Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
65/22.4T9RGR.L1-5
Relator: SANDRA OLIVEIRA PINTO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES DE MENOR GRAVIDADE
MEDIDA DA PENA
PRISÃO EFECTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/21/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I- Só em caso de desproporcionalidade manifesta na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª instância alterando o quantum da pena concreta.
II- Subjacente à decisão de suspensão da execução da pena de prisão tem de estar um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido, ou seja, quando se possa prever – no momento em que essa decisão é tomada – que o mesmo não cometerá futuros crimes.
III- As obrigações internacionais assumidas por Portugal nesta matéria, por via de instrumentos jurídicos de direito internacional vinculativos para o Estado Português e consequentemente para os correspondentes órgãos de soberania, exigem dos Estados contratantes a garantia de que as infrações relacionadas com o tráfico de droga sejam puníveis com sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas, postulando, por regra, a cominação aos correspetivos responsáveis de medidas penais efetivamente privativas da liberdade.
IV- São de subscrever as considerações do Tribunal recorrido, quando adequadamente releva a circunstância de o arguido não evidenciar consciência do seu estado de toxicodependência, a par da ausência de qualquer ocupação lícita ou concreto projeto de trabalho, a denunciar o seríssimo risco de que volte a praticar factos da mesma natureza daqueles por que foi condenado nestes autos, inviabilizando de forma clara a formulação de um prognóstico favorável no sentido de que irá adotar uma vida conforme ao direito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
No processo comum singular nº 65/22.4T9RGR do Juízo Local Criminal da Ribeira Grande, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, foi julgado o arguido AA, filho de BB e de CC, natural de ..., nascido a ........1988, solteiro, desempregado, residente na ..., titular do cartão de cidadão n.º ..., tendo sido condenado, por sentença datada de 08.05.2025, “pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo art.º 25º, al. a), por referência ao artigo 21.º, n.º 1, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22/01, e à tabela II-A, anexa àquele diploma, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão”.
Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o arguido, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
“1. Na pena aplicada ao arguido, foram claramente violados os artigos 40º e 50º do Código Penal;
2. Na opção que a Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” fez pela não suspensão da pena de prisão, não apresentou razões de facto, ou de direito, com peso suficiente para justificar a decisão de afastar a aplicação do regime previsto no artigo 50.º do Código Penal;
3. O juízo de prognose favorável ao arguido, para o qual conjuntamente concorrem os pressupostos indicados no artigo 50º do Código Penal, terá como ponto de partida o momento da decisão, e não da data da prática do crime;
4. No caso concreto, não se teve em conta que o arguido apesar de ser de condição social baixa, tem uma família que apresenta uma dinâmica intrafamiliar positiva e coesa, que, entendemos nós, certamente apoiará o arguido na sua reinserção social;
5. Se atentarmos aos antecedentes criminais do arguido, é verdade que o arguido já foi condenado por vários crimes, mas também é verdade que o arguido “… ter revelado vontade de mudar de vida …”, e que a condenação anterior por crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, foram por factos de 2014, ou seja, há 11 anos atrás, e nesse período não cometeu qualquer ilícito da mesma natureza;
6. Pelo que, não se vê, nem se lê, qual a necessidade preventiva geral ou especial de afastar o regime que é o de dar preferência às penas não privativas da liberdade;
7. A simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Por todo o exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, revogar-se a decisão recorrida, suspendendo na sua execução a pena de prisão que foi aplicada ao arguido.
A V. Exas. caberá melhor decisão, como é de JUSTIÇA.”
O recurso foi admitido, por legal e tempestivo, com subida imediata, nos autos, e efeito suspensivo.
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência, e concluindo nos seguintes termos:
“1. A aplicação da suspensão da execução da pena de prisão não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, falhando manifestamente os pressupostos para a sua aplicação previstos no artigo 50.º do Código Penal.
2. A simples censura do facto e a ameaça da prisão não bastarão para afastar o arguido da prática de novos crimes, sendo que a aplicação de uma qualquer pena de substituição revelar-se-ia inadequada.
3. Apenas cumprindo intramuros a pena de prisão que lhe foi irrogada se poderá garantir a realização de forma adequada e suficiente das finalidades da punição e da execução da pena de prisão.
4. Não se mostram, pois, violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais ou princípios, designadamente os referidos pelo recorrente.
Face ao exposto, e ao abrigo das disposições legais supracitadas, deve o presente recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão judicial recorrida.
*
V. Ex.as, porém, decidirão como for de JUSTIÇA.”
Neste Tribunal, o Exmo Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer, subscrevendo as alegações apresentadas pelo Ministério Público na 1ª instância e concluindo pela improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
Após deliberação, cumpre decidir.
