Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | ANA CRISTINA CARDOSO | ||
| Descritores: | MEDIDAS DE COAÇÃO PRINCÍPIOS PRISÃO PREVENTIVA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/21/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | I - A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei. II - Os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da precariedade são corolários do princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória. III - A medida de coação prisão preventiva é adequada e proporcional ao caso em que o recorrente está fortemente indiciado pela prática de um crime de violência doméstica, não sendo o caso dos autos o primeiro em que a vítima é por ele agredida, detendo o recorrente um forte ascendente sobre esta, podendo condicionar a sua futura atuação processual e também a das testemunhas. Existe perigo de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito e de fuga. IV - A elevada gravidade dos factos e as exigências cautelares não se compadecem com medidas de coação não privativas da liberdade. V – À data dos factos, o recorrente encontrava-se a residir na mesma casa onde vive a ofendida. Naturalmente que, para se aplicar a medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, não se iria retirar a vítima do seu lar, obrigando-a a sair, causando-lhe ainda mais problemas e premiando-se o infrator. E, analisadas as declarações que o recorrente prestou, em momento algum o mesmo referiu ter alguém disponível para o acolher, nem indicou qualquer morada onde se pudesse executar a propugnada medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica. Nem mesmo no recurso que interpôs, o recorrente identificou uma pessoa que fosse, indicando o seu nome e a morada onde a medida poderia ser executada. Continuamos a navegar na indeterminação. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa RELATÓRIO 1. Após o primeiro interrogatório judicial subsequente à sua detenção, foi determinado, por despacho proferido em ........2025, que o arguido AA aguardasse a ulterior tramitação dos autos sujeito à medida de coação prisão preventiva. 2. Inconformado com este despacho, o arguido AA veio dele recorrer, pugnando pela substituição da medida de coação aplicada pela de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica. Rematou a sua motivação com as conclusões que a seguir se transcrevem: «A) O recorrente encontra-se preso preventivamente pela suspeita da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152, nº 1, alínea b) do Código Penal. B) Não se tem conhecimento que o Arguido/Recorrente tenha outros processos pendentes. C) O recorrente reside em território nacional a 2 ( dois ) anos. D) Possui no exterior um meio de suporte, tem amigos em Portugal. E) Em Portugal, tem amigos, que se encontram na disposição de acolher o Arguido/recorrente, dando-lhe guarida e todo o apoio emocional nesta fase complicada que está a viver. G1- Pelo que, salvo o devido respeito, é manifestamente desproporcionada e exagerada a medida de coacção aplicada, uma vez que ao caso em apreço poderia ser aplicada outra medida de igual eficácia. Ora, H- Erradamente, o Tribunal a quo, entendeu que a OPHVE, não seria suficiente para obviar à possibilidade de colmatar a possibilidade de fuga, de continuação da actividade criminosa, de perturbação do inquérito e os perigos de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, designadamente por via da aplicação da medida de coação e garantia patrimonial de OPHVE, prevista no artº 201 do CPP. Assim, I- A aplicação da Prisão Preventiva não deve por isso funcionar como uma medida punitiva adiantada. Ou seja, J- A suspeita tem de assentar em factos de relevo que façam acreditar que com toda a probabilidade, eles serão idóneos e bastantes para imputar ao arguido um determinado ilícito penal. K- Por isso mesmo verifica-se que no caso concreto é possível acautelar os aventados perigos através da sujeição do Arguido a OPHVE. Note-se que, L- Que o comportamento do Tribunal “a quo” e a interpretação limitativa que a sua conduta demonstra relativamente ao artigo 212º, nº 1 al.a) e º 4 do CPP, uma interpretação que no nosso entender, é violadora do artº13 da CRP. M- A prisão preventiva é a mais gravosa das medidas cautelares previstas no CPP e só deve ser aplicada excepcionalmente, por ter carácter residual ou subsidiário, o que decorre do Principio Constitucional consagrado