Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL MARIA TROCADO MONTEIRO | ||
Descritores: | OFENSA A PESSOA COLECTIVA MINISTÉRIO PÚBLICO JUÍZO DE VALOR TIPICIDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/08/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | 1.No artigo 187º do Código Penal, o que está em causa são factos, inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança do organismo, serviço ou pessoa coletiva, e não uma suspeita, uma opinião, nem a formulação de juízos, o que diferencia esta incriminação do crime de difamação previsto no artigo 180º do mesmo diploma. 2. O facto é um dado real da experiência, cuja existência é incontestável. Já o juízo traduz uma apreciação relativa a um valor, é uma convicção subjetiva, uma apreciação crítica indemonstrável, uma opinião do agente com uma relação umbilical com a sua compreensão do mundo. 3. Quando a imputação de factos apareça misturada com juízos de valor, tem vindo a decidir-se que, sendo duvidoso se um conteúdo expressivo se traduz num juízo valorativo ou num facto, deve considerar-se que se trata de um juízo de valor. 4. No caso concreto, o arguido não propalou factos, mas juízos, depreciativos, injustificados e generalizados, levantando suspeitas da prática generalizada de crimes, por parte do Ministério Público, ajuizando sobre a sua atuação, aludindo de forma grotesca a situações infundadas, injustificadas, sem correspondência com a realidade, sem substrato factual concreto, assente em argumentação subjetiva, decorrente de uma certa visão ideológica, ainda que de elevada gravidade e conspirativa, razão da inexistência de factos exigidos para o preenchimento do crime previsto no artigo 187º, do Código Penal, onde apenas se mostra tipificadas a afirmação ou propalação de factos, e não juízos de valor, opiniões, convicções ou suspeitas, que são meras apreciações subjetivas, ainda que possam ter caráter excessivo, estando, pois, excluída a tipicidade do comportamento do recorrente. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO 1. Nos autos de instrução à margem referenciados após a realização de debate instrutório, foi proferida decisão que não pronuncia do arguido AA pela prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravada por publicidade e calúnia, p. e. p pelas disposições conjugadas dos artigos 187.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) e 183.º, n.º1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal. Sem custas, por não serem devidas. * 2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso da referida decisão, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões (que transcrevemos): III - DAS CONCLUSÕES i. O presente recurso circunscreve-se ao entendimento que os elementos indiciários constantes dos autos permitem a verificação dos tipos objectivo e subjectivo do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravada por publicidade e calúnia, p. e .p pelas disposições conjugadas dos artigos 187.°, n.°s 1 e 2, alínea a) e 183.°, n.°1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, pelo qual AA vinha acusado, designadamente na medida em que a comunicação eletrónica objeto dos autos imputa factos inverídicos ao Ministério Público. ii. Considera-se que, ao entender não estarem preenchidos os elementos típicos do crime supra enunciado, a decisão recorrida violou os arts. 308° e 283° do Código de Processo Penal e os arts. 187°, n.°s 1 e 2, alínea a) e 183°, n.°1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal e interpretou incorretamente o art.º 37° da Constituição da República Portuguesa. iii. Exige o tipo do crime que o agente afirme ou propale factos inverídicos e que o agente esteja de má-fé na convicção que forma acerca da sua veracidade (não tenha razões sérias para aceitar esses factos como verdadeiros) e que os factos sejam idóneos a ferir a credibilidade, o prestígio ou a confiança que o ente visado deve merecer. iv. O crime tem uma estrutura unitária, e assim inclui quer as afirmações feitas diante dos representantes da entidade abstrata, quer as afirmações feitas diante terceiros. v. O teor do texto vertido na acusação imputa - sem fundamento objetivo ou objetivável que ampare as afirmações feitas, assentes em argumentos genéricos de natureza meramente subjetiva, decorrentes de uma determinada e não comprovada visão da realidade - comportamentos de assumida gravidade em face dos princípios e critérios que devem reger o exercício das competências do Ministério Público e que apenas têm como propósito rebaixar, humilhar e denegrir o Ministério Público, designadamente perante as demais entidades a que dirigiu o documento. vi. A aferição do carácter lesivo da consideração e bom nome devidos das afirmações/ imputações feitas exige que se tenha em atenção a existência de uma relação lógica entre o acto e o objecto criticado, devendo ter-se igualmente em consideração a situação e o contexto em que o facto é praticado. vii. No que se refere ao exercício do direito de crítica, (crítica objetiva) ou do direito de opinião, a sua abordagem jurídico-penal tem evoluído no sentido abrangente da sua atipicidade, desde que se traduzam na emissão de um juízo de valor; se verifique existir uma conexão direta (ou mesmo indireta) entre a critica ou opinião manifestada e o objeto/pessoa criticada; desde que sejam exercidos na prossecução de interesses legítimo; e desde que tenham fim e relevo comunitário. viii. O direito de expressão, na sua vertente de direito de opinião e de crítica, caso redunde num comportamento típico, só é justificado desde que o agente não incorra em crítica caluniosa ou emita juízos de valor com o exclusivo propósito de rebaixar e humilhar. ix. Assim, no texto coloca o arguido o Ministério Público ao serviço de obscuros interesses em detrimento do que é a sua missão e as suas competências constitucionais e legais, atingindo não apenas a instituição como, de igual modo, todos os magistrados que a integram. x. Ora, as afirmações/imputações feitas extravasam os limites da crítica e da discussão objetiva da questão que era objeto do inquérito versado pelo aqui arguido, conformando antes evidente ataque à dignidade, ao bom nome e à consideração da própria instituição, atingindo inelutavelmente a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao Ministério Público. xi. Quanto a tais imputações, o arguido não pode ignorar objetivamente serem infundadas, sem correspondência com a realidade e sem qualquer substrato factual concreto, assentes apenas em argumentos de natureza meramente subjetiva, decorrentes de uma determinada visão ideológica. xii. Importaria ao arguido demonstrar a sua boa-fé ao reputá-los como verídicos (ou seja, que lograsse provar que os factos que imputa são verdadeiros), o que não se afigura resulte de mero elenco de notícias que verte no R.A.I., considerando-o o arguido exemplo da percepção da população em geral relativamente à acção do Ministério Público, sendo para além do mais e sem conceder, sempre inverídica qualquer generalização (e efeito de contaminação) que o arguido pretendesse retirar. xiii. Ao contrário do que conclui o despacho recorrido, o arguido não se limitou a tecer juízos de valor negativos relativamente ao Ministério Público, antes lhe imputando específica atuação, que concretiza factualmente através de omissão voluntária de intervenção e de investigação, a troco de “liberalidades” e beneficio de outros interesses que não os que deve prosseguir, elencando casos de elevada gravidade, em que, segundo afirma, o Ministério Público não atuou, em violação dos princípios estruturantes que o devem reger e dos fins que visa prosseguir. xiv. Imputações que se afiguram aptas a ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança do Ministério Público, tendo em consideração os fins que visa prosseguir e as atribuições que lhe estão cometidas enquanto órgão de justiça, veiculando a ideia que o Ministério Público atua