Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | IVO NELSON CAIRES B. ROSA | ||
| Descritores: | APREENSÃO DE BENS DIREITO DE PROPRIEDADE ARGUIÇÃO DE NULIDADE ARGUIÇÃO DE IRREGULARIDADE | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/09/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE | ||
| Sumário: | Sumário: (da responsabilidade do Relator) I. Quanto às irregularidades processuais, assim como quanto às nulidades processuais, com exceção das nulidades insanáveis, as mesmas não podem, no âmbito do processo penal, ser arguidas em sede de recurso, mas sim em sede de reclamação perante o juiz do processo e só após decisão proferida por este sobre tal nulidade é que poderá eventualmente haver recurso. II. Para restringir direitos fundamentais, como é o caso do direito de propriedade, é necessário mais do que meras suspeitas, uma vez que a lei, artigo 181º do CPP, exige a presença de fundadas razões para crer que as quantias em causa estão relacionadas com um crime, que é o mesmo que dizer, indícios fundados e não meras suspeitas. III. A apreensão é uma medida de obtenção de prova, que visa, acima de tudo, a guarda e a preservação de vestígios do crime. IV. Para além desta finalidade, a apreensão visa, também, finalidades preventivas e conservatórias. É o que acontece quando, com a apreensão, se pretende evitar que objetos que serviram ou estavam destinados para a prática de um crime venham a ser utilizados no cometimento de novos crimes, que por essa via se previnem. V. A apreensão pode, ainda, ter um propósito de conservar determinados bens ou objetos que consistem no produto do crime. VI. O fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias do pagamento de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime, constitui fundamento legal para lançar mão das medidas de garantia patrimonial previstas nos artigos 227º, 228 do CPP e artº 10º da Lei 5/2002, de 11-02 e não para a apreensão ao abrigo do disposto no artigo 181º do CPP. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório. Nos autos acima identificados foi proferida, no âmbito de atos jurisdicionais em sede de inquérito (artigo 178º nº 8 do CPP), o despacho do JIC, datado de ...-...-2024, através do qual Tribunal aquo indeferiu o pedido de devolução dos objetos apreendidos no decurso de busca efetuada ao cofre bancário localizado no ... — balcão sito na ... (em Lisboa) realizada no dia .... *** Não se conformando com essa decisão a arguida AA recorreu para este Tribunal da Relação formulado as seguintes conclusões (transcrição): 1. É emitido um mandado de busca no dia ... de ... de 2024, tendo como local identificado de busca o estabelecimento ..., cofre bancário nº ..., associado ao contrato nº …-001 e à conta com o nº 0003...., domiciliada no ..., alugado por BB e acedido por CC, localizado no balcão 5141 (...), sito na ...; 2. A busca foi realizada no dia ... de ... de 2024; 3. A qual tinha como objetivo a apreensão de documentação referente a transações de sociedades imobiliárias e ás correspondentes movimentações financeiras - cuja palavra “correspondentes” é clara, ou seja, movimentações financeiras relacionadas com as transações de sociedades imobiliárias objeto dos autos; 4. E outros objetos suscetíveis de servirem de prova dessas transações e movimentações financeiras e sociedades imobiliárias; 5. Acontece que, como verificado na descrição do auto de ocorrência junto ao auto de apreensão fls 1181 e seguintes, cofre nº ..., associado ao contrato …776, o mesmo é completamente díspar do identificado no mandado de busca; 6. Metade dos bens que se encontravam nesse cofre são propriedade da Recorrente; 7. Uma vez que lhe foram doados quando fez 18 anos de idade; 8. Sendo que os objetos ali presentes têm a sua origem devidamente identificada e certificada - tendo sido adquiridos pelo pai da ora Recorrente nos anos 70 do século passado; 9. Mais de 30 anos, antes dos factos aqui em investigação; 10. Documentos esse também apreendidos; 11. A ora Recorrente só os tinha naquele cofre, e não na sua posse, por uma questão de segurança; 12. E não pode a mesma ser prejudicada só