Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2491/24.5T8TVD.L1-8
Relator: RUI VULTOS
Descritores: REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
RESIDÊNCIA ALTERNADA
DISTÂNCIA ENTRE RESIDÊNCIAS
SUPERIOR INTERESSE DO MENOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário:[1]
I. A residência alternada de um menor, acordada em processo de divórcio pelos pais, no âmbito da regulação das responsabilidades parentais, não afasta que a apreciação a efetuar pelo tribunal tenha sempre em consideração, em primeiro lugar, o interesse superior da criança.
II. A solução de residência alternada é a que melhor serve o interesse do filho, sendo apta a minimizar os efeitos da separação e constituindo a que mais se aproxima da vida em comum do casal, desde logo, pela continuação igualitária de convívio, evitando ruturas bruscas nas relações parentais, bem como estimulando a partilha de responsabilidades entre ambos os progenitores, condições importantes para um são desenvolvimento do menor.
III. A distância entre as residências dos progenitores ou entre estas e a escola do menor está entre os vários fatores que devem ser considerados, tendo em atenção a influência que tal pode ter na vida da criança.
IV. Não é impeditivo de fixação residência alternada o simples facto dessa distância ser de 61 Km, quando a criança se sente bem e gosta dessa alternância, tal já ocorrendo de facto há vários meses, sem que se verifiquem ou se preveja que se venham a verificar, quaisquer efeitos desfavoráveis ao bem-estar ou desenvolvimento harmonioso da criança.

[1] Da responsabilidade do Relator – artigo 663.º n.º 7 do Código do Processo Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório.
Por ofício do Sr. Conservador da Conservatória do Registo Civil […] e no cumprimento do disposto no n.º 7 do artigo 14.º do DL n.º 272/2001 de 13 de janeiro, foram os autos enviados ao tribunal, uma vez que o Ministério Público recusou o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais apresentado pelos aí requerentes relativamente à sua filha, menor de idade […] pelo facto daquele entender não ser aquele acordo conforme ao superior interesse da menor.
Recebidos os autos, foi designada e realizada a conferência para realização de tentativa de conciliação. Finda esta, na qual, entre o mais, foi ouvida a menor, foi determinada a abertura de conclusão para que fosse proferida a respetiva decisão.
Em 26 de março de 2025, foi proferida sentença que decidiu homologar o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais apresentado pelos pais, bem como os demais acordos juntos nos termos do artigo 117.º n.º 5 do Código Civil. Mais decidiu o Tribunal decretar o divórcio dos Requerentes […].
É desta sentença que o Ministério Público veio apresentar o presente recurso por não concordar com a mesma no segmento em que homologa o acordo de responsabilidades parentais apresentado pelos progenitores.
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São as seguintes as conclusões do recurso:
1. A representação, defesa e promoção dos direitos e interesses das crianças e dos jovens constitui uma área de intervenção do Ministério Público, amplamente concretizada nos artigos 4.º n.º 1, alíneas b) e i) e 9.º n. º 1, alíneas b) e d) do Estatuto do Ministério Público e artigo 17º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível;
2. Compete assim ao Ministério Público intervir como garante dos Direitos das Crianças, assumindo um papel de destaque na regulação e cumprimento das responsabilidades parentais pelos progenitores, promovendo o crescimento e o desenvolvimento harmonioso das crianças de forma a ser assegurado o superior interesse de cada uma delas;
3. No exercício dessas suas funções começou o Ministério Público por emitir parecer desfavorável quanto ao acordo relativo ao exercício das responsabilidades parentais da menor em presença […], apresentado pelos seus pais no âmbito do seu processo de divórcio por mútuo consentimento apresentado na Conservatória […];
4. Como os requerentes nesse processo, tivessem recusado apresentar novo acordo que acolhesse a sugestão do Ministério Público no sentido de ser fixada a residência única da […] junto da progenitora que reside na localidade onde se situa o estabelecimento de ensino frequentado pela criança, veio tal processo de divórcio a ser remetido para este Juízo de Família e Menores de Torres Vedras e proferida a decisão em recurso;
5. No âmbito destes autos começou o Tribunal em conferência por proceder à audição da […], tendo esclarecido a criança de apenas 7 (sete) anos de idade), com particular relevo que “Quando está em casa do pai e tem de ir para a escola, a criança acorda, por vezes, às 6h00 outras vez mais tarde, sendo que, de acordo com a menor, o caminho é “grande”, sendo habitual ver vídeos e jogar no telemóvel durante a viagem realizada pelo progenitor”.
