Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
236/23.6PBHRT.L1-9
Relator: CRISTINA SANTANA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DOLO
ELEMENTO SUBJECTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Sumário: (da responsabilidade da Relatora)
I. No crime de violência doméstica o elemento subjetivo do tipo de ilícito é composto pelo dolo genérico, nas suas modalidades de dolo direto, necessário ou eventual.
II. O elemento cognitivo ou intelectual do dolo inclui o conhecimento de todas as circunstâncias de facto e de direito, dos elementos normativos do tipo (que constituem o tipo de ilícito objectivo, o que permite ao agente a orientação e decisão da sua consciência ética pela preservação ou não do bem jurídico tutelado pela norma.
III. Assim, no supra mencionado crime o tipo subjectivo exige que o agente conheça a relação conjugal, amorosa, de protecção-subordinação, de menoridade, deficiência, doença ou gravidez do sujeito passivo, bem como os restantes elementos do tipo objectivo de ilícito.
IV. E, todos estes requisitos serão expressos na acusação, onde se imputa a prática do facto de forma consciente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto).
V. Não havendo uma fórmula sacramental para descrever o dolo, necessário é, no que tange ao elemento cognitivo ou intelectual, aqui em análise, que constem da acusação factos dos quais resulta esse conhecimento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa:

I Relatório
1.
No processo com o nº 236/23.6..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores - Juízo de Competência Genérica da Horta – J1 - Processo Comum ( Tribunal Singular ) foi o arguido AA, com os demais sinais dos autos, submetido a julgamento findo o qual foi, em ........2022, proferida sentença – Ref Citius 58381108 - cujo dispositivo se transcreve, na parte relevante:

VII. DECISÃO
Em face do exposto, o Tribunal decide:
a) Absolver o arguido AA pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art.º 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal;
b) Não arbitrar à vítima/ofendida BB qualquer quantia a título de reparação de prejuízos, nos termos dos art.ºs 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, e 82.º-A do Código de Processo Penal;
c) Declaro extinto o procedimento criminal quanto ao arguido AA, pela prática de 2 (dois) crimes de injúria, previstos e puníveis pelo art.º 181.º do Código Penal, por falta de legitimidade do Ministério Público para a ação penal;
d) Declarar extinto o direito de queixa da ofendida BB, quanto a 1 (um) crime de ofensa à integridade física, previsto e punível pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, por factos praticados em ...;
e) Convolar o crime previsto na alínea a) supra, condenado o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física, previsto e punível pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, por factos praticados em ...2.../07, na pena de 250 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta), perfazendo o total de 1.375,00€ (mil trezentos e setenta e cinco euros), quanto aos factos praticados em ...2.../07;
f) Convolar o crime previsto na alínea a) supra, condenado o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 2 (um) crime de ameaça agravada, previstos e puníveis pelos art.ºs 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), ex vi o art.º 131.º, todos do Código Penal, em duas penas de 150 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta), perfazendo o total de 825,00€ (oitocentos e vinte e cinco euros), cada uma;
g) Efetuar o cúmulo das penas parcelares aplicadas nas alíneas e) e f), nos termos do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, condenando o arguido AA na pena única de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta), perfazendo o total de 1.925,00€ (mil novecentos e vinte e cinco euros);
h) Condenar o arguido AA nas custas criminais, em taxa de justiça que se fixa em 2UC, e demais encargos processuais (art.ºs 513.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, por referência à tabela III anexa a este diploma legal), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário existente.
i) Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante civil ... e, consequentemente condenar o arguido/demandado AA a pagar-lhe a quantia de 175,82€ (cento e setenta e cinco euros e oitenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora civis, calculados à taxa legal em vigor, vencidos desde a data de notificação do pedido de indemnização civil ao arguido e vincendos até efetivo e integral pagamento (art.ºs 559.º, n.º 1, 804.º, n.º 1 e 2, 805.º, n.º 1, e 806.º, n.º 1 e 2, do Código Civil).
d) Declarar o arguido/demandado AA isento das custas cíveis relativas ao pedido de indemnização civil em que foi condenado, em virtude de o seu valor ser inferior a 20UC (art.º 4.º, n.º 1, alínea n), do Regulamento das Custas Processuais).
(…)”
2.
Inconformado, em ........2024, o Ministério Público, veio recorrer de tal sentença – Ref. Citius 18274.
Transcrevem-se as conclusões do recurso apresentado:

1. Entendeu a douta decisão recorrida que estava em falta o elemento subjetivo Por não constar da acusação a concreta frase “o arguido sabia que a ofendida era sua companheira e depois sua ex-companheira”, tendo absolvido o arguido pela prática do crime de violência doméstica.
2. O Ministério Público não concorda.
3. A douta decisão recorrida, é excessivamente enfática quanto à relevância que atribuí à relação entre o arguido e a vítima e à específica vontade e conhecimento de agressão de um cônjuge para a caracterização do crime de violência doméstica.
4. O enfâse deverá, outrossim, ser colocado na manifestação histórica e cultural que caracteriza as relações entre mulheres e homens, caracterizada por uma vontade de domínio e de subjugação daquelas a estes.
5. De acordo com a Convenção de Istambul (CI), o traço distintivo na violência contra as mulheres é a discriminação das mulheres através de atos de violência; sendo a violência doméstica uma forma especial de violência de género que tem a particularidade de ocorrer na família ou na unidade doméstica ou ainda entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima.
6. Quer isto dizer que à luz da CI a violência doméstica não se caracteriza necessariamente pela violência que ocorre entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, podendo ainda ocorrer na família ou na unidade doméstica, independentemente daquela relação, contanto seja um ato de violência contra mulheres e ocorra na unidade doméstica ou familiar – podendo, por ex, a vítima tratar-se de parente, mas também, p. ex., uma empregada interna que resida na unidade doméstica.
7. A Convenção também reconhece, nos seus considerandos, que “a violência contra as mulheres é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens que conduziram à dominação e discriminação contra as mulheres pelos homens, o que as impediu de progredirem plenamente;” bem como “a natureza estrutural da violência exercida contra as mulheres é baseada no género, e que a violência contra as mulheres é um dos mecanismos sociais cruciais pelo qual as mulheres são forçadas a assumir uma posição de subordinação em relação aos homens”.
8. Por esta ordem de razões a CI expressa, mesmo no seu artigo 43.º que “As infrações previstas na presente Convenção aplicam-se, independentemente da natureza da relação entre a vítima e o perpetrador.”
9. A particularidade do crime em análise, quando as vítimas sejam mulheres, não reside na relação familiar ou para-familiar entre o arguido e a vítima, mas do facto de ambos pertencerem a categorias sociais distintas – homens e mulheres – cujas relações, historicamente, são permeadas pela dominação violenta e subordinação destas àqueles.
10. Deverá, pois, entender-se que, o dolo, neste crime, e quando a vítima seja uma mulher ou criança, mais do que dirigido ao conhecimento e vontade de fazer mal ao cônjuge, ex-cônjuge, companheiro ou ex-companheiro, dirige-se mais essencialmente ao conhecimento e vontade de fazer mal a uma mulher como forma de dominação e de subalternização desta categoria de pessoas historicamente dominadas, e que assume ainda a qualidade referida em qualquer das alienas do número 1 do artigo 152.º do Código Penal por ser maioritariamente, mas não exclusivamente, no âmbito dessas relações que tais formas de dominação e de subalternização, com recurso à violência, ocorrem.
11. Conforme se entende sem sobressaltos na doutrina e na jurisprudência, o elemento subjetivo no crime de violência doméstica basta-se com o mero dolo genérico, isto é, com o conhecimento e vontade de realizar os elementos objetivos.
12. É suficiente que a relação entre arguido e vitima esteja descrita no elemento objetivo, não carecendo de estar discriminada no elemento subjetivo.
13. A douta decisão recorrida vem introduzir uma exigência de redação acrescida quanto à vertente intelectual do dolo do agente dos factos, que é o concreto conhecimento de que estava a atingir o cônjuge, ex-cônjuge, companheiro ou ex-companheiro.
14. Esta exigência não corresponde sequer à exigência de um de um dolo específico, dado que o dolo específico se dirige à descrição de elementos que não têm correspondência nos elementos típicos objetivos.
15. Pois que se está descrita qual a relação entre o arguido e a ofendida; e se está descrito que o arguido quis praticar aqueles atos relativamente à Ofendida, com todo o respeito, não compreendemos como pode afirmar-se que o elemento subjetivo é insuficiente.
16. Se se descreveu que BB foi companheira de AA; que AA quis fazer e fez mal a BB, logo AA fez mal à sua então companheira.
17. Se se provou que AA é companheiro de BB, AA necessariamente sabia que BB é sua companheira.
18. De acordo com a douta decisão recorrida seria, então possível, dar como provado que a ofendida e o arguido eram companheiros há 4 anos e, simultaneamente, dar como não provado que AA sabia que BB era sua companheira.
19. A exigência da douta decisão recorrida aduz imprevisibilidade e insegurança na descrição casuística do tipo, o que não é nem desejável nem aceitável.
20. Conforme se escreveu no Ac TRC de ... de ... de 2024, relatado por Paulo Guerra: “Não existe uma fórmula sacramental de descrever o dolo da violência doméstica”.
21. Com a mesma descrição do elemento subjetivo aqui posto em crise, foram já deduzidas, perante o mesmo tribunal recorrido, muitas dezenas de acusações, mais de uma dezena perante o tribunal coletivo, gerando, na sua esmagadora maioria, condenações, muitas delas em penas de prisão efetiva, algumas longas, e outras confirmadas em recurso pelo Venerando Tribunal
da Relação de Lisboa sem que tal exigência jamais tivesse sido colocada.
22. Uma tal exigência a título de novidade também gera insegurança e tem um carater de surpresa que vem ao arrepio do propósito da ação da Justiça e dos Tribunais.