pela sua condição de arguida – quando nem se quer se tem conhecimento do real valor em dívida e/ou a sua responsabilidade pessoal; 13. A Recorrente não faz parte da lista de devedores à Fazenda Pública – não sendo, na presente data, devedora a essa entidade de qualquer valor; 14. Pelo que, não há fundamento para manter a apreensão dos seus bens que correspondem a metade do que foi apreendido, nem os mesmos servem (tendo em conta a sua origem demonstrada nos autos) como elementos de prova, lucro ou vantagem de qualquer transação realizada nos presentes autos; 15. Nem pode a apreensão servir como medida cautelar para garantir futuros pagamentos à Fazenda Pública, uma vez que não é o mecanismo idóneo para tal a termos legais; 16. Sendo que a ora Recorrente só a ... do presente ano de ... foi notificada do mandado de apreensão; 17. Tendo arguido a nulidade do mesmo nos termos do art. 120º nº 2 al d) do CPP, por inexistência de título que legitime a referida busca por violação do art. 174º nº 3 do mesmo diploma legal; 18. A busca em entidades bancárias tem por base o princípio constitucional de proteção da vida privada, nos termos do art. 26º da CRP; 19. E é por essa razão que o mesmo tem uma proteção reforçada no nosso ordenamento jurídico obrigando regras muito restritas, nomeadamente a obrigação de presença do MMº juiz de instrução na diligência de busca; 20. Ora, não é possível, ter um mandado de busca para um local específico (onde se encontra devidamente identificado um endereço, uma entidade, um cofre, um contrato e uma conta) e depois proceder a uma busca num balcão diferente da entidade identificada (ou seja, outro local, outro cofre, outro contrato); 21. Tal ato é manifestamente uma violação da vida privada, nos termos do art. 26º da CRP, estando perante uma prova proibida nos termos do art. 126º nº 3 do CPP, por tal aquisição de prova não estar devidamente legitimado nos termos do art. 174º nº 3 e 181º nº 1 do CPP; 22. Pelo que, por não ter levantado a apreensão e devolvido os bens propriedade da ora Recorrente – violou o Tribunal os art.º 186º nº 1 e 120 nº 2 al d) do CPP; 23. O douto Tribunal ao ter realizado uma busca num cofre sem existir mandado e busca subjacente violou o previsto no art. 120º nº 2 al. d), 174º nº 3 e 181º nº 1 todo do CPP; 24. Não obstante, e por se estar perante uma matéria de reserva privada, a obtenção de prova pela via descrita (sem mandado), leva-nos a estar perante uma prova proibida e, por conseguinte, nula (nulidade esta insanável) – nos termos do art. 126º nº 1 e nº 3 do CPP, por violação do art. 26º da CRP. *** Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal o MP pronunciou-se pela improcedência do recurso tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição): 1-A recorrente DD não faz qualquer prova do direito que invoca e o cofre bancário onde foram apreendidos os objetos em causa é unicamente titulado pelas arguidas BB e AA e apenas podia ser acedido por esta. 2-Por DD não ser cotitular do contrato, nem ter a posse dos objetos, também não beneficia de qualquer presunção iuris tantum quanto a ser a coproprietária dos bens apreendidos em cofre bancário; 2-A recorrente DD carece, assim, de legitimidade processual e não tem qualquer interesse legítimo em agir, pelo que o recurso por esta apresentado, por não preencher as previsões dispostas no art.° 401.°, n.°s 1, alíneas a) a d), e n.° 2, do C.P.P., não deve ser conhecido; 3-Os arguidos e a ora recorrente DD suscitaram a invalidade da busca ao cofre bancário e a nulidade de prova no dia ...-...-2025 (ou seja, no dia anterior ao da apresentação do presente recurso) — cfr. folhas 1694 a 1697 v.° e 1698 a 1701 dos autos principais; 4-Sobre essas pretensões incidiu o douto despacho de folhas 1734 a 1736, exarado pelo meritíssimo Juiz no dia ...-...-2025, onde doutamente decidiu: - Carecer DD de legitimidade para vir alegar o que quer que fosse relativamente à busca e apreensão, por não ser titular do Contrato de Aluguer de Cofre n.