Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
972/24.0SKLSB.L1-9
Relator: MARIA DO CARMO LOURENÇO
Descritores: DOLO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Sumário: (da responsabilidade da Relatora)
I – É jurisprudência pacífica que não existe um modo semântico para a descrição dos factos que integram o dolo, não havendo qualquer obrigação de vinculação a fórmulas padrão.
II - O fundamento de rejeição da acusação por manifestamente infundada, por não conter todos os elementos factuais necessários para preencher o tipo subjetivo de ilícito, só pode ser aferido diante do texto da acusação.
III - Embora não tenha sido utilizada a fórmula habitual “bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal”, a expressão utilizada na acusação - “o arguido sabia que a sua carta de condução se encontrava apreendida e que não podia conduzir veículos durante o período da proibição que lhe fora fixado administrativamente” – é apta a consubstanciar o conhecimento pelo arguido de que a sua conduta é proibida e criminalmente punida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
1 – No âmbito do processo especial abreviado com o nº 972/24.0..., que corre termos no Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa – J2, foi proferido despacho, ao abrigo do disposto no art. 311.º, nºs. 1, 2, alínea a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal, a rejeitar a acusação pública deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA, imputando-lhe a prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal.
*
2 – Recurso da decisão.
2.1. - Inconformado com esta decisão, dela recorreu o Ministério Público, com os fundamentos que constam do respetivo requerimento e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, tendo, após a motivação, formulado as seguintes conclusões e petitório que se transcrevem1:
“a. O despacho judicial recorrido (e respectiva rectificação) recusou a recepção da acusação pública, por manifestamente infundada, por não conter a narração dos factos, mais concretamente no que se refere ao elemento subjectivo do tipo, nos termos do artigo 311.º, n.º s 1, 2 alínea a) e 3 alínea b) do Código Processo Penal, concretizando que, inexiste qualquer menção a que o arguido tenha actuado de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal.
b. Sucede, porém, que o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, é livre de escolher os enunciados linguísticos de que faz utilização, na acusação, desde que descreva plenamente o objecto do processo e esgote factualmente a descrição dos tipos objectivo e subjectivo do crime imputado.
c. Ora, inexiste uma fórmula única para a descrição factual do dolo, não só porque essa redacção é livre, mas, sobretudo, porque as exigências de concretização factual do dolo dependerão sempre do concreto crime em apreciação.
d. Portanto, da leitura da acusação pública resulta claro que, ao contrário do que o Tribunal a quo considerou, o dolo do tipo do crime de violação de imposições, proibições ou interdições está suficientemente descrito factualmente. Pois na acusação articulou-se que "[o] arguido sabia que a sua carta de condução se encontrava a apreendida e que não podia conduzir veículos durante o período da proibição que lhe fora fixado administrativamente e, ainda assim, não se coibiu de o fazer. Não obstante, quis conduzir nas circunstâncias supra descritas e fê-lo de forma livre, voluntária e consciente”.
e. Assim, embora não tenha sido utilizada a fórmula usualmente empregue para imputar o elemento subjectivo do tipo ao arguido – i.e., “o arguido actuou de forma livre, voluntária e conscientemente bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal” –, foram utilizadas outras expressões mas com o mesmo significado e amplitude quando interpretadas de forma sistemática com todo o texto do despacho de acusação e que, salvo melhor entendimento, não podem nem devem ser objecto de qualquer interpretação restritiva ou limitativa.
f. Portanto, não se pode considerar que a factualidade pela qual foi deduzida acusação seja, inequivocamente, insusceptível de ser tipificada como integradora dos elementos típicos objectivo e subjectivo do crime imputado ao arguido.
g. Razão pela qual entendemos que não se mostram verificados os pressupostos de que o despacho recorrido partiu motivo pelo qual andou mal o Tribunal a quo ao proferir o despacho, ora recorrido, ao invés de proceder a exame preliminar e designar data para realização de audiência de discussão e julgamento.