6. Bem como que “é o pai quem também a vai buscar ao estabelecimento de ensino, sendo que, por vezes, depois da escola, vai para o stand onde o pai trabalha […] durante algum tempo, antes de fazerem a viagem de regresso a […] sendo que, nessas ocasiões, também chega a ficar no carro enquanto o pai acaba o trabalho. Nessas alturas em que está com o pai, faz os trabalhos de casa depois do jantar. Na casa da mãe, vivem a progenitora, a criança e uma cadela, ficando a residência da progenitora próxima da escola, pelo que o caminho é “pequeno”.
7. “Questionada sobre as viagens que faz com o pai, diz que gosta de fazer as viagens, mas que, por vezes, fica tonta, sendo a deslocação mais cansativa de manhã do que à tarde”.
8. Mais esclareceu a criança que “(…) por vezes, também faz os TPC no stand onde o pai trabalha, tendo completado quando instada que “(…) por vezes, chega atrasada à escola na semana em que está com o pai, explicando que este nem sempre chega a tempo de a menor integrar a “carreirinha” que as crianças fazem de forma ordeira para entrarem na sala de aulas”;
9. Desta forma muito embora se haja considerado na decisão em recurso que “(…) num contexto em que ambos os pais têm uma boa comunicação entre si, estando a praticar já o referido regime de residência alternada há 7 meses sem notícia de desentendimentos entre ambos ou de problemas escolares relacionados com as aludidas viagens (nomeadamente, atrasos da criança, situações de sono, de cansaço ou de falta de atenção da menor) (…)”, certo é que o próprio teor das declarações assim prestadas pela menor evidenciam o contrário quando a mesma referiu que sente cansaço quando na semana do pai após a viagem “grande” da manhã para a escola e em cujo final se sente “tonta”;
10. Entre a residência da progenitora, local onde a criança frequenta diariamente o seu estabelecimento de ensino e a residência do pai, existe uma distância de cerca de 61 Km, o que implica que percorra diariamente mais de 120 km e ao final de 5 dias úteis de escola cerca de 600km, num esforço de contínua viagem entre tais locais e, por consequência, da estabilidade na construção das suas rotinas e salvaguarda do seu bem-estar físico e emocional;
11. São as próprias declarações da própria criança que o demonstram, quando esclareceu o Tribunal que na semana do progenitor acorda regularmente às 06h00m da manhã (sendo neste particular evidente que o Tribunal não atendeu à hora que a criança referiu levantar-se optando por aderir à hora indicada pelo progenitor, isto é, 07h30m), para depois encetar na viatura do progenitor uma viagem que na sua simplicidade qualifica como “grande” e durante a qual não descansa, mas assiste a vídeos e joga no telemóvel, o que naturalmente, como referiu implica que “fique tonta”;
12. Avaliando e concluindo, a criança, realisticamente, que essa sua deslocação da manhã é mais cansativa do que a efetuada à tarde até porque muitas vezes depois da escola não vai diretamente para a casa do pai ficando com este no seu local de trabalho, inclusivamente no interior da sua viatura automóvel, à espera que o horário laboral daquele se conclua;
13. Na verdade, por contingências profissionais do pai da criança que exerce funções […], depois de sair da sua escola ao final do dia em […], acontece com uma regularidade que não se determinou, a criança ser transportada pelo progenitor para um ou ambos estes locais onde permanece “no carro enquanto o pai acaba o trabalho” fazendo nesses dias depois os seus trabalhos de casa à noite na residência do progenitor;
14. Segue-se depois nova viagem no decurso da qual a menina não dorme tranquilamente, não descansa, mas recorre a vídeos e jogos no telemóvel para aguentar a duração “grande” da deslocação a que está diariamente sujeita e que implica que fique tonta por força do seu visionamento prolongado no interior de uma viatura automóvel em movimento e isto diariamente, ao longo de toda uma semana;
15. Podendo ainda acontecer a criança realizar as suas tarefas escolares nas instalações do próprio stand […] enquanto espera pelo seu progenitor para depois regressar a casa realizando nova viagem de cerca de 60 km em relação quando o dito stand é aquele situado em […];
16. São princípios basilares a observar, no que respeita à determinação da residência do menor, o superior interesse da criança, a igualdade entre os progenitores e a disponibilidade manifestada por cada um dos progenitores para promover relações habituais do filho com o outro progenitor, prevalecendo, contudo, sempre o superior interesse da criança.