no artº 28 da CRP. N- Assim a medida de coacção de Prisão Preventiva é manifestamente excessiva e deve ser substituída pela OPHVE, pelo que os perigos de perturbação do inquérito, de fuga, de ordem e de tranquilidade pública, ficariam salvaguardados com a aplicação dessa medida; O- Neste conspecto, deve revogar-se imediatamente a medida cautelar de Prisão Preventiva aplicada e substitui-la pela medida de prevista no artº 201 do c.pp, aceitando-se a sujeição a Vigilância Electrónica, pois são, em qualquer circunstância, mais adequadas aos pressupostos verificados nos autos, sendo que desde já o Recorrente aceita a sujeição a Vigilância Electrónica; P- O arguido/recorrente pretende ser colocado e ser sujeito à OPHVE na residência de algum dos seus amigos que se encontram na disposição de ajudá-lo. Q- Os seus amigos, concordam e dão o seu consentimento à instalação do equipamento necessário à OPHVE; R- O nº 3 do artº 193º do c.p.p determina que deve ser dada preferência à OPHVE Obrigação de Permanência na Habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares; Assim, S- Ao Tribunal a “quo”, cabe-lhe o ónus da prova da demonstração e a verificação dos perigos como determina a Lei, não fez, razão pela qual não andou bem, violando assim o artigo 204, al. a) a c), violando igualmente o estatuído no artigo 193º do CPP;» 3. O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo. 4. Respondeu o Ministério Público, concluindo pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): «1. Entende o Ministério Público não assistir razão ao recorrente. 2. No caso em apreço, a decisão recorrida fundamenta a aplicação da medida de coação de prisão preventiva na existência efetiva de perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de perturbação do inquérito, na vertente da conservação da prova, e perigo de fuga, o que encontrou particular sustento nos factos decorrentes do auto de denúncia de fls. 3 a 13, inquirições de fls. 21 a 24, reportagem fotográfica de fls. 41 a 45. 3. Resulta claramente dos autos que não estamos perante um episódio isolado: as agressões físicas exercidas pelo arguido sobre a vítima configuram um verdadeiro padrão de conduta na relação amorosa desde o seu início, conforme resulta das inquirições das testemunhas, nomeadamente vizinhos do casal, que afirmaram ouvir recorrentemente discussões, gritos da vítima e observado as marcas visíveis no seu corpo. 4. No dia ... de ... de 2025, entre as 02h00 e as 03h00, este sujeitou a vítima a um episódio de violência em plena via pública, arrastando-a para a rua com o braço em volta do seu pescoço, projetando-a contra o solo e desferindo-lhe diversos socos no rosto e na cabeça. A violência dos atos foi de tal ordem que os vizinhos e transeuntes, que circulavam pela ..., se viram compelidos a intervir para socorrer a vítima. Ainda assim, nem a presença de terceiros, nem a sua tentativa de auxílio foram suficientes para demover o arguido, que apenas cessou a agressão quando separado por 5 (cinco) populares e com a chegada da polícia. 5. O arguido revela uma personalidade violenta, impulsiva e temerária, sendo evidente que o reiterar da sua conduta em espaço público, mesmo após advertências e perante a reprovação social imediata, traduz um profundo desprezo pelas mais elementares regras de convivência e um sentimento de total impunidade, persistindo na prática criminosa apesar da iminência da ação penal. 6. A OPH com meios de vigilância eletrónica (VE) possibilita a monitorização telemática posicional do arguido, permitindo detetar a sua saída ou entrada na habitação, bem como eventuais tentativas de manipulação ou destruição do equipamento. Contudo, tais mecanismos não constituem barreiras físicas efetivas que impeçam o arguido de contactar com a vítima ou de reiterar condutas criminosas. 7. Atendendo ao conhecimento que o arguido detém sobre os locais frequentados pela vítima e sobre a sua rotina diária, é altamente previsível que, caso assim o pretenda, consiga facilmente abordá-la, expondo-a a novos episódios de violência de gravidade tal que, não sendo devidamente prevenidos, poderão fazer perigar a integridade física da vítima e assumir consequências fatais. 8. Encontra-se plenamente verificado o perigo de continuação da atividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, nos termos do artigo 204.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, impondo-se a aplicação da medida de coação mais gravosa. 