Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1445/24.6PLLRS-A.L1-9
Relator: IVO NELSON CAIRES B. ROSA
Descritores: PERIGO
PERTURBAÇÃO
INQUÉRITO
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I- O perigo de perturbação da investigação (para o inquérito e para a aquisição da prova) tem de suportar-se em factos que indiciem a atuação do arguido com o propósito de prejudicar a investigação, não bastando a mera possibilidade de que tal aconteça para que possa afirmar-se a existência deste perigo. Assim, perante a existência concreta deste perigo, a aplicação da medida de coação, nomeadamente uma medida restritiva da liberdade, terá como propósito prevenir a ocultação e a adulteração, bem como garantir as disponibilidade e genuinidade de elementos de prova.
II-A obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica restringe a liberdade de locomoção do arguido, na medida em que este fica confinado ao espaço da sua casa, ficando, deste modo, limitado na sua capacidade de ação, mormente no que concerne à mobilidade que, no caso concreto, se mostra essencial para prevenir a execução de novos factos, na medida em que a atuação do arguido quanto aos factos imputados se traduziu no uso de uma arma de fogo contra uma determinada pessoa e num espaço frequentado pelo público.
III - A medida em causa não restringe os contactos do arguido, as pessoas que recebe na sua casa, ou seja, não o impede de aceder e obter armas de fogo e, muito menos, de as utilizar. Para além disso, sendo o arguido e a vítima vizinhos, dado que ambos residem na zona de ..., em Lisboa, a medida em causa não se mostra adequada a inviabilizar que o arguido, mesmo da sua casa, ou deslocando-se para o exterior, possa alcançar a vítima ou outra pessoa que com ele se confronte e volte a utilizar uma arma de fogo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
Nos autos principais, em ...-...-2025, ao arguido recorrente foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva, na sequência do primeiro interrogatório judicial, realizado no dia ...-...-2025, com fundamento em forte indiciação da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pela utilização de arma, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1, e n.º 2, alíneas e) (motivo torpe ou fútil), h) (meio particularmente perigoso), e j) (agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados), e 14.º, n.º 1, todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro; e de um crime de detenção de armas e munições proibidas, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), por referência ao artigo 2.º, n.º 1, al. ap), az), aad) e n.º 3 alínea p) e artigo 3.º, n.sº 2, 4, alíneas b) e l), 4.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 50/2019, de 24/07, bem como na verificação de um concreto perigo de continuação da atividade criminosa, um concreto perigo de perturbação da ordem e tranquilidade púbicas de um perigo de perturbação para obtenção e veracidade de prova, tudo nos termos do disposto nos artigos 191º, 193º, 196º, 202º al. a) e 204º, al. b) e c), todos do Código de Processo Penal.
Não se conformando com essa decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, solicitando que se declare cessada a medida de coação de prisão preventiva e que este aguarde os ulteriores termos processuais, sujeito a outra, ou outras medidas de coação não privativas da liberdade, nomeadamente às medidas de apresentação periódica bissemanal ou trissemanal no posto policial da área da sua residência, nos termos do artigo 198º do CRP., acrescido das medidas previstas nas al. a), d) e e), nº 1 do artigo 200º do CPP., com epígrafe proibição e imposição de condutas, ou, quanto muito, em alternativa àquelas, a medida de permanência na habitação com vigilância eletrónica, O.P.H.V.E. prevista no artigo 201º do Código de Processo Penal,
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Para o efeito, apresentou o arguido as seguintes Conclusões (transcrição):
I - O presente recurso tem por objeto o douto despacho datado de ...-...-2025, que determinou a medida de coação de prisão preventiva, no qual o arguido Recorrente vem indiciado de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pela utilização de arma e de 1 (um) crime de detenção de armas e munições proibidas.
II - Em sede de Primeiro Interrogatório Judicial de arguido detido, para além das declarações prestadas sobre a sua identidade e residência, prestou informação sobre a sua situação socioeconômica, dizendo viver em casa arrendada, na qual paga a quantia de € 250,00 por mês, repartindo a mesma com mais 3 pessoas, mas nenhuma é sua familiar, referiu ter a 4ª classe feita, acrescentou ter problemas de saúde, mormente de coração e tensão arterial, estando a ser acompanhado no Hospital, nunca tomou drogas e não bebe álcool, não tem filhos, mas tem sobrinhos e um irmão em ... e a mãe está em ....
lll - No que concerne aos alegados factos ocorridos no dia ...-...-2024, entre as 15:30 horas e as 17:30 horas, na ..., de acordo com a prova documental junto aos autos, o arguido não foi detido no referido dia.
IV — Foram ouvidas as testemunhas BB, ora ofendido, CC e DD, sendo que só o primeiro coloca o arguido no local e hora descrita no primeiro episódio, as restantes testemunhas, não viram mais ninguém, a não ser a primeira testemunha prostrada no chão a sangrar da mão.
V — Refere-se que, a segunda e terceira testemunha, mencionaram categoricamente a primeira testemunha, ora ofendido, estar alcoolizada, com incidência para a terceira testemunha, a qual frisou estar visivelmente alcoolizada, quando entrou no café, onde bebeu um copo e saiu visivelmente alcoolizado em direção à ..., caminho para sua residência.
Vl — Igualmente, a descrição da indumentária que a primeira testemunha mencionou ter visto na pessoa que identificou como “EE” e a descrição da indumentária da pessoa de costas que a segunda testemunha mencionou ter visto, diverge.
Vll — No mesmo sentido, a primeira testemunha, ora ofendido, mencionou ter visto passarem por si a correr, 2 pessoas jovens, em direção ao café, afirmação contraditada pela terceira testemunha, a qual mencionou não ter passado ninguém, após ter ouvido os sons o que veio posteriormente a aperceber-se poderem ter sido disparos de arma de fogo.
VIII - Daqui se retira que, subsistem dúvidas se a pessoa detida, constituída arguida e presente em sede de lº interrogatório judicial de arguido detido, foi o autor dos disparos.
IX— Após o referido episódio ocorrido em ...-...-2024, foi realizado no dia ...-...-2025, por órgão de policia criminal, uma busca e apreensão na residência do arguido, onde foram apreendidas duas armas de fogo, dois carregadores, munições e um boxer em bronze.
X — Inexiste, por ora, perícias sobre as referidas armas, não se sabendo se a(s) mesma(s) foi(ram) usada(s), no referido episódio ocorrido no dia ...-...-2024, ou se foi o arguido a usá-la no mencionado dia.
XI — O alegado perigo de continuação da atividade criminosa, previsto na al. c) do artigo 204º, do CRP., com o devido respeito, deixou de existir, a partir do momento em que o arguido foi alvo de busca apreensão das armas e munições. Por outro lado, é ainda prematuro concluir se as armas apreendidas, se reportam ao episódio, ocorrido no dia ...-...-2024, ou se foi o arguido a usá-la.