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II. questões a decidir
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a sentença proferida nos autos – a única questão a examinar e decidir prende-se com a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado.
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III. Decisão recorrida
Com interesse para a questão em apreciação em sede de recurso, consta da decisão recorrida:
II – Fundamentação de facto:
II.1. Factos provados:
Após ter sido discutida toda a matéria de facto e produzida a prova em julgamento, resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão a proferir:
1. Desde data não concretamente apurada, mas do início do ano de 2021 e até o final do ano de 2023, o arguido dedicou-se, diariamente, à venda de produtos estupefacientes, nomeadamente (alfa)-PHP, a consumidores que a procuravam, designadamente na sua residência sita na ....
2. Desde data não concretamente apurada, mas do início do ano de 2021 e até pelo menos o mês de ... de 2023, o arguido vendeu a DD, diariamente, entre duas a quatro gramas de (alfa)-PHP, em pacotes individuais, para consumo próprio daquele, e dele recebeu, em pagamento, a quantia de € 5,00 por cada pacote.
3. No decurso do ano de 2023, o arguido vendeu a EE, mais de quarenta e oito pacotes de (alfa)-PHP, para consumo próprio daquela, e dela recebeu, em pagamento, a quantia de € 5,00, por cada panfleto individual.
4. No espaço temporal referido no ponto 1, o arguido vendeu a FF cinco pacotes de (alfa)-PHP, diariamente, para consumo próprio daquele, e dele recebeu, em pagamento, a quantia de €5,00, por cada pacote.
5. O arguido não estava autorizado a comprar, deter, transportar, a ceder ou a vender produto estupefaciente, nomeadamente (alfa)-PHP.
6. O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes do produto que nas condições descritas supra detinha e transportava consigo, e que cedeu a terceiros, bem como a natureza e características do mesmo, designadamente (alfa)-PHP, destinando tal produto à cedência e venda a consumidores, mediante contrapartida monetária.
7. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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Mais se provou que:
8. O arguido tinha um veículo à porta da sua residência, que cedia para consumo dos estupefacientes que vendia.
9. À data dos factos, o arguido residia na morada constante na acusação, atribuída aos seus progenitores no âmbito dos mecanismos de proteção social (...), condição que se mantém no presente.
10. Nesta morada, além dos elementos identificados, residem ainda GG (companheira do arguido), para além de se perspetivar a (re)integração de um irmão do arguido (HH), nesta fase, em reclusão no ....
11. A referida residência encontra-se em mau estado de conservação e higiene, com referência à intervenção por parte da delegação de saúde da respetiva área de residência.
12. No âmbito do seu percurso escolar e laboral, o arguido refere que abandonou a escola por volta dos 15 anos de idade, com apenas o 1º Ciclo do Ensino Básico concluído (baixa escolarização), com referência a negligência parental, nomeadamente no que que diz respeito às faltas escolares (ausência de adequada supervisão parental).
13. Consequentemente, as atividades laborais que veio a concretizar até à aplicação da presente medida coativa são indiferenciadas, em regime informal, não lhe sendo reconhecidos hábitos laborais regulares.
14. O arguido é beneficiário do rendimento social de inserção (RSI) no valor aproximado de 230€ (duzentos de trinta euros), com contributo variável para as despesas do agregado familiar de inserção, considerando que os progenitores também beneficiam do RSI e que GG (companheira do arguido) está inativa profissionalmente.
15. Considerando a permissividade e negligência parental observadas ao longo da sua trajetória de vida, o arguido veio a abandonar o núcleo familiar de origem por volta dos 16 anos de idades, para integrar o agregado familiar de uma tia, com morada fixa em contexto de risco (bairro conotado com marginalidade e toxicodependência).
16. Neste contexto, o arguido aproximou-se de grupos de pares associados à delinquência, e a um estilo de vida assente em vivência de rua, envolvendo-se em comportamentos de risco, inclusive criminais, vindo a ser condenado numa pena de prisão, com apenas 17 anos de idade.
17. Nesta fase que se iniciou no consumo de estupefacientes.
18. Aos 22 anos de idade estabeleceu uma relação marital, com uma adolescente, à data, com 14 anos de idade.
19. Deste relacionamento resultou o nascimento de dois filhos, um que acabou por ficar à guarda dos avós maternos e o outro, mais novo, viria a falecer com dois dias de vida.
20. O arguido refere que tem ainda mais dois filhos, de relações amorosas diferentes, sendo que uma filha, segundo o próprio, não se encontra perfilhada pelo mesmo e reside na ... com a respetiva progenitora.
21. Ainda neste domínio, mantém um relacionamento amoroso, desde aproximadamente três anos, descrito por ambos como positiva e gratificante.
