que a apelante comprou o lote Y às testemunhas HH e JJ, tendo o primeiro afirmado no seu depoimento que lhe vendeu os lotes Y e Z e que nos anos 80 mandou fazer os muros para delimitar o seu terreno.
Insiste a apelante, apoiando-se nas razões transmitidas pelo perito CC que o muro lhe pertencia pois já lá estava há mais de 20 anos e o alvará de loteamento «apenas se aplica para o futuro», «não pode afetar construções pre-existentes, legalmente consolidadas à data da sua construção». Mas, nos anos 80 HH e JJ eram comproprietários, tinham adquirido «avos», não eram proprietários de alguma concreta parcela e, como evidenciam a prova documental, o relatório pericial e os esclarecimentos prestados pelos três peritos na audiência final em conjugação com os depoimentos das testemunhas KK (arquitecto) e GG (arquitecta, técnica superior de arquitectura na Câmara Municipal de …), o projecto do loteamento e o alvará que formalizou o loteamento desprezaram a existência do muro para a formação dos lotes. Portanto, qualquer eventual anterior acordo entre HH e outros comproprietários para delimitar parcelas, designadamente com este muro, não se reflectiu na formação dos lotes. Como assertivamente disse a arquitecta GG, «o lote Y não existia sem alvará», «sem alvará o senhor (LL) não podia vender o lote Y porque até lá tinha avos indivisos».
Em suma, se a apelante, como declarou na audiência final, comprou o lote Y convencida de que o muro fazia a delimitação entre o seu lote Y e o lote X isso em nada altera esta realidade: a existência do muro não teve relevância no projecto de loteamento daquela AUGI. Por outro lado, igualmente decorre da prova que a delimitação dos lotes através do muro estava em desconformidade com o loteamento, invadindo área do lote X o que significa que a sua manutenção se traduzia na violação do direito de propriedade da apelada.
Improcede a impugnação.
*
B) O Direito
O nº 1 do art.º 342º do CC (Código Civil) estabelece: «Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.»
Segundo a apelante, «O alvará de loteamento em causa nos presentes muros omitiu todos os muros incluindo os antigos, que eram exatamente a delimitação dos próprios lotes, com as áreas integrantes dos próprios lotes. Todavia e de acordo com os factos dados como provados pelo Tribunal a quo, já existia um muro implantado no lote Y propriedade da Recorrente, separador dos lotes X e Y que esse mesmo alvará não considerou», «A reconversão de AUGI, regulada pela Lei n.º 91/95, enquanto ação de legalizar um terreno que foi criado ilegalmente, não é apenas o processo de loteamento, mas sobretudo a divisão de uma coisa comum, isto é, a individualização do terreno por lotes.» e a apelada violou o seu direito de propriedade, ao demolir o muro integrante do lote Y e com isso apropriou-se de cerca de 27 m2 de área deste.
O Código Civil prevê:
Art.º 1305º
«O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.».
Art.º 1405º
«1. Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.
2. Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo.»
Art.º 1408º
«1. O comproprietário pode dispor de toda a sua quota na comunhão ou de parte dela, mas não pode, sem consentimento dos restantes consortes, alienar nem onerar parte especificada da coisa comum.
2. A disposição ou oneração de parte especificada sem consentimento dos consortes é havida como disposição ou oneração de coisa alheia.
3. A disposição da quota está sujeita à forma exigida para a disposição da coisa.»
Os prédios da apelante e o prédio da apelada correspondem, respectivamente aos lotes Y e Z e ao lote X resultantes do processo de loteamento do Bairro do Casal do … Norte da AUGI I nos termos do alvará 5/2001 de 14 de Maio. A Lei 91/95 de 02/09 – regime da RECONVERSÃO DAS ÁREAS URBANAS DE GÉNESE ILEGAL – estatui, designadamente:
Art.º 1º
«1 - A presente lei estabelece o regime excecional para a reconversão urbanística das áreas urbanas de génese ilegal (AUGI).
2 - Consideram-se AUGI os prédios ou conjuntos de prédios contíguos que, sem a competente licença de loteamento, quando legalmente exigida, tenham sido objeto de operações físicas de parcelamento destinadas à construção até à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 400/84, de 31 de dezembro, e que, nos respetivos planos territoriais, estejam classificadas como espaço urbano ou urbanizável, sem prejuízo do disposto no artigo 5.º
3 - São ainda considerados AUGI os prédios ou conjuntos de prédios parcelados anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 46 673, de 29 de novembro de 1965, quando predominantemente ocupados por construções não licenciadas.
4 - As câmaras municipais delimitam o perímetro e fixam, por sua iniciativa, a modalidade de reconversão das AUGI existentes na área do município.
(…)»
Art.º 2º
«1 - É estabelecido um regime especial de divisão de coisa comum aplicável às AUGI constituídas em regime de compropriedade até à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 400/84, de 31 de dezembro.
2 - O direito de exigir a divisão só pode ser exercido após a emissão do respetivo título de reconversão.»
Art.º 3º
«1 - A reconversão urbanística do solo e a legalização das construções integradas em AUGI constituem dever dos respetivos proprietários ou comproprietários.
2 - O dever de reconversão inclui o dever de conformar os prédios que integram a AUGI com o alvará de loteamento ou com o plano de pormenor de reconversão, nos termos e prazos a estabelecer pela câmara municipal.
(…)»
Art.º 4º
«1 - O processo de reconversão é organizado nos termos da presente lei:
a) Como operação de loteamento da iniciativa dos proprietários ou comproprietários;
b) Como operação de loteamento ou mediante plano de pormenor municipal ou intermunicipal da iniciativa da respetiva câmara municipal ou das câmaras municipais associadas para o efeito.
2 - Os loteamentos e planos de pormenor previstos nos números anteriores regem-se pelo disposto na presente lei e, subsidiariamente, pelo disposto no regime jurídico da urbanização e edificação e do regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial.
3 - A alteração aos termos e condições do alvará de loteamento e do plano de pormenor de reconversão é requerida pela administração conjunta até à sua extinção, com o consentimento dos proprietários dos lotes para os quais se requer alteração.
(…)»
Art.º 29º
«1 - Na sequência da deliberação final sobre o pedido de loteamento, a câmara municipal emite o alvará de loteamento nos prazos e termos previstos no regime da urbanização e edificação.
2 - O alvará de loteamento deve conter as especificações previstas no regime jurídico da urbanização e edificação (…)
(…)»
Portanto, só com a operação de loteamento nos termos do alvará nº 5/2001 foi realizada a divisão da coisa comum.
Ora, a apelante não fez prova de que «Quando foi aprovado o loteamento camarário referido no ponto 1, o mesmo foi realizado tendo em conta, para a delimitação das áreas do loteamento, a existência, entre os lotes X e Y de um muro delimitador pertencente à Autora» e de que a apelada retirou 27 m2 da área do lote Y. Por isso, demonstrado não está que foi violado o seu direito de propriedade.
Decorre, pois, da improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto que a sentença recorrida não violou a lei fundamental nem a lei ordinária.
Por quanto se disse, tem de improceder a pretensão da apelante.
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IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 08 de Maio de 2025
Anabela Calafate
Jorge Almeida Esteves
Eduardo Petersen Silva