XII - O alegado perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, previsto na al. c) do artigo 204º do CRP, com o devido respeito inexiste, pois subsistem dúvidas se foi o arguido que se encontrava no referido local, no dia do episódio ocorrido a ...-...-2024, tendo em conta que a única pessoa que o coloca no local é a primeira testemunha, ora ofendido, o qual segundo a segunda e terceira testemunhas, mencionaram estar alcoolizado e visivelmente alcoolizado; Para além das referidas armas e munições terem sido apreendidas na residência do arguido, as quais por ora, de modo algum poderão ser usadas por quem quer que seja.
XIII — O alegado perigo de perturbação para obtenção e veracidade da prova, previsto na al. b) do artigo 204º do CRP., com o devido respeito, a existir, tendo em conta que o arguido reside próximo das testemunhas, não é apenas sustado pela medida privativa da liberdade, que foi aplicada ao arguido, podendo ser sustado com medida(s) de coação não privativa(s) da liberdade.
XIV» As medidas requeridas pela defesa, de apresentação periódica bissemanal ou trissemanal no posto policial da área da sua residência, nos termos do artigo 198“ do CRP., acrescido das medidas previstas nas al. a), d) e e), nº 1 do artigo 200º do CPP., com epígrafe proibição e imposição de condutas, afigurar-se-ia mais justa, adequada e proporcional aos indícios apresentados àquele, ou
XV - Quanto muito, em alternativa àquelas, a medida de permanência na habitação com vigilância eletrónica, O.P.H.V.E. prevista no artigo 201º do Código de Processo Penal, e Lei nº 33/2010, de 02.09, com última redação dada pela Lei nº 94/2017, de 23.08, medida privativa da liberdade, afigurar-se-ia mais justa, adequada e proporcional aos indícios apresentados àquele. XVI - Pois. tais medidas. só as primeiras e em alternativa a segunda, acautelaria os alegados perigos de continuação da atividade criminosa, perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e perigo de perturbação para a obtenção e veracidade da prova.
XVII - A medida de coação prisão preventiva, consiste na última rácio, a ser aplicada a um arguido, sendo esta, no presente caso e referido arguido. desnecessária, desadequada e desproporcional.
XVlll — Na aplicação das medidas de coação deve ter-se em conta o previsto nos artigos 193“, nº 1 e nº 4 do Código de Processo Penal.
XIX — Segundo o Professor Germano Marques da Silva: "O princípio da adequação consagrado no artigo 193.” significa que a medida a aplicar ao arguido deve ser idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso e, por isso, há de ser escolhida em função da cautela, da finalidade a que se destina (..)
XX - “Com efeito, o nº 3 do art. 193º dispõe da execução das medidas não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requer" (in Curso de Processo Penal 11, 2º Edição, Editorial Verbo 1999, pág. 248 e 249). Acrescente-se que o nº 3 do artigo 193º, corresponde ao atual nº 4 do mencionado artigo.
XXI - Continua o Professor: “O princípio da adequação deve orientar a escolha do Juiz de entre as tipificadas na lei, é integrado pelo princípio da proporcionalidade que impõe que a medida deve ser proporcionada à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada ao arguido em razão da prática do crime ou crimes no processo
XXII- Diz ainda o Professor: “Ainda que adequada e proporcionada à gravidade do crime, a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação como resulta do art. ]93.º, nº 2. Assim, se duas ou mais medidas se mostrarem igualmente adequadas e suficientes às exigências cautelares, nunca deve ser escolhida a prisão preventiva. É o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva. "
XXIII - Com a atual redação do artigo 193º, nº 2 do Código de Processo Penal; “A prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação só pode ser aplicada quando se revelarem insuficientes as outras medidas de coação
XXIV— Neste sentido diz o artigo l93º, nº 3 do Código de Processo Penal: "Quando couber ao caso medida de coação privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.
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Recebido o recurso, o Ministério Público na primeira instância, na sua resposta, pugnou pelo total não provimento do recurso apresentado, tendo concluído que o despacho recorrido não violou as normas apontadas pelo recorrente na sua motivação, termos em que deve ser negado provimento ao recurso do arguido confirmando-se o douto despacho recorrido.
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A Sra. PGA junto deste Tribunal da Relação pronunciou-se pela improcedência do recurso aderindo à resposta apresentada pelo MP em primeira instância.
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Foi oportunamente cumprido o artº 417º, n.º 2 do C.P.P nada tendo sido dito.
II - Questões a decidir:
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. Art.º 119º, nº 1; 123º, nº 2; 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPPenal, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/6/1998, in BMJ 478, pp. 242, e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Tendo em conta este contexto normativo e o teor das conclusões apresentadas pelos arguidos recorrentes, há que analisar e decidir:
Se se verificam os fortes indícios dos crimes imputados ao arguido;
Se se verificam, em concreto, os perigos de continuação da actividade criminosa; perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas; perturbação do decurso do inquérito; perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;
Da necessidade de aplicação da medida de coação da prisão preventiva e consequente inadequação de outras medidas coativas.
Se a medida de coação aplicada e à qual o arguido se encontra sujeito é necessária, adequada e proporcional para evitar os perigos que em concreto se verificam.
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III – FUNDAMENTAÇÃO:
A decisão recorrida tem o seguinte teor no que concerne à fundamentação (transcrição):
Factos imputados ao arguido
1-O arguido e o ofendido FF mantêm uma relação de vizinhança, desde data não concretamente apurada, por serem ambos residentes na zona de ....
2.No dia ... de ... de 2024, em hora não concretamente apurada, o arguido e FF, tiveram uma discussão, por motivo não concretamente apurado.
3.Nesse mesmo dia, entre as 15:30 horas e as 17:30 horas, o arguido encontrava-se junto ao n.º 123 da ..., em ....
4.O arguido encontrava-se naquele local, a aguardar a passagem de FF que se tinha deslocado ao café “Alberto”, sito naquela mesma localidade, ....
5.Sabia o arguido que o ofendido, ao sair daquele estabelecimento comercial, iria passar no local onde se encontrava, por ser este o seu percurso habitual.
6.O arguido, apercebeu-se que FF se aproximava do local onde se encontrava, apeado, à sua espera e, dirigiu-se a este, dizendo-lhe: “é você mesmo que está a precisar”.
7.De imediato, o arguido empunhou uma arma de fogo, um revólver de calibre .32 e, apontou-a na direção de FF e, sem hesitar, efetuou, pelo menos, dois disparos.
8.Em consequência da conduta do arguido, FF foi atingido na mão esquerda e na região dorsal.
9.O arguido ausentou-se do local sem prestar qualquer assistência a FF e, sem acionar qualquer meio de socorro.
10.Os meios de socorro foram acionados por GG e HH que, ouvirem os disparos de arma de fogo, aperceberam-se da presença de FF, que se encontrava caído no chão, ferido, na via pública.