22. No que diz às questões ligadas aos comportamentos aditivos e dependência, o arguido perceciona como ultrapassados, pelo que, desde ... de 2020 que não é acompanhado pela ..., por desistência do programa de tratamento.
23. No meio social de inserção o agregado familiar descrito está negativamente referenciado, conotado a problemas de alcoolismo, precariedade económica, desorganização doméstica, consumo de estupefacientes e práticas criminais.
24. Todavia, não foram percecionados sentimentos de receio e/ou hostilidade à sua presença na comunidade.
25. Por outro lado, e conforme apurado junto da PSP, o arguido, nos anos de 2023 e 2024 encontra-se visado em outros processos na qualidade de suspeito.
26. Da análise da trajetória de vida do arguido, este apresenta alguns fatores de risco criminais (baixa escolarização, problemas de ocupação laboral, dificuldades financeiras, problemas nas relações familiares e de amizade, problemas com drogas), com repercussões ao nível do Sistema de Justiça, inclusive com registo de condenações privativas da liberdade.
27. Quanto aos factos pelos quais está acusado nos presentes autos, o arguido não se revê nos mesmos, pelo que, perspetiva por um desfecho isento de reparos para o próprio. No plano pessoal, aparenta ausência de autoanálise, juízo critico e descentração, com tendência para assumir uma postura de vitimização, inclusive no âmbito do Sistema de Justiça Penal.
28. Quanto a projetos individuais futuros, o arguido tem dificuldades em se projetar no futuro, traduzidas nas dificuldades em desenvolver esforços no sentido de lograr pela sua autonomia, sem dependência os mecanismos de proteção social (tal como acontece com a família de origem), os quais têm vindo a ser fundamentais para assegurar as necessidades de subsistência.
29. O arguido tem averbadas as seguintes condenações:
29.1. Por decisão de 6.11.2006, transitada em julgado a 21.11.2006, foi o arguido condenado no âmbito do processo n.º 153/05.1PFPDL, que correu termos no Tribunal Coletivo de ..., pela prática a ........2005 de 7 crimes de roubo consumados e 1 crime de roubo na forma tentada, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa por três anos.
29.2. Por decisão de 7.3.2013, transitada em julgado a 15.4.2013, foi o arguido condenado no âmbito do processo comum n.º 1047/10.4PBPDL, que correu termos no Juízo Local Criminal de Ponta Delgada, pela prática a …2010 de 1 crime de furto qualificado, na pena de 10 meses de prisão, suspensa por 1 ano, com obrigação de prestar 120 horas de trabalho a favor da comunidade.
Por decisão de 21.4.2015, transitada a 21.5.2015, foi a referida pena suspensa revogada e determinado o cumprimento efetivo de 10 meses de prisão.
29.3. Por decisão de 1.2.2013, transitada em julgado a 3.5.2013, foi o arguido condenado no âmbito do processo comum n.º 342/10.7PCRGR, que correu termos no Juízo Local Criminal de Ribeira Grande, pela prática a ........2010 de 1 crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 6 meses de prisão, substituídas por 180 dias de multa, à taxa diária de 6€.
Por decisão de 15.1.2015, transitada a 24.2.2015, foi a referida pena suspensa revogada e determinado o cumprimento efetivo de 6 meses de prisão.
29.4. Por decisão de 4.2.2014, transitada em julgado a 22.5.2014, foi o arguido condenado no âmbito do processo comum n.º 561/12.1TARGR, que correu termos no Juízo Local Criminal de Ribeira Grande, pela prática a ........2012 de 1 crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 5€.
Por decisão de 29.9.2014, transitada a 11.11.2014, foi a referida pena de multa convertida em 100 dias de prisão subsidiária e determinada a suspensão da referida execução, subordinada ao cumprimento pelo arguido de regras de conduta de caráter não económico, em termos a definir pela DGRSP.
29.5. Por decisão de 24.6.2015, transitada em julgado a 24.7.2015, foi o arguido condenado no âmbito do processo comum n.º 72/14.0PEPDL, que correu termos no Juízo Central Cível e Criminal de ..., pela prática a ........2014 de 1 crime de detenção de arma proibida, na pena de 2 anos; e 1 crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 3 anos e 3 meses; em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 6 meses.
29.6. Por decisão de 7.1.2025, transitada em julgado a 6.2.2025, foi o arguido condenado no âmbito do processo sumário n.º 279/24.2PTPDL, que correu termos no Juízo Local Criminal de ..., pela prática a ........2024 de 1 crime de condução sem habilitação legal, na pena de 8 meses de prisão, substituída por 240 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
[…]
IV.2. Da determinação da medida concreta da pena
Uma vez determinada a moldura abstrata de que deve partir o tribunal, cabe apreciar em que moldes deve ser determinada a medida concreta da pena, o que deve ser prosseguido segundo os termos previstos no art.º 40º e 71º do Código Penal.