Pelas razões vindas de expor consideramos que a douta decisão recorrida violou a lei e os artigos 43.º da Convenção de Istambul, e 14.º e 152.º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a) do Código Penal, devendo ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pelam prática do crime de violência doméstica nos termos da acusação pública deduzida.
ED “
O recurso foi admitido, por despacho proferido em ........2025, a subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito devolutivo – Ref 58542874.
Em ........2025, o Arguido apresentou a sua resposta – 51138238. –, da qual se transcrevem as conclusões:
“1 — A Decisão Recorrida, não é merecedora de qualquer crítica, porquanto está devidamente fundamentada, tanto quanto aos factos, como quanto ao Direito;
2 - O arguido, AA, considera, salvo o devido respeito por posição diferente, M.P., que deve manter-se a Decisão Recorrida;
3 - A pena aplicada é totalmente ajusta e adequada, não merecendo a douta Sentença, qualquer juízo de censura.
4 - Assim, deve ser por ser de JUSTIÇA.
Nestes termos, deve pois, salvo melhor opinião, manter-se a Decisão Recorrida.
Vossas Excelências, porém decidirão, fazendo a costumada
JUSTIÇA “
3.
Remetidos os autos a este Tribunal, nos termos e para os efeitos do art. 416º do C.P.P., foram os autos com vista ao Ex.mº Senhor Procurador-Geral Adjunto que emitiu Parecer – Ref Citius 22809262 - que se transcreve:
Vista nos termos previstos no artigo 416 n.º 1 do CPP:
*
O recurso não suscita objeções quanto à sua admissibilidade, tempestividade, legitimidade, espécie, forma, momento de subida e efeito fixado
*
Foi por sentença proferida nestes autos o arguido AA absolvido da prática em autoria material, de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art.º 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal;
Em consequência foi decidido não arbitrar à vítima/ofendida BB qualquer quantia a título de reparação de prejuízos, nos termos dos art.º s 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, e 82.º-A do Código de Processo Penal;
Foi igualmente decidido:
Declarar extinto o procedimento criminal quanto ao arguido AA, pela prática de 2 (dois) crimes de injúria, previstos e puníveis pelo art.º 181.º do Código Penal, por falta de legitimidade do Ministério Público para a ação penal;
Declarar extinto o direito de queixa da ofendida BB, quanto a 1(um) crime de ofensa à integridade física, previsto e punível pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, por factos praticados em ...;
Convolar o crime previsto na alínea a) supra, condenado o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física, previsto e punível pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, por factos praticados em ...2.../07, na pena de 250 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta), perfazendo o total de 1.375,00€ (mil trezentos e setenta e cinco euros), quanto aos factos praticados em ...2.../07; Convolar o crime previsto na alínea a) supra, condenado o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 2 (um) crime de ameaça agravada, previstos e puníveis pelos art.º s 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), ex vi o art.º 131.º, todos do Código Penal, em duas penas de 150 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta), perfazendo o total de 825,00€ (oitocentos e vinte e cinco euros), cada uma;
Efetuar o cúmulo das penas parcelares aplicadas nas alíneas e) e f), nos termos do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, condenando o arguido AA na pena única de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta), perfazendo o total de 1.925,00€ (mil novecentos e vinte e cinco euros);
Condenar o arguido AA nas custas criminais, em taxa de justiça que se fixa em 2UC, e demais encargos processuais (art.º s 13.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, por referência à tabela III anexa a este diploma legal), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário existente.
i) Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante civil ... e, consequentemente condenar o arguido/demandado AA a pagar-lhe a quantia de 175,82€ (cento e setenta e cinco euros e oitenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora civis, calculados à taxa legal em vigor, vencidos Processo Comum (Tribunal Singular) desde a data de notificação do pedido de indemnização civil ao arguido e vincendos até efetivo e integral pagamento (art.º s 559.º, n.º 1, 804.º, n.º 1 e 2, 805.º, n.º 1, e 806.º, n.º 1 e 2, do Código Civil).
Declarar o arguido/demandado AA isento das custas cíveis relativas ao pedido de indemnização civil em que foi condenado, em virtude de o seu valor ser inferior a 20UC (art.º 4.º, n.º 1, alínea n), do Regulamento das Custas Processuais.
Da absolvição do arguido da prática em autoria material, de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art.º 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, recorre o Ministério Público. A tal respondeu o arguido.
Apraz-nos referir:
A questão que se coloca consiste em saber se atentos os factos provados, estão ou não nos mesmos descritos os elementos subjectivos do tipo penal previsto no artigo 152 n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a) do Código Penal - qualificação esta diversa daquela que resultava da acusação, situação passível de ser abordada processualmente enquanto alteração da qualificação jurídica dos factos com a relevância processual prevista no artigo 358 n.º 1 e 3 do CPP.
Relativamente à subsunção jurídica dos factos provados escreve-se na decisão recorrida:
“Subsunção jurídica:
Descendo ao caso dos presentes autos, dúvidas não restam que se encontram provados e preenchidos os elementos objetivos do tipo, a saber: i) os reiterados maus tratos físicos e psíquicos contra a ofendida (pontos 5 a 15 e 17 a 18 da matéria de facto provada), ii) a relação análoga à dos cônjuges que uniu o arguido e a ofendida (ponto 2 da matéria de facto provada) e iii) a prática dos referidos maus tratos na presença de menor (pontos 4 e 5 da matéria de facto provada) e no interior da habitação comum (pontos 3 e 5 da matéria de facto provada).
No entanto, quanto ao elemento subjetivo do tipo a mesma conclusão não pode ser retirada.
Vejamos.
Consta da matéria de facto dada como provada que «19. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente com o propósito alcançado de exercer poder sobre e de dominar BB, querendo causar-lhe, como causou, medo, dores físicas e sofrimento psíquico, e impedir, como impediu, a sua liberdade e o livre desenvolvimento da sua personalidade. 20. Sabia que toda a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.».
Importa relembrar que «todos os elementos essenciais do facto típico, da parte objetiva do tipo de crime, têm de ser conhecidos [e queridos] pelo agente para se poder dizer que ele atuou dolosamente e, portanto, preencheu, nesse aspeto, o tipo legal de crime.»21.
Não é, pois, «admissível a presunção do dolo com recurso à factualidade objectiva descrita na acusação; a lei exige a narração, ainda que sintética, dos factos - de todos os factos – que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, não se contentando, pois, com “subentendimentos” ou “factos implícitos”».
De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com «recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» (…) a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo (…) A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. (…) só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.»
É, pois, imprescindível que conste dos factos provados que o arguido sabia que a ofendida dos
seus atos era sua companheira e, posteriormente, sua ex-companheira, bem como que sabia que agiu na presença do filho menor daquela e no interior da habitação que partilhavam, já que só assim se pode integrar o tipo de crime de violência doméstica na sua forma simples e agravada.
A falta de descrição dos elementos subjetivos do crime na acusação e, consequentemente, nos
factos provados da sentença, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo da alteração não substancial dos factos, previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal.
Revertendo ao caso concreto, dos factos provados não consta a narração concretizada da factualidade integradora dos elementos do tipo subjetivo do crime de violência doméstica − que na acusação pública também não se encontravam descritos −, então não estão preenchidos os elementos típicos do crime imputado, pelo que o arguido terá de ser necessariamente absolvido.” (fim de citação).
Concorda-se com o que se escreve na motivação do recurso relativamente à definição e caracterização do tipo penal de violência doméstica, concretamente à definição e identificação daquele que é o bem jurídico tutelado pela norma.
Resulta do artigo 19º da matéria de facto provada da sentença recorrida que:
“O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente com o propósito alcançado de exercer poder sobre e de dominar BB, querendo causar-lhe, como causou, medo, dores físicas e sofrimento psíquico, e impedir, como impediu, a sua liberdade e o livre desenvolvimento da sua personalidade. “
Em nosso entendimento, a decisão recorrida incorre num vicio de raciocínio, retirando de factos dados como provados uma conclusão ilógica e contraditória ao entender que, atenta a matéria de facto provada, não resultavam expressos os elementos subjetivos do tipo do crime de violência doméstica, na medida em que “dos factos provados não consta a narração concretizada da factualidade integradora dos elementos do tipo subjetivo do crime de violência doméstica − que na acusação pública também não se encontravam descritos −, então não estão preenchidos os elementos típicos do crime imputado, pelo que o arguido terá de ser necessariamente absolvido.”
Atentos os factos dados como provados, constando dos mesmos que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, resulta meridiano que este conhecia e sabia a relação de afinidade que existia entre si a e as vitimas, sabia que agiu na presença do filho menor de BB e no interior da habitação que partilhavam.
Aliás estes elementos, são comportamentos integradores da acção típica dirigidos à produção do resultado, a saber, “exercer poder sobre e de dominar BB, querendo causar-lhe, como causou, medo, dores, físicas e sofrimento psíquico, e impedir, como impediu, a sua liberdade e o livre desenvolvimento da sua personalidade.”
Resulta assim bem expressa a ocorrência, na sentença, do vicio de erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410 n.º 2 al. c) do CPP, de conhecimento oficioso.
Tal erro ocorre "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente
inaceitável, quando se dá como provado algo que notóriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”, na lição de Simas Santos e Leal Henriques1
O dolo, conforme previsão do artigo 14º do Código Penal consiste no conhecimento e vontade de realização da acção típica.
Como se escreve no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de que é relator o Senhor Desembargador Paulo Guerra2, “No caso concreto do dolo, terá de ficar demonstrado que, de acordo com os padrões racionais de comportamento e com os critérios de normalidade social, o arguido não pôde ter deixado de representar e querer o resultado em causa.”
No presente caso o resultado em causa traduz-se na circunstância de, através dos comportamentos descritos na factualidade provada, o arguido pretender “exercer poder sobre e de dominar BB, querendo causar-lhe, como causou, medo, dores, físicas e sofrimento psíquico, e impedir, como impediu, a sua liberdade e o livre, desenvolvimento da sua personalidade.”