11.O ofendido FF teve que ser transportado de ambulância, para as urgências do ..., nas quais deu entrada cerca das 18:27 horas, daquele dia, sendo considerado um doente crítico com alto risco de hemorragia e falha de órgão, apresentando as seguintes lesões:
ferimento de arma de fogo com porta de entrada no dorso e munição alojada na parede torácica anterior direita e do qual resultou:
Trauma vertebro-medular com destruição do apófise espinhosa e pedículo direito de D12;
Com “evidente fratura grosseiramente horizontal do processo espinhoso de D12, lateralizada à direita com atingimento do processo apofisário direito de D12 em localização inferior e também com atingimento superior do processo apofisário direito de L1, existindo fraturas esquirolosas (…) destacando-se fragmentos ósseos para a região foraminal direita D12-lL1 e também com localização aparentemente epidural anterolateral direita.
Na avaliação clínica, o doente apresente défice da mobilidade dos membros inferiores com ausência de elevação e flexão dos membros”.
Trauma abdominal com laceração da vertente anterior do polo superior do rim direito, bem como, com laceração hepática que se estende do segmento VI, antero-superiormente, até à transição dos segmentos V/ VII: ligeiro a moderado hemoperitoneu com maior expressão dos quadrantes superiores do abdómen;
Trauma do membro superior esquerdo: fratura exposta do 1º dedo da mão esquerda.
O ofendido FF encontra-se com défices neurológicos ao nível dos membros inferiores com um quadro de paraplegia.
Os ferimentos que o arguido causou a FF obrigaram a que o mesmo fosse sujeito a cirurgia de urgência, sem a qual seria possível a sua morte.
Ao utilizar a arma de fogo para atingir o ofendido, o arguido admitiu como possível que as lesões causadas viessem a provocar a morte de FF, resultado este com o qual se conformou e, que só não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade resultantes da assistência médica que a este foi de imediato sujeito.
O arguido sabia que com o comportamento descrito ofendia o corpo e a saúde do ofendido, atuando com o propósito de causar lesões letais e de tirar a vida a FF, resultado com o qual se conformou.
O arguido fê-lo movido por sentimentos fúteis, tendo consciência das consequências de todos os seus atos e, nunca se demovendo deles e, não se compadecendo com o estado da vítima.
Agiu, assim, o arguido, com o propósito de pôr termo à vida do ofendido FF, que apenas não logrou conseguir por factos alheios à sua vontade.
O arguido conhecia bem as características da arma de fogo que usou para atingir o ofendido, tendo-a detido e usado sem razão ou justificação.
O arguido conhecia as características da arma de fogo utilizada e das munições escolhidas, nomeadamente a perigosidade e letalidade da mesma e da sua idoneidade para causar a morte, e que, usando-o do mesmo nos moldes acima descritos, ainda que a uma distância não concretamente apurada, e visando as zonas vitais do corpo acima indicadas, atuava de modo adequado a provocar a morte de FF, o que não logrou alcançar por motivos que lhe foram alheios.
O arguido agiu com completa insensibilidade e absoluta indiferença e desprezo pela vida humana.
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de molestar FF, no seu corpo e na sua saúde, o que conseguiu.
O arguido conhecia as características da arma e munições que detinha e transportou consigo, e sabia que não as podia ter na sua posse por não ser titular de licença ou autorização legal para tal, e que, assim, a sua detenção, transporte e uso não são permitidos por lei, e, não obstante, quis tê-las consigo, transportando-as e usando-as contra outrem, o que representou, quis e logrou.
No âmbito das buscas realizadas à residência do arguido, foram apreendidas
1. (um) revólver da marca ... (com as inscrições no cano “.32 S.&W. Long.” e “...”) carregado com 6 (seis) munições de calibre .32 da marca ...;
2. 1 (uma) caixa (da marca ...) contendo 29 (vinte e nove) munições de calibre .32 (sendo vinte e seis da marca ..., uma da marca ... e duas da marca ...);
3. 1 (uma) pistola de cor prateada de calibre 9mm, da marca ASTRA e número de série desconhecidos;
4. 2 (dois) carregadores e 4 (quatro) munições de calibre desconhecido com a inscrição FNM; e
5. 1 (um) boxer de bronze com a inscrição BOXER e PATENT (em cada um dos lados).
O arguido não é possuidor de licença de uso e porte de armas.
O arguido previu e quis ter consigo as referidas munições, bem conhecendo as características e as qualidades das mesmas, sem ter consigo documento que o habilitasse a deter tais munições, sendo assim proibida por lei a sua detenção, intentos que logrou alcançar.
No que concerne ao boxer detido pelo arguido foi o mesmo construído com o fim de ser usado como arma de agressão.
Com a conduta descrita, o arguido quis deter e transportar as armas acima mencionadas, bem conhecendo as características e as qualidades das mesmas e bem sabendo que se tratavam de armas cuja detenção é proibida por lei, intentos que logrou alcançar.
O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, e embora soubesse que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se coibiu de as executar.
Despacho judicial de ...-...-2025
Indiciam fortemente os autos a prática pelo arguido dos factos descritos na promoção do Ministério Público para primeiro interrogatório judicial, cujo teor, por razões de economia e celeridade processual aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
Ainda se apuraram os seguintes factos:
- faz biscates como ..., sem um ordenado fixo;- vive em casa arrendada e paga 250 mês; - vive com mais 3 pessoas, mas não são seus familiares; - tem a 4º classe; - tem problemas de saúde, de coração, e tensão arterial. - Está a ser acompanhado no Hospital. - Nunca tomou drogas, nem álcool. - Não tem filhos. - Tem irmão, e sobrinhos cá e ... e a mãe está em ....
Constam dos autos os seguintes elementos que indiciam os factos imputados:
1. Comunicação de notícia de crime – folhas 2 a 4;
2. Auto de notícia – folhas 14 a 16;
3. Auto de diligências iniciais – folhas 5 a7;
4. Autos de informação – folhas 9 a 10; 113 a 114;
5. Aditamento n.º 1 – folhas 17;
6. Auto de apreensão – folhas 18;
7. Elementos clínicos – folhas 22 a 49; 56 a 111; 126 a 127;
8. Aditamento n.º 2 – folhas 129;
9. Relatório da PJ – folhas 155 a 161;
10. Auto de diligência – folhas 190;
11. Auto de busca e apreensão – folhas 194 a 95;
12. Reportagem fotográfica – folhas 196 a 198;
13. Auto de exame direto – folhas 199 a 204;
14. Certificado de registo criminal do arguido – folhas 243 e ss.
Testemunhal:
1. BB, melhor identificado a fls. 118;
2. Inspetor-chefe II, Inspetor-Chefe da PJ, melhor identificado a fls. 190;
3. JJ, Inspetora da PJ, melhor identificada a fls. 190;
4. KK, Inspetor da PJ, melhor identificado a fls. 190;
5. LL, Inspetor da PJ, melhor identificado a fls. 190;
6. CC, melhor identificada a fls. 169;
7. DD, melhor identificado a fls. 163.
No presente interrogatório, o arguido não prestou declarações, e por isso, apesar de tal não o prejudicar também não o beneficia já que podia ter esclarecido os factos e não o fez.