em violação desses fins e atribuições e dos princípios que devem nortear a sua atuação. xv. E assim esse animus que se verifica aqui ter existido, como escopo da comunicação em causa. xvi. Mais, não podemos concordar com o invocado pelo arguido em sua defesa, em declarações prestadas em sede de inquérito, e acolhido na decisão instrutória, quando pretende que «nunca teve a intenção de ofender mas apenas de alertar as entidades para o que se estava a passar no seio do Ministério Público». Ainda que o arguido pretendesse expressar desacordo ou desagrado pela atuação, do Ministério Público, e o fizesse carecendo cabalmente de fundamento, não se poderá concluir por afastado o elemento subjetivo pela circunstância de dirigir a comunicação às entidades que considerava aptas a intervir para corrigir a atuação do Ministério Público. xvii. Por um lado, o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, como se disse, tem uma estrutura unitária, e assim inclui quer as afirmações feitas diante dos representantes da entidade abstrata, quer as afirmações feitas diante terceiros. xviii. Por outro lado, não divisa que a comunicação fosse, de qualquer modo, dirigida a tais entidades e com o escopo pretendido - é dirigida a S. Ex.a Vice Procurador Geral da República e conclui «face a tudo o exposto, vem sugerir a V. Exª que se digne demitir-se. Enquanto pode. E leve os seus “adjuntos ” consigo. Já vão tarde.», nem tão-pouco que o fosse apenas a tais entidades. xix. Deste modo, concluímos pela verificação dos elementos objetivos e subjetivos do crime imputado ao arguido e a suficiência dos indícios vertidos nos autos em fase de inquérito, que se persistiram na instrução, pugnando pela prolação de despacho de pronúncia nos mesmos termos da acusação. xx. O n.°1 do art.º 37° da C.R.P. garante dois direitos principais: a liberdade de expressão e o direito de informação. Porém, o facto de a Constituição dizer que todos têm o direito de se exprimir ou divulgar o pensamento por qualquer meio não pode equivaler, nem equivale, a uma incondicionada e livre utilização de todos os meios. xxi. Encontramos limites diretos à liberdade de expressão, correspondendo a normas constitucionais que excluem imediatamente uma parcela do direito (não estando protegida a liberdade de pensamento alheio ou plágio); os limites especiais (p. ex. a expressão publicitária); a proteção de outros bens, valores ou interesses constitucionais primários (a dignidade das pessoas; a vida; a integridade física; a honra; a imagem), e os adveniente das normas penais, que podendo presumir-se como legítimas podem ser sujeitas a escrutínio, carecendo de justificação, nos termos do art.º 18º n.°s 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa. xxii. As infrações cometidas no exercício das liberdades de expressão e informação podem envolver, em razão da sua gravidade, responsabilidade criminal e contraordenacional - n.°3 do art.º 37° da C.R.P xxiii. Concluímos assim que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, tendo limites imanentes, devendo ser objecto de restrições para tutela de direitos de personalidade em que incluem o direito à honra, à imagem e à reserva da vida privada e familiar e a articulação possível entre a liberdade de expressão, por um lado, e o direito à honra e à imagem, por outro, suporta-se em critério da ponderação de bens; critério do âmbito material da norma; critério do princípio da proporcionalidade; critério da concordância prática; critério da restrição de direitos prima fade pela existência de outros direitos prima fade. xxiv. As palavras que se imputam ao Arguido, e que este reconheceu ter propalado sobre o Ministério Público não têm associado qualquer substrato de facto e não se integram em qualquer debate de posições atendível num ambiente plural e tolerante de ideias, mais não sendo que, em parte juízos de valor, desnecessariamente ofensivos, e em parte, no que ao ilícito interessa, propalação de factos inverídicos, pela imputação de condutas de forma genérica e que por isso o Arguido não podia desconhecer a sua não verificação. xxv. Nessa medida não participam da razão de ser da proteção especial constitucional de que a liberdade de expressão goza. Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência ser revogada a decisão recorrida, e substituída por outra que pronuncie o arguido AA, para prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravada por publicidade e calúnia, p.e.p pelas disposições conjugadas dos artigos 187.°, n.°s 1 e 2, alínea a) e 183.°, n.°1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, nos exactos termos do despacho de acusação, com o que farão V. Ex. as a costumada JUSTIÇA * 3.Não foi apresentada resposta ao recurso. * 4.O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo. * 5.Parecer do Ministério Público junto da Relação foi no sentido da procedência do recurso. 6. Cumprido o artigo 417º, nº 2, do CPP não foi apresentado resposta pelo arguido. 7. O processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal]. * II. FUNDAMENTAÇÃO Indícios que levaram o Ministério Público a deduzira acusação, por referência à qual foi apresentado o requerimento de abertura de instrução (RAI) É o seguinte o teor integral do texto parcialmente transcrito na acusação: “Processo n.º 53/22.0... V/Ref.ª: 11253415 Exmo. Senhor Vice-Procurador-Geral da República: Tendo sido notificado do “Despacho de Arquivamento” (mais um para a “colecção”!) do “Requerimento de Intervenção Hierárquica” proferido nos presentes autos, vem, ao abrigo do Direito consagrado no Art.º 37º da C.R.P., e até do Direito à indignação enquanto Cidadão e Contribuinte, efectuar o imperativo protesto fundamentado, em CARTA ABERTA, porque os contribuintes têm todo o direito de ser informados do que se passa nos «meandros» duma “justiça” pútrida, usurária e totalmente inútil para quem dela realmente necessita. E para as «futuras gerações» saberem o porquê e quem são os efectivos responsáveis por, entre outras coisas, um crescente e incomportável esbulho fiscal, com o país (mais uma vez!) totalmente a «saque» por uma «cleptocracia partidária do …., com a cumplicidade de TODO o M.P. e de «instituições» que têm Obrigação Acrescida de garantir o «regular funcionamento das instituições», de acordo com a C.R.P. -como A.R. e, sobretudo, o P.R. (…) * CONTEXTO DO ESCRITO: Este escrito foi apresentado na sequência do arquivamento do processo inquérito n.º 45/21.7..., ocorrido em .../.../2022, quase um ano depois da pendência da denúncia, apresentada na Procuradoria-Geral da República no dia .../.../2021, por putativa existência de relevância criminal, por estarem suportados por elementos de prova indiciária, e que não deu azo a diligencias de inquérito, e que tinha como denunciados entre outros, BB, CC, DD e EE, foi, em .../.../2022, O objeto do inquérito, tal como perfeitamente caracterizado e delimitado na denúncia, eram as medidas implementadas com a finalidade de levar a população a submeter-se a um tratamento farmacológico. É crença ou convicção do denunciante que: - a legislação produzida durante os anos de 2020 e 2021, assim como os normativos de natureza administrativa implementados no âmbito dos diversos estados de emergência e situações de alerta, contingência e calamidade, tiveram objetivamente como efeito coagir ou, no mínimo, pressionar a população portuguesa a submeter-se a tratamentos de natureza laboratorial e farmacológica; - tratamentos esses declaradamente experimentais e atuantes ao nível da genética molecular. - a campanha de vacinação contra o SARS-CoV-2 e a Covid-19, iniciada no dia 27/12/202, foi seguida de um aumento abrupto da mortalidade geral, para níveis nunca antes registados em Portugal em tempo de paz (sendo de assinalar o máximo, ocorrido no dia .../.../2021, de 748 mortes); - o Governo criou uma comissão cujo objetivo era o estudo das melhores formas de manipular a população no sentido de conseguir a sua adesão ao referido tratamento farmacêutico. - apesar de as informações técnicas, produzidas pelos laboratórios fabricantes, referentes a tais medicamentos expressamente estabelecerem que os mesmos somente deveriam ser aplicados mediante receita médica, transmitiu o Regime à população que não apenas eram tais medicamentos gratuitos (como se tal existisse no negócio farmacêutico) como também que eram absolutamente seguros e eficazes. - o resultado, cada vez mais evidente, mas que o Ministério Público teima em não investigar, traduz-se numa epidemia de doenças cardíacas, vasculares e cancerígenas, que está literalmente a varrer a população portuguesa; Na sequência do referido arquivamento, o ora Arguido dirigiu, em .../.../2022, à Exma. Procuradora-Geral Adjunta … uma exposição que veio a dar origem a uma intervenção hierárquica e ao inquérito criminal n.