Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
663/24.1T8PDL.L2-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
CONDENAÇÃO NO RECONHECIMENTO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
FALTA DE CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário[1]:
(Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art.º 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil[2])
1. Pedir a condenação e condenar o réu a reconhecer o direito de propriedade do autor não tem em direito nenhum sentido, pois o réu não é condenado a reconhecer, não tem de prestar facto ou declaração com este conteúdo, sendo que, a única declaração que pode estar em causa é a do próprio tribunal.
2. Assim, o tribunal não deve condenar alguém a reconhecer o direito de propriedade de outrem sobre uma coisa, mas, antes, apreciar e declarar (se disso for o caso) a existência desse direito na esfera jurídica do autor, ou seja, o tribunal deve “limitar-se” a reconhecer (ou não) a existência do direito.
3. O convite ao aperfeiçoamento só tem cabimento, como concretização do direito de acesso à justiça e do princípio da proporcionalidade, se estiverem em causa articulados:
- faticamente insuficientes na exposição da matéria de facto alegada (art.º 590º, nºs 2, al. b) e 4, primeira situação regulada, do CPC); e/ou,
- faticamente imprecisos na concretização da matéria de facto alegada (art.º 590º, nºs 2, al. b) e 4, segunda situação regulada, do CPC),
insuficiências e/ou imprecisões essas estritamente formais, ou de natureza secundária, ligadas à apresentação ou formulação, mas não ao conteúdo, concludência ou inteligibilidade da própria alegação ou motivação produzida;
4. O mecanismo do convite ao aperfeiçoamento de insuficiências e/ou imprecisões não pode transmutar-se num modo de a parte apresentante de um articulado imperfeito ou deficiente obter novo prazo para, reformulando substancialmente a sua própria pretensão ou impugnação, obter novo e adicional prazo processual para substancialmente cumprir o ónus que sobre ela recaía.
5. Numa situação em que o juiz, no cumprimento do poder/dever previsto no art.º 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4, do CPC, proferiu despacho a convidar a autora ao aperfeiçoamento da petição inicial, ao qual esta correspondeu, não podia o julgador, imediatamente a seguir, determinar «o arquivamento dos presentes autos, por os mesmos não terem quaisquer condições de prosseguir», com fundamento na ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir;
6. No caso de a autora não lograr, após convite ao aperfeiçoamento e nos sucessivos momentos processuais que a lei lho permite, suprir as insuficiências e/ou imprecisões na exposição e/ou concretização da matéria de facto alegada na petição inicial, a decisão final nunca pode ser de absolvição dos réus da instância com fundamento na verificação da exceção dilatória consistente na nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, mas de conhecimento do mérito da causa, certamente no sentido da improcedência da ação.
7. Dá-se ainda o caso de, na situação sub judice, nunca poder haver lugar à absolvição da instância com o fundamento referido em 6., pois os réus, que nem sequer arguiram aquela exceção, demonstraram à evidência, na sua contestação, que interpretaram convenientemente a petição inicial (art.º 186.º, n.º 3, do CPC).
______________________________________________________
[1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
E – Construção, Lda. intentou esta ação declarativa, que classifica como de condenação, contra LC e mulher, MC, EC e mulher, MM, AC, e RC e marido JF.
A autora conclui a petição inicial pedindo o seguinte:
«Termos em que, pelas razões de facto indicadas e atento o disposto no art.º 1258, 1262º, 1263º, alínea a), 1268º, 1295º e 1296º e 1316º todos do C. Civil, deverão os R.R ser condenados a reconhecer a A. como dona e legitima proprietária da fracção ___, concelho de Ponta Delgada, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º ___, numa área correspondente, aproximadamente, a 212,35 m2 no que respeito diz ao rés do chão. E no primeiro andar do imóvel, com acesso através de umas escadas, num compartimento com 49,93m2 e num balcão exterior destinado à secagem de madeira com 124,69m2. Bem como reconhecida como única e legitima proprietária dum terreno contíguo ao rés do chão do imóvel supra identificado, com a área de 122,45 m2, omisso na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada, inscrito matricialmente sob o artigo ___ da Rua ___, Ponta Delgada, averbado como lote de terreno, mas, na realidade, um espaço físico onde se encontram implantadas os edifícios que constituem as oficinas da A. e onde ela exerce, também, a sua actividade e laboração das máquinas, tudo com uma área de, aproximadamente, de 509,42 m2 ou a que for pois que um levantamento topográfico certifica serem 522,32 m2».
Alega, em suma, que adquiriu tais espaços por usucapião.
*
Os réus LC e mulher, MC, AC, e RC e marido JF, apresentaram extensa e prolixa contestação, na qual, no essencial:
- se defendem por via de exceção:
- alegam não se verificarem os pressupostos da usucapião.
Além disso, deduzem vários pedidos reconvencionais contra os autores, cuja enunciação não releva para a decisão do presente recurso.
*
A autora replicou, pugnando pela improcedência dos pedidos reconvencionais contra si formulados.