No que respeita às suas condições pessoais, o arguido prestou declarações, onde referiu que trabalha, apesar de não ter um salário fixo. Vive em casa partilhada com outras pessoas, tem 4º classe, e tem alguns familiares em ..., e apenas a sua mãe em ....
O arguido tem antecedentes criminais pela prática de crimes detenção de arma, roubo na forma tentada e aquisição de moeda falsa e passagem de moeda falsa, sendo que a sua última condenação é de ... por factos ocorridos em ....
Assim, a convicção do tribunal subjacente à factualidade fortemente indiciada fundamenta-se na análise conjugada do acervo probatório recolhido, que desde logo revela a existência de fortes indícios, as declarações já prestadas pelo ofendido FF que descreve de forma clara, como terá sido abordado e os locais onde foi atingido, tendo sentido forte dor na mão e também na zona das costas que corresponde aos locais onde foi atingido por arma de fogo, e que são corroborados pela informação clínica já junta aos autos. No mais a testemunha/ofendido descreve o autor dos disparos como sendo um indivíduo que usa a alcunha “...” e que reconhece fotograficamente conforme fls. 122, e que corresponde ao arguido. Nas mais tais declarações são corroboradas pelas declarações prestadas pela testemunha HH que assistiu aos factos, da sua casa, e que apesar de não ter identificado o autor dos disparos, foi quem prestou o primeiro auxílio ao ofendido e segundo este, lhe terá referido que tinha sido o indivíduo de nome “...” a disparar, e que a testemunha sabe que é a pessoa, tendo igualmente feito o reconhecimento fotográfico da mesma e identificado o arguido. Igualmente foi ouvida a testemunha GG, que apesar de não ter assistido aos factos, chegou em momento posterior aos mesmos e verificou as lesões no ofendido, e que sabe quem é o indivíduo de nome “...” e que identifica fotograficamente como sendo o arguido. Em relação às armas apreendidas, é evidente do auto de apreensão junto aos autos, que evidencia que o arguido tinha na sua posse armas, e que poderá ter sido uma dessas armas de fogo a ser disparada contra o ofendido, o que só se apurará em sede de perícia. Não há dúvida que o arguido utilizou uma arma de fogo com que disparou sobre o ofendido, atingindo-o na zona do tórax, nomeadamente causando um trauma vertebro-medular, cujo projétil foi encontrado corpo do ofendido. Assim, não restam dúvidas que o arguido procedeu nos precisos termos descritos no despacho de apresentação antecedente.
De tudo o supra exposto se extrai, que com a conduta levada a cabo pelo arguido, ao disparar com uma arma de fogo, sobre o corpo do ofendido sem qualquer razão aparente, conclui-se que o arguido pretendia efetivamente matar o ofendido, sabendo da perigosidade do meio utilizado e da curta distância a que se encontrava do ofendido quando fez o disparo, e por motivos alheios à sua vontade não o matou.
Ainda se atendeu à restante prova junta aos autos, e indicada no despacho de apresentação para a qual se remete.
Entende-se ainda que estamos perante factos que evidenciam a culpa qualificada a que se reportam as circunstâncias do número 2, do artigo 132.º do Cód. Penal, não só em relação aos meios empregados, mas também pelo motivo fútil com que disparou sobre o ofendido, sem que este lhe tivesse dito nada, no meio da rua, criando uma situação de perigo acrescido e extensivo a outras pessoas que ali se encontravam, o que é evidenciador de uma ausência de escrúpulos da parte do arguido também em relação a estas, o que reclama um especial juízo de censura.
No mais e quanto aos indícios adere-se à douta promoção da Digna Magistrada do Ministério Público.
B – Fundamentação de direito
No que respeita à qualificação jurídica, dos factos fortemente indiciados, considera-se que os mesmos integram a prática pelo arguido em concurso de:
- um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pela utilização de arma, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1, e n.º 2, alíneas e) (motivo torpe ou fútil), h) (meio particularmente perigoso), e j) (agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados), e 14.º, n.º 1, todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro; e
- um crime de detenção de armas e munições proibidas, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), por referência ao artigo 2.º, n.º 1, al. ap), az), aad) e n.º 3 alínea p) e artigo 3.º, n.sº 2, 4, alíneas b) e l), 4.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 50/2019, de 24/07.
Concorda-se com a qualificação jurídica.
Atendendo à moldura penal aplicada aos crimes é possível aplicar ao arguido todas as medidas de coação incluindo a prisão preventiva.
C- Da aplicação da medida de coação
A aplicação das medidas de coação, com a exceção do T.I.R, deve salvaguardar os princípios constantes do n.º 1 art. 193º do C.P.P., da necessidade, adequação e proporcionalidade, as medidas de coação “devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicada” sendo que, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação.
Para a aplicação de medida de coação diferente do TIR, terá de se avaliar se existem alguns dos perigos previstos no art. 204º do C.P.P. nomeadamente se atendendo aos factos indiciados e tipos de ilícitos em causa se existe fuga ou perigo de fuga; Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
No que respeita ao perigo de fuga adiantado pela Digna Magistrada do Ministério Público, entende-se não se verificar no caso em concreto, já que apesar de o arguido ser natural de ..., o mesmo trabalha em ..., e tem alguns familiares, sendo que apenas a sua mãe está em ..., e os factos já remontam a dia ... de ... de 2024, e o arguido não se ausentou do país.
Existe um concreto e elevado perigo de continuação da atividade criminosa, concorda-se na integra com a fundamentação do Ministério Público, já que o arguido tinha na sua posse, na sua residência, mais do que uma arma de fogo, e atenta a sua personalidade manifestada nos factos, poderá continuar a sair à rua e disparar contra pessoas, sem qualquer razão aparente, em plena tarde, e num local onde circulam várias pessoas.
Existe um concreto perigo de perturbação da ordem e tranquilidade púbicas, desde logo pela agressividade manifestada pelo arguido, ao circular na via pública munido de um arma de fogo e disparar indiscriminadamente para uma pessoa que na via pública também circulava. Este tipo de crime gera alarme na sociedade pela violência como é praticado e bem assim pela ausência de segurança para aqueles que circulam na via pública e não esperam ser atacados por alguém com tiros.
O arguido é vizinho da vítima, e as testemunhas também frequentam aquela localidade e por essa razão poderá entrar em contacto com estes de forma a alterar os seus depoimentos, pelo que se revela existir perigo de perturbação para obtenção e veracidade de prova.