Nestes termos e pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:
1.Ser revogado do despacho proferido em 1.ª instância, ora recorrido, substituindo-se o mesmo por outro que proceda a exame preliminar e designe data para realização de audiência de discussão e julgamento, por se encontrarem descritos, no despacho de acusação, todos os elementos, subjectivo e objectivo do tipo imputado ao arguido;
Caso assim não se entenda,
2. Deverá ser permitida a dedução de nova acusação, em que se repare as omissões apontadas, na esteira do que foi defendido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 246/2017, publicado no DR, II Série, de 25-07-2017, que assim decidiu: “[e]m face do exposto, na improcedência do recurso, decide-se não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes”.
assim fazendo V. Exas JUSTIÇA!”
*
2.2 – O arguido, devidamente notificado, não respondeu ao recurso.
*
2.3 – Neste Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, no parecer que emitiu, declarou acompanhar o recurso efetuado.
*
2.4. – Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta ao parecer da Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta.
Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi presente à conferência, de acordo com o preceituado no art. 419.º, nº 3, alínea c), do Código de Processo Penal.
Cumpre conhecer e decidir.
*
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
1 – Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no art. 412.º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação pelo recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso previstas no art. 379.º do Código de Processo Penal, e daquelas a que alude o art. 410.º do referido código (atendendo, relativamente a estas últimas, à jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/05, de 19/10/1995, publicado no DR I-A de 28/12/1995).
No caso presente, as questões a decidir são as seguintes:
a) saber se a acusação é nula por ausência do elemento que constitui o dolo da culpa (consciência da ilicitude);
b) sendo nula, se pode haver lugar à remessa dos autos ao Ministério Público, para suprimento de tal vício.
*
2 – Da decisão recorrida.
O despacho recorrido (já com as retificações constantes dos despachos de .../.../2025 e de .../.../2025) tem o seguinte teor (transcrição):
“QUESTÃO PRÉVIA
A.DA NULIDADE DA ACUSAÇÃO PÚBLICA
O Ministério Público deduziu acusação em processo abreviado contra o arguido AA, imputando-lhe a prática dos seguintes factos:
No dia 6 de agosto de 2024, pelas 13h26m, o arguido conduzia o veículo automóvel de matrícula ..-..-ZD, na ..., em Lisboa.
Sucede que o arguido estava proibido de conduzir veículos a motor, na sequência da pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 360 (trezentos e sessenta) dias, que lhe foi aplicada por sentença administrativa, proferida ao abrigo dos processos de contraordenação n.º ..., ..., ..., ..., ... e ....
Para cumprimento da mencionada proibição, o título de condução do arguido foi apreendido em 22/05/2024, iniciando-se o cumprimento da pena acessória nessa data.
O arguido sabia que a sua carta de condução se encontrava apreendida e que não podia conduzir veículos durante o período de proibição que lhe fora fixado administrativamente e, ainda assim, não se coibiu de o fazer.
Não obstante, quis conduzir nas circunstâncias supra descritas e fê-lo de forma livre, voluntária e consciente.”.
Para além do segmento acima transcrito, nada mais é mencionado, no despacho de acusação, acerca dos factos imputados ao arguido nos presentes autos.
Cumpre apreciar.
Dispõe o artigo 311.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (aplicável ex vi artigo 391.º-C, n.º 1 do mesmo Código) que, após o recebimento dos autos no tribunal, o presidente tem que se pronunciar sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, desde que possam ser logo conhecidas.
Assim, caso o processo tenha sido remetido sem ter tido lugar a fase de instrução (que não existe nesta forma processual), o presidente despachará, designadamente, no sentido de rejeitar a acusação, caso a mesma seja manifestamente infundada, conforme o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal.
Ora, a acusação deve ser considerada manifestamente infundada quando se verifique pelo menos um dos seguintes pressupostos: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) se os factos não constituírem crime (cfr. artigo 311.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
Ademais, o artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal determina que a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática.