17. O processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, é sempre orientado de acordo com o critério do superior interesse da criança, conceito normativo legal para decidir todas as questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais, sendo o valor primordial a ter em conta, e sobrepondo-se a outros de qualquer natureza que eventualmente estejam em causa;
18. Num contexto como aquele dado como assente nos autos, não podemos considerar que o regime implementado pelos pais da […] desde Setembro de 2024 e agora acolhido pelo Tribunal salvaguarde o superior interesse desta criança, tudo evidenciando ao invés que decorridos apenas cerca de 6/7/meses após a sua execução a […] apesar da sua tenra idade já identifica claramente e verbaliza, como verbalizou, de forma coerente, os efeitos da sua inconveniência em termos físicos e por conseguinte, ao nível do seu bem estar quando se encontra residente com o seu progenitor;
19. Mas mais, se o processo natural de desenvolvimento da menor implica que por força da sua crescente idade vá adquirindo mais resistência física perante as agruras das suas deslocações quando na residência do progenitor, implicará também o crescimento da menor em termos escolares, o aumento da complexidade das suas aprendizagens e por consequência dos trabalhos de casa a realizar e do tempo despendido na sua realização;
20. Afigura-se, pois, a nosso ver que in casu o peso da “logística” e encargo físico que impende sobre a criança quando na semana do progenitor não é nem poderá ser compensado “pela manutenção de uma relação de grande proximidade com os seus progenitores” tal como prevê o artigo 1906º, nº 8, do Código Civil, nem a residência alternada poderá ser instituída a todo o custo com prejuízo da menor, do seu sossego e do seu descanso, valores que interessa preservar;
21. O interesse superior da criança constitui um conceito jurídico amplo, aberto e indeterminado, tendo o legislador sabiamente optado por uma noção aberta ciente que uma norma legal não pode jamais apreender o fenómeno familiar na sua infinita variedade e imensa complexidade;
22. Como tal, o que num caso poderá ser tido como adequado, seguro e aceitável para os interesses de uma criança poderá já não o ser para outra, devendo para tanto atender-se em cada caso de forma criteriosa, ao concreto contexto familiar do menor, às suas vivências, à sua idade e características próprias que não a confundem com nenhuma outra;
23. Constitui obstáculo preponderante impeditivo no caso dos autos ao acautelar do superior interesse da […] a distância entre as residências dos progenitores, entre a residência do pai e a escola frequentada pela […], o tempo e o número de deslocações que a criança é obrigada a realizar de e para a escola e desta para os stands […] de automóveis onde o pai trabalha e a final para a residência paterna onde por vezes ainda carece de efetuar os seus trabalhos de casa à noite;
24. Como considerado num recente aresto da Relação de Lisboa “(…) Já se vê pelo que acabámos de expor que temos como o regime abstratamente mais adequado para uma criança ou jovem, a guarda partilhada. Mas não a qualquer custo. Outros fatores têm de ser levados em consideração, como a distância geográfica entre as residências dos progenitores, os sacrifícios suscetíveis de serem feitos, ou mesmo a vontade do próprio menor (considerando a maturidade e argumentação que possa demonstrar)”;
25. Ainda que resulte dos autos a boa convivência entre os progenitores da […] ambos acérrimos defensores da residência alternada da sua filha como se viu na tramitação do presente processo, certo é que, como se defendeu nesse mesmo recente Acórdão da Relação de Lisboa “(…) O acordo dos pais não é condição necessária para a fixação do regime das responsabilidades parentais, mas apenas um dos fatores que têm de ser considerados (sendo que, existindo, se torna muito mais facilitador de todo o processo)”;
26. Diversos podem ser os interesses concorrentes dos progenitores na concordância para um regime de residência alternada desde a conveniência para o exercício da sua atividade profissional, “questões de logística” ou mesmo de natureza financeira, acabando por pretender fazer adequar o regime de residência dos filhos, muitas vezes, com os seus próprios interesses, descurando o que é mais adequado a salvaguardar o interesse das crianças cuja capacidade de adaptação e resiliência se sobrevaloriza;