Por outro lado, o arguido já tem antecedentes criminais, apesar de serem já antigos, já cumpriu pena de prisão e por isso afigura-se que a pena a aplicar nestes autos em caso de condenação será uma pena privativa da liberdade.
A única forma, que se bem vemos, de debelar eficazmente estes riscos não se compadece com a manutenção do arguido em liberdade, adstrito à medida de coação não afetante da mesma, mas tão só à prisão preventiva, no mais, entende-se que uma vez que o arguido detinha na sua habitação armas e em face da violência dos atos perpetrados, a permanência na sua habitação não é suficiente para o conter na prática de factos futuros, atendendo à personalidade por este manifestada.
D – Decisão
Pelo exposto, decide-se que o arguido AA, aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coação:
- Termo de identidade e residência;
- Prisão preventiva;
Tudo nos termos do disposto nos artigos 191º, 193º, 196º, 202º al. a) e 204º, al. b) e c), todos do Código de Processo Penal”
***
Cumpre apreciar os fundamentos do recurso
Conforme ensina Germano Marques da Silva – in Curso de Processo Penal, vol.II, 5.ª ed., Verbo, ..., págs.345-347- As medidas de coação são meios processuais de limitação da liberdade pessoal do arguido que se destinam a fazer face, dentro das condições estabelecidas na lei, às exigências de natureza cautelar que se verifiquem no processo, uma vez que, durante qualquer uma das suas fases, aquele “poderá frustrar-se à ação da justiça, fugindo ou procurando fugir; poderá dificultar a investigação, procurando esconder ou destruir meios de prova ou coagindo ou intimidando as testemunhas, e poderá continuar a sua atividade criminosa”
Por configurarem uma verdadeira restrição de direitos fundamentais e uma limitação do princípio da presunção de inocência, constitucionalmente consagrado, a aplicação das medidas de coação tem de obedecer aos requisitos e princípios enunciados no artigo 18.º da CRP, do qual resulta que a lei processual penal sujeita a sua aplicação aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, bem como da subsidiariedade, no caso da obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva.
A prisão preventiva, como o recorrente bem sabe e invoca, constitui a medida de natureza cautelar mais gravosa, estando a sua aplicação dependente da verificação casuística de determinados pressupostos legais, uns de carácter geral (art.º 204º do C.P.P), outros de carácter específico (art.º 202º, n.º 1, al. a) do C.P.P), que neste momento se relembram:
Os pressupostos de carácter geral, não cumulativos, são: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação da investigação (para o inquérito para a aquisição da prova); c) Perigo de continuação da atividade criminosa ou de grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Já os pressupostos de carácter específico são cumulativos tendo de se verificar:
a) Fortes indícios da prática de crime;
b) Que o crime indiciado seja doloso;
c) Que o crime indiciado seja punível com pena de máximo superior a 5 anos, ou tratando-se dos crimes concretamente enunciados nas alíneas b), c), d) e e) do nº 1 do art.º 202.º do C.P.P, punível com pena de máximo superior a 3 anos.
Não obstante, para além dos pressupostos gerais e específicos enunciados a medida de coação só pode ser aplicada verificadas que sejam as seguintes condições:
a) A inadequação ou insuficiência das outras medidas de coação, ou seja a prisão preventiva está sujeita à subsidiariedade – art.º 202.º, n.º 1 do C.P.P
b) A necessidade, adequação e proporcionalidade da medida – art.º 193.º/1 parte final do C.P.P.
Com efeito, da conjugação dos artigos 193.º, n.ºs 1, 2 e 3, e 202.º, n.º 1, do CPP resulta que a aplicação de medidas de coação, e em particular das medidas privativas da liberdade, está sujeita a critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade, sendo que, quando deva ser aplicada medida privativa da liberdade, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que esta se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares do caso em apreço.
Feito este pequeno enquadramento, cumpre agora proceder à análise das concretas questões suscitadas no recurso.
A primeira delas prende-se com a existência de fortes indícios do crime de homicídio tentado, na forma qualificada, imputado ao arguido ora recorrente.
No que concerne ao conceito de “fortes indícios” – artigo 202º nº 1 do CPP - da prática de determinado tipo de ilícito, como requisito da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, aponta para um grau de medida que apenas se alcança por referência ao que a lei define quanto ao que sejam “indícios suficientes”, verificando-se estes “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança” (artigo 283.º, n.º 2 do CPP).
Neste sentido, os “fortes indícios”, tendo por base o que a lei define como indícios suficientes, terão que corresponder a uma alta probabilidade de ao sujeito, por força deles, vir a ser aplicada uma pena.
Em todo o caso, o grau de exigência probatória para o qual remete o conceito é inferior ao da comprovação para além da dúvida razoável exigido para o juízo de condenação, assentando antes numa base indiciária em que, considerando os elementos de prova disponíveis no momento da aplicação da prisão preventiva, é possível, na palavras de Germano Marques da Silva, “formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição” in Curso de Processo Penal, vol.II, 5.ª ed., Verbo, ..., págs.353.
Neste sentido veja-se o Ac. do STJ de 28-8-2018, proferido no processo nº 142/17.3JBLSB-A.S1“Quando na fase de inquérito, para a fixação da medida de coação da prisão preventiva, se alude a fortes indícios o que se pretende é inculcar a ideia de que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma «base de sustentação segura» quanto aos factos e aos seus autores que permita inferir que o arguido poderá por eles vir a ser condenado e que, por conseguinte, essa base de sustentação deverá ser constituída por «provas sérias», provas que deixem uma impressão já nítida da responsabilidade do arguido objetivadas a partir dos elementos recolhidos”.
O despacho recorrido considerou que os factos descritos despacho de apresentação do MP e os elementos de prova constantes nos autos permitem concluir pela existência de fortes indícios da prática de um de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pela utilização de arma e de um crime de detenção de armas e munições proibidas.
Quanto ao segundo crime, dada a apreensão de duas armas efetuada na residência do arguido, não se suscita, nem o arguido contestou, qualquer dúvida quanto à presença de fortes indícios do referido crime.
No que diz respeito ao crime de homicídio na forma tentada, também não se levantam dúvidas quanto à presença de fortes indícios que o ofendido, no dia ...-...-2024, foi atingido por disparos com arma de fogo que lhe causaram ferimentos no membro superior esquerdo e na região dorsal com munição alojada na parede torácica anterior direita. Com efeito, das declarações do ofendido e da informação clínica junta aos autos, tal como evidenciado no despacho recorrido, não se suscitam dúvidas quanto a este segmento factual. Para além disso, tendo em conta os disparos efetuados, a região do corpo atingida, região dorsal, conjugado com a informação clínica quanto às consequências dos disparos, também não se levantam dúvidas que existem fortes indícios quanto à intenção de tirar vida ao ofendido.