É esta especificidade que constitui o cerne da tipificação do crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º do Código Penal e que o distingue dos outros crimes menos graves, com os quais está em concurso aparente, considerando a sua ilicitude mais abrangente e agravada, expressão da tutela penal que o legislador quis empregar relativamente a relações de domínio/supremacia tóxicas, no seio de realidades sociológicas de afinidades pessoais.
Resulta da pura lógica, que ao querer o resultado o arguido quis os comportamentos que levaram ao resultado, conhecendo as circunstâncias em que actuava e a relação de afinidade que o ligava às vítimas.
E estes comportamentos, bem como as circunstâncias da actuação, bem como a relação de afinidade existente resulta bem expresso da matéria de facto provada.
No presente caso a conduta do agente, preenche os elementos objectivos do tipo penal em apreço, bem como os subjetivos, constando a concretização dos elementos do tipo da matéria de facto dada como provada
É nosso parecer dever o recurso proceder.
L.X. ...2...-03”
Notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 417º, nº2, do CPP, o arguido nada disse.
Após exame preliminar, foram os autos à conferência.
II Fundamentação
1.
Conforme jurisprudência pacífica o Supremo Tribunal de Justiça – vide, por todos e dada a demais jurisprudência nele referida, Ac. de 28.4.99, CJ/STJ, 1999, tomo 2, página 196 -, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, isto sem prejuízo do conhecimento oficioso das questões elencadas no art. 410º, nº2 e 3, do C.P.P..
Assim, face às conclusões apresentadas, são é a seguinte a questão que constitui o objecto do recurso:
- Se existe erro na subsunção jurídica da factualidade dada como provada.
2. A decisão recorrida ( transcrição na parte relevante):
“(…)
II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A. Factos provados
Apreciada a prova produzida em audiência de julgamento, dão-se como provados, com relevância para a boa decisão da causa, os seguintes factos constantes:
 Da acusação pública:
1. O arguido AA nasceu em ... de ... de 1970 e BB nasceu em ... de ... de 1992.
2. BB e o arguido AA mantiveram relação análoga à dos cônjuges por cerca de 4 anos e até ....
3. Era casa de morada de família a habitação sita em ....
4. O agregado familiar era ainda constituído por CC, e filho de BB.
5. Em ..., no interior da habitação comum, estando BB com o seu filho DD ao colo, o arguido esganou BB, envolvendo o seu pescoço e apertando-o com as suas mãos.
6. Depois, o arguido muniu-se de uma arma de fogo tipo caçadeira que dirigiu a BB afirma do: “queres que eu mate vocês os dois mesmos agora?”.
7. Temendo pela sua vida e segurança, BB saiu de casa, pedindo auxílio aos seus vizinhos EE e FF, em casa de quem se refugiou por algumas horas.
8. Em data não apurada mas que se situa em ..., durante a noite, BB encontrava-se a descansar quando foi abordada pelo arguido que lhe disse: “anda puta, dai, vem fumar comigo, não tens tempo para mim mas tens tempo para os outros! Sua puta!”.
9. BB, na data dos factos explorava o estabelecimento de bar e café, denominado ..., ....
10. No dia ... de ... de 2023, pelas 11h, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento ... onde sabia que iria encontrar, como encontrou, BB, e tendo permanecido ao balcão.
11. BB indagou o arguido quanto à possibilidade de retirar alguns pertences pessoais da casa do arguido.
12. Então, e sem que nada o fizesse prever, o arguido arremessou o uísque que estava no copo contra o rosto da vitima, dizendo-lhe ainda: «És forte puta, eu vou partir isto tudo aqui dentro, eu vou te matar aqui, tu não vales mesmo nada, fizeste com que o teu filho fosse para o colégio».
13. Depois, o arguido passou a atingir BB com chapadas, murros e pontapés em todo o seu corpo.
14. BB fugiu para a rua como forma de evitar que o arguido lhe continuasse a bater e em pedido de auxilio a terceiros, mas o arguido seguiu-a e, na via pública, agarrou-a e empurrou-a, fazendo-a cair sobre as escadas de acesso ao estabelecimento, continuou com as agressões, atingindo-a com pontapés em todo o seu corpo e principalmente na sua perna direita.
15. BB conseguiu levantar-se e regressar ao interior do seu estabelecimento, mas novamente foi seguida pelo arguido, que a atingiu com um forte soco nas costas, que a fez cair sobre o solo.
16. Após, o arguido muniu-se de um cabide que arremessou contra a câmara de vigilância.
17. Como consequência direta e necessária da descrita conduta do arguido resultaram em BB, dores e hematomas nas zonas atingidas, principalmente na perna direita, e designadamente:
- no dia ... de ... de 2023, edema labial, escoriações ao nível da face, pescoço, edema intenso no lábio superior, dor e ligeiro inchaço do nariz, dor a nível da mandibula, dor e inchaço no 1/3 proximal do antebraço esquerdo, dor na face direita; e no dia ... de ... de 2023, múltiplas equimoses, dor na hemicara esquerda, na parte esquerda do pescoço, no ouvido esquerdo, dor e escoriação no joelho direito.
- no dia ... de ... de 2023 apresentava fenómenos dolorosos no joelho direito, que surgem com os esforços e marcha prolongada.
18. Tais lesões foram determinantes de 7 dias de doença com afetação da capacidade para o trabalho profissional.
19. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente com o propósito alcançado de exercer poder sobre e de dominar BB, querendo causar-lhe, como causou, medo, dores físicas e sofrimento psíquico, e impedir, como impediu, a sua liberdade e o livre desenvolvimento da sua personalidade.
20. Sabia que toda a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.
 Do Pedido de Indemnização Civil:
21. Na sequência da atuação do arguido/demandado civil descrita nos pontos 1 a 20 supra, BB foi assistida no ..., em ...2.../07 e ...2.../07, cujos atos clínicos e hospitalares ascenderam à quantia de 175,82€ (cento e setenta e cinco euros e oitenta e dois cêntimos).
 Da audiência de julgamento:
22. O arguido tem atualmente 54 (cinquenta e quatro) anos de idade.
23. (…) possui, como habilitações literárias, o 4.º ano de escolaridade.
24. (…) iniciou precocemente atividade laboral, de forma a contribuir para o sustento do seu núcleo familiar, onde revelou qualidades de trabalho em diferentes atividades (construção civil, jardinagem e agricultura).
25. (…) é Servente da Construção Civil, por conta de outrem, auferindo salário mensal de cerca de 900,00€ (novecentos euros).
26. (…) refere o consumo de substâncias aditivas (haxixe) que avalia como pouco significativa, não tendo até à data, iniciado um processo de tratamento clínico, embora encontrar-se abstinente.
27. (…) tem quatro filhos, maiores de idade e independentes, e um filho de 13 (treze) anos, encontrando-se à guarda de uma tia paterna.
28. (…) mantém uma relação de proximidade com os filhos.
29. (…) reside sozinho, em casa arrendada, pagando uma renda mensal de 200,00€ (duzentos euros).
30. (…) não mantém contacto com a ofendida.
31. (…) foi julgado e condenado:
- Pela prática, em ...1.../11, de factos que constituem 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punível pelos art.ºs 21.º, n.º 1, e 24.º, alínea b), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de ..., e 26.º do Código Penal, como reincidente, nos termos do disposto nos art.ºs 75.º e 76.º ambos do Código Penal, no processo n.º 11/10.8..., do Juiz 2 do Juízo Cível e Criminal de Angra do Heroísmo do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, por acórdão proferido em ...1.../10 e transitado em julgado em ...1.../11, na pena de 8 (oito) anos de prisão, extinta em ...2.../11, com efeitos reportados a ...2.../04.
B. Factos não provados
Com relevância para a boa decisão da causa, não se provou que:
a) Logo no início da relação, por ciúmes, o arguido atingiu com um cinto, repetidamente, as pernas BB.
b ) Em outra ocasião, durante um jantar e na habitação da cozinha comum, o arguido arremessou o conteúdo de um copo de vinho contra o rosto de BB.
c) Após o termo da relação, o arguido passou várias vezes no local de trabalho de BB e chama-lhe «puta».
*
Não se tomou posição expressa sobre alegações meramente conclusivas ou absolutamente irrelevantes para a decisão dos presentes autos.
(…)
III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Chegados a este ponto, cumpre fazer o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto acima descrita e verificar se a factualidade apurada consubstancia um qualquer ilícito criminal.
O arguido vem acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art.º 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal.
*
Estatui o art.º 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, na parte que aqui importa, que:
« 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.».
Tutela-se, com esta incriminação, em geral, a proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana, e, de forma secundária ou reflexa, a saúde, como bem jurídico complexo que abrange o bem-estar físico, psíquico e mental, intimamente relacionado com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio conjugal, familiar ou doméstico, i. e., a pacífica convivência familiar, para-familiar ou doméstica.
Deste modo, o crime de violência doméstica não pode servir para punir uma qualquer ofensa, pressupondo antes que os bens jurídicos protegidos sejam brutalmente ofendidos, de forma que a configuração geral do comportamento do agente traduza um desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima, assente necessariamente numa posição de domínio e controlo. Ou seja, a ofensa que este ilícito pretende proteger não resulta apenas da soma de diversos ilícitos típicos que podem abstratamente preencher vários e distintos crimes, posto que um único comportamento isolado e perpetrado pelo agente pode ser suficiente para integrar o crime em apreço. Assim, é essencial que da ação do agente resulte um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação para a vítima, apreciado à luz do circunstancialismo concreto da vida conjugal, familiar ou de coabitação e sua repercussão sobre a mesma, permitindo concluir que todo o contexto transmite um quadro de degradação da dignidade da vítima, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano. .
Quanto à sua consumação, este crime tanto se pode materializar num crime de resultado nomeadamente nas situações de maus tratos físicos, como num crime de mera atividade nos casos de maus tratos psíquicos que se concretizam em provocações ou ameaças.