9. As regras da experiência comum permitem igualmente concluir que, caso fosse aplicada uma medida de coação distinta da prisão preventiva, subsistiria um risco elevado de o arguido procurar ativamente interferir com a prova, recorrendo a contactos diretos, por meios telemáticos, ou indiretos, por intermédio de interposta pessoa, com o propósito de constranger a vítima a não depor ou a retrair-se na colaboração com a justiça. 10. Não menos relevante é a probabilidade de o arguido tentar influenciar as testemunhas que presenciaram a sua atuação, designadamente os vizinhos BB e CC, pressionando-as a alterar os seus depoimentos, com o objetivo de enfraquecer a credibilidade da prova já recolhida ou por recolher. 11. O quadro descrito traduz uma ameaça concreta à descoberta da verdade material e à eficácia da investigação, tornando patente que apenas a aplicação da prisão preventiva assegura, no caso concreto, a neutralização do perigo de perturbação do inquérito, mostrando-se as restantes medidas de coação manifestamente inadequadas e insuficientes para salvaguardar a integridade da prova, nos termos do artigo 204.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal. 12. O arguido não é cidadão português, não possui laços familiares conhecidos em território nacional e encontra-se em situação de desemprego há cerca de sete meses, o que acentua a sua fragilidade socioeconómica e a ausência de vínculos estáveis em Portugal que não são mitigadas pelas alegadas relações de amizade no país, que se revelam manifestamente insuficientes para assegurar uma efetiva fixação ou integração social. 13. As circunstâncias pessoais do arguido revelam, pelo contrário, de forma clara o perigo ora em causa: a inexistência de raízes familiares, laborais ou patrimoniais em Portugal facilita a sua deslocação para o estrangeiro, não tendo quaisquer responsabilidades ou interesses que o incentivem a permanecer neste território, para mais quando confrontados com a gravidade dos factos em investigação e com a moldura penal abstratamente aplicável. 14. Assim, ao contrário do que considera o recorrente, o perigo de fuga mostra-se concreto, atual e elevado, justificando a aplicação da medida de coação mais gravosa, a única apta a neutralizar a probabilidade séria de o arguido se eximir à justiça, conforme resulta do artigo 204.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal. 15. Face ao que vem dizendo, mormente nos pontos 5. a 7., a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (OPHVE) mostra-se, perante a sua gravidade e iminência, manifestamente insuficiente para acautelar os perigos acima indicados, não devendo, por isso, ser-lhe atribuída preferência. 16. Diversamente, a prisão preventiva satisfaz integralmente o triplo teste exigido pelo artigo 193.º do Código de Processo Penal: - É necessária, pois estão verificados, em concreto, os três perigos previstos no artigo 204.º, n.º 1, daquele diploma; - É adequada, por constituir a única medida apta a neutralizar eficazmente tais perigos, garantindo simultaneamente a proteção da vítima, a genuinidade da prova e a realização da justiça penal em tempo útil; e - É proporcional, atenta a gravidade dos factos praticados e a previsibilidade da aplicação de pena de prisão efetiva. 17. Assim, apenas a prisão preventiva assegura, no caso vertente, a tutela eficaz das exigências cautelares que a lei impõe, sendo a única medida de coação compatível com a proteção da vítima, a tranquilidade pública e a realização da justiça. 18. Por conseguinte, resulta evidente que o Douto Tribunal «a quo» se limitou a aplicar corretamente a lei, pois, nos termos expendidos por este Venerandíssimo Tribunal da Relação de Lisboa, «perante um histórico extenso e violento de condutas, a não privação da liberdade do arguido, em situação de perigo intenso de continuação da atividade criminosa, configuraria uma violação, por parte do Estado, das suas obrigações positivas de proteção da vítima. Tais deveres decorrem da jurisprudência consolidada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, bem como dos artigos 2.º e 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das obrigações assumidas no âmbito da Convenção de Istambul. 19. Nessa medida, não se verifica a violação de qualquer das normas jurídicas referidas pelo recorrente». 