*
No dia 16 de setembro de 2024, o senhor juiz a quo proferiu despacho a determinar «a suspensão dos presentes autos até que se mostre decidida a questão suscitada no processo de inventário nº____/__._T8PDL».
*
A autora recorreu desse despacho, o qual foi revogado por acórdão desta Relação, datado de 21 de novembro de 2024, que determinou o prosseguimento da instância.
*
Devolvidos os autos à 1.ª instância, no dia 21 de janeiro de 2025, o senhor juiz a quo proferiu despacho, do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Compulsados os autos, e findos os articulados, verifico a necessidade de proferir despacho pré-saneador, destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento da petição inicial [artigo 590º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Civil].
Repare-se que, conforme realçado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a Autora não esclareceu qual é a fração cuja propriedade reivindica, pois juntou uma cópia da inscrição predial em que o prédio urbano não está constituído em propriedade horizontal e não esclareceu como foi constituída a propriedade horizontal ou quais são as várias frações que as integram ou as partes comuns.
Pelo exposto, e ao abrigo disposto no artigo 590º, nº2, alínea b) do Código de Processo Civil, fica a Autora notificada para, no prazo de dez dias, aperfeiçoar a sua petição inicial nos termos supra expostos».
*
Correspondendo ao convite que lhe foi formulado, a autora apresentou, no dia 2 de fevereiro de 2025, nova petição inicial, à qual os réus contestantes responderam através do articulado apresentado no dia 15 de fevereiro de 2025.
*
Em seguida, no dia 6 de março de 2025, o senhor juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«Na sequência de acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, e ao abrigo do disposto no artigo 590º, nº2, alínea b) do Código de Processo Civil, foi a Autora convidada a aperfeiçoar a sua petição inicial.
Efetivamente, e conforme exposto pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a Autora não esclareceu qual é a fração cuja propriedade reivindica, pois juntou uma cópia da inscrição predial em que o prédio urbano não está constituído em propriedade horizontal e não esclareceu como foi constituída a propriedade horizontal ou quais são as várias frações que as integram ou as partes comuns.
A Autora respondeu ao convite e os Réus exerceram o seu contraditório.
Apreciando.
A petição inicial, ato processual que desencadeia o exercício do direito de ação, traduzindo-se no ato constitutivo da relação processual, é o único articulado essencial, melhor dizendo, indispensável à existência do processo. Este articulado, exatamente por ser aquele que dá início à ação, tem que conter uma narração dos factos concretos que a ela dão corpo (causa de pedir) e tem que explicitar as razões de direito que à mesma servem de suporte.
A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao pedido, isto é, o ato ou facto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) de onde emerge o direito que o autor se propõe fazer declarar (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 107 e 297).
Há falta de causa de pedir quando não é alegada qualquer factualidade, quando se verifique uma indicação vaga e genérica de factos ou se utilizem apenas expressões abstratas ou até da fórmula da lei, isto é, quando não se logre saber a proveniência do direito invocado.
Compulsado o articulado junto pela Autora, constata-se que o mesmo, mesmo após aperfeiçoamento, não obedece a esses requisitos, sendo patente a falta de factos concretos que suportem a alegação apresentada, nomeadamente, a identificação da fração cuja propriedade pretende ver reconhecida. Efetivamente, analisado o requerimento da Autora, verificamos que o mesmo é profícuo em alegações vagas e genéricas, sendo que nos dez artigos que escreveu continua a não esclarecer qual a fração cuja propriedade reivindica, nada sendo alegado quanto à propriedade horizontal, continuando o Tribunal sem conseguir entender se estamos perante uma fração autónoma ou um espaço suscetível de utilização independente.
Significa o que vem de dizer-se que nos encontramos, claramente, perante uma situação de ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir [artigo 186º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil].
Na verdade, se tivermos em consideração que a causa de pedir configura o facto ou o conjunto de factos materiais, concretos, que se submete à apreciação do julgador e não o modelo, a categoria ou tipo legal abstrato que a ordem jurídica estabelece, forçoso se torna concluir que a Autora não alegou os concretos factos indispensáveis à apreciação dos pressupostos necessários para o reconhecimento da sua propriedade (pois nem sequer sabemos qual é a fração em causa), deparando-nos, assim, com uma inexistência de factos e/ou de documentos que não nos permite conhecer e decidir da questão.
Conforme consta do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa: A autora também salientou que se discute nos presentes autos a propriedade de uma fracção e não do prédio. No entanto, tal argumento não colhe, porque a autora pede o seu reconhecimento como proprietária da fração do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º …, da freguesia de S. José. Trata-se, portanto, nos presentes autos de uma fração do prédio cuja partilha é peticionada no inventário. O grande “mistério” e obstáculo é que a autora não esclareceu que fração é esta (…) e tal mistério continua por esclarecer.