No que respeita ao grau de lesão do bem jurídico, o crime em análise corporizar-se num crime de dano quando a conduta subsumível ao tipo se traduz, por exemplo, na privação da liberdade ou num crime de perigo quando tal conduta se manifesta, por exemplo, em ameaças ou humilhações.
*
Nos termos do art.º 152.º, n.º 1, são três os elementos objetivos do tipo, a saber: (i) a especial relação de proximidade existente entre o agente e a vítima, de onde resultem (ii) maus tratos físicos ou psíquico, infligidos de (iii) modo reiterado ou não.
A exigência de que entre o agente e a vítima exista uma relação de proximidade implica que o crime de violência doméstica seja classificado como um crime específico, pressupondo que entre ambos haja uma relação conjugal ou análoga atual ou passada, uma relação parental, uma relação familiar, uma relação «para-familiar» ou uma relação de coabitação.
As condutas previstas e puníveis por esta incriminação podem ser da mais variada natureza, consistindo, de forma abrangente, em maus tratos físicos ou psíquicos, que o legislador, num elenco não taxativo, reconduz a castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns.
Assim, o crime em apreço poderá ser qualificado como crime específico impróprio quando as condutas típicas constituam, em si mesmas, um tipo legal de crime autónomo, como acontece com os maus tratos físicos, psíquicos e as privações da liberdade, que se reconduzem, respetiva e abstratamente, aos crimes de ofensa à integridade física, ameaça, difamação, injúria e sequestro.
Por sua vez, o crime em análise será qualificado como crime específico próprio quando as condutas típicas não se reconduzam a um crime autónomo, mas, porque os factos são praticados de forma reiteradas e com um evidente prejuízo para a saúde física e mental da vítima, fundamentam a ilicitude e a punição do agente.
Em síntese, «[d]evem ser incluídas no conceito de maus tratos físicos todas as condutas agressivas que visem atingir directamente o corpo da vítima, v.g., bofetadas, murros, pontapés, joelhadas, puxões de cabelos, empurrões, apertões de partes do corpo e pancadas ou golpes desferidos com objectos (…), e no conceito de maus tratos psíquicos as injúrias, as críticas destrutivas e/ou vexatórias, as ameaças, as privações da liberdade, as restrições, as perseguições e as esperas não consentidas».
Por fim, os maus tratos podem reportar-se a situações reiteradas e continuadas no tempo ou a situações isoladas, únicas e pontuais. Na primeira opção, «[a] reiteração traduz um estado de agressão permanente, não no sentido de que as condutas violentas sejam constantes, mas no sentido de que traduzem o comportamento padrão do agressor, através do qual se revela a relação de sobreposição do agente sobre a vítima, proporcionada pelo ambiente familiar ou de proximidade social, da qual resulta um tratamento incompatível com a sua dignidade» Na segunda opção, a punição como crime de violência doméstica justifica-se tendo em conta a gravidade subjacente a tal comportamento, que permite afirmar que foi praticada com especial crueldade, insensibilidade ou até vingança, desnecessária, da parte do agente, pressupondo que o agente ofenda a integridade física ou psíquica da vítima de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável .
O n.º 2 do referido preceito elenca várias situações agravantes, mais concretamente praticar o facto contra menor, praticar o facto na presença de menor, praticar o facto no domicílio comum, praticar o facto no domicílio da vítima, ou difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento.
*
No que concerne ao elemento do tipo subjetivo, para o preenchimento do crime de violência doméstica, exige-se o dolo, sendo necessário o conhecimento da relação subjacente à incriminação e o conhecimento e a vontade da conduta, do resultado e das situações agravantes, consoante os comportamentos sejam subsumíveis ao âmbito da incriminação supra referida.
O dolo consiste no conhecimento e vontade de realização da ação típica, decompondo-se em dois elementos, a saber:
- O elemento cognitivo ou intelectual, i. e., o conhecimento de todas as circunstâncias de facto e de direito que constituem o tipo de ilícito objetivo e que permitem ao agente, em consciência, saber que a ação é ilícita e comporta um desvalor jurídico; e,
- O elemento volitivo, i. e., a vontade dirigida à realização o facto típico ilícito, que pode assumir uma das modalidades previstas no art.º 14.º do Código Penal, ou seja, o dolo direto, «quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar», necessário, «quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta», ou o dolo eventual, «[q]uando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, (…) [e] o agente actuar conformando-se com aquela realização».
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Estatui, ainda, o art.º 26.º do Código Penal que «[é] punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução».
Nos termos do mencionado preceito e de acordo com a teoria do domínio do facto aí consagrada, é possível identificar e distinguir autoria, seja autoria imediata, mediata ou coautoria, e participação em facto de outrem, ou seja, a instigação.
Nos casos de autoria material, imediata ou singular, prevista no art.º 26.º, 1.ª proposição, do Código Penal, «quem executar o facto, por si mesmo», o autor tem domínio do facto através do domínio da sua própria ação.
Por sua vez, nas situações em que se verifica a autoria mediata, vertida no art.º 26.º, 2.ª proposição, do Código Penal, «quem executar o facto, (…) por intermédio de outrem», o autor tem o domínio do facto mediante o domínio da vontade do executor do facto, surgindo assim a figura do «homem da frente» e a do «homem de trás». Com efeito, o «homem de trás», o autor mediato, utiliza o «homem da frente», ou executor, como se de um instrumento se tratasse, controlando a vontade deste. Por força desta premissa legal, a responsabilidade pelo facto doloso do «homem da frente» é conduzida juridicamente para o «homem de trás», o autor mediato.
Pode ainda haver autoria, como prevê o art.º 26.º, 3.ª proposição, do Código Penal, quando o facto típico ilícito seja praticado por quem «tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros», isto é, em coautoria, que comporta dois elementos fundamentais, a saber:
1) O acordo ou decisão conjunta sobre o plano de execução do facto, com distribuição de tarefas entre os coautores;
2) A intervenção direta na execução do facto típico ilícito.
Desta forma, o coautor domina o facto típico ilícito porque domina a sua função no plano de execução, tendo assim o domínio funcional do facto.
Por fim, o facto típico ilícito pode ser realizado por quem «dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução», tal como determina o art.º 26.º, 4.ª proposição, do Código Penal. Estes são os casos de instigação, em que o instigador não tem domínio do facto, pois não domina a vontade do executor ou instigado. Ao invés, o instigador determina e convence outra pessoa à prática de um facto típico ilícito, criando nela a vontade criminosa, mas não controlando o poder de execução dessa mesma vontade.
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Subsunção jurídica:
Descendo ao caso dos presentes autos, dúvidas não restam que se encontram provados e preenchidos os elementos objetivos do tipo, a saber: i) os reiterados maus tratos físicos e psíquicos contra a ofendida (pontos 5 a 15 e 17 a 18 da matéria de facto provada), ii) a relação análoga à dos cônjuges que uniu o arguido e a ofendida (ponto 2 da matéria de facto provada) e iii) a prática dos referidos maus tratos na presença de menor (pontos 4 e 5 da matéria de facto provada) e no interior da habitação comum (pontos 3 e 5 da matéria de facto provada).
No entanto, quanto ao elemento subjetivo do tipo a mesma conclusão não pode ser retirada.
Vejamos.
Consta da matéria de facto dada como provada que «19. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente com o propósito alcançado de exercer poder sobre e de dominar BB, querendo causar-lhe, como causou, medo, dores físicas e sofrimento psíquico, e impedir, como impediu, a sua liberdade e o livre desenvolvimento da sua personalidade. 20. Sabia que toda a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.».
Importa relembrar que «todos os elementos essenciais do facto típico, da parte objetiva do tipo de crime, têm de ser conhecidos [e queridos] pelo agente para se poder dizer que ele atuou dolosamente e, portanto, preencheu, nesse aspeto, o tipo legal de crime.».
Não é, pois, «admissível a presunção do dolo com recurso à factualidade objectiva descrita na acusação; a lei exige a narração, ainda que sintética, dos factos - de todos os factos - que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, não se contentando, pois, com “subentendimentos” ou “factos implícitos”».
«De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com «recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» (…) a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo (…) A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. (…) só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.».
É, pois, imprescindível que conste dos factos provados que o arguido sabia que a ofendida dos seus atos era sua companheira e, posteriormente, sua ex-companheira, bem como que sabia que agiu na presença do filho menor daquela e no interior da habitação que partilhavam, já que só assim se pode integrar o tipo de crime de violência doméstica na sua forma simples e agravada.
A falta de descrição dos elementos subjetivos do crime na acusação e, consequentemente, nos factos provados da sentença, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo da alteração não substancial dos factos, previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal.
Revertendo ao caso concreto, dos factos provados não consta a narração concretizada da factualidade integradora dos elementos do tipo subjetivo do crime de violência doméstica  que na acusação pública também não se encontravam descritos , então não estão preenchidos os elementos típicos do crime imputado, pelo que o arguido terá de ser necessariamente absolvido.
De salientar que o presente desfecho não sofreria modificação caso de procedesse à necessária alteração da qualificação jurídica, nos termos do disposto no art.º 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, para correção da errónea imputação jurídica feita pela acusação, que imputa ao arguido o crime de violência doméstica previsto e punível pelo art.º 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, quando dos factos provados estaria em causa a eventual prática do arguido do crime de violência doméstica previsto e punível pelo art.º 152.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, alínea a), do Código Penal.
Restará apurar a aptidão dos factos provados para o preenchimento de outros tipos de ilícitos penais.
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A condenação do arguido pela prática destes crimes não exige o cumprimento do disposto no art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, por representar um minus relativamente ao crime de violência doméstica pelo qual o arguido vinha acusado, sendo que a sua defesa relativamente a essa acusação já incluía a defesa quanto a tais crimes.