5. Neste Tribunal o Ministério Público, aderindo à argumentação expendida na resposta apresentada na primeira instância, emitiu parecer concluindo pela improcedência do recurso. 6. Cumprido que foi o artigo 417.º/2 do CPP, nada foi acrescentado. 7. Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência. Cumpre decidir. OBJETO DO RECURSO O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995). São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar. Se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões. Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir: 1. Da adequação, para as exigências cautelares do caso concreto, da decidida aplicação da medida de coação de prisão preventiva. DO DESPACHO RECORRIDO O despacho recorrido, exarado após o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, tem o seguinte teor, que se transcreve: «DESPACHO Resultam indiciariamente os seguintes factos: 1.O arguido AA, - referido, doravante, somente como arguido - é filho de DD e EE e nasceu a ... de ... de 1993 no .... 2. O arguido e FF mantêm um relacionamento amoroso desde há cerca de dois anos, residindo na ... 3.No dia ... de ... de 2025, entre as 2H 45 minutos e as 3H horas, na residência do casal, após uma discussão, o arguido agarrou a vítima pelo pescoço, tentando sufocá-la, enquanto lhe desferia socos no rosto. 4.Arrastando FF para a via pública, o arguido projectou-a com violência ao solo, continuando a agredi-la com socos no rosto e cabeça. 5.Perante os gritos e pedidos de ajuda, vários populares vieram em auxílio da vítima, tendo o arguido apenas cessado as agressões com a intervenção de CC, vizinho do casal. 6.Á chegada da PSP, o arguido encontrava-se ainda muito descontrolando, estando a vítima a chorar, apresentando um corte na cabeça e um hematoma na face esquerda. 7.Ao longo do relacionamento, a vítima tem sido alvo de agressões físicas por parte do arguido, nunca tendo denunciado tais situações por receio. 8.Na realidade, há cerca de uma semana, o arguido tinha já agredido FF no interior da residência, sendo audível os seus gritos pela vizinhança e visíveis as marcas da agressão. **** Ao actuar conforme o descrito, o arguido pretendeu e logrou ofender a vítima na sua integridade física, afectando deste modo o seu bem-estar físico e psíquico, bem sabendo que aquela é sua companheira e que lhe deve respeito. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que os seus comportamentos são proibidos e punidos pela lei penal. **** Mostra-se, assim, fortemente indiciada a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal. *** Fundamentam tal imputação - de facto e de direito - todos os meios de prova constantes dos autos, nomeadamente: - Auto de denúncia, de fls. 3 a 13. - Autos de inquirição de fls. 21 a 23. - Reportagem fotográfica de fls 41 a 44. --***-- TIPO DE CRIME: Um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal. PERIGOS: - Perigo de Fuga; - Perigo de perturbação do decurso do inquérito; - Perigo de continuação da actividade criminosa. MEDIDAS DE COAÇÃO: - Termo de identidade e residência que já prestou; - Prisão Preventiva. cfr. artºs 191.º a196.º, 202.º, n.º 1, al. b), art.º 1. al. j) e 204.º, n.º 1, als. a), b) e c), todos do Código de Processo Penal. Foi Determinado: Passe mandados de condução do arguido ao E.P.— Dê cumprimento ao disposto no art.º 194º n.º 10 do CPP.— Comunique ao TEP.— Organize Traslado.— Fixo a título de honorários ao Sr. Intérprete presente neste acto a quantia de 2UC’s.— Após cumprimento remeta ao DIAP.— Notifique.—» FUNDAMENTAÇÃO 1. Da adequação, para as exigências cautelares do caso concreto, da decidida aplicação da medida de coação de prisão preventiva Justificam-se umas considerações prévias. A aplicação da prisão preventiva, no nosso ordenamento processual, está sujeita não só às condições gerais contidas nos artigos 191.º a 195.º, do CPP, de que se retiram os princípios da adequação e da proporcionalidade, como dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º, como ainda dos específicos atinentes àquela concreta medida de coação, constantes do artigo 202.º. Explicitando o princípio da legalidade ou da tipicidade das medidas de coação, o artigo 191.º, nº 1, dispõe que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei. As medidas de coação estão ainda subordinadas aos princípios da adequação e da proporcionalidade (cfr. artigo 193.º, nº 1), não devendo ser aplicada qualquer medida de coação quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal (vide artigo 192.