° …766; Não padecerem de qualquer nulidade a busca ao cofre e a apreensão subsequente; 5-O supra referido despacho não foi objeto de recurso por qualquer dos intervenientes processuais, pelo que transitou em julgado, com todas as legais consequências quanto às questões aí apreciadas; 6-Em consequência, os recursos não deverão ser, nessa parte, conhecidos, por manifestamente violarem a autoridade de caso julgado; 7-No decurso da operação de buscas, apurou-se que a arguida BB era titular de contrato de aluguer de cofre (juntamente com a sua filha e ora arguida AA), com o n.° …766, situado no balcão da Av…. do ...; 8-Após deslocação ao mencionado local, perante o meritíssimo Juiz de Instrução Criminal (que presidiu à diligência), a magistrada do Ministério Público cotitular dos autos e dois inspetores tributários, a arguida BB autorizou expressamente e consentiu a busca efetuada ao cofre acima identificado, tendo sido apreendidos diversos objetos em ouro (lingotes e moedas), posteriormente avaliados em cerca de 200.000,00 €; 9-Inexiste, assim, qualquer nulidade da busca ao cofre bancário porquanto a mesma foi autorizada, através de expresso consentimento, por quem tinha a disponibilidade do mencionado cofre, ou seja, em concreto pela arguida BB, tendo sido respeitadas todas as formalidades legalmente impostas para os atos, em estrita obediência ao art.° 174.°, n.° 5, alínea b), do Código de Processo Penal, norma que expressamente afasta o cumprimento do art.° 174.°, n.° 3, do mesmo diploma legal. 10-Em consequência, entende-se que, quer a busca, quer a sequente apreensão, não violaram qualquer disposição legal; 11-12-No despacho a quo, entendeu o meritíssimo Juiz que "(...) O levantamento da apreensão e a consequente devolução dos bens aos arguidos teria como consequência a diminuição das garantias de pagamento dos valores a liquidar pela Fazendo Nacional a título de imposto, pelo que se indefere o requerido pelos arguidos, mantendo-se, nos seus precisos termos, a apreensão dos mencionados bens/objectos, acima referidos. (...)"; 12-Nos autos principais investiga-se, em suma, a atividade dos arguidos CC, BB (casados entre si) e AA (filha de ambos) de constituição e posterior venda, por aqueles, de várias sociedades imobiliárias com a mesma morada de sede social, sem afetação efetiva de imóveis e com denominações sociais sem aparente ligação a objetos sociais imobiliários; 13-Os arguidos, entre o demais, constituem as mencionadas sociedades comerciais e diligenciam pela obtenção, por estas, do benefício fiscal de isenção de pagamento de IMT (Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Bens Imóveis) em futuras transações de imóveis, com o único objetivo de procederem à venda das mesmas a pessoas singulares ou coletivas, por forma a que estas possam beneficiar, de forma imediata, sem terem de adquirir imóveis ou aguardar pelo ano fiscal seguinte, do referido benefício fiscal em sede de IMT, sendo esta a primordial ou única razão para a sua aquisição; 14-A factualidade em causa, abaixo melhor descrita, é suscetível de integrar, em abstrato, a prática de crimes de fraude fiscal agravado, na forma continuada, previstos e punidos, conjugadamente, pelos artigos 103°, n° 1, al. a) ou b), n.°s 2 e 3, 104°, n° 2, alínea b), do RGIT, e art. 30° do Código Penal e de um crime de branqueamento, previsto e punido pelo art. 368°-A do Código Penal, imputados àqueles arguidos; 15-Existem fortíssimos indícios nos autos de que os arguidos CC, BB e AA omitiram nas suas declarações de IRS elevadas verbas sujeitas a tal imposto, tendo obtido para si uma vantagem patrimonial mínima global que se estima, no mínimo, na quantia de 323.862,50 €; 16-As condutas processuais do arguido CC criam a convicção de que os objetos cuja devolução se requer são da sua propriedade e não das ora recorrentes, pois atuou como proprietário dos bens apreendidos, tendo somente alterado a sua posição e vindo informar que tais objetos haviam sido doados às ora recorrentes quando a sua pretensão foi sendo sucessivamente indeferida; 18-A manutenção da apreensão visa salvaguardar o efetivo prejuízo causado ao Estado pelos arguidos, sendo os restantes valores objeto de medida de indisponibilidade patrimonial insuficientes para garantir essa necessidade cautelar. *** Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado e com efeito suspensivo. *** Neste Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Mº. Pº aderiu aos fundamentos do recurso da 1ª instância. *** Colhidos os vistos legais foi o processo à conferência, onde se deliberou nos termos vertidos neste Acórdão. *** II - Delimitação do objeto do recurso. Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]. Desta forma, tendo presentes tais conclusões é a seguintes a questão a apreciar: Nulidade da busca realizada no dia ... de ... de 2024. Restituição dos objetos/bens apreendidos na busca efetuada à dependência do ..., situada na .... III- Fundamentação O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição): “I - Por requerimento junto a fls. 1 a 4, vieram os arguidos CC, BB e AA requerer: - que seja determinada a imediata devolução dos objetos (barras e moedas de ouro), aprendidos no decurso da busca efetuada á dependência do ..., situada na ...; e (ii.) – a imediata notificação aos arguidos e à interveniente acidental do auto de busca e apreensão aqui em questão. Por promoção junta a fls. 13 a 33, o Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento do requerido. Apreciando e decidindo, importa salientar que, como resulta do auto de apreensão de fls. 1181 a 1183, no dia .../.../2024, na sequência da busca efetuada à dependência do ..., situada na ..., foram apreendidas, designadamente, as coleções de moedas, aparentando ser de ouro, e as coleções de lingotes, aparentando ser de ouro, a que aí é feita referência. Dispõe o art. 181.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal, que “O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objetos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome”. Resulta da mera leitura deste preceito, que a suscetibilidade de apreensão nele prevista não se exaure nas virtualidades probatórias dos objetos à mesma sujeitas, abrangendo outros aspetos, como o de constituírem produto, lucro, preço ou recompensa de um crime. Tal significa que, embora a apreensão se destine, fundamentalmente, a conservar provas reais, visa também garantir a efetivação da privação definitiva do bem. No caso vertente, e como salienta o Ministério Público na promoção que antecede, a apreensão efetuada reveste natureza cautelar, porquanto a prova até ao momento produzida, no decurso da investigação, indicia que, em concretização da atividade criminosa, os arguidos auferiram elevadas vantagens patrimoniais em sede de IRS, que, pese embora se encontrem, ainda, em fase de apuramento, se cifram em, pelo menos € 323.862,50, correspondente ao valor do imposto em falta, e em que a Fazenda Nacional se encontra lesada. O levantamento da apreensão e a consequente devolução dos bens aos arguidos teria como consequência a diminuição das garantias de pagamento dos valores a liquidar pela Fazendo Nacional a título de imposto, pelo que se indefere o requerido pelos arguidos, mantendo-se, nos seus precisos termos, a apreensão dos mencionados bens/objetos, acima referidos.” *** Cumpre apreciar os fundamentos do recurso. A primeira questão a apreciar prende-se com a nulidade da busca. Alega a recorrente AA que só a ... do presente ano de ... foi notificada do mandado de apreensão tendo invocado a nulidade do mesmo, nos termos do art. 120º nº 2 al d) do CPP, por inexistência de título que legitime a referida busca por violação do art. 174º nº 3 do mesmo diploma legal. Mais alegou que o Tribunal recorrido ao ter realizado uma busca num cofre sem existir mandado e busca subjacente violou o previsto no art. 120º nº 2 al. d), 174º nº 3 e 181º nº 1 todo do CPP e por se estar perante uma matéria de reserva privada, a obtenção de prova pela via descrita (sem mandado), leva-nos a estar perante uma prova proibida e, por conseguinte, nula (nulidade esta insanável) – nos termos do art. 126º nº 1 e nº 3 do CPP, por violação do art. 26º da CRP. Cumpre precisar, antes de mais, que o despacho recorrido é o despacho de ...-...-2024, através do qual o tribunal a quo, na sequência do requerimento da recorrente de ...-...