° 53/22.0... Este inquérito criminal foi arquivado, de forma praticamente instantânea, em .../.../2022. Do despacho de arquivamento do inquérito n.° 53/22.0... requereu o ora Arguido, em .../.../2022, a intervenção hierárquica, que foi indeferida por despacho de .../.../2022. Foi tal sucessão de factos processuais que mereceu a comunicação objeto dos presentes autos. É convicção do requerente da RAI que - o teor de tal missiva reflecte perfeitamente, e talvez por defeito, a percepção da população em geral relativamente ao comportamento e actuação do Ministério Público, enquanto entidade colectiva de direito público. - tal mensagem reflecte também a percepção dos agentes do comentário político, ou seja, os agentes actuantes no âmbito do ‘quarto poder’, que influenciam e moldam a opinião pública. - acresce que as conclusões e juízos de valor inseridos no texto em causa são igualmente extraíveis a partir de inúmeras notícias factuais que colocam o Ministério Público em evidência pelas piores razões possíveis, vindo na RAI o requerente a indicar os links em que estriba o seu escrito os quais sejam: (…) Acresce que o arguido requereu a sua tomada de depoimento, em instrução e ali o arguido confirmou a autoria do escrito, a sua remessa apenas e tão só para organismos e serviços que em seu entender sindicam a atividade do Ministério Público, e que surgiu como indignação perante um conjunto de atuações do Ministério Público que não achou corretas, desde logo despachos de arquivamento, que em seu entender não estavam minimamente fundamentados tanto de facto como de direito. Dando nota não ter tido intenção de ofender mas apenas de alertar as autoridades para o que se estava a passar no Ministério Público. * FOI COM BASE NESTES INDICIOS QUE FOI TOMADA A DECISÃO DE ACUSAR OBJETO DA RAI. A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição] Iniciaram-se os presentes autos com a denúncia (fl. 2) apresentada pela Procuradoria Geral da República a .../.../2024. Nesse seguimento, decorreu inquérito, tendo proferido despacho de acusação (fls. 150 e seguintes) contra: AA, filho de FF e de GG, natural da freguesia de ..., conselho do ..., nascido em ...-...-1961, casado, engenheiro ..., residente na .... Imputando-lhe a prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravada por publicidade e calúnia, p. e. p pelas disposições conjugadas dos artigos 187.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) e 183.º, n.º1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal. Veio o arguido, nos termos do artigo 287º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal, requerer a abertura da instrução (fls. 170 e seguintes), alegando que o texto em causa não se trata da opinião do arguido, mas sim da generalidade dos portugueses, invocando o direito consagrado no art.º 37.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e que “não pode o Ministério Público perseguir um cidadão comum sem fazê-lo igualmente em relação aos agentes do “quarto poder”, que frequentemente (seja por que razões for), amplificam a mesma mensagem, tornando-a num facto público notório.” Por outro lado, o arguido alega não estarem verificados todos os elementos típicos do crime pelo qual vem acusado, uma vez que a norma em causa apenas se aplica à conduta de afirmar ou propalar factos e o que o arguido fez foi escrever juízos de valor, não contendo o texto em questão qualquer facto imputado ao Ministério Público. Procedeu-se ao interrogatório judicial do arguido e à realização do debate instrutório com observância de todos os legais formalismos. * Encerrado que está o debate instrutório, cumpre proferir a presente decisão, nos termos do disposto nos artigos 307º, nº 1 e 308º, ambos do Código de Processo Penal. * II. Saneamento O Tribunal é o competente. O Ministério Público dispõe de legitimidade para o exercício da ação penal. O processo é o próprio. O arguido tem legitimidade para apresentar requerimento de abertura de instrução. Não há quaisquer nulidades ou ilegitimidades, exceções, questões prévias ou incidentais que importe conhecer e que obstem a uma decisão de mérito. * Não se tendo vislumbrado qualquer ato instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efetuou-se o debate instrutório, que decorreu em conformidade com o disposto nos artigos 298.º, 301.º e 302.º, todos do Código de Processo Penal. Cumpre agora, nos termos do artigo 308.º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória. III. Fundamentação Das Finalidades da Instrução A instrução, constituindo uma fase facultativa, “visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, nos termos do disposto no artigo 286º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, só devendo o juiz pronunciar o arguido pelos factos respetivos se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança; caso contrário, o juiz deve proferir despacho de não pronúncia, conforme disposto no nº 1, do artigo 308º, do Código de Processo Penal. Assim, a prova produzida em sede de instrução tem carácter meramente indiciário, conforme artigos 308º, nºs 1 e 2 e 283º, nº 2 do Código de Processo Penal. Dito de outro modo, o grau de exigência probatório não se apresenta tão exigente como aquele que deverá estar na base da condenação dos arguidos em audiência de discussão e julgamento. Constituem indícios suficientes, os vestígios, suspeitas, resoluções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e são os arguidos responsáveis por ele. Assim, para a pronúncia não é necessária uma certeza da existência da infração, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma a que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado. Assim, nos presentes autos, importa, na sequência do requerimento de abertura da instrução e da prova junta aos autos, verificar se existem, ou não, indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe vem imputado. Da Qualificação Jurídica Nos termos do disposto no artigo 187.º do Código Penal: “ 1 - Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias. 2 - É correspondentemente aplicável o disposto: a) No artigo 183.º; (…)” Por sua vez, o artigo 183.º preceitua que: 1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º: a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou, b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.” O núcleo do bem jurídico protegido no crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva é a ideia de bom nome do sujeito passivo (Assim, Acórdão do TRP de 03.04.2013; relatora: MARIA DO CARMO SILVA DIAS; processo: 1354/12.1TAMTS.P1). Assim, o bem jurídico aqui protegido não pode deixar de se afirmar como pedaço fragmentado de realidade e, por isso, heterogéneo; heterogeneidade que lhe advém da sua diferenciada composição: credibilidade, prestígio e confiança. Não obstante, apesar da realidade fragmentada em que o bem jurídico encontra arrimo, poder-se-á defender que, com a incriminação em causa, se protege um bem jurídico agregador que não pode deixar de se justificar na ideia de bom nome, identificado com o conceito de exterioridade, relevando, neste contexto, a imagem real que os “outros” têm da pessoa coletiva, (JOSÉ DE FARIA COSTA, COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, Tomo I, art.