º, nº 2). Nos termos do artigo 204.º, alíneas a), b) e c), do CPP, as medidas de coação, com exceção do termo de identidade e residência, não podem ser aplicadas se, no caso em concreto, não se verificar: - fuga ou perigo de fuga; - perigo de perturbação do decurso do inquérito e nomeadamente, perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova; - perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas. Não se belisca aqui o princípio da presunção da inocência do arguido, nomeadamente em detrimento de necessidades de prevenção geral. Na verdade, em sede de medidas de coação, estão em causa, por um lado, a proteção de direitos fundamentais, v.g. o direito à liberdade e à segurança, (artigo 27.º, nº 1, da CRP) e por outro, a eficácia da investigação criminal (artigo 32.º, nº 5, da CRP) de estrutura acusatória, ainda que mitigada pelo princípio da investigação, sendo, portando, necessário, em cada caso concreto, fazer uma ponderação dos interesses em conflito para determinar a respetiva prevalência e grau e medida de restrição. O artigo 32.º, nº 2, da CRP, consagra o princípio da presunção de inocência, dizendo que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.” Trata-se de um direito fundamental, como ainda decorre dos artigos 11.º, nº 1, da DUDH, 6.º, nº 2, da CEDH e 48.º, nº 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da EU – Jornal Oficial da EU, de 2007/Dez./14, C 303. Tal injunção constitucional e fundamental da presunção da inocência em relação à pessoa suspeita ou perseguida criminalmente assenta num pressuposto estruturante das sociedades democráticas, que é o respeito pela dignidade da pessoa humana, o qual passou a moldar de modo inexorável todo o processo penal. Relativamente à extrapolação do seu sentido vinculador, cuja incidência é exclusivamente jurídico-legal, tem-se entendido que o mesmo não deve ser interpretado de modo puramente literal, como muitas vezes tem sido efetuado. A adotar-se essa literalidade, nunca seria possível efetuar-se qualquer juízo indiciador ou de culpabilidade da prática de um crime e muito menos decretar-se uma medida de coação. Esse argumento estritamente literal esbarraria com outras disposições constitucionais, tais como o artigo 27.º, nº 2, que admite várias situações de restrição do direito à liberdade; o artigo 28.º, que admite prisão preventiva, ainda que com carácter excecional, e o artigo 18.º, nº 2, que permite a restrição dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos nos casos expressamente previstos na Constituição, mas sempre mediante um “princípio de intervenção mínima”. Partindo-se do o princípio da presunção da inocência consagrado no artigo 32.º, nº 2, da CRP, exige-se que apenas sejam aplicadas as medidas de coação que ainda se mostrem comunitariamente suportáveis em face da possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente. Mesmo o artigo 5.º, nº 1, alínea c) da CEDH admite a privação da liberdade “quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infração, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infração ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido.” Os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da precariedade são, assim, corolários do princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A aplicação da prisão preventiva encontra-se sujeita a critérios de legalidade, sendo a sua natureza excecional e subsidiária expressamente estatuída no artigo 28.º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa. Essa subsidiariedade e excecionalidade mostra-se densificada na lei processual penal, dispondo o artigo 193.º do Código de Processo Penal, na parte que aqui releva, que: “Princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade 1 - As medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas. 2 - A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação. 3 - Quando couber ao caso medida de coação privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.” Os casos de admissibilidade da prisão preventiva encontram-se estabelecidos no art. 202.º do Código de Processo Penal, dependendo a sua aplicação da inadequação e insuficiência das demais medidas de coação previstas na lei processual penal, devendo ser aplicada apenas como ultima ratio. Assim, ainda que ao caso deva ser aplicada medida de coação privativa da liberdade, sempre deverá ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação quando esta medida se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares que no caso se façam sentir (artigo 193.