27. Foi essa a postura dos pais da menor, ao minimizar muitas das particularidades verbalizadas pela menor quando ouvida pelo Tribunal nomeadamente a preocupação evidenciada pela criança por “chegar atrasada” associada à circunstância de não poder participar com os seus coleguinhas na fila dos alunos que no início das aulas se dirige para a sala;
28. Não obstante haja homologado o acordo dos autos entendeu o Tribunal determinar a “(…) fiscalização do cumprimento do acordo de regulação ora homologado pelo período de 6 meses nos termos do artigo 40º nº6 do RGPTC”, fiscalização essa que a revelar “situações graves de incumprimento dos horários por parte do progenitor ou de dificuldades da criança em lidar com as viagens” motive o Ministério Pública a instaurar “acção de alteração de regulação e, por essa via, acautelar a situação da criança”;
29. Ora, as circunstâncias que hoje se verificam já evidenciam as dificuldades da […] em “lidar com as viagens” o que a implica que, a serem reportadas posteriormente pela EMAT não se possa lançar mão do disposto no artigo 42º, nº 1, do RGPTC que exige precisamente a verificação de supervenientes condições que antes se desconheciam ou inexistiam e que tornem necessário alterar o que anteriormente se fixou o que não é o caso;
30. É precisamente para obstar a “situações graves de incumprimento dos horários por parte do progenitor” que “a logística” apurada nos autos caracteriza a semana da menor quando residente com o seu progenitor nos moldes que foram apurados, tendo-se limitado o Tribunal dessa forma a colocar a tónica de um futuro incumprimento motivador de alteração de regime nos graves atrasos escolares da criança descurando os demais efeitos negativos para a criança ao nível do seu descanso diário que já ocorrem;
31. Sempre se acrescentando que restando dúvidas sobre a adequabilidade do acordo apresentado pelos progenitores exigindo precisamente o artigo 40º, nº 6, do RGPTC que se “julgue haver o risco de incumprimento da decisão”, deveria o Tribunal ter recusado a sua homologação ao invés de determinar a sua posterior fiscalização o que apenas revela a nosso ver, não ter como certo que o regime acordado pelos progenitores seja na realidade o mais adequado para esta criança;
32. Termos em que a decisão judicial em recurso, porque violadora do artigo 1906º, nºs 5 e 6, do Código Civil deve ser revogada e substituída por outra que determine um regime de residência única da criança junto da sua progenitora, com estabelecimento de um regime de visitas a favor do progenitor não residente e demais questões abrangidas pela regulação do exercício das responsabilidades parentais tal como elencadas no artigo 1906º do Código Civil,
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Por sua vez, os requeridos apresentaram as seguintes conclusões[1]:
1    Vem a presente resposta apresentada ao recurso interposto pelo Ministério Público junto do Juízo de Família e Menores de Torres Vedras da decisão de homologação de acordo de regulação das responsabilidades parentais apresentando pelos ora recorridos.
2    Entende o MP, no capítulo inicial da sua alegação – I – Da DELIMITAÇÃO E OBJECTO DE RECURSO – que o acordo homologado não se mostra “conforme o superior interesse da criança […] o qual perante os factos dados como provados reclama posição diversa quanto ao regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais da referida menor no particular do regime referente à sua residência” (sublinhado nosso).
3    Atendendo, nessa tese, à determinada quilométrica distância existente entre as residências dos seus progenitores; à tenra idade da criança; e aos efeitos já evidenciados na sua vivência diária por efeito da implementação prática na prática e há cerca de um ano de um sistema de residência alternada da menor em termos semanais.
4    Ao contrário do que alega – sem sustentar – O MP não há sinais ou evidencias de efeitos negativos da execução do regime de residência alternada. Bem pelo contrário, o que se verte nos autos são tudo consequências positivas da aplicação de um regime que está a funcionar com êxito. Pelo que não colhe o recurso.
5    Reitera-se que a conclusão de que “efeitos já evidenciados na sua vivência diária por efeito da implementação prática na prática e há cerca de um ano de um sistema de residência alternada da menor em termos semanais” não tem qualquer suporte probatório ou factual.