Ora, a indicação da causa de pedir, bem como a alegação dos factos correspondentes são da inteira responsabilidade do Autor não incumbindo ao Juiz substituir-se ao mesmo. Na verdade, ainda que possa convidar a parte a suprir as insuficiências da sua alegação, o Juiz não possui o poder/dever de dizer ao Autor quais devem ser os factos por si alegados para que se mostre suficientemente concretizada a causa de pedir alegada.
Tendo a Autora sido convidada a suprir as suas insuficiências e não as tendo feito, encontramo-nos perante uma situação em que os factos alegados não são suficientes para integrar a causa de pedir alegada, mostrando-se patente uma insuficiência de factos que nos permitam fazer prosseguir os autos, saneando-os e submetendo-os a julgamento (uma vez que a alegação efetuada não é suficiente para avaliar a pretensão da Autora).
Atento todo o exposto e tendo em consideração as disposições conjugadas dos artigos 186º, º 2, alínea a) e 552º, nº 1, alínea d), ambos do Código de Processo Civil, considero ser a presente petição inicial inepta e, consequentemente determino o arquivamento dos presentes autos, por os mesmos não terem quaisquer condições de prosseguir.
Custas pela Autora, por a elas ter dado causa (artigo 527º do Código de Processo Civil), fixando-se o valor da ação em 75.000,00€ (artigos 296º, 302º, nº 1 e 306º, todos do Código de Processo Civil)».
*
Inconformada, a autora rem recorrer para este Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo assim as suas alegações:
«1 – Os presentes autos iniciaram-se com o pedido de reconhecimento da aquisição do direito de propriedade sobre uma fracção (rés do chão) e 1º andar) do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ___, registado na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º ____, “bem como o reconhecimento como único e legitimo proprietário dum terreno contiguo ao rés do chão supra identificado com a área de 122,45 m2, omisso na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada, inscrito matricialmente sob o art.º ___ da Rua ____, Ponta Delgada, averbado como lote de terreno mas, na realidade um espaço físico onde se encontram implantadas os edifícios que constituem as oficinas da A. e onde ela exerce, também, a sua actividade e laboração das maquinas.
2 – Notificados os R.R. contestaram e deduziram pedido reconvencional peticionando a seu favor os efeitos jurídicos pretendidos pela A. sobre esses dois prédios.
3 – Em decorrência dum alerta suscitado pelo Tribunal da Relação de Lisboa a A. foi convidada a aperfeiçoar o primeiro pedido formulado – atinente ao prédio inscrito matricialmente sob o art.º. ___ e registado sob o art.º. ____ esclarecendo a fracção cuja propriedade reivindica pois não está constituída propriedade horizontal e/ou quais são as várias fracções que as integram ou as partes comuns.
4 – Por entender que o recorrente não respeitou o convite formulado o tribunal recorrido sentenciou que a petição inicial não indicou a causa de pedir nos factos correspondentes, declarando nos termos do disposto no art.º 186º, n.º 2, alínea a) e 552º, n.º 1, alínea d), ambos do Código Civil a ineptidão da petição inicial com o consequente arquivamento dos autos.
5 – O recorrente admite que o primeiro pedido formulado – reconhecimento do direito de propriedade por usucapião do prédio … – não reúne as condições de procedibilidade e conforma-se com a decisão que ordenou o arquivamento dos autos relativamente a este pedido pelo que, por apelo ao disposto no art.º 633º, n.º 2 e 3 do Código Processo Civil restringe no âmbito do seu recurso ao segundo pedido formulado (reconhecimento do direito de propriedade por usucapião sobre o imóvel inscrito matricialmente sob o art.º ____).
6- O recorrente não foi convidado a aperfeiçoar este segundo pedido (imóvel …) contudo a decisão recorrida ordenou o arquivamento dos autos, incluindo, o atinente ao segundo pedido formulado, sem justificar esse entendimento.
7- Ao não ter indicado e pormenorizado, ainda que minimamente, as razões de facto e /ou de direito que legitimaram esse arquivamento do segundo pedido formulado deverá a decisão recorrida ser considerada nula por falta de fundamentação à luz das normas conjugadas dos art.º 607º e 615º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil.
8- E mesmo que assim não fosse certo é que, qualquer (putativa) ineptidão da petição inicial encontra-se sanada por remissão para o disposto no art.º 186º, n.º 3 do Código de Processo Civil pois que os recorridos entenderem perfeitamente o conteúdo da petição inicial tendo contestado (quer a petição inicial quer na contestação) deduzindo pedido reconvencional.
9- O que conjugado determina a revogação da decisão recorrida e a prossecução da instância no que respeito diz ao conhecimento do segundo pedido formulado (apreciação da questão do direito da propriedade por usucapião sobre o prédio …)».
Conforme refere Rui Pinto, «depois de formular conclusões, o recorrente termina deduzindo um pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial»[3].
No presente recurso, após a formulação das conclusões as apelantes deduzem o seguinte pedido revogatório:
«Termos em que, pelas razões de facto e de direito invocadas, deverá a douta decisão recorrida ser revogada e, consequentemente, ordenada a prossecução da instância no que respeito diz ao segundo pedido formulado a petição inicial assim se fazendo a habitual,
Justiça».