A questão controversa, segundo o recorrente, prende-se com a autoria dos disparos. Na verdade, alega o recorrente que os elementos de prova até agora recolhidos nos autos, sobretudo perante a ausência do exame pericial às armas apreendidas, não permitem concluir pela presença de fortes indícios de que o autor dos disparos foi o arguido. Quanto a esta questão, a convicção do tribunal recorrido fundou-se, como resulta do análise crítica dos elementos de prova, no depoimento prestado pelo ofendido, no qual este identificou e reconheceu o arguido como sendo o autor dos disparos. Tendo em conta o teor do depoimento do ofendido, conjugado com o facto de o ofendido e o arguido serem vizinhos, não se suscitam dúvidas quanto à capacidade deste em reconhecer o arguido como sendo o autor dos disparos. Na verdade, não estamos perante uma pessoa desconhecida para o ofendido que permita criar uma dúvida razoável quanto à sua capacidade em reconhecer e identificar a pessoa que contra si efetuou os disparos.
Deste modo, perante os elementos de prova que constam nos autos e perante a análise crítica da prova efetuada no despacho recorrido, não se suscitam dúvidas quanto à presença de fortes indícios do crime de homicídio, na forma tentada, imputado ao arguido, motivo pelo qual improcede, nesta parte, o recurso interposto.
Em relação aos pressupostos de carácter geral, ou seja, quanto à existência dos concretos perigos a que alude o artigo 204º do Código de Processo Penal, cumpre observar o seguinte:
Quanto ao perigo de perturbação da investigação (para o inquérito e para a aquisição da prova).
Em relação a este perigo, o mesmo tem de suportar-se em factos que indiciem a atuação do arguido com o propósito de prejudicar a investigação, não bastando a mera possibilidade de que tal aconteça para que possa afirmar-se a existência deste perigo. Assim, perante a existência concreta deste perigo, a aplicação da medida de coação, nomeadamente uma medida restritiva da liberdade, terá como propósito prevenir a ocultação e a adulteração, bem como garantir as disponibilidade e genuinidade de elementos de prova.
O despacho recorrido fundamentou a presença deste perigo, quanto aos arguidos ora recorrentes, pelo seguinte modo: “O arguido é vizinho da vítima, e as testemunhas também frequentam aquela localidade e por essa razão poderá entrar em contacto com estes de forma a alterar os seus depoimentos, pelo que se revela existir perigo de perturbação para obtenção e veracidade de prova”.
Como facilmente se constata, salvo o devido respeito, estamos perante meras especulações, considerações vagas e conclusivas, desacompanhadas de qualquer suporte factual e de elementos probatórios. Com efeito, do despacho recorrido não se alcança, dado que não contém qualquer facto indiciado ou elemento de prova a sustentar esses indícios, em que medida o arguido, aqui recorrente, tem em marcha ou pretende colocar em ação atitudes com vista a destruir ou tornar ineficaz a prova já adquirida e consolidada no processo (perigo para a conservação da prova), ou em que medida pretende neutralizar a aquisição de outros elementos de prova que ainda não constam do processo (perigo para a aquisição da prova).
Na verdade, analisado acervo factual indiciado conjugado com as regras da experiência comum não é possível concluir pela presença de um perigo suficientemente concreto de perturbação do inquérito quanto aos elementos ainda a recolher em sede de investigação e à conservação e veracidade do que já foi recolhido.
Assim, perante ausência concreta de fundamentos, não se compreende o alcance da justificação que consta no despacho recorrido, na medida em que este perigo consiste na existência de um risco, sério e atual de ocultação, alteração ou destruição de provas por parte do próprio arguido. Na verdade, para justificar a aplicação de uma medida de coação, sobretudo uma medida tão gravosa como a prisão preventiva, exige-se muito mais do que a mera repetição dos fundamentos que constam da lei ou afirmação de considerações vagas e conclusivas. São necessários factos concretos e que esses factos se mostrem indiciados em elementos de prova.
Como é dito no ARG, de 11-06-2019 “Perante a verificação desse perigo, a medida de coação aplicada serve para evitar a manipulação das fontes probatórias que já se encontram nos autos ou que possam vir a ser obtidas, ou seja, para obstar ao seu inquinamento por parte do arguido. Visa-se, assim, evitar esse perigo, com base na forte suspeita de que aquele destrua, modifique, oculte, suprima ou falsifique meios de prova, influa de maneira desleal nas testemunhas ou peritos ou induza outros a proceder dessa forma.
Todavia, a indicação das circunstâncias, objetivas e subjetivas, que tornam altamente provável uma intervenção inquinadora das fontes de prova por parte do arguido tem de ser concretizada”.
Perante a total ausência de elementos concretos que indiciem que o recorrente pode vir a exercer qualquer pressão sobre as testemunhas, demovendo-as de colaborarem com a justiça, ou que podem proceder à ocultação ou destruição de outros elementos de prova, entendemos que, em concreto, (pelo menos isso não se mostra invocado pelo MP) não se verifica o invocado perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para a aquisição e conservação da prova.
Nesta conformidade, ao abrigo deste perigo não é possível justificar a aplicação de qualquer medida de coação para além do TIR.
Passando agora ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
O despacho recorrido fundamentou a existência deste perigo, quanto aos recorrentes, pela seguinte forma: “Existe um concreto perigo de perturbação da ordem e tranquilidade púbicas, desde logo pela agressividade manifestada pelo arguido, ao circular na via pública munido de um arma de fogo e disparar indiscriminadamente para uma pessoa que na via pública também circulava. Este tipo de crime gera alarme na sociedade pela violência como é praticado e bem assim pela ausência de segurança para aqueles que circulam na via pública e não esperam ser atacados por alguém com tiros”
Como sabemos, as medidas de coação apenas têm finalidades processuais e não de proteção do próprio arguido ou de defesa da sociedade.
A este propósito refere Maia Costa: “A utilização da prisão preventiva como forma de impedir a continuação da atividade criminosa constitui claramente uma medida de defesa social, uma medida de segurança, mais até do que antecipação de pena, o que viola frontalmente diversos princípios constitucionais, entre os quais a presunção de inocência. Por outro lado, a prisão preventiva como meio de salvaguarda da ordem e da tranquilidade públicas serve fins de prevenção geral (a salvaguarda das famosas expectativas comunitárias), mas não é evidentemente uma medida cautelar do processo, violando também o princípio da presunção de inocência” (RMP Out/Dez 2002, nº 92, 74 e 75).
Com a reforma do CPP em 2007 (Lei nº 48/2007) passou a exigir-se que a perturbação da ordem e da tranquilidade públicas seja grave e imputável à pessoa do arguido, retirando-se “o cunho estritamente objetivo ao requisito geral” (exposição de motivos da Proposta de Lei) enfatizando-se a preocupação de compatibilização desta al. c) com a natureza estritamente processual prevista no art. 191º e com o princípio da presunção de inocência.