-2024, indeferiu o requerido pela ora recorrente, referente aos objetos apreendidos na busca realizada ao estabelecimento bancário no dia ... de ... de 2024. Como a própria recorrente alega, só em ... é que foi notificada do mandado de apreensão tendo arguido a nulidade do mesmo termos do art. 120º nº 2 al d) do CPP. Daqui resulta, por uma questão de coerência, que sendo o despacho recorrido anterior (...-...-2024) à data em que a recorrente veio invocar a nulidade da busca, (após ...-...-2025), nunca o despacho recorrido poderia ter-se pronunciado sobre algo que ainda não existia. Cumpre referir, como sobresai dos autos principais, a questão relativa a nulidade da busca foi suscitada, através de requerimento apresentada no dia anterior à interposição do presente recurso, ou seja, no dia ...-...-2025. Deste modo, como facilmente se constata, a nulidade invocada em sede de recurso não foi objeto de apreciação por parte do tribunal de 1ª instância no despacho judicial de ...-...-2024 agora em recurso. Ora, tratando-se de uma nulidade processual a mesma, por não se enquadrar entre as nulidades insanáveis previstas no artigo 119º do CPP e por o legislador não a cominar como tal, constitui uma nulidade sanável sujeita ao regime de arguição previsto no artigo 120 nº 3 do CPP e ao regime de sanação previsto no artigo 121º do mesmo diploma legal. Deste modo, estando a nulidade em causa sujeita ao regime de invocação e sanação das nulidades em geral, decorrente dos arts. 120.° e 121º, do CPP, pelo que tinha de ser invocada no prazo de dez dias (art. 105.°, n.º 1, do CPP), se outra coisa não resultar do nº 3 do mesmo art.. 120.°, nomeadamente da sua alínea a), que impõe que a nulidade deve ser arguida «antes que o ato esteja terminado», tratando-se de nulidade de ato a que o interessado assista. Há que dizer que, quanto às irregularidades processuais, assim como quanto às nulidades processuais, com exceção das nulidades insanáveis, as mesmas não podem, no âmbito do processo penal, ser arguidas em sede de recurso, mas sim em sede de reclamação perante o juiz do processo e só após decisão proferida por este sobre tal nulidade é que poderá eventualmente haver recurso. Conforme resulta do artigo 379º nº 2 do CPP, as nulidades da sentença, por terem um regime distinto das restantes nulidades processuais, é que são normalmente arguidas e conhecidas em sede de recurso. Assim sendo, não compete ao Tribunal da Relação, como pretende a recorrente, conhecer, em primeira mão, da nulidade processual em causa, tanto mais que a existir recurso, como existiu no caso concreto, nunca poderia ter como fundamento a prática desses vícios processuais, mas sim sindicar, em sede de recurso, a decisão do juiz de instrução criminal que incidir sobre vícios processuais perante ele invocados. Em suma, a apreciação, em recurso, da nulidade da busca pressupõe que tal nulidade foi previamente arguida perante o tribunal a quo e por este decidida. Se essa questão não foi suscitada na 1.ª instância, nem o tribunal recorrido sobre ela se pronunciou, não pode a mesma ser suscitada na motivação do recurso que tem por objeto a apreciação da decisão judicial, proferida no incidente judicial previsto no artigo 178º nº 8 do CPP, que indeferiu a restituição de objetos apreendidos. Nesta conformidade, por o Tribunal da Relação ser materialmente incompetente para conhecer, em primeira mão, de nulidades processuais sanáveis relativa a atos processuais da primeira instância, a pretensão da recorrente terá de improceder quanto a este segmento do recurso. Em todo o caso, resulta da certidão que instruiu o presente recurso que o tribunal de 1ª instância tomou posição, no dia ...-...-2025, quanto à nulidade da busca suscitada pela recorrente, embora não resulte da certidão se essa decisão já transitou em julgado. Cumpre agora apreciar a segunda questão suscitada pela recorrente. Os objetos em causa foram apreendidos na sequência da busca ao estabelecimento bancário - ... — balcão sito na ... (em Lisboa)- realizada no dia ..., conforme auto de busca e apreensão junto com a certidão deste recurso. Da certidão que instrriu o presente recurso consta o contrato de aluguer n.