*
Os réus contestantes contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
*
II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art.º 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art.º 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir se o despacho recorrido, que considerou inepta a petição inicial e determinou «o arquivamento dos presentes autos, por os mesmos não terem quaisquer condições de prosseguir», deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos.
***
III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A factualidade processualmente relevante para a decisão do recurso é a que decorre do relatório supra.
*
3.2 – Fundamentação de direito:
Num processo judicial há que atentar:
- no que se pede e como se pede; e,
- no que se decide e como se decide.
3.1.1 – O que se pede e como se pede em sede de ação:
Trata-se de se uma questão que não é objeto deste recurso, mas que se julga útil ser referida.
Não é possível alguém pedir a condenação de outrem a reconhecer a sua propriedade.
No Ac. do S.T.J. de 25/03/2009, C.J., XVII, 1.º, 2009, 159, afirma-se que normalmente pede-se, de forma esdrúxula a condenação do réu a reconhecer o direito de propriedade do autor, como se fosse possível pedir a condenação de alguém a reconhecer a sua propriedade.
Conforme certeiramente refere Oliveira Ascensão, «há que afastar uma ambiguidade que se oculta em certas referências ao pretenso pedido de reconhecimento da propriedade.
Diz-se que o reivindicante pode exigir do réu o reconheci­mento. Observemos desde já que isto não tem em Direito nenhum sentido. O réu não é condenado a reconhecer, não tem de prestar facto ou declaração com este conteúdo. A única declaração que pode estar em causa é a do próprio tribunal»[4].
Assim, o tribunal não deve condenar alguém a reconhecer o direito de propriedade de outrem sobre uma coisa, mas, antes, apreciar e declarar (se disso for o caso) a existência desse direito na esfera jurídica do autor; ou seja, deve o tribunal “limitar-se” a reconhecer (ou não) a existência do direito.
3.1.2 – O que se pede e como se pede em sede de recurso:
Diz a apelante que «admite que o primeiro pedido formulado – reconhecimento do direito de propriedade por usucapião do prédio … – não reúne as condições de procedibilidade e conforma-se com a decisão que ordenou o arquivamento dos autos relativamente a este pedido pelo que, por apelo ao disposto no art.º 633º, n.º 2 e 3 do Código Processo Civil restringe no âmbito do seu recurso ao segundo pedido formulado (reconhecimento do direito de propriedade por usucapião sobre o imóvel inscrito matricialmente sob o art.º …)».
Por assim entender, pede «a revogação da decisão recorrida e a prossecução da instância no que respeito diz ao conhecimento do segundo pedido formulado (apreciação da questão do direito da propriedade por usucapião sobre o prédio …)».
Parece evidente o equívoco em que a autora labora!
Dispõe o art.º 627.º, n.º 1, que «as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos».
Uma decisão judicial é um «ato processual[5]     pelo qual o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, enuncia uma solução para uma pretensão ou questão jurídicas, de mérito ou processual[6], no exercício da função jurisdicional[7].
No entanto, relativamente à «decisão judicial» enquanto objeto do ato processual de revogação importa notar ainda que a sua expressão pode ser variável, consoante o direito positivo e o requerimento do recurso.
Assim, o objeto da revogação (direta) é a parte dispositiva de uma decisão, ou seja, somente o enunciado conclusivo. Os fundamentos da parte dispositiva de uma decisão (no caso, de um despacho), não integram o objeto direto da revogação, o que significa que o recorrente não pode pedir a sua revogação.
Isto porque é a parte dispositiva da decisão que afeta a esfera jurídica do recorrente, com força obrigatória dentro do processo e fora dele quando faça caso julgado material[8].
Diga-se, ainda, que como efeito da procedência do pedido revogatório, em nexo de prejudicialidade com essa procedência, há lugar à prolação de uma nova decisão, sendo que, essa nova decisão substitutiva terá o mesmo objeto da decisão revogada.
Nos recursos de reponderação, como é o caso do presente recurso, a decisão impugnada é reavaliada no quadro do seu próprio objeto e em razão dos seus vícios específicos, pelo que o objeto do pedido (formulado no âmbito do recurso) é na parte de revogação a própria decisão e na da substituição da matéria que fora objeto da decisão revogada, tal e qual fora conhecida pelo tribunal a quo[9].
À luz destes considerandos e tendo em conta o teor da decisão proferida, a tarefa deste tribunal ad quem resume-se, no âmbito do presente recurso, a aferir se se verifica uma situação de erro de julgamento do tribunal a quo ao considerar inepta a petição inicial e, consequentemente, ao determinar «o arquivamento dos presentes autos, por os mesmos não terem quaisquer condições de prosseguir».
3.1.3 – O que se decide e como se decide:
O erro de julgamento a que acima se aludiu é, no caso concreto, por demais evidente.
E, diga-se, por mais do que um motivo!