6 O MP apresenta como fundamento de recurso a não salvaguarda do superior interesse da menor em virtude da distância entre a casa do progenitor e a escola. Pretendendo, a partir desta construção, impor um regime de residência com a mãe com visitas de 15 em 15 dias para o pai, violando assim todos os critérios orientadores da definição de um regime de residência em caso de separação entre os progenitores.
7 - Na sua fundamentação de direito, o tribunal a quo entendeu que, no que as deslocações diz respeito. “estando a praticar já o referido regime de residência alternada há 7 meses sem notícias de desentendimentos entre ambos ou de problemas escolares relacionados com as aludidas viagens (nomeadamente atrasos da criança, situações de sono, de cansaço ou de falta de atenção da menor), pelo contrário, verificando-se que a mesma é boa aluna, não vê este tribunal razão para recusar o acordo dos pais” (sublinhado da peça)
8    O MP parte de somas quilométricas aritméticas (61kmx2) x 5d, relacionando-as com alusões avulsas retiradas das declarações de uma criança de sete anos interpretadas com o objetivo pré-definido de as fazer caber na conclusão de que o regime de residência alternada não serve o superior interesse desta menor.
9 Não é verdade que a menor tenha dito que, “acorda regularmente as seis da manhã”, quando está com o progenitor, pelo que é inverídica a matéria constante do ponto 11 das conclusões do recurso apresentando.
10  A menor […], nas suas declarações referiu não saber a que horas se deita em cada uma das residências, nem a que horas se levanta. Indicando concretamente sobre a hora de acordar em casa do pai não saber a que horas o faz, mas as vezes levanta-se as seis (cfr. ponto 9 dos factos provados).
11  A […] tem sete anos não sendo difícil de adivinhar que, por referencia a esta idade, o conceito de horário se relacionada mais com a atividade concreta do que com o número que o relógio marca. A […] sabe que são horas de tomar as refeições, de ir dormir, de acordar de entrar ou sair da escola. Perguntado concretamente por horas, a mesma responde sempre não saber.
12  Este errado pressuposto é a pedra de toque da Exma. Sra. Procuradora para convencer o tribunal a quem de que a […] vive cansada quando esta com o pai.
13  Justifica ainda que o superior interesse da criança não esta protegido porque a mesma adjetiva a viagem entre a casa do pai e a escola como “grande”. Mais uma vez, olvidou a sra. procuradora que estava a dialogar com uma criança de sete anos… que demonstram sempre pressa em chegar ao destino.
14  Ouvir, escutar e entender uma criança não é, de todo, o que o MP fez nos presentes autos. E, também, isso (para além de ideais arcaicos, ultrapassados e fáceis de adivinhar) contribui para o juízo errado sobre o superior interesse desta criança concreta. Que jamais passará por estar com o seu progenitor apenas em fins-de-semana alternados.
15  Utiliza, ainda, a parte do discurso da criança em que a mesma refere ficar por vezes “tonta” quando usa o tablet no carro. Transformando o “por vezes” em “sempre” para concluir que a residência alternada é prejudicial a esta menina.
16  Acha, ainda, completamente atentatório do seu interesse direto que a mesma fique no carro enquanto o pai fecha o portão do stand ou que, depois da escola, vá, por vezes, para o stand onde o mesmo trabalha e tome a iniciativa de começar a fazer os trabalhos de casa!
17  Se o MP tivesse perguntado à menor como era a semana na casa da mãe – facto que não cuidou de saber -, perceberia que, mesmo nessa semana, quem vai buscar a vai buscar escola é o progenitor – porque a mãe não pode. Passando com ela o tempo necessário até à sua chegada!!
18  A menor […], ao contrário do que o MP pretende fazer passar – mais uma vez -  com carácter de regularidade, nem sempre vai ao stand do pai: nas suas palavras “às vezes ainda vai ao stand do pai”, pelo que não se corresponde à verdade completa o que se diz no ponto 13 das conclusões do recurso apresentado pelo M.P..
19  Para fundamentar a sua decisão, o MP foca-se, em exclusivo, nas deslocações que a menor tem de fazer quando está em casa do pai; usa as declarações da menina por forma a caberem na sua pretensão, fazendo tábua rasa de tudo o que poderá servir para aquilatar do seu superior interesse.