*
Sem prejuízo do supra exposto, a factualidade apurada é suscetível de consubstanciar a prática, pelo arguido, de 2 (dois) crimes de injúria, previstos e puníveis pelo art.º 181.º, nº 1, do Código Penal, tendo em conta os factos provados nos pontos 8, 12 e 19 da matéria de facto provada, de 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física, previstos e puníveis pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, tendo em conta os factos provados nos pontos 5, 12 a 15, 17 a 19 da matéria de facto provada, e de 2 (dois) crimes de ameaça agravada, previstos e puníveis pelos art.º s 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), ex vi o art.º 131.º, todos do Código Penal, tendo em conta os factos provados nos pontos 6, 12 e 19 da matéria de facto provada.
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Nos termos do disposto no art.º 188.º do Código Penal, crime de injúria reveste natureza particular, pelo que o procedimento criminal pelo depende de queixa e acusação particular.
Dispõe o art.º 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que «[q]uando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular».
A ofendida apresentou queixa, mas não se constitui assistente ou deduziu acusação particular.
Em face do exposto, o Ministério Público carece de legitimidade para perseguir criminalmente o arguido por tais crimes.
Nessa medida, a convolação do crime de violência doméstica em crimes de injúria mostra-se inútil.
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Nos termos do art.º 143.º, n.º 2, primeira parte, do Código Penal, o crime de ofensa à integridade física reveste natureza semi-pública, pelo que o procedimento criminal depende de queixa.
Estipula o art.º 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que «[q]uando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo».
Por sua vez, determina o art.º 115.º, n.º 1, do Código Penal que «[o] direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto».
A ofendida apresentou queixa em ...2.../07, muito para além dos 6 (seis) meses após os factos relativos ao primeiro episódio de ofensa à integridade física, em ..., descritos nos pontos 5 a 7 dos factos provados, pelo que quanto a este crime, encontra-se extinto o direito de queixa.
Quanto ao episódio de ofensa integridade física ocorrido em ...2.../07, já não ocorre o mesmo.
Determina o art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal que «[q]uem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».
O bem jurídico protegido pela referida norma incriminadora é a integridade física entendida como unidade psicossomática do indivíduo, essencial ao livre desenvolvimento e realização da personalidade humana, num quadro de bem-estar físico, psíquico e social, numa perspetiva corporal-objetiva do delito.
A verificação do tipo objetivo pressupõe um comportamento que, por qualquer modo, produza uma ofensa no corpo ou na saúde de terceiro, ficando preenchido o tipo legal mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde de terceiro.
Entende-se por ofensa no corpo todo o mau trato através do qual o ofendido é prejudicado no seu bem-estar físico ou na morfologia do seu organismo.
Entende-se por ofensa na saúde, toda a intervenção que ponha em causa, alterando ou perturbando, o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a.
Este tipo legal de crime exige o dolo em qualquer das suas modalidades.
Da factualidade provada resulta que o arguido arremessou o uísque que estava no copo contra o rosto da ofendida, atingiu-a com chapadas, murros e pontapés em todo o seu corpo, agarrou-a e empurrou-a, fazendo-a cair sobre as escadas de acesso ao estabelecimento, continuou com as agressões, atingindo-a com pontapés em todo o seu corpo e principalmente na sua perna direita e, por fim, atingiu-a com um forte soco nas costas, que a fez cair sobre o solo (pontos 12 a 15 da matéria de facto provada).
Tratam-se de agressões físicas, que atingiram corporalmente a ofendida, provocando vários dores e hematomas nas zonas atingidas (pontos 17 e 18 da matéria de facto provada).
Mais resulta que o arguido atuou com consciência e vontade de assim agir, causando ofensas corporais, sabedor do caráter ilícito deste seu comportamento (pontos 19 e 20 da matéria de facto provada).
Nesta medida, estão reunidos todos os elementos, objetivos e subjetivos do crime de ofensa à integridade física quanto ao episódio de ...2.../07, pelo qual o arguido vai necessariamente condenado.
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Nos termos dos art.º s 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), ex vi o art.º 131.º, todos do Código Penal, conjugado com o art.º 48.º do Código de Processo Penal, o crime de ameaça agravada reveste natureza pública, pelo que o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal.
Prevê o art.º 153.º, n.º 1, do Código Penal que «[q]uem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.».
Protege-se com esta incriminação a liberdade de decisão e de ação de outra pessoa, exigindo-se apenas que a ameaça seja suscetível de afetar, de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que em concreto provoque medo ou inquietação.
Deste modo, a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente), independentemente, de este ficar ou não intimidado.
Não releva se a ameaça é proferida perante quem é objeto do crime ameaça ou através de terceiro, sendo, no entanto, indispensável para preenchimento do tipo que a ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário.
O tipo subjetivo pode ser preenchido por qualquer modalidade de dolo. O crime de ameaça não exige a intenção do agente em concretizar a ameaça nem exige a ocorrência do dano, ou seja, a consumação do crime ameaçado, sendo, por isso, um crime de perigo concreto.
In casu, apurou-se que o arguido se dirigiu à ofendida, em ... e ...2.../07, e disse-lhe, respetivamente, «queres que eu mate vocês os dois mesmos agora?» e «eu vou partir isto tudo aqui dentro, eu vou te matar aqui» (pontos 6 e 12 da matéria de facto).
Importa, também, atender às circunstâncias em que aquele comportamento ocorreu.
Nesta situação de grande alteração do arguido, é mais que justificado que a ofendida tenha sentido receio que o arguido pudesse concretizar o que dizia, o que lhes causou efetivo receio, medo e inquietação.
Assim, em face dos factos provados, não existem dúvidas que as expressões proferidas pelo arguido dirigida à pessoa da ofendida são suscetíveis de ser caracterizadas como ameaça, com a prática de crime contra a vida daquela.
O art.º 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal dispõe que «1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; (…) o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º».
No caso a conduta do arguido preenche esta previsão, uma vez que dirigiu as ameaças afirmando que matava a ofendida, o que implicaria a prática de um crime cuja pena de prisão vai de 8 (oito) a 16 (dezasseis) anos de prisão, conforme prevê o art.º 131.º do Código Penal.
O arguido agiu com dolo direto, determinando livremente a sua vontade com vista, com a sua conduta, a causar medo à ofendida, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (pontos 19 e 20 da matéria de facto).
Encontram-se assim preenchidos os elementos típicos objetivos e subjetivos dos 2 (dois) crimes de ameaça agravada, pelos quais o arguido vai necessariamente condenado.
B. CONSEQUÊNCIAS JURÍDICO-PENAIS DO CRIME
O crime de ofensa à integridade física, previsto no art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, é punível com pena de prisão até 3 (três) anos ou com pena de multa.
O crime de ameaça agravada, previsto nos art.º s 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), ex vi o art.º 131.º, todos do Código Penal, é punível com pena de prisão até 2 (dois) anos ou com pena de multa até 240 dias.
i. Da escolha das penas:
Uma vez que os crimes sub judice preveem a aplicação alternativa de uma pena de multa ou de prisão, cumpre determinar o tipo de pena adequada e suficiente, face às necessidades de prevenção do caso concreto, a aplicar ao arguido pela prática dos crimes.
Dispõe o art.º 70.º do Código Penal que, quando forem aplicáveis ao crime, em alternativa, pena privativa ou não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Consequentemente, nos termos do art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de uma pena tem como finalidade a proteção do bem jurídico violado e a reintegração do agente na sociedade, i. e., as exigências e os objetivos de prevenções geral e especial existentes no caso concreto.
As exigências de prevenção geral têm assim uma vertente positiva mormente a necessidade de tutela dos bens jurídicos que no caso concreto se fazem sentir, salvaguardando as expectativas de comunidade na manutenção e reforço da vigência da norma infringida e uma vertente negativa como forma de dissuadir a prática de futuros crimes pelos cidadãos e comunidade em geral. Numa visão conjunta, subjaz a tais exigências preventivas o dever de restabelece a paz social e jurídica afetadas com a prática do crime, bem como repor a confiança dos cidadãos na validade das normas jurídicas e do sistema judicial.
Por outro lado, as exigências de prevenção especial relacionam-se com as necessidades específicas do próprio arguido, dividindo-se igualmente em duas dimensões, uma positiva de ressocialização do delinquente e outra negativa de prevenção e dissuasão do delinquente quanto ao cometimento de novos de crimes. Assim, as necessidades de prevenção especial devem, em toda a extensão possível, servir para a reintegração do arguido na comunidade.
A escolha da pena norteia-se, ainda, pelos princípios da proporcionalidade, necessidade, adequação e subsidiariedade, consagrados no art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa, bem como pelo princípio da dignidade da pessoa humana, constante do art.º 1.º da referida lei fundamental.
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No caso em análise, as exigências de prevenção geral, no que concerne aos crimes em apreço, mostram-se mediana, tendo em conta o alarme social gerado por factos desta natureza, tanto mais, por serem cometidos entre casais que vivem ou viveram uma relação análoga à dos cônjuges, impondo-se aos tribunais reforçar, perante a comunidade, a validade das normas violadas que punem tais condutas e protegem os bem jurídicos.
No entanto, no que toca às necessidades de prevenção especial, estas consideram-se medianas.
Se por um lado, arguido regista um antecedente criminal validamente averbado, por decisão transitada em julgado em ...1.../11, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, em ...1.../11, e punido com uma pena de prisão efetiva de 8 (oito) anos, extinta em ...2.../11, com efeitos reportados a ...2.../04, que revela existirem particulares exigências de prevenção especial a acautelar.
Por outro lado, afigura-se que é possível ainda realizar um juízo de prognose positiva, no sentido de que a pena de multa realizará de forma adequada as finalidades da punição de proteção da confiança da comunidade na validade das normas jurídicas violadas e de interiorização, pelo arguido, do desvalor da sua conduta e subsequente ressocialização daquele. Isto porque, a condenação validamente averbada diz respeito a um crime de diferente tipo e natureza dos crimes pelos quais o arguido vem agora condenado e o arguido encontra-se integrado do ponto de vista profissional, familiar e social.