[…]
Ora, relativamente à questão das exigências de prevenção geral, elas são elevadíssimas.
A jurisprudência é unânime nas necessidades agravadas de proteção do bem da saúde pública, significativamente prejudicada pelo crescimento exponencial do tráfico de droga na nossa sociedade.
Pese embora essas necessidades de prevenção geral se façam sentir com carácter mais acentuado nos crimes de tráfico de mais elevada perigosidade, como sejam os relativos à média e alta criminalidade, nem por isso a pequena criminalidade, vulgarmente designada por “tráfico de rua” deve desmerecer uma resposta igualmente convincente por parte do julgador, seja por estar frequentemente associado a elevadas taxas de desemprego, seja por corresponder a uma atividade de “dinheiro-fácil”, que potencializa grandes taxas de lucro e, desta maneira, alicia a penetração e perpetuação neste tipo de atividades criminosas.
Atenta a proliferação da prática deste tipo de condutas criminosas na nossa sociedade e a leveza com que vem sendo encarada a possibilidade de consumo deste tipo de estupefacientes, a par com as significativas consequências físicas e psicológicas que têm para a saúde dos cidadãos, não é possível dizer não serem intensas as exigências de integração da norma.
Como se pode ler no Ac. do STJ de “o “sentimento jurídico da comunidade” apelando, por um lado, a uma eliminação do tráfico de estupefacientes destruidor de vidas e famílias, por outro lado, também anseia por uma diminuição deste tipo de criminalidade e uma correspondente consciencialização de todos aqueles que se dedicam a estas práticas ilícitas para os efeitos altamente nefastos para a saúde e vida das pessoas, isto é, uma exigência acrescida de tutela dos bens jurídicos lesados com o crime” [Ac. do STJ de 2.10.2014, proc. n.º 45/12.8SWSLB.S1 (Rel. Helena Moniz), disponível em www.dgsi.pt].
Em termos de prevenção especial positiva, ou de ressocialização, pode o Tribunal dizer estarmos perante exigências elevadas de prevenção. Desde logo, porque o arguido não só negou integralmente os factos descritos na acusação, como procurou inverter o discurso, vitimizando-se de um alegado esquema engendrado pelas testemunhas para o penitenciar; não demonstrando o mínimo de autocensura pelos factos praticados e pela reiteração do crime pelo qual já veio a ser condenado.
Por outro lado, em face das informações relativas às suas condições socioeconómicas, o Tribunal não tem forma de concluir que o arguido se encontre social, familiar ou profissionalmente integrado na sociedade, antes pelo contrário. Apresenta uma precariedade evidente, quer ao nível familiar (com filhos a que não tem acesso), com vários crimes praticados no seio da comunidade e sem qualquer tipo de ocupação e tempo útil ou mesmo exercício de atividade remunerada há vários anos.
Dos factos resulta ainda que o arguido apresenta uma série de antecedentes criminais, tendo num deles sido condenado por crime de idêntica natureza. Seria de esperar que o agente, depois de já ter sido punido com penas de prisão suspensas e mesmo penas de prisão efetiva, tivesse procurado reordenar-se juridicamente e optar por deixar de ingressar na prática deste tipo de atividades, sobretudo depois de ter saído do Estabelecimento Prisional. Por outro lado, o arguido tem vindo a praticar uma série de crimes desde 2005, assumindo um passado criminal extenso e com parca vontade de se reordenar na sociedade.
Entendeu o Tribunal que o grau de ilicitude da conduta foi elevadíssimo. Pese embora as circunstâncias de facto não permitam qualificar o crime em presença sob a alçada do art.º 21º, a verdade é que dentro da margem de ilicitude prevista no art.º 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, os níveis são elevadíssimos.
Considera-se aqui:
- a própria forma de atuação criminosa pelo agente, que perdurou ao longo de, pelo menos, dois anos, com frequência diária;
- o número de vítimas que afetou (aqui, pelo menos três), embora as testemunhas refiram a existência de outros consumidores que ali se deslocavam, já que era o único que fornecia sintética no período noturno;
- a complexidade e densidade do esquema engendrado (veja-se que nas buscas efetuadas à sua residência não foi encontrado qualquer dose de estupefaciente, pelo que o arguido ou tinha conhecimento da possibilidade desta operação vir a decorrer, ou já engendrou um qualquer esquema para se prevenir perante ocorrências como a presente);
- o facto de estarmos a falar de tráfico de estupefacientes por “venda”, e não de simples “detenção” ou “transporte” de droga;
- a quantidade de droga que foi vendida pelo arguido, por dia, no decurso deste período, com o correspondente lucro que este logrou efetuar (estamos a falar de, pelo menos em relação a duas vítimas deste negócio – FF e DD – de quatro a cinco pacotes por dia) – sendo certo que duas testemunhas referem que o arguido era o único que fornecia estupefacientes de noite, existiam sempre várias pessoas a frequentar aquele espaço para consumir droga.