Veja-se ainda que, nesta forma processual, a lei prevê expressamente que a acusação do Ministério Público deve conter os elementos a que se refere o n.º 3 do artigo 283.º, sendo que a identificação do arguido e a narração dos factos podem ser efectuadas, no todo ou em parte, por remissão para o auto de notícia ou para a denúncia (cfr. artigo 391.º-B, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Revertendo agora as considerações para o caso sub judice, constata-se que a acusação pública não contém todos os elementos factuais necessários para preencher o tipo subjectivo de ilícito.
No que concerne ao tipo subjectivo, o mesmo é composto pelos elementos cognitivos, bem como volitivos.
Quanto aos elementos subjectivos consta apenas que “O arguido sabia que a sua carta de condução se encontrava apreendida e que não podia conduzir veículos durante o período de proibição que lhe fora fixado administrativamente e, ainda assim, não se coibiu de o fazer. Não obstante, quis conduzir nas circunstâncias supra descritas e fê-lo de forma livre, voluntária e consciente.”, inexistindo qualquer menção a que o arguido tenha actuado sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Estamos, assim, perante a falta de descrição de todos os elementos subjectivos necessários do ilícito criminal.
Neste sentido, “O fundamento de rejeição [da acusação], por manifestamente infundada, só pode ser aferido diante do texto da acusação; é da sua interpretação que se concluirá, designadamente, se falta ou não a narração de factos que integram os elementos típicos objetivos e subjetivos de um determinado ilícito criminal.
A falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjetivo do ilícito, mais propriamente, do dolo, não pode ser integrada no julgamento nem por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP, nem sequer através do mecanismo do art. 359.º, do mesmo Código, devendo o Juiz atalhar o vício antes de chegar àquela fase.
No tipo subjetivo de ilícito, necessário ao preenchimento do crime de burla exige-se o dolo do tipo, conceitualizado, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade referidos a todos os pressupostos do tipo objetivo, e o dolo da culpa, traduzido na consciência, por parte do arguido, de que com a sua conduta sabe que atua contra direito, com consciência da censurabilidade da conduta.
O comportamento só é pressuposto da sanção quando nele se integra também a consciência do significado jurídico desse mesmo comportamento; não basta a ilicitude objetiva, importa também a culpabilidade e para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objetivamente ilícitos.
A deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjetivo do tipo de burla (e é de deficiente e insuficiente descrição do tipo subjetivo que se trata no caso sub judice e não de omissão integral de descrição do tipo subjetivo), não é susceptível de ser integrada, em julgamento.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 07-03-2018, processo n.º 189/14.1PFCBR.C1, relator: Orlando Gonçalves, disponível www.dgsi.pt.
E ainda, “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal, devendo constar da peça acusatória.
O que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente a actuação de forma livre, voluntária ou deliberada, consciente e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 31- 05-2022, processo n.º 977/21.2PFAMD.L1-5, relator: João Carrola, disponível www.dgsi.pt.
Também nesse sentido, “Os elementos subjetivos do crime são expressos na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre - isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico-, voluntária ou deliberadamente-querendo a realização do facto-, conscientemente -isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei -consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 02-02-2022, processo n.º 3105/21.0T9AMD.L1-3, relator: Alfredo Costa, disponível www.dgsi.pt.
Desta forma, não pode deixar de considerar que a presente acusação particular é nula, por falta da descrição suficiente dos elementos supra mencionados.
Acrescente-se que a falta do elemento subjectivo não pode ser suprida em sede de audiência de discussão e julgamento, com recurso ao mecanismo do artigo 358.º do Código de Processo Penal, e não pode, igualmente, ser suprida através do mecanismo previsto no artigo 359.º do mesmo Código.
Quanto a este aspecto, veja-se que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015.