Pelo exposto, o Tribunal considera que a aplicação de penas não privativas da liberdade assegurará por ora a efetividade das finalidades preventivas supra referidas, sendo capaz de dissuadir o arguido ao cometimento de novos crimes, proteger os bens jurídicos em crise e satisfazer as finalidades de punição.
ii. Da medida das penas:
Cumpre, pois, apurar a medida concreta das penas a que o arguido deverá ficar sujeito, em conformidade com o disposto nos art.º s 40.º e 71.º ambos do Código Penal.
Dispõe o art.º 40.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, que «[a] aplicação de penas (…) visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e que «[e]m caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».
Reforça ainda o art.º 71.º, n.º 1, do Código Penal, que «[a] determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
Da conjugação dos mencionados preceitos, conclui-se que as exigências de prevenção geral, positiva e negativa, constituem um critério de necessidade da pena, i. e., estabelecem a medida ótima de tutela dos bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora e das expectativas da comunidade, ponto abaixo da qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena, sem que isso não coloque em causa a função de tutela do ordenamento jurídico.
Deste modo, o critério da necessidade da pena, determinado pelas reivindicações de prevenção geral, não fornece o quantum exato da pena, sendo essa uma tarefa que cabe às exigências de prevenção especial que no caso concreto se façam sentir.
Finalmente, constituindo a culpa um limite inultrapassável ou uma barreira intransponível de quaisquer considerações preventivas, como impõe o art.º 40.º, n.º 2, do Código Penal, esta fornece assim o limite máximo da pena.
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Quanto à aplicação de uma pena de multa, importa referir que no direito penal português encontra-se previsto o sistema dos dias de multa, tal como decorre do art.º 47.º do Código Penal, que pressupõe que o tribunal determine os dias de multa e, num momento posterior, determine o quantitativo diário.
No momento de determinação dos dias de multa, estabelece o art.º 47.º, n.º 1, do Código Penal, que devem ser seguidos os critérios o art.º 71.º, n.º 1, do Código Penal, i. e., em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, considerando ainda os fatores da medida da pena previstos no art.º 71.º, n.º 2, do Código Penal, e respeitando-se os limites mínimo e máximo abstratamente aplicáveis no caso concreto.
Na fixação do quantitativo diário da pena de multa, o Tribunal atende à situação económica e financeira e aos encargos do arguido, tal como define o art.º 47.º, n.º 2, do Código Penal, em clara materialização do princípio da igualdade de ónus e sacrifícios, promovendo, consequentemente, a eficácia preventiva da multa.
Em face do silêncio da lei sobre os critérios que devem ser tomados em conta para determinar a situação económica e financeira e aos encargos do arguido, é seguro que deverá considerar-se a totalidade dos rendimentos próprios do condenado, i. e., a sua fonte de rendimento líquida.
Na determinação da medida concreta da pena de multa, o tribunal deve preservar a eficácia preventiva, tanto no plano da prevenção geral positiva, contrariando a perceção comunitária de que a sanção pecuniária não é dissuasora, como de prevenção especial de integração, obrigando o arguido a genuína reflexão, através de real sacrifício, sem colocar em causa mínimos de subsistência.
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Por força do disposto no art.º 71.º, n.º 2, do Código Penal, para a concreta medida da pena, o tribunal deve ainda atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Tais circunstâncias, exemplificativamente elencadas no referido preceito, podem ser agrupadas em três categorias:
i. Fatores relativos à execução do facto ( cfr. art.º 71.º, n.º 2, alíneas a), b), c) e e), parte final, do Código Penal);
ii. Fatores relativos à personalidade do agente (cfr. art.º 71.º, n.º 2, alíneas d) e f), do Código Penal);
iii. Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto (cfr. art.º 71.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal).
De fora ficam as circunstâncias que já façam parte do tipo de crime, em clara materialização do princípio da proibição da dupla valoração, segundo o qual o tribunal não pode utilizar para determinar a medida da pena as circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura abstrata da pena do facto.
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Assim, em sede de medida das penas, em consonância com o que foi dito supra sobre as necessidades de prevenção que no caso sub judice se fazem sentir, o Tribunal considerou ainda em desfavor do arguido:
- O grau elevado de ilicitude, atento o modo de prática dos crimes, a gravidade das lesões provocadas à ofendida e a circunstância da ofendida ser sua companheira, com quem residia, juntamente com o filho daquela, à data da prática dos factos referentes ao primeiro crime de ameaça agravada, e de ser sua ex-companheira, à data da prática dos factos do segundo crime de ameaça agravada e do crime de ofensa à integridade física;
- A intensidade do dolo com que o arguido atuou na prática dos crimes, todos de tipo direto;
- O antecedente criminal registado, com condenação anterior pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, embora de diferente tipo e/ou natureza dos crimes sub judice.
Em favor do arguido o Tribunal considerou:
- A boa integração profissional, familiar e social.
Na fixação do quantitativo diário, o Tribunal teve em conta a atual situação económica e financeira e aos encargos do arguido (art.º 47.º, n.º 2, do Código Penal), vertida nos pontos 25 e 29 da matéria de facto, pelo que deve fixar-se pouco acima do limite mínimo legal. Entende o Tribunal que desta forma ficará conservada a eficácia preventiva da pena, tanto no plano da prevenção geral positiva, contrariando a perceção comunitária de que a sanção pecuniária não é dissuasora, como de prevenção especial de integração, obrigando o arguido a genuína reflexão, através de real sacrifício, sem colocar em causa mínimos de subsistência.
Como limite inultrapassável na determinação da medida da pena o Tribunal considerou o carácter elevado da culpa demonstrada pelo arguido, a quem se impunha, em razão do grau de esclarecimento e da anterior condenação por si sofrida, outro tipo de comportamento.
Tudo ponderado, o Tribunal considera adequado e necessário ao caso concreto aplicar ao arguido pela prática de:
- 1 (um) crime de ofensa à integridade física a pena de 250 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta), perfazendo o total de 1.375,00€ (mil trezentos e setenta e cinco euros).
- 1 (um) crime de ameaça agravada a pena de 150 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta), perfazendo o total de 825,00€ (oitocentos e vinte e cinco euros).
- 1 (um) crime de ameaça agravada a pena de 150 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta), perfazendo o total de 825,00€ (oitocentos e vinte e cinco euros).
iii. Do cúmulo jurídico das penas:
De acordo com o art.º 77.º, n.º 1, primeira parte, do Código Penal, «[q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena».
Adotando um sistema de pena conjunta, obtida mediante um princípio de cúmulo jurídico, o legislador português determinou, no art.º 77.º, n.º 2, do Código Penal, que «[a] pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão (…) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes».
Tendo em conta as penas parcelares aplicadas, no caso em apreço, a moldura penal do concurso tem como o limite mínimo de 250 (duzentos e cinquenta) dias e o limite máximo de 550 (quinhentos e cinquenta) dias.
Impõe-se agora ao Tribunal determinar a medida da pena única do concurso, seguindo os critérios gerais da culpa e da prevenção, previstos no art.º 71.º do Código Penal, e o critério especial segundo o qual «[n]a medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente», como estabelece o art.º 77.º, n.º 1, segunda parte, do Código Penal .
No que respeita ao critério especial, « [i]mprescindível na valoração global dos factos, para fins de determinação da pena de concurso, é analisar se entre eles existe conexão e qual o seu tipo; na avaliação da personalidade releva sobretudo se o conjunto global dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, dando-se sinais de extrema dificuldade em manter conduta lícita, caso que exaspera a pena dentro da moldura de punição em nome de necessidades acrescidas de ressocialização do agente e do sentimento comunitário de reforço da eficácia da norma violada ou indagar se o facto se deve à simples tradução de comportamentos desviantes, meramente acidentes de percurso, que toleram intervenção punitiva de menor vigor, expressão de uma pluriocasionalidade, sem radicar na personalidade, tendo presente o efeito da pena sobre o seu comportamento futuro» .
Na situação sub judice, o Tribunal ponderou todas as circunstâncias a atenuantes e agravantes supra referidas, atendendo ainda à circunstância de os factos terem sido cometidos em circunstâncias de tempo, lugar e modo muito próximos e semelhantes, e, por isso, no âmbito de um mesmo espírito antijurídico.
Assim, o Tribunal considera justa e adequada a aplicação ao arguido de uma pena única que se deverá fixar nos 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta), perfazendo o total de 1.925,00€ (mil novecentos e vinte e cinco euros).
IV. REPARAÇÃO DA VÍTIMA
O Ministério Público requereu o arbitramento de uma indemnização à ofendida, nos termos dos art.º s 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, e 82º-A, do Código de Processo Penal.
Nos termos do art.º 21.º, n.º 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, e em conformidade com o princípio da adesão previsto no art.º 71.º do Código de Processo Penal, à vítima é reconhecido o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, por aplicação do disposto no art.º 82º-A deste diploma legal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
Face aos factos provados e à qualificação jurídica dos mesmos, tendo o arguido sido absolvido do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado pela acusação pública, não se verificam preenchidos os pressupostos previstos nos artigos mencionados, pelo que não há lugar ao arbitramento à ofendida de qualquer quantia a título de reparação por prejuízos.
V. PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
O princípio da adesão, consagrado nos art.º s 71.º do Código de Processo Penal e 129.º do Código Penal, impõe que o pedido de indemnização civil seja deduzido em processo penal sempre que as respetivas perdas e danos decorram do crime em apreço, sendo para tal aplicado o regulamentado pela lei civil, mais concretamente o disposto nos art.º s 483.º, n.º 1, 496.º, 562.º e 566.º, todos do Código Civil.