º 131.º a 201.º, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 981 §4). No que respeita ao tipo objetivo do ilícito em causa, o mesmo exige a existência de 3 fatores (Assim, FARIA DA COSTA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 984): a) Afirmação ou prolação de factos inverídicos; b) Que aqueles factos se mostrem capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa coletiva; c) Não ter fundamento para, em boa fé, reputar de verdadeiros os factos inverídicos; A “prática do crime p.e p. pelo artigo 187º do CP exige, para além do mais, a prova de que os factos propalados sejam inverídicos”( Assim, Acórdão do TRC de 12.05.2010; relator: JORGE DIAS; processo: 88/08.6TATBU.C1.). Deve ficar claro que o legislador com a exigência de a ofensa se perpetrar por meio de «factos se mostrem capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança pessoa coletiva, corporação, organismo ou serviço» exige a utilização de meios idóneos a ofenderem essa credibilidade, o prestígio ou a confiança, o que se concede de um ponto de vista objetivo. Isto é, numa perspetiva externa, passando pela imagem que a comunidade tem daquela pessoa coletiva, instituição ou corporação, sendo esses valores tanto mais fortes quanto maior for a crença que a comunidade tenha no valor da instituição. Nessa linha de entendimento, credível é a instituição ou organismo que se mostra cumpridora das regras, que acuta de forma diligente, mostrando-se a sua prática séria e imparcial, sendo detentora de prestígio quando, pelos comportamentos que leva a cabo, por meio dos seus órgãos ou membros, se impõe no âmbito da comunidade. Por outro lado, é digna de confiança, segundo o entendimento de Faria Costa, quando «pela sua génese e actuações posteriores se apresenta, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem se pode confiar» ( JOSÉ DE FARIA COSTA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, art.º 131.º a 201.º, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 987 §20.). Relativamente ao terceiro elemento do tipo objetivo do crime em análise, o agente tem que afirmar ou propalar factos inverídicos sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros (IDEM, p. 985 §15.). Ademais, atente-se no seguinte Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ de 14/2023, segundo o qual “O crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punível pelo artigo 187.º do Código Penal, pode ser cometido através de escrito.” Já no que respeita ao elemento subjetivo do tipo legal de crime respeita, o mesmo preenche-se com o dolo genérico, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, ou seja, o seu preenchimento basta-se com a atuação do agente a título de dolo eventual. Assim, para a conduta ser punível, no que a este respeito concerne, o tipo exige que o agente represente, pelo menos, que as palavras que divulgue constituam enunciados de factos falsos ou inverídicos que tenham um conteúdo ou sentido tais que sejam aptos a atingir a credibilidade, o prestigio e a confiança da pessoa coletiva que por ele é visada e, ainda, assim, as queira dizer, ou afirmar (Assim se decidiu no Ac. TRE de 08-03-2018, p. 195/16.1PAESP.E1.). O que significa que, se o agente propalar ou afirmar certos factos representando que tais podem, ao fim, lesar a credibilidade da instituição ou organismo, mas ainda assim continuar com a prática, conformando-se, conforma o ilícito-típico aqui em questão. «Um facto é, pois, um elemento da realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos» (Faria Costa, «Comentário Conimbricense do Código Penal», Tomo I, § 20, págs. 609 e ss.). Veja-se o exemplo dado no Acórdão do TRE de 08-03-2018, p. 195/16.1PAESP.E1: “Assim, teremos a imputação de um facto quando alguém diz a outrem que A esmurrou B à porta do cinema de ..., na quarta-feira passada. Narra-se apenas um acontecimento situado no espaço e no tempo. Já se verificará a formulação de um juízo quando alguém diz a outrem que A esmurrou o B por ser incapaz de resolver as questões sem ser através da força.”. Realizada a qualificação jurídica do crime em análise, vejamos, então, se o comportamento do arguido integra a prática de o crime pelo qual vem acusado. * Dos Indícios Da factualidade constante no despacho de acusação, considera o tribunal que resultam indiciariamente provados os factos 1 a 8 constantes da acusação. Para apurar da factualidade indiciária o tribunal atentou na prova constante dos autos, designadamente toda a que é indicada na acusação e para a qual expressamente se remete. Por outro lado, valoraram-se também as declarações do arguido AA, uma vez que o mesmo confirmou a autoria do texto em questão, afirmando que o endereçou a um conjunto de entidades e instituições. Questionado sobre o motivo de tal, o arguido refere que o texto surgiu como indignação a um conjunto de atuações por parte do Ministério Público que não achou corretas, mormente vários despachos de arquivamento que não se encontravam minimamente fundamentados, tanto de facto como de direito. Afirmando, ainda, que nunca teve a intenção de ofender mas apenas de alertar as entidades para o que se estava a passar no seio do Ministério Público. No que diz respeito aos factos não indiciariamente provados (9 a 12), cumpre tecer algumas considerações. Analisado o texto escrito pelo arguido, entende o tribunal que tudo o que nele consta, apesar de conter graves acusações, não é nada mais do que a sua opinião, tendo o mesmo formulado juízos de valor, não se tratando da propalação de factos inverídicos, mas apenas e tão-só de uma opinião indiciariamente desprovida de fundamento real. Assim, estamos perante convicções subjetivas, que só responsabilizam quem os profere, enquanto os factos constituem realidades objetivas (Assim no Ac. TRP de 06-05-2020, p. 15025/18.1T9PRT-A.P1). No caso deste crime, a proteção do bem jurídico honra das pessoas coletivas perspetiva–se enquanto tutela da credibilidade, prestígio e confiança do público/clientes naquela entidade, apenas se tutelando a propalação de factos, não de juízos de valor. Veja-se o decidido no Ac. do TRL de 16-03-2021, onde se escreveu que: “O tipo objectivo deste crime preenche-se com a afirmação ou divulgação de “factos inverídicos”, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança, não abarcando a imputação de “juízos de valor” ofensivos, como sucede nos crimes de difamação e injúria, reportando-se os factos a acontecimentos da vida real, inseridos num tempo e espaço precisos ou determináveis e não com comentários ou opiniões relativos a um organismo, serviço ou pessoa colectiva, não sendo os mesmos susceptíveis de integrar o tipo de crime em análise.” O artigo 37º da Constituição da República Portuguesa tutela a liberdade de expressão. Não olvidando a tutela da mesma pelo art. 19º do PIDCP e pelo art. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Nestes termos, entende-se que “não haveria espaço algum para a crítica, como não haveria espaço sequer para que a comunicação social, por exemplo, desempenhasse a sua função de «cão de guarda» da democracia, posto que nunca poderia publicar notícias desagradáveis para os visados, por mais verdadeiros que fossem os factos relatados e por maior interesse público que houvesse na sua divulgação.” (P.521/19.1PASJM, de 21/03/2022 disponível in: https://comarcas.tribunais.org.pt/comarcas/juris2/aveiro/pdf/521%2019%201%20DIFAMA%C3%87%C3%83O%20PESSOA%20COLETIVA.pdf) Não tendo o arguido propalado factos, mas apenas juízos de valor depreciativos, completa e totalmente generalizados, uma vez que vai assinalando, ao longo do texto, situações inconcretas, absolutamente injustificadas e indiciariamente infundamentadas, levantando, também, a suspeita da prática generalizada de crimes por parte do Ministério Público, pelo que não se mostra, por isso, preenchido o tipo legal de crime pelo qual o arguido se encontra acusado. De sublinhar que o tipo de ilícito objetivo do crime de ofensa a pessoa coletiva não prevê como modalidade de ação a forma de suspeita, como se verifica nos crimes de difamação e de injúria. Assim, apesar da escrita do arguido estar corroída de afirmações censuráveis pelo seu carácter excessivo, contundente e possível gerador de suspeitas graves, ainda assim, considera o tribunal não se encontrarem extravasados os limites do direito de crítica e da liberdade de expressão e por isso não têm idoneidade para atingir o núcleo essencial do direito ao bom nome da magistratura do Ministério Público, estando, pois, excluída a tipicidade do seu comportamento. V- Decisão Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido: Não pronunciar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravada por publicidade e calúnia, p.e.p pelas disposições conjugadas dos artigos 187.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) e 183.º, n.º1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal. Sem custas, por não serem devidas – artigos 513.º, n.º 1, 514.º, n.º 1, e 515.º, n.º 1, alínea a), todos por interpretação “a contrario sensu”, e n.º 1 do artigo 522.º, todos do Código de Processo Penal. Registe em Livro próprio Dê baixa * (…) 2. A DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sendo essas que balizam os limites do poder cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como ocorre por exemplo com os vícios previstos nos artigos 410º, n.º 2, ou 379º, n.º 1, ambos do CPP (cfr. art.ºs 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, ambos do CPP). Posto isto, passamos a delimitar thema decidendum, que o mesmo é dizer a elencar as questões colocadas à apreciação deste tribunal: - Os elementos indiciários constantes dos autos permitem a verificação dos tipos objectivo e subjectivo do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravada por publicidade e calúnia, p. e .p pelas disposições conjugadas dos artigos 187.°, n.°s 1 e 2, alínea a) e 183.°, n.°l, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, pelo qual AA vinha acusado, por imputar factos inverídicos ao Ministério Público? - ao entender não estarem preenchidos os elementos típicos do crime supra enunciado, a decisão recorrida violou os arts. 308° e 283° do Código de Processo Penal e os arts. 187°, n.°s 1 e 2, alínea a) e 183°, n.°l, alíneas a) e b), ambos do Código Penal e interpretou incorretamente o art. 37° da Constituição da República Portuguesa? 3. O art.º 286.º, n.º 1 do C. P. Penal proclama que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Ou seja, a atividade do juiz de instrução criminal, nesta fase processual, circunscreve-se apenas e só a verificar (a comprovar) se a decisão do M. Público em acusar ou arquivar o inquérito tem apoio na factualidade recolhida no inquérito. Não pretende assim a lei que a instrução constitua um efetivo suplemento de investigação relativamente ao inquérito, não visando esta fase processual facultativa o alargamento do âmbito da investigação realizada em sede de inquérito. E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.” Ou seja: o juiz de instrução criminal analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo conteúdo, sentido e alcance daqueles que teve no inquérito é mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição? Se a resposta for positiva, deve pronunciar o arguido; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia. * No caso em apreço, o libelo acusatório com os elementos indiciários constantes dos autos, permitem a verificação dos tipos objetivo e subjetivo do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravada por publicidade e calúnia, p. e .p pelas disposições conjugadas dos artigos 187.°, n.ºs 1 e 2, alínea a) e 183.°, n.°1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, pelo qual AA vinha acusado, por imputar factos inverídicos ao Ministério Público? Prescreve o artigo 187º, nº 1 e 2 al. a) do Código Penal, sob a epigrafe Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva 1. Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias. 2 - É correspondentemente aplicável o disposto: a) No artigo 183.º; Por sua vez dispõe o artigo 183º, sob a epigrafe Publicidade e calunia “1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º: a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou, b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo. O artigo 187º, do Código Penal foi introduzido pelo DL 48/95 de 15.03, visou proteger um pedaço fragmentado de realidade social, com ressonância axiológica. Tutela-se um bem jurídico poliédrico, um bem jurídico heterogéneo; heterogeneidade que lhe advém da sua diferenciada composição: credibilidade, prestígio e confiança, mas que tem um elemento agregador que é a ideia de bom nome (vide esclarecimento de Figueiredo Dias, ACTAS, 1993, p. 279 e 504, Faria Costa, Comentário Conimbricense, do Código Penal, 2ª edição, 2012, Parte Especial, TOMO I, pág. 982, Código Penal, Parte geral e especial, com notas e comentários, M. Miguez Garcia, J. M. Castela Rio, 2014, pág. 773, e Acs. TRP de 03.04.2013, e de 06.05.2020;), vindo a acrescentar a redação introduzida pela Lei 59/2007, de 4.09, que os organismo ou serviço exerçam autoridade pública, e a pessoa coletiva, instituição ou corporação, ainda que não exerça autoridade publica, (esclarecendo-se o sujeito passivo desta incriminação). O bem jurídico tutelado pela norma incriminatória, em apreço, é a imagem da pessoa coletiva visada, a valoração de terceiros ou da comunidade respeitante à atuação da pessoa jurídica em questão, do seu bom nome, prestigio, credibilidade, confiança e reputação no mercado, no caso de corporações que especialmente prestem serviços. A imagem que se constrói simultaneamente de dentro para fora, mas sobretudo de fora para dentro, correspondendo à valoração que a comunidade faz da atuação, qualidade externa que ora pode engrandecer ou diminuir, o valor intrínseco da própria instituição aos olhos da comunidade. Enquanto para a pessoa singular a Constituição da República Portuguesa, em sede de direitos, liberdades e garantias pessoais, reconhece quer o direito à integridade moral das pessoas (art.º 25º, nº 1), quer o direito ao bom nome e reputação (art.º 26º, nº 1), consagrando o direito à honra numa dupla dimensão, - a honra subjetiva (interior, autoestima e valores pessoais e interiores do indivíduo) e objetiva (exterior, ideia de que os outros fazem do seu portador, reputação e consideração social da pessoa, bom nome e decoro) - no que respeita a pessoas coletivas, ao consagrar-se o princípio da universalidade dos direitos e deveres fundamentais, no artigo 12º, nº 2, também reconhece o gozo de direitos e aos deveres compatíveis com a sua natureza. Assim, os direitos da pessoas coletivas conexionam-se quer com a essência do direito fundamental concreto, quer com a essência da entidade coletiva em causa (CANOTILHO, J. J. GOMES, Direito Constitucional e Teoria…, cit., pág. 421) conjugado com a análise do escopo da pessoa coletiva, (atendo o princípio da especialidade) o que exige a analise do caso concreto. Havemos ainda de atentar se as entidades coletivas, são de direito privado ou de direito público, e sendo desta última natureza, estas haverão de possuir um certo grau de autonomia e representarem de algum modo um contra poder face ao Estado. De qualquer forma, se as pessoas coletivas de direito privado, são entidades abstratas e assim, são portadoras de alguns dos segmentos da honra objetiva ou exterior, desde logo o bom nome e o crédito, (não possuem a dimensão subjetiva) as pessoas coletivas de direito público haverão de possuir um certo grau de autonomia e representarem de algum modo um contra poder face ao Estado, para serem titulares de honra objetiva ou exterior. O agente do crime pode ser