Para além disso, está vedado ao Juiz ultrapassar o objecto que lhe é submetido a julgamento, alterando ou corrigindo o que dele consta, sob pena de estar a substituir-se à parte acusadora e deixar de exercer com imparcialidade a sua função. Isso mesmo resulta da estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente imposta pelo artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
Posto isto, de harmonia com o expendido, afigura-se-nos que a acusação pública deduzida nos presentes autos é manifestamente infundada, pelo que tem que ser rejeitada.
Acrescente-se ainda que nos parece que a conduta descrita na acusação pública, ainda que contivesse a menção de o arguido agiu sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, nunca preencheria o tipo legal de crime de que vem acusado, podendo sim preencher um crime de desobediência qualificada, nos termos do artigo 138.º, n.º 3 do Código da Estrada e artigo 348.º, n.º 2 do Código Penal.
Pelo exposto, decide-se rejeitar a acusação pública deduzida nos presentes autos, por ser manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311.º. n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
*
Sem custas.
*
Notifique.
*
Oportunamente, arquive os presentes autos.
Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 07-03-2018, processo n.º 189/14.1PFCBR.C1, relator: Orlando Gonçalves; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 02-02-2021, processo n.º 205/19.0T9MTA.L1-5, relator: Artur Vargues, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 02-02-2023, processo n.º 34/21.1PHAMD.L1-9, relatora: Paula Penha, todos disponíveis in www.dgsi.pt, constando do último Acórdão, nomeadamente, que “Mesmo que tivesse havido fundamento para uma rejeição liminar da acusação (que pôs fim à fase de inquérito) não poderia haver lugar à remessa dos autos ao Ministério Público – contrariamente ao demais teor constante do despacho recorrido que, após rejeitar a acusação, ordenara a remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público.
A este propósito é jurisprudência dominante dos nossos tribunais superiores que não é possível ordenar numa diferente fase processual o regresso à fase anterior, fazendo retroceder o processo de forma a sanar eventuais invalidades dessa antecedente fase processual.”.
*
3 – Apreciação do recurso.
3.1 - O Ministério Público e ora recorrente deduziu acusação particular contra o arguido AA, imputando-lhe a prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal.
No despacho de saneamento do processo (decisão recorrida), a Ex.ma Juiz a quo concluiu que a factualidade vertida na acusação pública não é suficiente para configurar o crime imputado ao arguido, por não conter todos os elementos factuais necessários para preencher o tipo subjetivo de ilícito, sendo, pois, manifestamente infundada, razão pela qual a rejeitou nos termos do disposto no artigo 311.º. n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal (doravante, CPP).
Em contrapartida, no recurso defende o Ministério Público que o dolo do tipo de crime imputado ao arguido está suficientemente descrito factualmente na acusação pública. E que o Ministério Público, enquanto titular da ação penal, é livre de escolher os enunciados linguísticos de que faz utilização, desde que descreva plenamente o objeto do processo e esgote factualmente a descrição dos tipos objetivo e subjetivo do crime imputado.
Vejamos se lhe assiste razão.
3.2 – No processo especial abreviado, estabelece o nº 1 do artigo 391.º-B do CPP que a acusação do Ministério Público deve conter os elementos a que se refere o nº 3 do art. 283.º. A identificação do arguido e a narração dos factos podem ser efetuadas, no todo ou em parte, por remissão para o auto de notícia ou para a denúncia.
A alínea b) do nº 3 do artigo 283.º do CPP estabelece que a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
“Trata-se de uma imposição decorrente do princípio do acusatório e que surge como forma de assegurar ao arguido todas as garantias de defesa, em respeito pelo art. 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição.
O atual modelo, vigente desde o Código de Processo Penal de 1987, aprovado pelo DL n.º 78/87, de 17 de fevereiro, estrutura-se no referido princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, tendo, nessa parte, a respetiva autorização legislativa sido concedida com o sentido e extensão de estabelecimento da máxima acusatoriedade do processo penal, temperada com o princípio da investigação judicial.