No entender do senhor juiz a quo a petição inicial com que foi introduzida em juízo a presente ação é inepta por falta de causa de pedir.
Vejamos:
- a falta de causa de pedir gera a ineptidão da petição inicial (art.º 186.º, n.º 2, al. a);
- a ineptidão da petição inicial acarreta a nulidade de todo o processo (art.º 186.º, n.º 1);
- (...) o que constitui uma exceção dilatória (art.º 577.º, al. b);
- (...) de conhecimento oficioso (art.º 578.º);
- (...) impeditiva do conhecimento do pedido e determinante da absolvição do réu da instância (art.º 278.º, n.º 1, al. b), 571.º, n.º 2, 2.ª parte, 1.º segmento, e 576.º, n.ºs 1, 1.ª parte e 2).
Por conseguinte, julgando (ainda que sem razão) verificada uma tal exceção, impunha-se que o senhor juiz a quo, em vez de determinar «o arquivamento dos presentes autos, por os mesmos não terem quaisquer condições de prosseguir», absolvesse os réus da instância, nos termos das citadas disposições legais.
Não sendo, curiosamente, questão suscitada pela apelante, há que fazer-lhe referência, pela sua importância: a decisão recorrida é nula, pois configura uma flagrante violação do princípio do contraditório na vertente da proibição da prolação de decisões-surpresa (art.º 3.º, n.º 3).
Se bem observamos, em momento algum do processo, anterior à decisão recorrida, o senhor juiz a quo informou as partes de que ponderava julgar inepta a petição inicial e, consequentemente, determinar «o arquivamento dos presentes autos, por os mesmos não terem quaisquer condições de prosseguir».
Muito menos, como é elementarmente óbvio, lhes deu a possibilidade de sobre tal questão se pronunciarem.
Por conseguinte, o senhor juiz a quo não observou, nem fez cumprir, relativamente às partes, sobretudo em relação à autora, o princípio do contraditório na referida vertente.
Se ao senhor juiz a quo se afigurava ser nulo todo o processo por ineptidão da petição inicial com fundamento na falta de causa de pedir, e ponderava vir a julgar verificada tal exceção dilatória, com a consequente absolvição dos réus da instância (e não com a determinação «[d]o arquivamento dos presentes autos, por os mesmos não terem quaisquer condições de prosseguir»), então, devia tê-lo afirmado previamente, de forma expressa e clara, em anterior despacho, e ordenado a notificação das partes para se pronunciarem.
Ou seja: devia ter afirmado expressamente, em anterior despacho, sem deixar margem para quaisquer dúvidas, que se lhe afigurava ser nulo todo o processo por ineptidão da petição inicial com fundamento na falta de causa de pedir.
Mas nem sequer poderia quedar-se por aí, pois mesmo afirmando de modo expresso e inequívoco, em despacho prévio:
- que se lhe afigurava ser nulo todo o processo por ineptidão da petição inicial com fundamento na falta da causa de pedir; e
- que ponderava vir a julgar verificada tal exceção dilatória e, consequentemente absolver os réus da instância,
isso seria insuficiente para que se pudesse considerar ter o senhor juiz a quo observado e feito cumprir, plenamente, tanto o princípio do contraditório, como os princípios da igualdade, da boa fé processual e da recíproca cooperação que deve existir entre as partes e o juiz.
O cabal respeito por tais princípios, impunha que o senhor juiz a quo, prevenisse as partes, não apenas que:
 - equacionava julgar verificada a exceção dilatória de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial com fundamento na falta de causa de pedir; e, consequentemente,
- ponderava absolver as rés da instância,
dando-lhes a possibilidade de sobre tal questão se pronunciarem, mas que lhes indicasse, de forma expressa, clara e fundamentada, as razões pelas quais, em seu entender, a petição inicial padecia do vício de falta de causa de pedir.
Só assim o senhor juiz a quo teria observado e feito cumprir, plenamente, princípios estruturantes do processo civil como os acima enunciados, desde logo, o do contraditório quanto a uma decisão-surpresa que o despacho recorrido manifestamente evidencia.
É que, o n.º 3 do art.º 3.º, consagrando expressamente o princípio do contraditório na vertente da proibição da prolação de decisões surpresa, garante às partes a sua efetiva intervenção no desenvolvimento de todo o litígio, sob pena de nulidade da decisão que o não respeite: é o que se chama de contraditório dinâmico.
Tal como se escreve no Ac. do S.T.J. de 17.06.2014, Proc. n.º 233/2000.C2.S1 (Maria Clara Sottomayor)[10], in www.dgsi.pt, «deve esclarecer-se, em primeiro lugar, que se tem entendido que o art.º 3.º do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado na Alemanha, país donde dimanou e tem longo historial, verificando-se importantes diferenças de regime entre o Código de Processo Civil português e o alemão».
O que o n.º 3 do art.º 3.º consagra, afirma-se naquele aresto, em sintonia, aliás, com o entendimento de Lebre de Freitas, é a garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, facultando-lhes a possibilidade de influírem em todos os elementos processuais (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que apareçam como potencialmente relevantes para a decisão; ou seja, o escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.