- Veja-se que o arguido até fornecia uma adaptada sala de chuto para que os seus “clientes” pudessem consumir longe dos olhos da polícia, descansados, dentro da sua própria viatura, que cedia para o efeito.
Entendeu o Tribunal que o nível de culpa da conduta foi elevado, uma vez que o arguido agiu com dolo direto, bem sabendo o que estava a fazer, que a venda de substâncias na quantidade em que eram e para os fins visados pelo agente era ilícito.
Assim, atenta a globalidade dos elementos acima ponderados que depõem a favor e contra o arguido, bem assim partindo o Tribunal da última pena aplicada ao arguido pela prática deste ilícito em particular (de 3 anos e 3 meses), entende o Tribunal que a sua conduta deverá ser sancionada com a pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão.
[…]
IV.4. Determinação penas de substituição
Uma vez que é a própria lei que prevê o poder-dever do juiz ponderar a hipótese de substituição da pena de prisão superior a 1 ano e inferior a 2 anos por uma pena suspensa (art.º 50º do Código Penal), a prestação de trabalho em favor da comunidade (art.º 58º e 59º do Código Penal) ou a prisão em regime de permanência e habitação (art.º 43º e 44º do Código Penal), sempre que o tribunal entender que nenhuma destas penas substitutivas colhem aplicação ao caso concreto, deverá fundamentá-lo de forma adequada, uma vez que o próprio art.º 70º do Código Penal estabelece uma preferência clara sobre estas situações em detrimento de penas privativas de liberdade.
Pode o tribunal suspender a execução da pena de prisão por uma outra medida por período inferior a esses 5 anos se, tendo em conta os elementos fixados no art.º 50º, n.º 1 do Código Penal (e art.º 492-495º do Código de Processo Penal) o tribunal entender que a mera ameaça de prisão é suficiente para assegurar as finalidades da punição.
Ora, relevam na apreciação pelo tribunal para conhecer da possibilidade de suspensão da execução os seguintes fatores: (i) personalidade do agente, (ii) condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime e (iii) as circunstâncias em que este se desenrolou.
Está aqui em causa a possibilidade de o Tribunal concluir que existe um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido quanto ao cumprimento do ordenamento penal e à capacidade deste em se orientar de novo pelo Direito. Trata-se de apreciar a existência de um real prognóstico favorável ao arguido, que vai ao encontro da finalidade de socialização em liberdade, de integração, de impedir que o delinquente, no futuro, decida orientar-se à prática de novos crimes, uma vez que “a suspensão da execução da pena tem sido entendida como uma medida de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido" [Ac. do TRC, 24.01.2018, proc. n.º 50/17.8GBTCS.C1 (Rel. Helena Bolieiro), disponível em www.dgsi.pt].
A convicção de que a suspensão serve os propósitos do ordenamento é assumida não sem a ausência de risco; é necessário que o agente aceite e sobretudo interiorize que a suspensão da pena como uma oportunidade que lhe é dada de regressar à sociedade ileso, desgarrando-se da vida que anteriormente levou e pautando a sua futura conduta de forma fiel ao Direito [Ac. do STJ de 21.1.2015, proc. n.º 12/09.9GDODM.Sl (Rel. Paulo Borges), disponível em www.dgsi.pt].
Ora, dos factos dados como provados no presente processo, pouco resulta para que se possa concluir pela possibilidade de suspensão.
Como bem se conclui das condições socioeconómicas do arguido, verifica-se que o arguido é um indivíduo que, ao longo do tempo, tem evidenciado fraca motivação para a consolidação de um efetivo processo de mudança comportamental, patente na variedade e diversidade da sua prática criminal e ainda na dificuldade em abandonar definitivamente o consumo de drogas, que tem sido um fator desestabilizador a todos os níveis.
O arguido apresenta baixíssimo nível de escolarização, o que lhe dificultam a possibilidade de ambicionar a diferente integração profissional; a qual tem vindo a manifestar-se de forma claramente precária, temporária, irregular e informal, não lhe sendo, sequer, conhecidos hábitos laborais regulares.
Encontra-se na dependência económica de rendimento social de inserção.
Está inserido num grupo de pares associados à delinquência e a estilo de vida de rua, com comportamentos de risco e criminais; com dependência do consumo de estupefacientes desde muito jovem (apenas com 17 anos). Já recebeu acompanhamento em clínicas de tratamento à adição de estupefacientes, mas evidencia, igualmente, histórico de abandono.