Um dos traços estruturais do princípio acusatório consiste na clara distinção entre, por um lado, a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e, se for o caso, sustenta uma acusação, e, por outro lado, uma entidade distinta que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objeto dessa acusação”2.
Apesar disso, a lei processual penal, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, permite ao juiz de julgamento rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada – artigo 311.º, nº 2, alínea a), do CPP (ex vi art. 391.º-C do CPP).
O nº 3 do citado art. 311.º estabelece, por sua vez, que, para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
“Por outro lado, os referidos vícios, como decorre do advérbio «manifestamente», terão de resultar como algo de claro, inequívoco, evidente no sentido de que a sua verificação em concreto não oferece qualquer discussão, pois que só assim se entendendo se poderá afirmar que a acusação é infundada por forma manifesta”3.
O Ministério Público imputou ao arguido a prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal. Trata-se de um crime doloso, por não estar previsto o seu cometimento com negligência (art. 13.º do Código Penal).
“O dolo, legalmente definido no art. 14.º do C. Penal, consiste no conhecimento - elemento intelectual – e vontade – elemento volitivo – do agente em realizar o facto, com consciência da sua censurabilidade – consciência da ilicitude”.
O elemento intelectual implica a previsão ou representação pelo agente das circunstâncias do facto, portanto, o conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objetivo, sejam descritivos sejam normativos.
O elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objetivo – assim revelando a sua personalidade contrária ao direito, para uns, ou uma atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada no facto [elemento emocional do dolo], para outros.
Assim, a acusação deve descrever, pela narração dos respetivos factos, todos os elementos em que se decompõe o dolo4.
A jurisprudência tem vindo a defender, no seguimento do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/20155, que “tudo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjetivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude)”.
No caso, a decisão recorrida entende que da acusação não consta a alegação da ilicitude da conduta, o que constitui um elemento subjetivo essencial ao preenchimento do tipo de crime.
Por sua vez, o Ministério Público defende no recurso que, “embora não tenha sido utilizada a fórmula usualmente empregue para imputar o elemento subjetivo do tipo ao arguido – i.e., «o arguido atuou de forma livre, voluntária e conscientemente bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal» –, foram utilizadas outras expressões mas com o mesmo significado e amplitude quando interpretadas de forma sistemática com todo o texto do despacho de acusação», resultando deste suficientemente descrito factualmente o dolo do tipo do crime imputado ao arguido quando se articula que “[o] arguido sabia que a sua carta de condução se encontrava a apreendida e que não podia conduzir veículos durante o período da proibição que lhe fora fixado administrativamente e, ainda assim, não se coibiu de o fazer. Não obstante, quis conduzir nas circunstâncias supra descritas e fê-lo de forma livre, voluntária e consciente”.
É jurisprudência pacífica que “não existe um modo semântico único para a descrição dos factos que integram o tipo de dolo, sendo, naturalmente, livre a redação e a utilização dos termos que servirão para o descrever, para integrar o dolo, não havendo uma fórmula que, não sendo utilizada ipsis verbis, conduza fatalmente à queda da acusação por manifestamente infundada, por não conter a suficiente narração dos factos”6.
Da acusação consta que “o arguido estava proibido de conduzir veículos a motor, na sequência da pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 360 (trezentos e sessenta) dias (…). Para cumprimento da mencionada proibição, o título de condução do arguido foi apreendido em 22/05/2024, iniciando-se o cumprimento da pena acessória nessa data. O arguido sabia que a sua carta de condução se encontrava apreendida e que não podia conduzir veículos durante o período da proibição que lhe fora fixado administrativamente e, ainda assim, não se coibiu de o fazer.
Daqui resulta que, embora não tenha sido utilizada a fórmula habitual “bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal”, a expressão utilizada na acusação - “o arguido sabia que a sua carta de condução se encontrava apreendida e que não podia conduzir veículos durante o período da proibição que lhe fora fixado administrativamente” – é apta a consubstanciar o conhecimento pelo arguido de que a sua conduta é proibida e criminalmente punida. Isto é, imputa-se ao arguido ter realizado o facto com consciência da sua censurabilidade, com consciência da ilicitude.