Pela sua importância, não poderia este tribunal de recurso, crê-se, deixar de abordar esta questão, não obstante a apelante em momento algum se lhe referir, não constituindo, por isso, objeto do recurso.
Adiante!
O senhor juiz a quo não podia, depois de proferir o transcrito despacho datado de 21 de janeiro de 2025, de convite à autora para aperfeiçoamento da petição inicial, ao qual esta correspondeu, vir mais tarde a julgar inepta a petição inicial por falta de causa de pedir.
Foi, no entanto, precisamente o que fez através do despacho recorrido.
Estamos, desde logo, como é bom de ver, perante de um procedimento manifestamente incongruente e inaceitável.
Dispõe o art.º 590.º, n.º 2, al. b), que «findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a (...) providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes», acrescentando o n.º 4 que «incumbe (...) ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido».
Conforme referem Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Sousa, manifesta-se no citado n.º 4 do art.º 590.º «um verdadeiro dever legal do juiz (despacho de aperfeiçoamento vinculado), no sentido de identificar os aspetos merecedores de correção. Não se trata, como é óbvio, de salvar petições afetadas por ineptidão resultante de falta ou ininteligibilidade da causa de pedir (art.º 186.º), mas apenas de corrigir articulados que, cumprindo os requisitos mínimos, se revelem, contudo, insuficientes, deficientes ou imprecisos em termos de fundamentação da pretensão.
(...).
Nestas situações em que se verifique imprecisão, vacuidade, ambiguidade ou incoerência de algum articulado, o juiz profere despacho de convite ao aperfeiçoamento (...). O mesmo se dirá das peças cujo teor é conclusivo, quer porque se omitiram os concretos factos que sustentam as conclusões, quer porque a parte se limitou a reproduzir a fórmula legal invocada (...).
Neste âmbito, importa atentar que o convite ao aperfeiçoamento dos articulados supõe que estes contenham um limite fáctico mínimo, aquém do qual não é possível diligenciar no sentido desse aperfeiçoamento. Com efeito, e quanto ao autor, é imprescindível que o seu articulado revele (individualize) a causa de pedir em que se baseia a respetiva pretensão (...).
Se faltar a causa de pedir, a petição será inepta, o meso sucedendo se tal causa for ininteligível (...), gerando uma exceção dilatória e a consequente absolvição do réu da instância (...). Num caso e noutro, não será possível colmatar o vício por via do convite (...).
O convite ao aperfeiçoamento visa completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é percetível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-nos em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçados nos autos. Coisa diversa, e afastada do âmbito do art.º 590.º, n.º 4, seria permitir à parte, na sequência desse despacho, apresentar, ex novo, um quadro fáctico até então inexistente ou de todo impercetível (o que, aqui, equivale ao mesmo), restrição que, aliás, também decorre do art.º 590.º, n.º 6»[11].
Por outras palavras:
- se a petição inicial não contiver factos complementares e/ou concretizadores, o juiz, nos termos do poder-dever previsto no art.º 590º, nºs 2, al. b) e 4, deve proferir despacho pré-saneador de modo a providenciar pelo seu aperfeiçoamento, convidando o autor ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada;
- se no articulado são omitidos factos principais que servem de base ao pedido concretamente formulado ou à exceção invocada, há uma situação de ineptidão da petição inicial (art.º 186º nº 2 al. a)).
Significa isto que o convite ao aperfeiçoamento só tem sentido quando se trate de meras imprecisões ou insuficiências situadas num plano de literalidade que não afeta a principalidade do que estiver em causa, que não significa a renovação do direito, a ofensa da preclusão e a estabilidade.
Nesta linha de pensamento, já foi afirmado pelo Tribunal Constitucional que «o convite só tem justificação, como concretização do direito de acesso à justiça e do princípio da proporcionalidade, quando as deficiências notadas forem estritamente formais, ou de natureza secundária, ligadas à apresentação ou formulação, mas não ao conteúdo, concludência ou inteligibilidade da própria alegação ou motivação produzida, não podendo o mecanismo do convite ao aperfeiçoamento de deficiências formais do acto da parte, transmutar-se num modo de esta obter novo prazo para, reformulando substancialmente a sua própria pretensão ou impugnação, obter novo e adicional prazo processual para substancialmente cumprir o ónus que sobre ela recaía»[12].
Não há, pois, lugar a convite ao aperfeiçoamento quando o que é insuficiente não é a alegação, mas a realidade alegada, destinando-se o mecanismo do art.º 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4, a suprir a insuficiência do alegado.
Retornando ao caso concreto, o senhor juiz a quo, antes mesmo de dar oportunidade à autora de se pronunciar quanto às exceções deduzidas pelos réus contestantes, proferiu o despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.