20  Uma análise objetiva dos factos dado como provados demonstrará exatamente o oposto. Assim: a […] diz que “gosta de fazer as viagens com o pai”, “nem sempre vai ao stand deste”, esclarece que não é complicado fazer os trabalhos de casa nas duas residências, sendo que, por vezes, também faz os trabalhos os tpc no stand onde o pai trabalha. Gosta mais de estar uma semana com a mãe e uma semana com o pai, porque tem mais tempo para os dois (por comparação com o regime de residência com a mãe que já tinha experimentado) (conforme ponto 9 dos factos provados)
21  Na escola ninguém lhe notou diferenças de comportamento ou desempenho nomeadamente quando está com a mãe ou com o pai. Em relação à atenção e ao sono não nota diferenças nas semanas em que está com o pai e com a mãe, tendo “muito bom” a todas as disciplinas. Poucas vezes chegou atrasada à carreirinha. Nunca fizeram qualquer comentário sobre atrasos na escola.
22  O progenitor, quando leva a filha para o stand é apenas para o fechar; referindo que a filha não chega atrasada à escola quando está consigo, podendo, por vezes, não chegar a tempo de integrar a “fila” que não corresponde ao horário de início das aulas. Faz a viagem em cerca de 45 minutos e que a filha se levanta as 7h30m quando está consigo. As aulas começam as nove. (factos dados como provados no ponto 10 do capítulo factos provados).
23  A mãe da […] transmitiu que a escola nunca lhe comunicou qualquer atraso e que não sente diferenças na filha na semana em que está com o pai e na que está consigo. (cfr. ponto 11 dos factos provados).
24  Importa ainda salientar que é matéria assente que “a menor tem uma relação de vinculação segura com ambos os pais, manifesta vontade de continuar no regime de residência alternada por lhe permitir estar igual tempo com ambos os progenitores e manter contacto frequente também com a filha da madrasta”.
25  Ora, a questão isolada e única da logística das deslocações não pode – como pretende o MP -, atento o superior interesse da criança, obstar a que se mantenha em vigor o regime que tem acautelado o superior interesse da criança e contribuído para a sua felicidade, para o seu desenvolvimento emocional, permitindo a manutenção da vinculação a ambos os progenitores e desenvolvimento de relações interpessoais gratificantes bem como para o sucesso do seu desempenho académico (muito bom a todas as disciplinas, com assiduidade!).
26  A decisão recorrida para além de não violar o art. 1906 do CC, nºs 5 e 6 do CC, está em conformidade com o que tem sido decidido pelos tribunais superiores, conforme transcrições efetuadas de sumários de arestos, mormente o ac do TRL de 28/02/2023. Onde se lé, no ponto 4 do sumário por referência á residência alternada: 4. “a tal não obsta, necessariamente, uma distância entre as residências dos progenitores de cerca de 90Km (55-60m de viagem) e a circunstância de a criança ter dois anos de idade”.
27  O mesmo se diz no acórdão do STJ de 11/07/223, exigindo-se, apenas, para a implementação da residência alternada, a que a criança frequente um único estabelecimento de ensino.
28  Reitera-se que “não há qualquer evidência de impacto negativo relacionado com as viagens desde logo no sono, no descanso, na atenção, no desempenho escolar e na assiduidade”.
29  Não há nota ou registo de que as poucas vezes em que acompanha o pai ao trabalho, que realiza excecionalmente os tpc depois de jantar ou até as vezes em que diz ficar tonta (nunca antes referido pela criança) estejam a prejudicar o seu pleno desenvolvimento ou a comprometer o seu superior interesse. O que fica demonstrado nos autos é precisamente o inverso.
30  A […] é uma criança feliz, vinculada a ambos os progenitores, com relações fortes com a “irmã emprestada”, bem integrada na escola e com um desempenho escolar pautado unanimemente pela nota máxima.
31  O tribunal a quem não pode permitir que tolham conceções arcaicas ou preconceitos disfarçados de preocupação e se prejudique, dessa forma, aquele que é o superior interesse duma criança.