Encontra-se familiarmente desintegrado. Em jovem foi forçado a integrar o núcleo familiar da sua tia; aos 22 anos juntou-se maritalmente com uma menor de idade, com a qual veio a ter dois filhos (um deles tendo vindo a falecer e o segundo à guarda de um dos avós); atualmente partilhando residência com um agregado familiar pobre, dependente de apoios sociais e sem realizar qualquer tipo de atividade profissional remunerada.
A nível pessoal, o arguido não se revê nos mesmos, pelo que, perspetiva por um desfecho isento de reparos para o próprio, aparenta ausência de autoanálise, juízo critico e descentração, com tendência para assumir uma postura de vitimização, inclusive no âmbito do Sistema de Justiça Penal, tem dificuldades em se projetar no futuro, perante a dificuldade em desenvolver esforços no sentido de lograr pela sua autonomia, sem dependência os mecanismos de proteção social.
O seu passado criminal e o cumprimento de anteriores medidas na comunidade, parece não terem surtido o efeito dissuasor pretendido, revelando o arguido incapacidade em planificar estratégias que promovam uma mudança de conduta e um comportamento em conformidade com as normas sociais e jurídicas vigentes.
A fragilidade do suporte familiar, as limitadas competências sociais e pessoais, o padrão de funcionamento, a ociosidade, o longo historial associado à toxicodependência, aparentemente não ultrapassado, a ausência de consciência crítica, os antecedentes criminais, o facto de ser referenciado pela prática de inúmeros ilícitos criminais, a resistência à intervenção externa e a fraca motivação para a mudança, são fatores de risco em termos de reinserção social.
Já para não falar que o arguido já teve a cumprir várias penas de prisão (processo n.º 153/05.1PFPDL, 1047/10.4PBPDL, 342/10.7PCRGR, 72/14.0PEPDL), muitas delas revogadas ou convertidas em prisão subsidiária (processo n.º 1047/10.4PBPDL, 342/10.7PCRGR, 561/12.1TARGR), outras penas efetivas (processo n.º 72/14.0PEPDL), sem que isso o tivesse inibido de praticar novos ilícitos.
Aquilo que verdadeiramente ressalta dos elementos relacionados à prevenção especial é que o arguido não crê na eficiência e eficácia do sistema penal. Não só não revela qualquer tipo de consciência crítica para o ilícito que cometeu e para o bem jurídico que afetou, como já é a segunda vez que vai condenado pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes, outras tantas por crimes de diferente natureza e diz continuar a consumir ativamente as referidas substâncias ilícitas.
Esta circunstância não só por si, mas quando associada ao passado criminoso de tráfico do arguido, leva o Tribunal a acreditar que são elevadas as possibilidades do arguido regressar à prática de crimes de idêntica natureza caso a pena de prisão seja suspensa na sua execução.
Face ao exposto, determina-se que esta pena não seja suspensa na sua execução.”
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IV. Fundamentação
iv.1. da (não) suspensão da execução da pena de prisão
Pugna o recorrente pela suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado, alegando que, “apesar de ser de condição social baixa, tem uma família que apresenta uma dinâmica intrafamiliar positiva e coesa, que (…) certamente apoiará o arguido na sua reinserção social”, mais anotando que “é verdade que o arguido já foi condenado por vários crimes, mas também é verdade que o arguido “… ter revelado vontade de mudar de vida …”, e que a condenação anterior por crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, foram por factos de 2014, ou seja, há 11 anos atrás, e nesse período não cometeu qualquer ilícito da mesma natureza”.
Com base em tais argumentos, expressa a opinião de que a sentença recorrida não justificou em termos convincentes o afastamento da aplicação de penas de caracter não detentivo, que lhe parecem cabíveis no caso.
Cumpre apreciar.
Preliminarmente, importa lembrar, como se referiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.05.20212, no que se reporta à decisão sobre a pena, mormente a sua medida, “que os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando deteta incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.”
Neste contexto, é de considerar que só em caso de desproporcionalidade manifesta na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª instância alterando o quantum da pena concreta.
Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.
A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
O juiz começa por determinar a moldura penal abstrata e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.
Estabelece o artigo 71º, nº 1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O nº 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o nº 3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375º, nº1, do Código de Processo Penal, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer3.
O recorrente não questiona a medida da pena fixada na decisão recorrida, e, tendo em conta os parâmetros legais que orientam a operação de determinação da pena e vistas as circunstâncias apuradas nos autos, merece a nossa inteira adesão o raciocínio exposto pelo Tribunal a quo e, bem assim, a concreta pena escolhida.
No que se refere à possibilidade de tal pena de prisão não ser efetivamente cumprida:
Sabemos que subjacente à decisão de suspensão da execução da pena de prisão tem de estar um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido, ou seja, quando se possa prever – no momento em que essa decisão é tomada – que o mesmo não cometerá futuros crimes.