º, nº 3, supra transcrito). Por outro lado, como resulta expressamente do disposto no artigo 202.º, nº 1, do Código de Processo Penal, a prisão preventiva pressupõe a verificação da existência de fortes indícios da prática do crime imputado e que este se enquadre no elenco daqueles aí previstos. O recorrente não questiona os indícios, que sempre se evidenciam fortemente se atentarmos nas declarações da vítima, dos depoimentos de BB e de CC (referenciados na participação) e nos ferimentos da vítima, constatados pelo agente policial e evidenciados nas fotos juntas. O recorrente, de forma pouco clara, questiona a existência dos perigos, na conclusão S): “Ao Tribunal a “quo”, cabe-lhe o ónus da prova da demonstração e a verificação dos perigos como determina a Lei, não fez, razão pela qual não andou bem, violando assim o artigo 204, al. a) a c), violando igualmente o estatuído no artigo 193º do CPP”. Depois, e apesar de ter dito que não se demonstraram os perigos do caso, diz que “é possível acautelar os aventados perigos através da sujeição do Arguido a OPHVE”, referindo ter amigos, que não identifica, que estão na disposição de o ajudar e de o acolher. A decisão recorrida encontra-se escrita em súmula. Nela pode ler-se: «TIPO DE CRIME: Um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal. PERIGOS: - Perigo de Fuga; - Perigo de perturbação do decurso do inquérito; - Perigo de continuação da actividade criminosa». Liminarmente se consigna que deverá ser equacionado oportunamente pela primeira instância se o crime não integrará também o nº 2, al. a), do artigo 152º do CP, já que se descrevem factos ocorridos no domicílio comum. Ainda assim, o crime previsto no nº 1 já permite em abstrato a prisão preventiva por ser “criminalidade violenta” – vide artigos 202º, al. b), e 1º, al. j), do CPP-, pelo que da referida ressalva não resultam consequências para a decisão a proferir neste recurso. Ouvida a gravação do despacho recorrido, mormente a partir do minuto 5:25, este Tribunal apurou que a justificação que alicerçou a decisão recorrida foi a seguinte, que ora sintetizamos: 1. Perigo de continuação da atividade criminosa: a presente situação não foi a primeira em relação à vítima e esta tem sido alvo de agressões físicas por parte do arguido que não denunciou antes por receio, incluindo os factos ocorridos na semana anterior. Considerou o tribunal a quo existir “uma reiteração da atividade extremamente violenta do arguido para com a vítima” e o estado de descontrolo do arguido que, mesmo com pessoas por perto na via pública, não cessou de imediato a sua atuação. 2. Perigo de perturbação do inquérito: esta situação não é a primeira. A vítima tem sofrido em silêncio, não denunciando os factos, próprio de quem depende economicamente do agressor. Atento o ascendente que o arguido já tem sobre a vítima, é natural que fale com ela para a impedir de prestar declarações ou para alterar a suas declarações. Há ainda o risco de o arguido falar com testemunhas que presenciaram a sua atuação, nomeadamente a testemunha CC, e que tente alterar o depoimento dessas pessoas, ou até pedir-lhes para não prestarem declarações no inquérito que apenas agora está no início. 3. Perigo de fuga: o arguido não é um cidadão português, está desempregado há 6, 7 meses, e sabendo da existência deste processo, e que se trata de uma criminalidade grave, pode encetar fuga, designadamente para o seu país de origem para se furtar à ação da justiça. Não temos como discordar dos perigos elencados na decisão recorrida. É evidente o seu acerto em face das circunstâncias do caso concreto. Sobre a escolha da medida de coação de prisão preventiva, na gravação do despacho recorrido, mais exatamente a partir do minuto 12:07, pode retira-se a seguinte fundamentação, que igualmente se sintetiza: Sobre medidas que não sejam detentivas, designadamente apresentações periódicas diárias e afastamento da ofendida, sustentou-se que não parecem adequadas a afastar os perigos que foram elencados. A primeira, apresentações periódicas, não impede o arguido de cometer atos idênticos na pessoa da ofendida. Afastar o arguido da ofendida, designadamente da sua residência, também não se figura adequada para afastar os mencionados três perigos. Afastar o arguido não