32  O MP entende que os pais minorizaram a questão da “preocupação evidenciada pela criança (?? Em que momento??) de “chegar atrasada” e não poder participar com os seus coleguinhas na fila dos alunos que no início das aulas se dirige para a sala”. Devendo, na sua perspetiva ou a seu ver, tal questão ser relevante na decisão do regime de residência…
33  O MP acusou os requerentes de atenderem apenas aos seus interesses, sem – mais grave ainda – qualquer justificação. Disse assim a senhora procuradora: “com efeito, muitos podem ser os interesses concorrentes dos progenitores na concordância para um regime de residência alternada desde a conveniência para o exercício da sua atividade profissional, “questões de logística” ou mesmo de natureza financeira acabando por pretender fazer adequar o regime de residência dos filhos, muitas vezes, com os seus próprios interesses, descurando o que é mais adequado a salvaguardar o interesse dos filhos menores cuja capacidade de adaptação e resiliência se sobrevaloriza. Tal foi a nosso ver no caso dos autos a postura dos pais da menor, ao minorizar […] nomeadamente a preocupação evidenciada pela criança de “chegar atrasada” e não poder participar com os seus coleguinhas na fila dos alunos que no início das aulas se dirige para a sala”. 
34  Não podem os recorridos deixar passar incólume tão gravosa e injustificada afirmação. Conforme resulta dos autos, aquando da separação, iniciou-se um regime de residência junto da mãe com visita de fins-de-semana alternados para o pai (sem prejuízo do mesmo recolher a filha na escola quase todos os dias e com ela passar algum tempo). O decurso do tempo – esse forte aliado na demonstração do sucesso ou insucesso das decisões – foi mostrando que o alargamento desse regime era a única maneira de assegurar o superior interesse da […]. Assim, gradualmente, os dias com o progenitor foram crescendo, até se chegar, com segurança, bom senso e juízo, à residência alternada.
35  Os progenitores - neste percurso cujo tempo de execução permite uma segura avaliação positiva - mantiveram sempre o seu azimute no bem estar e superior interesse da […]. Demonstrando total disponibilidade, empenho e um forte sentido de cooperação no acompanhamento da filha.
36  O progenitor foi-se reorganizando profissionalmente por forma a garantir o transporte e os cuidados da […], sem beliscar o seu descanso e assegurando todas as suas necessidades. De molde a que, até na semana da mãe é este que recolhe a filha na escola.
37  Não há diferenças de padrão em ambas as residências. Nem sequer grandes diferenças de horários: a […] acorda as 7:30h tanto na casa da progenitora (que entra mais cedo ao trabalho do que o pai, vendo-se obrigada a deixá-la mais cedo na escola) como na do pai.
38  Decorridos oito meses sobre a implementação informal da residência alternada não há sinais ou registo de qualquer impacto negativo nomeadamente conflitos parentais, absentismo, atraso escolar ou, inclusive verbalizações ou manifestações de outro tipo por parte da […] que imponham que se repense o regime.
39 A sentença de homologação do acordo sobre as responsabilidades parentais nomeadamente no que ao regime de residência diz respeito não violou o art. 1906.º do CC. Bem ao invés: dá-lhe perfeito e cabal cumprimento.
40  Ao pretender regime de residência diferente, é o M.P. quem viola os mais elementares critérios orientadores de decisão.
41  No nº 8 do supra referido artigo definem-se esses critérios, devendo o tribunal harmonizar os interesses do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles.
42  Em sociedades democráticas como a nossa, o preconizado princípio da igualdade entre mãe e pai aparece formalmente expresso nos mais elementares instrumentos como sejam o Código Civil, a Convenção dos Direitos das Crianças, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
43  A residência alternada tem permitido à […], através da possibilidade de participação equitativa do pai e da mãe na sua vida, um bem-estar físico, social, emocional, comportamental e cognitivo.
44  Não havendo qualquer sinal de que este regime esteja a beliscar o seu superior interesse. Suposições, receios futuros infundados, preconceitos não podem ser fundamento de fixação de regime nem tão pouco se coadunam com o superior interesse da criança.
45  Os recorridos não entendem a posição do MP, no seu fundamento de recurso em considerar não ser pertinente fiscalizar o regime homologado. Não há qualquer prova, indício ou sinal de dificuldades da […] em lidar com as viagens, ao contrário do que se sustenta sem fundamentar. Não há sinal de falta de descanso.
46  Nem tão pouco, ao pretender-se tal fiscalização, se assume um risco futuro e sério de incumprimento por parte do progenitor.
47  Nestes termos e nos melhores de direito, o recurso apresentado pelo M.P. carece de fundamento, devendo ser declarado improcedente e manter-se a sentença de homologação por não ter sido violado o art. 1906.º, n.ºs 5 e 6 do Código Civil.