Na verdade, consta do referido despacho, datado de 21 de janeiro de 2025, acima transcrito, além do mais, o seguinte:
«Pelo exposto, e ao abrigo disposto no artigo 590º, nº2, alínea b) do Código de Processo Civil, fica a Autora notificada para, no prazo de dez dias, aperfeiçoar a sua petição inicial nos termos supra expostos.
*
Mais se convida a Autora para, em igual prazo, se pronunciar quanto às exceções invocadas nas contestações (ilegitimidade passiva dos Réus AC, MC, JF e MM, ilegitimidade da A), nos termos dos artigos 3º, nº3, 6º e 547º, todos do Código de Processo Civil».
Seja como for, independentemente do momento processual em que foi prolatado, se o senhor juiz a quo proferiu despacho a convidar a autora ao aperfeiçoamento da petição inicial nos termos em que o fez, foi, obvia e logicamente, porque considerou que ela:
- não era inepta por falta de causa de pedir;
- continha um limite fático mínimo;
- apresentava meras imprecisões e/ou insuficiências na exposição e/ou concretização da matéria de facto alegada, não afetando a principalidade do que está aqui em causa.
- continha um núcleo de factos essenciais estruturantes, identificadores, individualizadores, da causa de pedir (arts. 5.º, n.º 1 e 552º, n.º 1, al. d), 1.ª parte).
Proferido aquele despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, não podia o senhor juiz a quo, tal como já afirmado, proferir posteriormente despacho a considerar inepta a petição inicial por falta de causa de pedir e a determinar «o arquivamento dos presentes autos, por os mesmos não terem quaisquer condições de prosseguir».
Proferido aquele despacho de convite ao aperfeiçoamento, como que se esgotou o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da exceção dilatória consistente na nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial com fundamento na falta de causa de pedir.
A autora correspondeu ao convite ao aperfeiçoamento que lhe foi feito através do despacho datado de 21 de janeiro de 2025.
Considerando o senhor juiz a quo que a autora não logrou, ainda assim, aproveitar a oportunidade que lhe foi dada na sequência desse despacho, ou seja, não logrou suprir cabalmente as imprecisões e/ou insuficiências na exposição e/ou concretização da matéria de facto alegada na petição inicial, motivadoras do despacho de convite ao aperfeiçoamento, persistindo irremediavelmente a originária insuficiência ou deficiência na densificação factual dos factos substantivamente relevantes que alegou, isso jamais poderia conduzir à absolvição dos réus da instância por verificação da exceção dilatória consistente na nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial com fundamento na falta de causa de pedir, mas à improcedência da ação, por insuficiência do acervo factual constitutivo do direito invocado pela autora.
Se outra razão não houvesse, em face do que vem de ser exposto, jamais o despacho recorrido poderia subsistir.
Há, no entanto, outras razões determinantes da revogação da decisão recorrida e, consequentemente, da procedência da apelação.
A autora correspondeu, como se disse ao convite que lhe foi feito para aperfeiçoar a petição inicial.
Sucede que a análise conjugada dos arts. 5.º, n.º 2, al. b), 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4, e 591.º, n.º 1, al. c), permite concluir o seguinte:
a) um articulado faticamente insuficiente, que cabe na categoria de articulados imperfeitos, dá lugar à prolação de um despacho pré-saneador de convite ao complemento [art.º 590º, nºs 2, al. b) e 4, primeira situação regulada («suprimento das insuficiências (…) na exposição (…) da matéria de facto alegada»)], ou à inclusão de tal suprimento entre os fins da audiência prévia, no caso daquele despacho não ter sido proferido ou, tendo-o sido, e a parte ter correspondido ao convite formulado, não ter logrado, ainda assim, suprir cabalmente as insuficiências do articulado inicial [art.º 591º, nº 1, al. c) - «suprir as insuficiências (…) na exposição da matéria de facto»]. No caso desta imperfeição ser letal para a pretensão da ação, pode a mesma ainda ser suprida com o conhecimento dos factos essenciais complementares em momento posterior à audiência prévia, nomeadamente em sede de instrução da causa [art.º 5º, nº 2, al. b), primeira situação regulada («Os factos que sejam complemento (…) dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa (…)»)];
b) um articulado faticamente impreciso, que também cabe na categoria de articulados imperfeitos, dá lugar à prolação de um despacho pré-saneador de convite à correção [art.º 590º, nºs 2, al. b) e 4, segunda situação regulada («suprimento das (…) imprecisões (…) ou concretização da matéria de facto alegada»)] ou à inclusão de tal suprimento entre os fins da audiência prévia, no caso daquele despacho não ter sido proferido ou, tendo-o sido, e a parte ter correspondido ao convite formulado, não ter logrado, ainda assim, suprir cabalmente as imprecisões do articulado inicial [art.º 591º, nº 1, al. c) - «suprir as (…) imprecisões na exposição da matéria de facto»]. No caso desta imperfeição ser letal para a pretensão da ação (ou da exceção ou da reconvenção), pode a mesma ainda ser suprida com o conhecimento dos factos essenciais complementares em momento posterior à audiência prévia, nomeadamente em sede de instrução e discussão da causa [art.º 5º, nº 2, al. b), segunda situação regulada («Os factos que sejam (…) concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa (…)»)][13].