° …766 referente ao cofre buscado, datado de ...-...-2024, o qual é titulado pelas arguidas BB e AA e apenas podia ser acedido por estas (cfr. Cláusula 3.5 do contrato, a folhas 1726 v.°). Por a arguida AA ser cotitular do contrato e por, juntamete com a arguida BB e AA, ter a posse dos objetos em causa, faz com que beneficie da presenunção iuris tantum quanto a ser a coproprietária dos bens apreendidos no cofre em causa. Nos termos do artigo 178º, nº 1, do Código de Processo Penal, “são apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova”. Daqui decorre, antes de mais, que a apreensão é uma medida de obtenção de prova, que visa, acima de tudo, a guarda e a preservação de vestígios do crime. Para além desta finalidade, a apreensão visa, também, finalidades preventivas e conservatórias. É o que acontece quando, com a apreensão, se pretende evitar que objetos que serviram ou estavam destinados para a prática de um crime venham a ser utilizados no cometimento de novos crimes, que por essa via se previnem. A apreensão pode, ainda, ter um propósito de conservar determinados bens ou objetos que consistem no produto do crime. Por sua vez, dispõe o artigo 181º nº 1 do CPP que: “O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objetos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome”. O disposto no art. 181.° do Código de Processo Penal exige, tal como acontece com o artigo 178º, a necessidade da apreensão para efeito de prova ou para a descoberta da verdade. Deste modo, a apreensão de valores, quantias e quaisquer outros objetos, mesmo que em cofres individuais, ao abrigo do disposto no artigo 181.º do CPP, como logo de depreende da inserção sistemática dessa disposição na Título III do Livro III desse diploma, é um meio de obtenção prova, mas que poderá simultaneamente funcionar como meio de prova e como medida cautelar destinada a assegurar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão associados à prática do ilícito penal, como seja a perda desses valores a favor do Estado (GERMANO MARQUES DA SILVA, curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, 1999, pág. 197). No sentido da sua caracterização como meio de prova, aponta o facto de o artigo 181.º, n.º 1 do CPP, permitir a apreensão de valores depositados em estabelecimentos bancários, não apenas quando se encontrem relacionados com o crime, mas também cumulativamente quando se revelem de «grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova», o que faz supor que as quantias apreendidas podem apresentar um valor probatório específico que deva ser tido em consideração na fase de julgamento. Por outro lado, a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos apreendidos à ordem do processo até à decisão final. (cfr. AC do TC 294/2008, de 29.05). Assim sendo, a apreensão tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado (cf. DAMIÃO DA CUNHA, Perda de bens a favor do Estado, Centro de Estudos Judiciários, 2002, pág. 26). Deste modo, são requisitos de verificação cumulativa para que possa ser decretada a apreensão dos saldos bancários os seguintes: - a existência de fundadas razões para crer que as quantias em causa estão relacionadas com um crime, ou seja, que são produto ou destinavam-se à prática de um crime; - e que essas mesmas quantias se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, o que faz supor que as quantias apreendidas podem apresentar um valor probatório específico que deva ser tido em consideração na fase de julgamento. Para além disso, por a medida em causa não poder deixar de ser considerada como um limite imanente ao direito de propriedade, a decisão de apreensão, apesar de não ser equiparável às restrições de direitos pessoais, por restringir direitos fundamentais, terá de ter em conta os critérios da necessidade, adequação e proporcionalidade consagrados no artigo 18º da CRP. Para restringir direitos fundamentais, como é o caso do direito de propriedade, é necessário mais do que meras suspeitas, uma vez que a lei, artigo 181º do CPP, exige a presença de fundadas razões para crer que as quantias em