Por conseguinte, o art.º 483.º do Código Civil estabelece a cláusula geral de responsabilidade civil extracontratual, fazendo depender – sendo esta, aliás, a doutrina e jurisprudência, entre nós, dominantes – a constituição da obrigação de indemnização da verificação de uma pentapartição tradicional de pressupostos, a saber:
1) Facto voluntário do agente, o qual pode revestir uma conduta ativa ou omissiva do agente;
2) Ilicitude, o qual corresponde ao desvalor objetivo da conduta do agente, radicada na violação de um dever imposto pela ordem jurídica;
3) Culpa, como o desvalor subjetivo da atuação do agente, correspondente ao juízo de censura pela conduta adotada, quando, de acordo com o comando legal, estaria obrigado a adotar uma conduta diferente;
4) Dano, definido como a frustração de uma utilidade, objeto de tutela jurídica;
5) Nexo de Causalidade entre o facto e o dano, exigindo que o facto voluntário do agente tenha sido a causa adequada dos prejuízos sofridos pelos lesado.
Verificados os referidos pressupostos, surge a obrigação de indemnização, prevista nos art.º 562.º e seguintes do Código Civil, nos termos dos quais «[q]uem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» (reconstituição natural), sendo que «[a] indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor» (indemnização pecuniária ou em dinheiro).
Da articulação destas duas normas resulta uma clara primazia da reconstituição in natura sobre a indemnização pecuniária, havendo lugar à segunda somente quanto a primeira não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa, tal como estipula o art.º 566.º, n.º 1, do Código Civil.
No caso de danos patrimoniais, a determinação da indemnização em dinheiro é estabelecida pela teoria da diferença, prevista no art.º 566.º, n.º 2, do Código Civil, segundo a qual se procede à avaliação do dano em sentido patrimonial, mediante a apreciação concreta das alterações verificadas no património do lesado, comparando a situação patrimonial atual efetiva do lesado e a sua situação patrimonial atual hipotética se não existissem danos.
Por sua vez, determinam os art.º s 4.º, alínea ), e 566.º, n.º 3, ambos do Código Civil, que «[s]e não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados», i. e., encontrará a solução que se entende ser a mais justa, atendendo apenas às particularidades do caso concreto e sem recurso à norma jurídica eventualmente aplicável.
Por fim, nos termos do art.º 495.º, n.º 2, do Código Civil, «[ t]êm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima».
Conforme resulta da matéria de facto provada, na sequência das agressões infligidas pelo arguido à ofendida descritas nos pontos 10 a 18 e 21 da matéria de facto provada, esta teve necessidade de receber assistência hospitalar, nos dias ...2.../07 e ...2.../07, tendo-lhe sido prestados serviços médicos pelo ..., cujas despesas totalizam o valor de 175,82€ (cento e setenta e cinco euros e oitenta e dois cêntimos).
Estão assim preenchidos os requisitos legais previstos nos art. S 483.º, n.º 1, e 495.º, n.º 2, ambos do Código Civil, pelo que deverá o pedido de indemnização proceder, uma vez que se demonstrou ter sido o arguido/demandado, com o seu comportamento, a dar causa a tais despesas.
No que respeita ao quantum indemnizatório, sendo impossível a restituição in, deverá o arguido/demandado ser condenado ao pagamento integral da indemnização peticionada, por tal montante corresponder ao valor monetário dos serviços prestados à ofendida, acrescido de juros de mora civis, calculados à taxa legal em vigor, vencidos desde a data de notificação do pedido de indemnização civil ao arguido e vincendos até efetivo e integral pagamento (art.º s 559.º, n.º 1, 562.º, 566.º, 804.º, n.º 1 e 2, 805.º, n.º 1, e 806.º, n.º 1 e 2, todos do Código Civil).
VI. CUSTAS DO PROCESSO
A condenação do arguido pela prática dos factos constantes da acusação pública importa a sua condenação quanto a custas processuais criminais, cuja taxa se fica em 2UC (art.ºs 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, por referência à Tabela III anexa a este diploma legal).
A procedência do pedido de indemnização civil formulado pela demandante civil contra o arguido/demandado civil importa a condenação deste nas custas processuais cíveis ( art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, e 529.º, do Código de Processo Civil, ex vi o art.º 523.º do Código de Processo Penal).
Porém, o arguido/demandado civil está isento do pagamento das custas cíveis relativas ao pedido de indemnização civil em que foi condenado [175,82€], em virtude de o seu valor ser inferior a 20UC [2.040,00€] (art.º 4.º, n.º 1, alínea n), do Regulamento das Custas Processuais).
Para além da taxa de justiça, o arguido será responsável, ainda, pelos encargos do processo a que a sua atividade tenha dado lugar (art.º 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).(…)”.
3. Decidindo
Nos termos do disposto no artigo 428º do CPP, “As relações conhecem de facto e de direito.”.
O recurso interposto versa apenas sobre matéria de direito.
Vinha o arguido acusado pela prática de um crime p.e p. pelo artigo 152º, nº 1 e 2, do CP.
Entendeu o Tribunal a quo que estava preenchido o elemento objectivo do crime pelo qual o arguido vinha acusado mas não o elemento subjectivo.
Em suma e em concreto, entendeu-se na decisão recorrida que era imprescindível que constasse dos factos provados “que o arguido sabia que a ofendida era sua companheira e, posteriormente, sua ex-companheira, bem como que sabia que agia na presença do filho menor daquela e no interior da habitação que partilhavam, só assim se podendo integrar tipo de crime de violência doméstica na sua forma simples e agravada”.
Com este entendimento, o arguido foi absolvido da prática do crime pelo qual vinha acusado e condenado pela prática e de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143º, nº1, do C.P., e pela prática de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153ºº, nº1, e 155º, nº1, al. a), ex vi do artigo 131º, todos do C. Penal.
De tal decisão recorreu o Ministério Público.
Assim, a questão que se coloca é a de saber se, face à matéria de facto dada como provada, o arguido devia ter sido condenado pela prática do crime de que vinha acusado ou, por outras palavras, se, in casu, se mostra também preenchido o elemento subjectivo do referido crime.
E, adianta-se, desde já, que se entende que sim.
Vejamos:
Dispõe o artigo 152º do C. Penal, com a epígrafe Violência doméstica, que:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 – No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
(…)
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
(…)”.
Na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 98/X que deu origem à Revisão do Código Penal introduzida pela supra referida Lei nº 59/2007 refere-se que se visa “ o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus tratos e discriminação”, destacando-se que: ”Ainda em sede de crimes contra a integridade física, os maus tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificadas em preceitos distintos, em homenagem às variações do bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa. No crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido relações análogas às dos cônjuges.”.
Como bem defende André Lamas Leite: “ No nosso modo de ver, o fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um individuo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análoga.”
No Ac. TRE de 3.7.2012 decidiu-se que: “ A pedra de toque da distinção entre o tipo de crime de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida.”.
Também o Ac. TRE de 8.1.2013, se estabelece uma clara destrinça entre o crime de violência doméstica e outros tipos penais: “ 1. O crime de violência doméstica – crime específico impróprio ou impuro de perigo abstracto pode criar uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas corporais simples ( art. 143º, nº1, do C.Penal), as injúrias ( art. 181º ) a difamação ( art. 180º, nº1, ), a coacção ( art. 154º) o sequestro simples ( art. 158º, nº1), a devassa da vida privada ( art. 192º, nº1, al. b)), as gravações e fotografias ilícitas ( art. 199º, nº2, al. b)).
2. O bem jurídico tutelado pelo tipo é complexo, incluindo a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de actos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação ou por causa dela.
3. A expressão “maus tratos”, fazendo apelo à “imagem global do facto”, pressupõe, no pólo objectivo, uma agressão ou ofensa que revele um mínimo de violência sobre a pessoa inserida em relação; subjectivamente uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; reflexo negativo e sensível na dignidade da vítima, por via de uma ofensa na saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.
4. A “micro violência continuada” é punível pelo artigo 152º do Código Penal.”.
O foco está, pois, na protecção da pessoa individual, da sua dignidade, do seu direito à integridade pessoal, liberdade e pleno desenvolvimento.
E, tal protecção, como decorre do texto da lei, abrange os maus tratos físicos e psíquicos, nos quais se incluem as ameaças e injúrias, perpetrados por alguém com quem a vítima tem ou teve uma relação amorosa, tem uma relação familiar ou de coabitação.
No que concerne ao tipo subjectivo, o crime de violência doméstica é um crime doloso.
Como refere Paulo Pinto Albuquerque3: “A conceção pessoal do ilícito supõe uma construção bipartida do tipo objetivo e subjetivo do ilícito, quer na forma dolosa do crime quer na forma negligente.
O tipo subjetivo de ilícito na forma dolosa do crime inclui o dolo do tipo ( ou dolo do facto) e os elementos especiais subjetivos ( ou elementos subjetivos do tipo”.
O dolo do tipo consiste no conhecimento e vontade de realização da ação típica. Por isso, se distingue um elemento cognitivo ou intelectual do dolo e um elemento volitivo do dolo.(…)
O elemento cognitivo ou intelectual do dolo inclui o conhecimento de todas as circunstâncias de facto ( rectius , elementos descritivos do tipo) e de direito ( rectius, dos elementos normativos do tipo ( que constituem o tipo de ilícito objectivo, o que permite ao agente a orientação e decisão da sua consciência ética pela preservação ou não do bem jurídico tutelado pela norma.
(…)
Os elementos subjetivos do tipo incluem intenções, motivos, fins específicos, impulsos afetivos e outros elementos de atitude interna que são levados al tipo penal com vista caracterizar o bem jurídico ou o modo específico da sua lesão.”
Como bem analisado:
4“I. O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica viu ao longo tempo ampliada a plêiade de condutas subsumíveis ao seu âmbito.
II. O elemento subjetivo do tipo de ilícito é composto pelo dolo genérico, nas suas modalidades de dolo direto, necessário ou eventual.
III. Não consagrando a lei qualquer dolo específico. Preenchendo-se o ilícito se o agente representa e quer concretizar os elementos objetivos do tipo legal. “
Mais se subscreve a seguinte análise: “O tipo subjectivo só pode ser preenchido dolosamente. O conhecimento concreto da identidade e das características da vitima é aqui fundamental para a conformação do dolo do agente. (…).”5
Assim, o tipo subjectivo exige que o agente conheça a relação conjugal, amorosa, de protecção-subordinação, de menoridade, deficiência, doença ou gravidez do sujeito passivo, bem como os restantes elementos do tipo objectivo de ilícito.