Ou seja, tendo a autora correspondido ao convite formulado, e não tendo logrado, no entender do senhor juiz a quo, suprir cabalmente as insuficiências e/ou imprecisões na exposição e/ou concretização da matéria de facto alegada na petição inicial, isso deveria ter dado lugar à convocação da audiência prévia, além de outros, com esse fim.
Ainda que na audiência prévia, convocada, repete-se, além de outros, com esse fim, a autora não tivesse logrado suprir cabalmente as insuficiências e/ou imprecisões na exposição e/ou concretização da matéria de facto alegada na petição inicial, ainda assim, sempre restaria a hipótese prevista no atual art.º 5º, nº 2, al. b)[14], o “último cartucho”, por assim dizer, que o legislador guardou para ser gasto depois de esgotadas as três fases processuais atrás indicadas[15], sem que os referidos factos, complementares e/ou concretizadores, tenham sido incorporados no processo.
Trata-se, como se disse, da última hipótese concedida pelo legislador para serem completados os articulados faticamente insuficientes, para que sejam carreados para o processo aqueles factos essenciais completadores, caso a sua presença no processo se revele absolutamente essencial para a procedência da ação, da exceção ou da reconvenção, assim se permitindo também alcançar o maior grau de correspondência possível entre a verdade judicial declarada na sentença e a verdade daquilo que efetivamente ocorreu na vida real[16].
A última razão determinante da revogação da decisão recorrida e, consequentemente, da procedência da apelação, reside, naturalmente, no art.º 186.º, n.º 3: «Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial».
No caso sub judice, os réus contestantes, não só não arguiram, na contestação apresentada, a ineptidão com fundamento na al. a) do n.º 2 do art.º 186.º, ou seja, na falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, como demonstraram, como facilmente se observa, que interpretaram convenientemente a petição inicial.
Conclui-se, à luz do excurso que antecede, que o despacho recorrido carece de fundamento legal, incorrendo em evidente erro de julgamento, pelo que não pode subsistir, antes devendo, na procedência da apelação, ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos, com vista ao conhecimento do mérito da causa, caso, obviamente, nenhuma outra exceção dilatória, alegada pelos réus ou de que o tribunal deva conhecer oficiosamente, obste a tal conhecimento.
***
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação procedente, em consequência do que, revogam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos, nos termos e para os efeitos atrás indicados.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo dos recorridos (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663º, n.º 2)
*
Lisboa, 13 de maio de 2025
José Capacete
Ana Rodrigues da Silva
Edgar Taborda Lopes
_______________________________________________________
[1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.
[3] Manual do Recurso Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 293.
[4] Estudos em Homenagem ao Professor Doutor João de Castro Mendes, Lex, 1995, pp. 21-22.
[5] Segundo TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, Lex, 2000, p. 91, a decisão judicial é um ato processual enquanto ato que produz, de forma direta, efeito em processo.
[6] Para LOIC CADIET / EMMANUEL JEULAND, Droit judiciaire général, Paris, LGDI, 2014, p. 617, a decisão judicial é o «ato pelo qual o juiz se pronuncia sobre uma pretensão jurídica, haja ou não litígio entre duas ou mais pessoas». A noção de decisão judicial abrange também as decisões pronunciadas oficiosamente, sem dedução de pretensão do sujeito processual. Quanto à sua relação com a consequência procedimental uma decisão pode interlocutória e final.
[7] Cfr. RUI PINTO, O Recurso Civil, Uma Teoria Geral, Noção, Objeto, Natureza, Fundamento, Pressupostos e Sistemas, AAFDL, Lisboa, 2017, p. 62.
[8] Idem, p. 65.
[9] Idem, p. 69.
[10] Citado, aliás, no Ac. do TRL de 10.09.2020, proferido no Proc. n.º 12841/19.0T8LSB.L2-6 (Ana de Azeredo Coelho), exaustivamente transcrito pela senhora juíza a quo no despacho que desatendeu a arguição de nulidade da sentença recorrida. A exaustiva transcrição daquele acórdão no referido despacho, foi feita de forma acrítica, pois o que nele se decidiu é insuscetível de servir de “amparo” ao entendimento sufragado pela senhora juíza a quo naquele despacho.
[11] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, 2022, pp. 730-732.
[12] Cfr. Acs. do TC nºs 40/00, de 26.01.2000 (José de Sousa Brito) e 374/00, de 13.07.2000 (Vítor Nunes de Almeida).
[13] Cfr., neste sentido, António Montalvão Machado, O Dispositivo e os Poderes do Tribunal à Luz do Novo Código de Processo Civil, 2.ª Edição, Almedina, 2001, p. 353.
[14] «Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz (...) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar».
[15] Petição inicial, pré-saneador e audiência prévia.
[16] Cfr. Montalvão Machado, O Dispositivo cit.iob cit., oboooiiiIdem, p. 350.