Neste mesmo sentido, se pronunciou o Conselheiro Manuel Joaquim Braz, a propósito das alterações introduzidas pela Reforma de 2007, in As medidas de coação no Código de Processo Penal Revisto – Algumas notas”, in CJ, ano XXXII, tomo IV - ao escrever: «Acerca das condições de aplicação das medidas, foi alterada a redação da alínea c) do artº 204º, exigindo-se agora quanto ao requisito de perturbação da ordem e tranquilidade que o perigo seja de perturbação grave e seja imputável ao arguido. Na Exposição de Motivos explica-se que desse modo se retira o “cunho estritamente objetivo” a esse requisito geral de aplicação de medidas de coação»
Assim, não será o mero clamor público ou repercussão que um determinado caso tem na opinião pública, na comunicação social ou nas redes sociais que poderá ser utilizado como fundamento para afirmar a existência de perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas. Com efeito, o elemento literal da interpretação da norma em causa confirma o que acabamos de dizer: o que legítima a aplicação da medida de coação não é uma qualquer perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, mas sim que o arguido perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas. A perturbação tem de ser causada pelo arguido ou a este imputável e esse comportamento de ser um comportamento futuro e provável e não o próprio crime cometido. Para além disso, a perturbação só será grave quando a pessoa do agente instale na comunidade onde o mesmo está inserido, não apenas um mero sentimento de indignidade ou revolta, mas que instale um sentimento de medo na comunidade levando a modificar os hábitos de quem aí vive, coartando várias liberdades públicas.
Com efeito, o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas deve ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reação que o mesmo pudesse gerar na comunidade.
Tendo em conta o caso concreto, mais uma vez se verifica a ausência de qualquer facto ou elemento de prova que indicie que o arguido recorrente virá a adotar comportamentos ou atitudes que irão comprometer de forma grave a ordem e tranquilidade públicas, o que faz com que, à luz deste perigo, não seja possível sustentar a manutenção da medida de coação imposta ao arguido. Com efeito, o despacho recorrido justificou a existência do perigo em causa não num comportamento do arguido, mas sim na natureza e gravidade dos crimes indiciados.
Ora, estes argumentos estão reservados, se for caso disso, para outra fase processual, nomeadamente para a fase de julgamento onde, em sede de medida da pena, o tribunal os irá ponderar e os irá fazer refletir na reação penal que presumivelmente virá a ser imposta.
Citando aqui o Ac. da Relação de Lisboa de 2-7-2003, proferido no processo nº 5372/2003-3 “Salvo o devido respeito, não a podemos acompanhar neste segmento da fundamentação uma vez que a interpretação da alínea c) do artigo 204º que está na base dessa consideração conflitua de uma forma clara com a presunção de inocência do arguido constitucionalmente consagrada (artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa) uma vez que atribui às medidas de coação em geral, e à prisão preventiva em particular, finalidades próprias das penas e não finalidades estritamente processuais como exige o artigo 191º do Código de Processo Penal”.
As medidas de coação têm apenas finalidades cautelares e não de pacificação social, não cumprindo antecipar para as fases preliminares do processo razões de prevenção geral positiva que apenas deverão ser ponderas aquando da aplicação das penas.
Tendo por base este entendimento, e porque não vislumbramos qualquer motivo para, em concreto, temer que o arguido recorrente possa vir a pôr em causa a ordem e a tranquilidade públicas, consideramos não verificado o assinalado perigo.
Vejamos agora o perigo de continuação da atividade criminosa, previsto na alínea c) do artigo 204º do CPP.
Quanto a este perigo, segundo o artigo 204.º, alínea c), do CPP, este decorrerá da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, cumprindo afirmar, desde já, que a aplicação de uma medida de coação não se destina a acautelar a prática de qualquer crime, mas apenas a continuação da atividade criminosa que se mostra indiciada no processo, o que acontecerá com a execução do mesmo ilícito e bem assim com outros ilícitos análogos ou da mesma natureza.
O despacho recorrido fundamentou a existência deste perigo, quanto aos arguidos recorrentes, pela seguinte forma: “Existe um concreto e elevado perigo de continuação da atividade criminosa, concorda-se na integra com a fundamentação do Ministério Público, já que o arguido tinha na sua posse, na sua residência, mais do que uma arma de fogo, e atenta a sua personalidade manifestada nos factos, poderá continuar a sair à rua e disparar contra pessoas, sem qualquer razão aparente, em plena tarde, e num local onde circulam várias pessoas”.
Relativamente ao perigo de continuação da atividade criminosa, Germano Marques da Silva- in ob. cit., p. 301 - salienta que «A aplicação de uma medida de coação não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão só a continuidade criminosa pela qual o arguido está indiciado. (…). Assim, se atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido for de presumir a continuação da atividade criminosa pelo qual o arguido está indiciado no processo pode justificar-se a aplicação de uma medida de coação».
Conforme escreve Irineu Cabral Barreto, in A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 34 edição, Coimbra Editora, 2005, páginas 95, no comentário ao artigo 5°, n°1, alínea c), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, citando um acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, esta norma, ao estabelecer que ninguém pode ser privado da sua liberdade salvo quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infração, “não cobre uma politica de prevenção geral contra uma pessoa ou categoria de pessoas que se revelem perigosas” ela visa “evitar a prática de uma infração concreta e específica”.
Este perigo decorrerá de um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, a efetuar a partir de circunstâncias anteriores ou contemporâneas à conduta que se encontra indiciada e sempre relacionada com esta.
Como refere o Acórdão da RC, de 02.06.99, sumário disponível em htt://www.trc.pt. – “terá de ser aferido a partir de elementos factuais que o revelem ou o indiciem e não de mera presunção (abstrata ou genérica) ... o perigo terá de ser apreciado caso a caso, em função da contextualidade de cada caso ou situação, pelo que não cabem aqui juízos de mera possibilidade, no sentido de que só o risco real (efetivo) de continuação da atividade delituosa pode justificar a aplicação das medidas de coação, maxime a prisão preventiva”.
Tendo em conta estes ensinamentos quanto à interpretação da alínea c), do artigo 204º, do CPP cumpre averiguar, se, no caso concreto, regressando o arguido à liberdade, ou regressando à sua habitação, há o perigo concreto de voltar a praticar factos integradores do mesmo tipo de ilícito, ou seja, de crime de detenção de arma proibida ou de crime contra a vida e integridade física das pessoas.
Considerando os factos fortemente indiciados é possível, de forma objetiva, concluir que o arguido revela sérias dificuldades em controlar os seus impulsos violentos quando confrontado ou contrariado por terceiros, sendo altamente provável que em situações idênticas e perante um circunstancialismo semelhante, venha a reagir do mesmo modo, adotando condutas violentas e até mesmo insidiosas, com recurso a utilização de armas que traz consigo para locais públicos. O perigo de continuação da atividade criminosa não se analisa apenas em relação à vítima nos presentes autos, mas em relação a outras vitimas que em situação idêntica tenha um confronto ou desentendimento com o arguido em tudo idêntico ao dos presentes autos.