Todos estes requisitos serão expressos na acusação, onde se imputa a prática do facto (ao que aqui importa) de forma consciente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto).
A sentença deu como provados os factos constantes do libelo acusatório no plano subjectivo e conclui que tal factualidade não preenche a totalidade dos elementos subjectivos do tipo de ilícito do crime de violência doméstica.
Os elementos subjectivos mostram-se vertidos nos pontos 19 e 20:
19. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente com o propósito alcançado de exercer poder sobre e de dominar BB, querendo causar-lhe, como causou, medo, dores físicas e sofrimento psíquico, e impedir, como impediu, a sua liberdade e o livre desenvolvimento da sua personalidade.
20. Sabia que toda a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.
Ora, salvo melhor entendimento, tal matéria de facto tem que ser analisada e relacionada com a demais matéria de facto que vinha vertida na acusação e foi dada como provada, a saber a vertida nos pontos 2 a 18.
Na verdade, é inequívoco, face à demais matéria de facto dada como provada, que, quando actuou nos descritos moldes, sabia o arguido, porque não podia deixar de saber, que a pessoa a quem ofendia era sua companheira e, após, ex-companheira, e bem sabia, porque não podia deixar de saber, que parte da descrita actuação ocorreu no interior da habitação que partilhavam como casal e na presença do filho menor da companheira.
Como bem refere o Recorrente:
“Se se descreveu que BB foi companheira de AA; que AA quis fazer e fez mal a BB, logo AA fez mal à sua companheira.
Se se provou que AA é companheiro de BB, AA necessariamente sabia que BB é sua companheira.
De acordo com a decisão recorrida seria, então possível, dar como provado que a ofendida e o arguido eram companheiros há 4 anos e, simultaneamente, dar como não provado que AA sabia que BB era sua companheira.”
E, é consabido que não há uma fórmula sacramental para descrever o dolo.
Em conclusão, entende este Tribunal que in casu se mostra também preenchido o elemento subjectivo.
Ponderado tudo quanto se deixa exposto, conclui-se que dos factos dados como provados resulta que o arguido praticou o crime de que vem acusado, o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. a) e n.ºs 2, al. a), do Código Penal.
Uma vez que este Tribunal ad quem conclui no sentido da procedência do recurso da decisão absolutória da 1ª instância e, consequente, condenação do arguido pelo crime de que vinha acusado, impõe-se revogar a sentença na parte em que condena o arguido pelos crimes de ameaça e ofensa à integridade física e proceder à determinação das penas a aplicar.
Da pena:
O crime cometido pelo arguido é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos.
A pena visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – art. 40.º n.º 1 do Código Penal.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias “in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2º a 4º, Abril-Dezembro de 1993, pág. 186 e 187” … o modelo de determinação da medida da pena consagrado no CP vigente «comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente».
A culpa e as necessidades de prevenção determinarão a medida concreta da pena – art. 71.º n.º 1 do CP, devendo o tribunal atender à factualidade dada como provada da qual se extraem as circunstâncias referidas no n.º 2, do mesmo preceito legal.
Assim, na fixação da medida da pena de prisão, haverá que ponderar:
- Que o arguido se mostra inserido a nível profissional e familiar.
- Que o arguido actuou com dolo directo.
- E, também, que:
Os factos perduraram entre ... e ....
Os factos integram ofensas à honra da arguida, à qual o arguido chamou puta por duas vezes.
Os factos integram reiteradas ofensas ao direito da arguida a sentir-se em segurança, dado que o arguido, por duas vezes, lhe disse que a mataria e que mataria o filho desta, causando-se receio.
Os factos integram ofensas à integridade física da ofendida, dado que, por duas vezes, o arguido ofendeu o corpo desta.
Ou seja, os factos consistiram numa multiplicidade de comportamentos que ofenderam a dignidade da ofendida, do seu direito à integridade pessoal, liberdade e pleno desenvolvimento, causando-lhe medo, dores e constrangimento, pelo que se conclui no sentido de que a ilicitude da conduta do arguido se apresenta como elevada.
- Importa também ter em atenção os antecedentes criminais do arguido, embora por crimes de diferente natureza.
Tudo ponderado, entende-se que são elevadas as necessidades de prevenção especial.
E, dado o alarme social causado por este tipo de crime, são também muito ponderosas as necessidades de prevenção geral.
Em conformidade, entende-se adequada e proporcional à gravidade dos factos, não excedendo a culpa, uma pena de 2 ( dois ) anos e 10 ( dez) meses de prisão.
De acordo com o artº 50º do C.P., o tribunal decretará a suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos, sempre que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime, e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura da facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Trata-se de um poder dever, um poder vinculado do julgador que terá obrigatoriamente de suspender a execução da pena de prisão, sempre que se verifiquem os mencionados pressupostos.
A suspensão tem um conteúdo reeducativo e pedagógico.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, a finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é o afastamento do delinquente no futuro, da prática de novos crimes.
Assim, o tribunal tem que aferir se é viável um prognóstico favorável, se é previsível a socialização do arguido em liberdade. Nessa avaliação, o tribunal tem de atender às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao crime.
E, entende-se que face às actuais condições de vida do arguido bem como à ausência de contactos com a ofendida, é possível concluir que o arguido conseguirá ressocializar-se em liberdade.
Entende-se, pois, que suspendendo-se a execução da pena de prisão a censura do facto e a ameaça do cumprimento da pena realizam de forma adequada as finalidades da punição, sendo que tal não colide com as necessidades de prevenção geral.
Em harmonia que o exposto, decide este Tribunal suspender a execução da
pena de prisão aplicada pelo período de 3 ( três ) anos.
Apurou-se que o arguido não mantém contacto com a ofendida.
Em qualquer caso, impõe-se atender a que estando já separado da ofendida, o arguido procurou-a e, de novo, a humilhou e lhe bateu.
Assim, decide-se, nos termos do preceituado no artigo 34º B, da Lei 112/2009, impor ao arguido a proibição de contacto com a ofendida, por qualquer meio, pelo período de 3 ( três ) anos, ficando a suspensão subordinada ao cumprimento da proibição ora imposta, como daquela norma resulta.
Da indemnização à vítima:
De acordo com o artigo 21.º, n.º 2, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro:
“2 – Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.
Por sua vez, determina o referido artigo 82.º-A do Código de Processo Penal:
“1 – Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
2 – No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.
3 – A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização”.
Ao determinar a aplicação deste regime em qualquer caso, apenas se ressalvando os casos de oposição expressa por parte da vítima, o legislador afastou o pressuposto previsto na parte final do n.º 1 do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, quando esteja em causa uma vítima de violência doméstica.
Assim, o Tribunal, salvo oposição expressa da vítima, deverá sempre arbitrar uma quantia a título de reparação, ainda que não se verifiquem no caso particulares exigências de protecção.
O Ministério Público requereu o arbitramento de uma indemnização à ofendida, no valor de €3.000,00, nos termos do artigo 21º da Lei nº 112º/2009, de 16 de Setembro, e 82º-A, do CPP.
Uma vez que a ofendida não deduziu pedido de indemnização civil e não se opôs à aplicação do regime previsto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, haverá que fixar a quantia indemnizatória.
Está em causa uma reparação à vitima que será calculada de acordo com a equidade.
No presente caso releva o período de tempo em que a conduta do arguido foi mantida sobre a vítima e a diversidade e multiplicidade da concreta actuação, bem como o que se apurou quanto às condições de vida do arguido.
Perante estes elementos, num juízo equitativo, ponderada a precária situação económica do arguido, o Tribunal julga ajustada a quantia de €2.000,00 (dois mil euros).
Mais se decide, nos termos do preceituado no artigo 51º, nº1, al. a), do C. Penal, que a suspensão da execução da pena será também subordinada ao pagamento da indemnização arbitrada dentro do prazo da suspensão.
III DECISÃO
Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade:
- Revogam o acórdão recorrido na parte em que absolveu o arguido da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº1, al.a) e 2, do C.Penal, e na parte em que, convolando o referido crime, condenou o arguido pela prática de um crime de ofenda à integridade física, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do C.Penal e pela prática de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº1, e 155º, nº1, al. a), ex vi do artigo 131º todos do C.Penal.
- Condenam o arguido como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1,al. a) e nº2, al. al. a), e nº 4, do C.Penal, na pena de 2 ( dois ) anos e 10 ( dez ) meses de prisão e na proibição de, por qualquer meio e durante 3 ( três ) anos, contactar a ofendida.
- Arbitram em favor da ofendida uma indemnização no valor de €2.000,00 ( dois mil euros), nos termos do disposto no artigo 21º, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro.
-Suspendem a execução da pena de prisão aplicada pelo período de 3 ( três ) anos, suspensão subordinada ao cumprimento da imposta proibição de contactos com a vítima e ao pagamento, dentro de tal prazo, da indemnização arbitrada.
- Mantêm a decisão recorrida no que tange ao pedido de indemnização civil formulado pelo demandante civil ... .
Sem tributação.
DN.

Lisboa, 9 de Outubro de 2025
(Elaborado e revisto pela relatora e primeira signatária)
Cristina Santana
Jorge Rosas de Castro
Diogo Coelho de Sousa Leitão
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1. 1 Código de Processo Penal, 2ª Edição, Rei dos Livros
2. 2 AC TRC de 24-04-2024 proferido no processo 229/22.0GCTND.C2 por consulta em www.dgsi.p
3. Notas 2 a 5 e 16 ao artigo 14º do C.Penal, In Comentário ao Código Pena, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ªEd Atualizada, UCE, p. 149 e 151.
4. Ac TRE de 2023-02-28 (Processo nº 3308/22.0T8STR-A.E1, Relator Gomes de Sousa)
5. Nota 15 ao artigo 152º do C.P in Comentário ao Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Paulo Pinto de Albuquerque, UCE, 3ªed actualizada, . 593