qualquer pessoa que empreenda a) Afirmação ou prolação de factos inverídicos, (hiperbolização excessiva; meias verdades; o que traduz o desvalor da ação, b) Que aqueles factos (e não suspeitas, juízos nem valorações) se mostrem capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa coletiva; aqui radicando a idoneidade e capacidade, do facto, aferido de forma objetiva, (com recurso ao critério do homem médio, normal e diligente), para atingir aqueles bens jurídicos, (irrelevando a valoração do agente). A credibilidade de uma instituição, aferir-se-á pela atuação dos seus órgãos ou membros, se mostra cumpridora das regras, atuando em tempo e de forma diligente, sobretudo quando a sua prática corrente, se mostra séria e imparcial, atendendo que na sua maioria exerce poderes de autoridade pública (cf. Faria Costa, ob. cit. a pág.986.). Por sua vez, o prestígio de uma instituição, surpreende-se pelos comportamentos dos seus órgãos, ou membros, ele se impõe, no domínio especifico da sua atuação, perante instituições congéneres e, por isso mesmo, perante a própria comunidade que serve e que a envolve (cf. Faria Costa, ob. cit. a pág.986.). Finalmente, uma instituição é digna de confiança, quando pela sua génese e atuações posteriores se apresenta, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez, de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem pode confiar. Esta será, talvez, a qualificação que mais depende do juízo externo. A confiança é um valor que se pode construir mas está dependente, de maneira quase lábil e tantas vezes incontornável, da representação externa que façam da instituição em apreço (cf. Faria Costa, ob. cit. a pág.987.). c) Não ter fundamento para, em boa fé, reputar de verdadeiros os factos inverídicos; isto é o agente haverá de propalar factos inverídicos sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros. Diferenciando-se neste caso da calúnia, o agente não terá de conhecer o caráter não verdadeiro dos factos, bastará que não tenha fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros. A boa fé nesta norma pressuposta, não significará uma pura convicção subjetiva, do agente a respeito da veracidade dos factos, devendo antes assentar numa dimensão objetiva, o que se traduz na obrigatoriedade de o agente ter cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, cuidado de recolhe de informações, seleção e credibilidade das fontes, critérios pontados para o crime de difamação. Algumas das entidades exercem autoridade pública, em sentido objetivo, significa poder público ou conjuntos de poderes públicos- do imperium. Evidencia-se que, o que está em causa nesta incriminação são os factos inverídicos capazes de ofender a credibilidade, prestigio ou a confiança, do organismo, serviço ou pessoa coletiva, e não uma suspeita, nem a formulação de juízos, o que diferencia neste aspeto o disposto no artigo 187º do C.P.P. do crime de difamação previsto no artigo 180º, do mesmo diploma. A distinção entre facto e juízo revela-se assim fundamental. Enquanto o facto é tudo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência. É a realidade objetiva incontestável. Afirmação da realidade exterior ou juízo de existência. É um elemento da realidade, traduzível na alteração da realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e espaço precisos, distintos dos acontecimentos que são conjuntos de ações (com unidade) que se protelam no tempo. (vide neste sentido F. Costa. Ob. cit. pág. 913) O juízo, independentemente dos domínios em que possa ser operatório (juízos psicológicos, lógicos, axiológicos, jurídicos), deve ser percebido, como uma apreciação relativa a um valor e não a uma existência de uma ideia ou coisa, mais não é do que uma convicção subjetiva, é uma apreciação critica indemonstrável. E trata-se de uma valoração de uma opinião, que tem a sua origem no agente, logo sempre eivada de uma umbilical relação com a sua compreensão do mundo. Haverá, no entanto, de se assinalar que, a potencialidade desonrosa do facto e do juízo são diversos. Enquanto, um juízo valorativo representa “tão-só” o pensamento do quem o formula, caraterizando-se, portanto, pela subjetividade e impondo, consequentemente, a sua relativização. Já um facto é algo real e incontornável, pelo que, a sua imputação a alguém traduz-se na atribuição a essa pessoa de uma realidade concreta e verdadeira. Deste modo, em abstrato, a formulação de um juízo de valor, envolve um potencial lesivo da honra manifestamente inferior ao que compreende a imputação de um facto. Atendendo que, a imputação de factos aparece a mais das vezes misturada com juízos de valor, tem vindo a decidir-se que, sendo duvidoso se um conteúdo expressivo se traduz num juízo valorativo ou num facto, deve considerar-se que se trata de um juízo de valor. Aliás, na mesma conduta comunicacional, ainda que se trate de uma conduta prolongada (v. g., um discurso, uma entrevista, um debate), o agente formule juízos de valor e afirme factos, por princípio, deve entender-se que se está apenas perante a formulação de juízos valorativos, (vide MATOS, FILIPE MIGUEL CRUZ DE ALBUQUERQUE, Responsabilidade Civil…, cit., págs. 267, ss. e 285). Apenas se deverá afastar este princípio quando: - (i) à luz de um critério objetivo, deva considerar-se que a conduta em causa tem carácter fundamentalmente informativo; ou - (ii) os factos afirmados não tenham conexão com as apreciações críticas formuladas e hajam sido imputados ao visado, com o único e refletido propósito de o rebaixar, humilhar ou caluniar, exagerada, inútil e desnecessariamente. A respeito da querela se este crime podia ser praticado por escrito, atendemos e seguimos o acórdão de uniformização de jurisprudência 14/2023, segundo o qual «O crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punível pelo artigo 187.º do Código Penal, pode ser cometido através de escrito.» No que ao tipo subjetivo do tipo legal de crime respeita, o mesmo preenche-se com o dolo genérico, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, ou seja, o seu preenchimento basta-se com a atuação do agente a título de dolo eventual. Assim, para a conduta ser punível, no que a este respeito concerne, o tipo exige que o agente represente, pelo menos, que as palavras que divulgue constituam enunciados de factos inverídicos de conteúdo ou sentido tais que, sejam aptos a atingir a credibilidade, o prestigio e a confiança da pessoa coletiva que por ele é visada e, ainda, assim, as queira dizer, ou afirmar. O que significa que, se o agente propalar ou afirmar certos factos representando que tais podem, ao fim, lesar a credibilidade da instituição ou organismo, mas ainda assim continuar com a prática, conformando-se, conforma o ilícito-típico aqui em questão. Revisitando a decisão recorrida surpreendemos que não é objeto de controvérsia os factos 1 a 8, que foram levados ao libelo acusatório, os quais se mostram indiciariamente assentes na prova dos autos e carreada na acusação, como ainda nas declarações do arguido, na medida em que confirmou ser o autor do escrito, tendo-se nesta parte em atenção a análise critica feita das declarações daquele feitas pelo Tribunal a quo, e que não nos merece censura. No que respeita aos factos 9 a 12, a decisão recorrida entendeu não existirem indícios suficientes, para a sua prova ainda que as acusações sejam graves, uma vez que o que está em causa é a opinião do arguido, formulada através de juízos de valor indiciariamente desprovidos de fundamento real e não do propalar de factos inverídicos. E de facto, não poderíamos estar mais de acordo com a decisão do Tribunal a quo, pois os fragmentos do escrito transportados para a acusação deduzida, mais não são do que convicções subjetivas, apreciações criticas indemonstráveis, opiniões e não a propalação de factos inverídicos. Da narrativa consta, ser esta ao abrigo do exercício da liberdade de expressão, do direito à indignação enquanto