Mesmo que assim se não entendesse, conforme consta do texto do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, “(…) O conhecimento da proibição legal, que não é exatamente equivalente a «consciência da ilicitude» será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito (…).
A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contra-ordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à proteção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social. Então faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo.
Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significado da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injurias, pôr a questão de saber se o agente, que atuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, atuou ou não com conhecimento da proibição lega, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efetivamente vivia neste mundo ou se não seria um extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Stevem Spielberg.
A essa pressuposta exigência responde o acórdão do STJ de 07/10/92, referido supra, 9.2.1., que à questão colocada de inexistir qualquer referência, na matéria de facto, ao conhecimento que o arguido, autor de um crime de homicídio, teria ou não da proibição legal, considerou que, «tendo [o arguido] agido livre e conscientemente com o intuito de tirar a vida ao filho, não podia deixar de conhecer o desvalor da sua conduta”7.
Ora, parece-nos claro que qualquer cidadão sabe que não pode conduzir veículos durante o período em que a sua carta de condução se encontra apreendida. E o arguido foi acusado de conduzir um veículo automóvel no dia 6 de agosto de 2024, quando o título de condução já tinha sido apreendido em 22/05/2024.
Terá, por conseguinte, de se proceder à revogação do despacho proferido, o qual deverá ser substituído por outro em que, não se verificando outro motivo de rejeição da acusação, se dê prosseguimento ao processo, tendo em conta o preceituado no art. 311.º do CPP.
3.2. – Face à decisão que irá ser proferida fica prejudicada a questão de saber se pode ser concedido ao Ministério Público a faculdade de suprir a nulidade da acusação.
Sempre se acrescenta, porém, ser jurisprudência dominante que “rejeitada a acusação, o juiz não deve determinar, ao abrigo do art. 122.º do CPP, a devolução dos autos à fase de inquérito, em ordem à posterior correção da acusação pública, pelo Ministério Público. Uma decisão nesse sentido não só não respeitaria o disposto no art. 311.º do CPP, como constituiria uma ingerência judicial nos poderes atribuídos ao Ministério Público e colocaria em causa as legítimas expetativas do arguido e as garantias de defesa constitucionalmente tuteladas no art. 32.º, nº 1, da CRP”8.
*
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, não se verificando outra causa de rejeição da acusação, dê andamento ao processo, em conformidade com o disposto no artigo 311.º do CPP.
Sem custas.
Notifique.
*
Lisboa, 09/10/2025
Maria do Carmo Lourenço
Eduardo de Sousa Paiva
Ana Paula Guedes
______________________________________________________
1. - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.
2. - Acórdão da Relação de Guimarães, de 19/06/2017 – processo nº 430/15.3GEGMR.G1 – www.dgsi.pt.
3. - Acórdão da Relação de Guimarães, de 19/03/2024 – processo nº 2045/23.3PBBRG.G1 – www.dgsi.pt.
4. - Acórdão da Relação de Coimbra, de 15/05/2019 – processo nº 267/16.2T9PMS.C1 – www.dgsi.pt.
5. - Diário da República, I Série, nº 18, de 27/01/2015. Este aresto fixou jurisprudência no sentido de que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.
6. - Acórdão da Relação de Lisboa, de 05/05/2022 – processo nº 652/21.8PEAMD.L1-9; no mesmo sentido, Acórdão da Relação de Guimarães, de 19/03/2024 – processo nº 2045/23.3PBBRG.G1, ambos em www.dgsi.pt.
7. - Diário da República, I Série, nº 18, de 27/01/2015 – págs. 593/594.
8. - Acórdão da Relação de Coimbra, de 07/03/2018 – processo nº 189/14.1PFCBR.C1 – www.dgsi.pt; e jurisprudência citada no mesmo.