o impede de se deslocar até junto da vítima, sabendo onde a mesma vive, onde a mesma está, e agredi-la do modo como tem feito até agora. E, logo a seguir, sobre a escolha da prisão preventiva, pode ouvir-se o que ora se transcreve: «Não se pode deixar esquecer que o arguido arrastou a vítima de casa para a via pública, aí projetou-a com violência ao solo, mesmo ouvindo o vizinho na janela a dizer para parar, continuou a agredi-la com socos no rosto e na cabeça e só parou, de facto, com a intervenção física do vizinho que o fez parar essa atuação. Portanto, não se figura adequado e proporcional para se afastarem esses perigos. Ponderando, pelo contrário, a prisão preventiva, a mesma figura-se adequada, proporcional, necessária, a única para afastar esses três perigos». Pode apontar-se alguma singeleza na decisão recorrida por não ter fundamentado a não aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica (prevista no artigo 201º do CPP), tal como refere o artigo 202º, nº 1, parte inicial, do CPP. Mas, perguntamo-nos, era absolutamente exigível essa fundamentação no caso em análise? É que o recorrente se encontrava a residir na mesma casa onde vive a ofendida. Naturalmente que, para se aplicar a medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, não se iria retirar a vítima do seu lar, obrigando-a a sair, causando-lhe ainda mais problemas e premiando-se o infrator. E, analisadas as declarações que o recorrente prestou, em momento algum o mesmo referiu ter alguém disponível para o acolher, nem indicou qualquer morada onde se pudesse executar a medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica. Terá sido essa a razão pela qual, aquando da diligência de primeiro interrogatório, pronunciando-se sobre a medida de coação a aplicar, a defesa do arguido apenas requereu a aplicação de uma medida de coação não privativa da liberdade (no caso apresentações periódicas, podendo ser diárias, e o afastamento da ofendida), não equacionado sequer a aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica Ora, o momento que importa é aquele em que foi proferida a decisão recorrida. Aquando da aplicação da medida de coação prisão preventiva, nada indiciava essa disponibilidade, não podendo o Tribunal recorrido decidir navegando nas águas da suposição ou da especulação. Aliás, nem mesmo no recurso que interpôs, o recorrente identificou uma pessoa que fosse, indicando o seu nome e a morada onde a medida poderia ser executada. Continuamos a navegar na indeterminação. Ainda assim, caso o recorrente considere ter efetivamente condições, sempre pode requerer à primeira instância a alteração da medida em execução, articulando factos concretos, identificando pessoas concretas e indicando moradas concretas. Mas isso é diferente da procedência do recurso que interpôs. São factos supervenientes ou, a serem anteriores, são factos cujo conhecimento nos autos não é coincidente com a prolação da decisão recorrida. Nestes termos, conclui-se que, tendo presente a situação factual acima elencada e reportada ao momento de aplicação da medida de coação, apenas a medida de prisão preventiva se mostrava suficiente para acautelar os perigos em concreto constatados, não merecendo censura, por isso, a decisão recorrida quando sujeitou o recorrente a tal medida coativa. Pelas razões atrás enunciadas, não ocorreu a violação de qualquer dos preceitos invocados pelo recorrente nem de qualquer outro. Na decorrência do que vem de se expor, deverá improceder integralmente o presente recurso. * DECISÃO Nestes termos, e face ao exposto, acordam as juízas desembargadoras deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando assim o despacho recorrido. Taxa de justiça pelo arguido, que se fixa em 3 Ucs – artigos 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8.º/9 do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, por remissão para a tabela III ao mesmo anexa. Notifique e comunique de imediato à primeira instância. O presente acórdão foi integralmente processado a computador e revisto pela signatária relatora, seguindo-se a nova ortografia excetuando na parte em que se transcreveu texto que não a acolheu, estando as assinaturas de todas as Juízas apostas eletronicamente – art. 94º, nº 2, do CPP. Lisboa, 21 de outubro de 2025 Ana Cristina Cardoso Ana Lúcia Gordinho Ester Pacheco dos Santos ____________________________________________ 1. Inexiste conclusão F) |