cidadão contribuinte, que tem direito à suas convicções e assim, de acordo com essa convicção, e assim juízo, propala a respeito do Ministério Publico, suspeitas alicerçadas numa visão conspirativa para o que convoca casos de justiça, mediatizados pela comunicação social, com base nos quais e sem qualquer suporte fático, efetua a sua leitura subjetiva ancorada num modo de ver o mundo, com raízes politicas, e destarte tece juízos a respeito de serem uma magistratura com falta de qualidade, competência ou idoneidade, moral para o exercício das funções que desempenham; opina que são alvo de favorecimentos político-partidários; opina que são cúmplices de atuações criminosas, convocando casos mediáticos envolvendo políticos, e na demora da investigação ajuíza existir maior preocupados em garantir a «prescrição» ou o «arquivamento» de crimes mediante contrapartidas de diversa índole; opinando em face de tais demoras na investigação que sucessiva e criminosamente incumprem as suas obrigações profissionais, constitucionais e legais, convocando casos mediáticos envolvendo políticos; opinando que recebem contrapartidas para fechar os olhos a ilegalidades e que são responsáveis pela sucessão de eventos que culminou na tragédia de Pedrógão Grande em 2017 e na intervenção da Troika em 2011, pois deviam ter obstado a que certas personalidades chegassem a cargos de poder politico, - pondo-os na cadeia- socorrendo-se de adjetivação e convocando narrativas que evidenciam a sua visão, sem qualquer correspondência com a realidade, mas que exercita no uso do seu direito a formular juízos e ter convicções. Como já salientado, art.º 187º, nº 1, do Código Penal somente tipifica a afirmação ou propalação de factos. Tal preceito não incrimina a manifestação de juízos de valor, nem opiniões ou convicções, que são “meras” apreciações subjetivas, com um reduzido potencial ofensivo da honra objetiva ou exterior, quer pela enorme amplitude do direito à liberdade de expressão, quer ainda por as vítimas do crime tipificado no referido preceito serem entidades abstratas e não indivíduos. Assim, é de recusar perentoriamente a orientação segundo a qual a formulação de juízos de valor desonrosos para entidades coletivas é suscetível de representar os crimes de difamação ou injúria. Com efeito, se assim fosse, a proteção penal da honra objetiva ou exterior das entidades coletivas, relativamente à manifestação de juízos de valor, seria mais extensa do que a proteção penal desse bem de tais entidades relativamente à afirmação ou propalação de factos, uma vez que os tipos objetivos dos arts. 180º, nº 1, e 181º, nº 1, do Código Penal, são claramente mais abrangentes do que o tipo objetivo do art.º 187º, nº 1, do mesmo diploma, não tendo tal solução respaldo constitucional. Neste sentido, decidiu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16.03.2021, “O núcleo do bem jurídico que se quer proteger com a incriminação do artigo 187.º, “Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva” prende-se, com a “a ideia de bom nome” do sujeito passivo, sendo o que conta, neste contexto, é a imagem real que os “outros” têm da pessoa coletiva, tratando-se de um bem jurídico complexo que engloba a credibilidade, o prestígio e a confiança do organismo, serviço, pessoa coletiva, instituição ou corporação, cujo significado se identifica com o do seu bom nome. - O tipo objetivo deste crime preenche-se com a afirmação ou divulgação de “factos inverídicos”, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança, não abarcando a imputação de “juízos de valor” ofensivos, como sucede nos crimes de difamação e injúria, reportando-se os factos a acontecimentos da vida real, inseridos num tempo e espaço precisos ou determináveis e não com comentários ou opiniões relativos a um organismo, serviço ou pessoa coletiva, não sendo os mesmos suscetíveis de integrar o tipo de crime em análise. (…) Prescreve o artigo 37º, da Constituição da republica Portuguesa que “1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. 2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura. 3. As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei. 4. A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos. Também o artigo 11º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE tutela a liberdade de expressão e de informação. Aqui prescrevem-se dois direitos, o direito de se exprimir livremente o respetivo pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, sem impedimentos nem discriminações, com particular; e o direito de se divulgar livremente o respetivo pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, sem impedimentos nem discriminações. Acresce estar constitucionalmente consagrado o pluralismo de expressão, pilar onde assenta o Estado de Direito Democrático, (cf. artigo 2º da CRP). O primeiro traduz-se na faculdade de se revelar o pensamento próprio a uma pessoa ou a um círculo mais ou menos restrito de pessoas, através de qualquer dos meios, sem impedimentos ou discriminações. Já o segundo consiste na faculdade de se fazer chegar o pensamento próprio a um universo vasto e indeterminado de pessoas, isto é, a um público. Em ambos os casos, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio e sem impedimentos nem discriminações. A generalidade da doutrina alude como se de um apenas se tratasse, o direito da liberdade de expressão, não os cindindo, nem dado o tratamento diverso que exigem. A liberdade de expressão, na sua dimensão substantiva abrange juízos de valor, convicções, ideias, opiniões, perspetivas, apreciações de factos, enfim, o pensamento. A sua tutela não exige requisitos ao pensamento exteriorizado, desde logo veracidade, inteligibilidade, racionalidade, interesse social, nem a sua proteção é condicionada pelo assunto sobre que versa o pensamento manifestado, ou está dependente dos fins visados pelo agente. De facto, a liberdade de expressão é assegurada em relação a todas as matérias, quaisquer que sejam as finalidades, sejam juízos inócuos, relativos a direitos fundamentais de outrem ou a interesses protegidos sejam comunicações chocantes, ofensivas e até danosas, exageradas, estão igualmente cobertas por esta liberdade. A liberdade de expressão não é, no entanto, nem nunca foi um direito absoluto. Há sempre um “mas” em todos enunciados que consagram o direito de cada um exteriorizar como entende o que entende. O “mas” pode estar explícito. Como sucede no artigo 10.º, número 2, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos: “O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.” O “mas” pode estar implícito e encoberto pela possibilidade de colisão do direito com outros direitos ou liberdades, exigindo um esforço de conciliação entre direitos conflituantes. Ou pode ser pressuposto tacitamente, como sucede no artigo 36.º, número 3, da Constituição Portuguesa com a referência a “infrações cometidas no exercício destes direito. Desde a adesão de Portugal à Convenção Europeia dos Direitos Humanos tem havido uma evolução no sentido de limitar as possibilidades de interferência na liberdade de expressão, que tem sido afirmado como valor cimeiro, pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que tem obrigado as autoridades nacionais a afinar pelo diapasão da sua jurisprudência, em função da aplicação do artigo 10º, e 8º, da Convenção Neste domínio do conflito entre a liberdade de expressão e o direito à reputação de terceiros, há um significativo conjunto de “casos portugueses”. O primeiro caso relevante neste contexto, foi o que opôs Vicente Jorge Silva ao Estado Português, na sequência da publicação de um editorial onde criticava a escolha de determinada personalidade, para candidato de um partido político à Câmara de Lisboa nos seguintes termos: “Nem nas arcas mais arqueológicas e bafientas do salazarismo seria possível desencantar um candidato ideologicamente mais grotesco e boçal, uma mistura tão inacreditável de reacionarismo alarve, sacristanismo fascista e anti-semitismo ordinário”. O visado apresentou queixa-crime e veio a ser deduzida acusação pelo crime de difamação, tendo do processo resultado a absolvição do então Diretor do Público, pelo tribunal de primeira instância. Desta sentença houve recurso para o Tribunal da Relação, que revogou a sentença recorrida e condenou o Diretor do Público, ao pagamento de multa e indemnização ao visado. Deste Acórdão houve recurso para o Tribunal Constitucional, que não concedeu provimento ao recurso e fez uma interpretação minimalista do escrutínio devido a estas situações: “decorrendo do próprio texto constitucional (o já referido n.