Deste modo, considerando a concreta conduta empreendida, a gravidade que revela e o modo sub-reptício, refletido e insidioso com que a executou, revela uma personalidade onde sobressai a facilidade com que o arguido se determina à realização de delitos como os dos autos, bastando existir uma motivação para tal, o que claramente permite concluir pela existência do perigo de continuação da atividade criminosa a exigir a aplicação de uma medida de coação além do TIR.
Assim sendo, face ao acima exposto, há que concluir que, perante a natureza e circunstâncias da conduta fortemente indiciada e a personalidade do arguido, não se pode deixar de temer que este venha a prosseguir a sua atividade ilícita, não obstante tenha sido instaurado o presente processo e caso fique sujeito a uma medida não restritiva da liberdade, ainda que cumulada com outra da mesma natureza, como a proibição de contactos ou de frequentar certos locais, pelo que o concreto perigo de continuação da atividade criminosa assume, como já dissemos, um grau de intensidade significativo, a exigir, para o acautelar, uma medida privativa da liberdade.
A aplicação de medidas de coação de carácter não detentivo e mesmo a aplicação da OPHVE ao arguido ora recorrente foi considerada desadequada e afastada na decisão recorrida de forma expressa. O arguido entende, embora de forma subsidiária, que a obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância eletrónica, será suficiente e adequada e acautelar os perigos que identificou.
No seguimento daquilo que já referimos acima, a prisão preventiva, assim como a obrigação de permanência na habitação, só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação (artigo 193.º, n.º 2 do CPP).
Para além disso, quando ao caso couber medida de coação privativa da liberdade deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação, sempre que esta se mostre adequada e suficiente para satisfazer as exigências cautelares – artigo 193º nº 3 do CPP.
Há que referir, também, que a gravidade do ilícito criminal fortemente indiciado permite-nos concluir pela proporcionalidade de uma medida detentiva, face à pena que previsivelmente virá a ser aplicada ao arguido em sede de julgamento (artigo 193.º, n.º 1 do CPP).
Uma vez aqui chegados e perante a necessidade de aplicação de uma medida restritiva da liberdade do arguido, cumpre saber, na sequência do que impõe o artigo 193º nº 3 do CPP, se a obrigação de permanência na habitação, sujeita a vigilância eletrónica, se mostra adequada e suficiente para acautelar o perigo de continuação da atividade criminosa quanto ao arguido.
O critério para afastar a medida em causa, terá de ser sempre através do recurso ao princípio da adequação o qual exige que a medida seja apta e idónea para satisfazer as exigências cautelares do caso, devendo ser escolhida de acordo com estas exigências.
Como ensina Germano Marques da Silva, uma medida é adequada «se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para a realização das exigências cautelares» (in “Curso de Processo Penal”, II, 4.ª edição, Verbo, Lisboa, 2008, pág. 303).
Este princípio afere-se por um critério de eficiência, através da comparação entre o perigo que justifica a imposição da medida de coação e a previsível capacidade desta para o neutralizar ou conter. A adequação é, assim, qualitativa (aptidão da medida, pela sua natureza, para realizar os fins cautelares pretendidos) e quantitativa (no que toca à sua duração ou intensidade).
Como sabemos, a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica restringe a liberdade de locomoção do arguido, na medida em que este fica confinado ao espaço da sua casa, ficando, deste modo, limitado na sua capacidade de ação, mormente no que concerne à mobilidade que, no caso concreto, se mostra essencial para prevenir a execução de novos factos, na medida em que a atuação do arguido quanto aos factos imputados se traduziu no uso de uma arma de fogo contra uma determinada pessoa e num espaço frequentado pelo público.
Mas sabemos, também, que a medida em causa não restringe os contactos do arguido, as pessoas que recebe na sua casa, ou seja, não o impede de aceder e obter armas de fogo e, muito menos, de as utilizar. Para além disso, sendo o arguido e a vítima vizinhos, dado que ambos residem na zona de ..., em Lisboa, a medida em causa não se mostra adequada a inviabilizar que o arguido, mesmo da sua casa, ou deslocando-se para o exterior, possa alcançar a vítima ou outra pessoa que com ele se confronte e volte a utilizar uma arma de fogo.
O equipamento eletrónico apenas sinaliza o incumprimento das restrições decorrentes da medida e permite, deste modo, desencadear a intervenção das entidades de controlo, bem como das forças de segurança, para captura e condução ao local de vigilância eletrónica do arguido e, se for caso disso, a revogação da medida e imposição de medida mais gravosa, mas já não impede, como dissemos, que o arguido volte a praticar condutas idênticas às indiciadas nos autos.
Em face disto, é manifesto que a medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que sujeita a fiscalização eletrónica, mostra-se ineficaz, tal como se decidiu no despacho recorrido, para acautelar o perigo de continuação da atividade criminosa.
Assim, considerando os fortes indícios da prática dos factos imputados ao arguido e as necessidades cautelares verificadas no caso concreto, conclui este tribunal de recurso que a medida de prisão preventiva imposta ao arguido se encontra legitimada pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, estando, pelas razões já expostas, reunidos os pressupostos para a sua aplicação.
Como já vimos acima, apesar de no concreto não se se verificarem os perigos de perturbação da ordem e tranquilidades públicas e o perigo de perturbação do inquérito, o perigo de continuação da atividade criminosa é bem patente e, como se referiu no despacho recorrido, a única medida de coação capaz de acautelar esse perigo é sem dúvida a prisão preventiva.
Concluímos, assim, que o despacho recorrido, com exceção dos perigos de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de perturbação do inquérito, se mostra fundamentado, mostrando-se preenchidos todos os pressupostos de que depende a aplicação da medida de coação da prisão preventiva, única adequada e suficiente para acautelar as exigências particulares do caso e do regime legal aplicável, designadamente o disposto nos art.ºs 27.º, 28.º, 32.º e 205.º da C.R.P e do art.º 97.º, 191.º, 193.º, 202.º e 204.º do C.P.P., não sendo por isso desnecessária, excessiva ou desproporcional.

IV - Decisão:
Pelo exposto, decide-se em:
Julgar não provido o recurso interposto pelo arguido AA mantendo-se a decisão recorrida de aplicação da prisão preventiva.
Condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso (art.º 513º e 514º do C.P.P), fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

Lisboa, 8 de maio de 2025
Processado por computador e revisto pelo Relator (cf. art.º 94º, nº 2, do CPPenal).
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Paula Cristina Bizarro
Rosa Maria Cardoso Saraiva