No caso, tendo sido fixada uma pena de 4 anos e 3 meses de prisão (portanto, não superior a 5 anos de prisão), é, em abstrato, admissível a aplicação de tal pena de substituição.
Nos termos previstos no artigo 50º, nº 1 do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Como se ponderou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.20214, “Para a aplicação da suspensão da execução da pena (artigo 50.º, do CP), a lei define um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) e estabelece pressupostos subjectivos, determinados por finalidades político-criminais – os que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente.
Trata-se, de alcançar a socialização, prevenindo a reincidência.
Assim, sempre que o julgador puder formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial sobre a possibilidade de ressocialização do arguido, deverá deixar de decretar a execução da pena.
Estão em causa, não considerações sobre a culpa, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção.
Pretende-se, como sublinha, com incontornável autoridade, o Professor Figueiredo Dias, «o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correcção, melhora ou – ainda menos – metanóia das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É, em suma, como se exprime Zipf, uma questão de legalidade e não de moralidade que aqui está em causa. Ou como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência».
Depois de se optar por uma pena detentiva, à luz das considerações e com os critérios legais sobre-expostos, importa, pois, determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada, a partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, devendo negar-se a suspensão sempre que, fundadamente, seja de duvidar dessa capacidade.
Nos termos prevenidos no artigo 50.º, do CP, a averiguação de tal capacidade deve ser feita em concreto, através da análise da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou.
Se, dessa análise, resultar que é possível esperar que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são idóneos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, deverá ser decretada a suspensão da execução da pena.”
Por outro lado, como dá nota Vaz Pato, “a respeito da pena aplicável a este crime [de tráfico de estupefacientes], a jurisprudência tem acentuado que as exigências de prevenção geral, positiva e negativa, decorrentes da nocividade social do tráfico de estupefacientes, da dimensão da ameaça que representa e da censura comunitária que suscita, reclamam, de um modo geral, uma punição severa”. E mesmo relativamente a penas que admitem substituição, continua o autor: “Essas exigências desaconselham, de um modo geral, a suspensão de execução da pena de prisão. (…) Assim, mesmo quando estejam verificados outros pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão, designadamente os relativos à prevenção especial positiva e à não desinserção social do condenado, as exigências de prevenção geral, positiva e negativa, a necessidade de reforço da confiança comunitária na validade e integridade das normas e valores por estas protegidos, poderão desaconselhar essa suspensão, no âmbito do crime tipificado no art. 21º, nº 1, em apreço”5.
No caso, como se vê da transcrição supra, a este respeito, a decisão recorrida destacou a total ausência de motivação para a mudança que se observa no arguido, a falta de quaisquer hábitos de trabalho e a consequente dependência de apoios sociais e, bem assim, o desamparo familiar. A isto vem somar-se a total ausência de juízo crítico e descentração, com dificuldades em se projetar no futuro ou desenvolver esforços para lograr autonomia.
Como lapidarmente se referiu na decisão recorrida: “[a] fragilidade do suporte familiar, as limitadas competências sociais e pessoais, o padrão de funcionamento, a ociosidade, o longo historial associado à toxicodependência, aparentemente não ultrapassado, a ausência de consciência crítica, os antecedentes criminais, o facto de ser referenciado pela prática de inúmeros ilícitos criminais, a resistência à intervenção externa e a fraca motivação para a mudança, são fatores de risco em termos de reinserção social.”
Face ao que evola dos autos, não vemos que tal avaliação se mostre desajustada da realidade que aqui enfrentamos.
Neste contexto, as afirmações produzidas no recurso não passam de opiniões, sem qualquer apoio nos factos apurados nos presentes autos: lamentavelmente, não é verdade que o arguido possa contar com um apoio securizante por parte da sua família, nem esta se mostrou, durante toda a sua vida, capaz de atuar com efeito contentor, não se vislumbrando que o seja agora.
Como acima se apontou, as exigências de prevenção geral quanto a este tipo de criminalidade – mesmo no caso do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade – são muito fortes, em face da enorme proliferação de crimes de natureza idêntica e da danosidade extrema associada à sua prática, considerando que as drogas são altamente tóxicas e o seu consumo, para além da destruição física e mental do organismo humano, potencia a prática de condutas delituosas e o aumento da delinquência ligada à obtenção de bens e/ou valores que permitam a aquisição de tais substâncias, além de disfuncionalidades várias nas dinâmicas familiares das pessoas dependentes deste tipo de substâncias, com elevadíssimos custos pessoais e sociais.