º 3 do artigo 37.º) os limites a que se há-de subordinar a liberdade de expressão e de informação sem impedimentos nem discriminações – remetendo-se para os princípios gerais de direito criminal – as infrações por este estatuídas e de acordo com aqueles princípios, não possam ser aplicáveis se o seu cometimento resultar do exercício daquela liberdade. Se assim não fosse, poderia, em muitos casos, ficar inexoravelmente desprovido de conteúdo o núcleo essencial do direito ao bom nome e reputação”(cf. acórdão do Tribunal Constitucional 113/97, de 5 de fevereiro). Apresentada queixa ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, este entendeu que Vicente Jorge Silva exprimira uma opinião e que esta tinha uma base factual. O visado publicava artigos de opinião, a que o queixoso expressamente se referia no dito editorial, onde se transcreveram muitos excertos de tais artigos, permitindo ao leitor fazer a sua própria leitura. Considerou que o Estado português violou o artigo 10.º, por entender que a “condenação do jornalista não representava assim um meio razoavelmente proporcionado à prossecução do fim legítimo visado”. A este Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre a violação ao artigo 10.º da Convenção por Portugal, sucederam-se outros. Em quase todos, o Tribunal Constitucional não interveio (a última palavra das instâncias nacionais foi dada por tribunais judiciais, Tribunais da Relação ou Supremo Tribunal de Justiça) e em quase todos o desfecho foi desfavorável ao Estado Português. Em muitos estava em causa a liberdade de opinião – o que coloca problemas acrescidos, porque se a divulgação de factos falsos – tendo o autor consciência dessa falsidade – não está coberta pela liberdade de expressão, há que distinguir o que são afirmações de facto e o que são opiniões, uma vez que a existência de factos pode ser demonstrada, enquanto a veracidade de opiniões não é suscetível de prova. A propósito da divulgação de opiniões, entende o Tribunal que “a exigência de prova da verdade de uma opinião é impossível de cumprir e infringe a própria liberdade de expressão, que é uma parte fundamental do direito assegurado pelo art.º 10.º Contudo, mesmo quando uma afirmação corresponde a um julgamento de valor, a proporcionalidade da interferência pode depender de existir uma base factual suficiente para a afirmação impugnada, já que uma opinião sem qualquer base factual para a suportar pode ser excessiva. A liberdade de expressão alberga o direito ao silêncio. E no sentido negativo o direito à liberdade de expressão encerra a proibição de quaisquer impedimentos ou discriminações à manifestação. São dois os limites à liberdade de expressão: o pensamento tem de ser atribuível ao agente: «exprimir e divulgar livremente o seu pensamento» e o pensamento manifestado não pode ser subjetivamente falso. No entanto, tal apenas ocorrerá quando existir divergência entre o conteúdo a mensagem comunicada e o pensamento do agente. Já o objetivamente erróneo, como nota MELO ALEXANDRINO, resulta sem dúvida exercício legítimo da liberdade de expressão, só podendo ser combatido ou por manifestações contrárias ou pelo exercício do direito de retificação (cf. ALEXANDRINO, JOSÉ ALBERTO DE MELO, Estatuto…,cit., pág. 88). O artigo 37º, ainda consagra o direito de informação, o direito de informar, de se informar, de ser informado, sem impedimentos ou discriminações. Nos termos do artigo 18º, nºs. 2 e 3, da CRP, as restrições a direitos fundamentais, feitas por lei ou com base na lei, designadamente por decisão jurisdicional, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos da mesma natureza ou interesses objetivos constitucionalmente garantidos. Quer isto dizer que tais restrições devem respeitar o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, isto é, têm de ser adequadas (aptas), necessárias (exigíveis) e proporcionais (na justa medida) à proteção de outros direitos ou interesses constitucionais. Não podendo, em caso algum, diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais consagradores dos direitos atingidos. O julgador, estará obrigado a tentar a harmonização dos direitos ou direito e interesse objetivo que conflituem entre si. A qual deve alcançar-se fundamentalmente pela concordância prática desses bens. Ou seja, os direitos ou direito e interesse objetivo colidentes devem ser mútua e proporcionalmente restringidos, de modo a que se encontre uma solução ótima, que garanta a convivência equilibrada e harmónica dos bens em presença até onde for possível. Como deixamos assinalado, no tipo objetivo do tipo do artigo 187º, nº 1 do Código Penal apenas os factos inverídicos propalados, podem atingir a imagem e bom nome do organismo, serviço ou pessoa coletiva, na sua credibilidade, prestigio ou confiança. No caso concreto, o arguido não propalou factos, mas juízos, depreciativos, injustificados e generalizados, levantando suspeitas da prática generalizada de crimes, por parte do Ministério Público, ajuizando sobre a sua atuação, aludindo de forma grotesca a situações infundadas, injustificadas, sem correspondência com a realidade, sem substrato fatual concreto, assente em argumentação subjetiva, decorrente de uma certa visão ideológica, ainda que de elevada gravidade e conspirativa, razão da inexistência de factos exigidos para o preenchimento do crime p. no artigo 187º, nº1, onde apenas se mostra tipificado a afirmação ou propalação de factos, e não juízos de valor, opiniões convicções ou suspeitas, que são meras apreciações subjetivas, divergindo da injúria e da difamação. Pelo exposto, não nos merece censura a conclusão alcançada pelo Tribunal “a quo” a respeito da prova indiciária, ao afirmar “apesar da escrita do arguido estar corroída de afirmações censuráveis pelo seu carácter excessivo, contundente e possível gerador de suspeitas graves, ainda assim, considera o tribunal não se encontrarem extravasados os limites do direito de crítica e da liberdade de expressão e por isso não têm idoneidade para atingir o núcleo essencial do direito ao bom nome da magistratura do Ministério Público, estando, pois, excluída a tipicidade do seu comportamento.” Assim, bem andou o Tribunal a quo na decisão recorrida ao entender não estarem preenchidos os elementos típicos do crime supra enunciado, não se mostrando violados os arts. 308° e 283° do Código de Processo Penal e os arts. 187°, n.ºs 1 e 2, alínea a) e 183°, n.°1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, tendo interpretado corretamente o art.º 37° da Constituição da República Portuguesa. Porque os indícios recolhidos em sede de inquérito e constantes da acusação (não questionados por qualquer sujeito processual) não são suscetíveis de constituírem crime, a decisão recorrida, nos termos do artigo 308º, nº1, do Código de Processo Penal, é irrepreensível. Improcede em face do exposto o recurso no seu todo. IV. – DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso do Ministério Público, confirmando-se a decisão recorrida. Sem custas por o recorrente estar isento. (A presente decisão foi processado em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art.º 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal) Lisboa, 08-05-2025 Isabel M.T. Monteiro Jorge Rosas de Castro André Alves |