causa estão relacionadas com um crime, que é o mesmo que dizer, indícios fundados e não meras suspeitas. Não podemos deixar de ter em conta o disposto no artigo 186º do CPP, relativo à restituição dos objetos apreendidos, que a apreensão só pode manter-se enquanto persistirem os pressupostos que a determinaram, impondo-se, logo que os mesmos cessem, a restituição dos respetivos objetos. A este respeito refere Vinício Ribeiro (in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, fls. 374), aponta o princípio da necessidade como regra base da apreensão, no sentido que, como prescreve o citado artigo 186º, logo no seu nº 1, “Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito” e, no nº 2, “Logo que transitar em julgado a sentença, os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”. Quanto aos objetos em ouro (moedas e lingotes), cumpre referir que a sua apreensão, dado que estes já estão devidamente analisadas e identificados nos autos, deixou manifestamente de se mostrar necessária para efeitos probatórios. Cumpre referir que nem o MP e nem o despacho recorrido fazem qualquer alusão quanto a este aspeto, o que demonstra que a manutenção da apreensão não foi determinada com finalidades probatórias. Assim sendo, quanto aos objetos em causa, a manutenção da apreensão só se justificará com fundamento em razões preventivas e conservatórias. Tendo em conta a natureza dos objetos em causa, moedas e lingotes em ouro, facilmente se conclui que os mesmos, só por si, não colocam em causa a segurança das pessoas nem oferecem risco de serem utilizados para a prática de atos ilícitos, pois a sua utilização normal é lícita e nem resulta que tenham servido para a prática de um facto ilícito típico. Deste modo, ao abrigo do disposto no artigo 109º do CP, não têm a virtualidade de serem declaradas perdidas a favor do Estado. Para além disso, do despacho recorrido, e nem o MP nada alegou nesse sentido, não se mostra demonstrado, em termos indiciários, que os objetos em causa se traduzem numa vantagem ou produto dos crimes em investigação, ou seja, produto dos crimes de fraude fiscal. Assim, atentos os elementos disponíveis nos autos e os fundamentos da decisão recorrida, os objetos em causa não poderão ser declaradas perdidas a favor do Estado ao abrigo do disposto no artigo 110º do CP. Como se pode ver no despacho recorrido, o fundamento para a manutenção da apreensão fundou-se no receio que faltem ou diminuam as garantias de pagamento de dívidas ao Estado. Diz-se no despacho recorrido o seguinte: “O levantamento da apreensão e a consequente devolução dos bens aos arguidos teria como consequência a diminuição das garantias de pagamento dos valores a liquidar pela Fazendo Nacional a título de imposto, pelo que se indefere o requerido pelos arguidos, mantendo-se, nos seus precisos termos, a apreensão dos mencionados bens/objetos, acima referidos.”. Ora, o fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias do pagamento de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime, constitui fundamento legal para lançar mão das medidas de garantia patrimonial previstas nos artigos 227º, 228 do CPP e artº 10º da Lei 5/2002, de 11-02 e não para a apreensão ao abrigo do disposto no artigo 181º do CPP. Em face do exposto, não estando verificados os requisitos para a manutenção da apreensão cautelar dos objetos em causa (moedas e lingotes em ouro) o recurso interposto pela arguida AA terá de proceder com a consequente imediata restituição de metade dos objetos em ouro apreendidos no cofre bancário localizado no ... — balcão sito na ... (em Lisboa) realizada no dia .... IV – Decisão Por todo o exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida AA e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se o imediato levantamento da apreensão de metade dos objetos em ouro, apreendidos no cofre bancário localizado no ... — balcão sito na ... (em Lisboa) realizada no dia ... e a consequente entrega à arguida; Sem custas. Notifique Lisboa, 9 de outubro 2025 (Elaborado e integralmente revisto pelo relator) Ivo Nelson Caires B. Rosa Jorge Rosas de Castro Marlene Fortuna |