Adicionalmente, importa ter presentes as obrigações internacionais assumidas por Portugal nesta matéria, por via de instrumentos jurídicos de direito internacional vinculativos para o Estado Português e consequentemente para os correspondentes órgãos de soberania, mormente dos comandos normativos do ponto 6 do artigo 3º da Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 19.12.1988 (Viena), aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 29/91, de 20.6.1991 e sob os pontos 5 e 9 e artigo 4º, nº 1, da Decisão-Quadro nº 2004/757/JAI do Conselho da União Europeia, de 25.10.2004, que exigem dos Estados contratantes a garantia de que as infrações relacionadas com o tráfico de droga sejam puníveis com sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas, postulando, por regra, a cominação aos correspetivos responsáveis de medidas penais efetivamente privativas da liberdade.
Cabe, por outro lado, manter presente que, tal como se deu nota no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 03.05.20166 «A admissão da suspensão da execução da pena de cinco anos de prisão [ou mesmo de 4 anos e 3 meses de prisão] – que já nada tem a ver com uma reacção humanista contra os malefícios das penas curtas de prisão, mas tão somente reflecte um mal-estar do legislador perante a pena carcerária –, como refere o Ac. do S.T.J., proferido no Proc. nº 3926/08 - 3.ª Secção (Relator Ex.mo Conselheiro Santos Cabral, sumário acessível em www.stj.pt) “… deve necessariamente traduzir-se num redobrado e atento exame da situação concreta, face às exigências da prevenção geral, perante penas que correspondem a crimes que de forma alguma aceitam a designação de criminalidade menor. É uma questão de confiança da população na administração da justiça ou reprovação da comunidade perante a tolerância injustificada pelas circunstâncias do caso concreto na não execução da pena de prisão. A suspensão da mesma pena deve afigurar-se como compreensível e admissível perante o sentido jurídico da comunidade. A lei não o diz, mas é uma questão de razoabilidade e lógica jurídica dimanada dos princípios a afirmação de que, em termos de prevenção especial, não tem o mesmo significado na aferição da possibilidade de suspensão de execução da pena uma pena de 6 meses ou uma pena de 4 anos de prisão”».
Por último: como refere Figueiredo Dias (Direito Penal Português, pág. 344) “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável... à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial e socialização - a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime, pois estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade, que ilumina o instituto em análise.”
In casu, são notoriamente acentuadas as necessidades de prevenção geral, como decorre do que já se deixou dito, sendo que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA jamais seria compreendida pela comunidade, tendo em conta a reiteração dos comportamentos, e o lapso de tempo durante o qual foram mantidos por um lado, e a quantidade de droga ao longo do tempo detida e transacionada.
São de subscrever as considerações do Tribunal recorrido, quando adequadamente releva a circunstância de o arguido não evidenciar consciência do seu estado de toxicodependência, a par da ausência de qualquer ocupação lícita ou concreto projeto de trabalho, a denunciar o seríssimo risco de que volte a praticar factos da mesma natureza daqueles por que foi condenado nestes autos, inviabilizando de forma clara a formulação de um prognóstico favorável no sentido de que irá adotar uma vida conforme ao direito.
Os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada, reclamam, assim, uma intervenção forte do direito penal sancionatório, por forma a que a aplicação da pena responda às necessidades de tutela dos bens jurídicos, assegurando a manutenção, apesar da violação da norma, da confiança comunitária na prevalência do direito, honrando também os compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português.
Não se evidencia, no contexto de vida do arguido, que existam condições mínimas para crer que a censura da condenação e a ameaça da execução da pena possam surtir qualquer efeito no afastamento do mesmo da prática de crimes no futuro. Uma suspensão da execução da pena de prisão em circunstâncias como as que temos em presença, não deixaria de ser percecionada, pelo arguido e pela comunidade, como manifesta impunidade de um comportamento que todos reconhecem como acentuadamente nefasto.
Motivos que chegam para manter a condenação do arguido em prisão efetiva, nenhuma censura merecendo a decisão recorrida.
O recurso improcede.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando nos seus precisos termos a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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Lisboa, 21 de outubro de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
Ana Lúcia Gordinho
Ana Cristina Cardoso
____________________________________________
1. Cf. Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, no processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
2. No processo nº 10/18.1PELRA.S1, Relatora: Conselheira Ana Barata Brito, acessível em www.dgsi.pt.
3. Cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, págs. 227 e segs..
4. No processo nº 381/16.4GAMMC.C1.S1, Relator: Conselheiro António Clemente Lima, acessível em www.dgsi.pt.
5. Comentário das Leis Penais Extravagantes, Org. Paulo Pinto de Albuquerque/José Branco, Vol. 2, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 494.
6. No processo nº 68/15.5ZFLSB.L1-5, Relator: Desembargador Vieira Lamim, acessível em www.dgsi.pt.