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II. Questões a decidir:
Como é sabido, resulta da conjugação dos artigos 635.º n.º 4 e n.º 1 do artigo 639.º, ambos do Código de Processo Civil, que são as conclusões delimitam a esfera de conhecimento do tribunal ad quem. Deriva assim, que este tribunal apenas se pode ocupar do objeto definido pela parte que interpôs recurso. Esta limitação não se verifica, no entanto, quanto à qualificação jurídica dos factos bem como relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo possua os elementos bastantes para tal conhecimento, conforme decorre do n.º 3 do artigo 5.º do Código do Processo Civil. Está ainda vedado ao tribunal de recurso conhecer de questões novas, que não tenham sido suscitadas e apreciadas pelo tribunal a quo e que não sejam de conhecimento oficioso.
Assim sendo, o objeto do litígio consiste apenas em apreciar e decidir: se a sentença em crise deve ser revogada e substituída por outra que determine um regime de residência única da criança junto da sua progenitora, com estabelecimento de um regime de visitas a favor do progenitor, pelo facto do regime de residência alternada não ser adequado aos interesses do bem-estar e desenvolvimento da menor.
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III. Fundamentação – Matéria de facto provada:[2]
1.  Os Requerentes […], contraíram casamento em […] sem convenção antenupcial no regime de comunhão de adquiridos.
2.  Do referido casamento, nasceu em 27/12/2017, a criança […].
3.  Em 23/7/2024, os Requerentes deram entrada de processo de divórcio por mútuo consentimento na Conservatória do Registo Civil, tendo, para além dos demais acordos previstos no artigo 1175º do CC, junto acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente à filha […], que previa a residência alternada desta, por períodos de 1 semana com a transferência de residência a ocorrer à sexta-feira.
4.  Desde a separação, a Requerente/mãe reside em […] na casa de morada onde os Requerentes viviam antes da separação.
5.  A criança frequenta a escola em […], ficando o estabelecimento de ensino situado perto da residência da progenitora. 
6.  Por sua vez, o Requerente/pai reside em […]. 
7.  Desde setembro de 2024, os pais praticam informalmente o regime de residência alternada previsto no acordo de regulação referido em 3), manifestando ambos concordância com a sua manutenção por entenderem que é benéfico para a criança. 
8.  A distância entre […], é de 61,4 Km, sendo a distância percorrida de carro em 56 minutos através da A8 e da A21. 
9.  Segundo a criança, ouvida pelo Tribunal em 6/3/2025, a mesma frequenta o 1º ano da Escola Básica em […]. Em casa do pai, vivem este, a madrasta, a menor e uma irmã “emprestada” (segundo a expressão utilizado pela menor) que é só filha da companheira do pai, com 10 anos de idade. Na casa do pai, existe quarto para si e quarto para a D…, filha da madrasta. Quando está em casa do pai e tem de ir para a escola, a criança acorda, por vezes, às 6h00 outras vez mais tarde, sendo que, de acordo com a menor, o caminho é “grande”, sendo habitual ver vídeos e jogar no telemóvel durante a viagem realizada pelo progenitor. Refere que é o pai quem também a vai buscar ao estabelecimento de ensino, sendo que, por vezes, depois da escola, vai para o stand onde o pai trabalha […] durante algum tempo, antes de fazerem a viagem de regresso a […], sendo que, nessas ocasiões, também chega a ficar no carro enquanto o pai acaba o trabalho. Nessas alturas em que está com o pai, faz os trabalhos de casa depois do jantar. Na casa da mãe, vivem a progenitora, a criança e uma cadela, ficando a residência da progenitora próxima da escola, pelo que o caminho é “pequeno”. Refere que o que mais gosta, quando está com o pai, é tomar banho com a D…, filha da madrasta, sendo que o mais gosta, quando está com a mãe, é brincar com a cadela, “X”. Questionada sobre as viagens que faz com o pai, diz que gosta de fazer as viagens, mas que, por vezes, fica tonta, sendo a deslocação mais cansativa de manhã do que à tarde. Não tem ideia da hora a que se deita em casa da mãe ou em casa do pai, não sabendo dizer se tem mais sono numa das casas do que na outra. Diz que, nem sempre, quando está com o pai, vai ao stand deste, sendo que, por vezes, fazem a viagem direta da escola para casa. Esclarece que não é complicado fazer os trabalhos de casa nas duas residências, sendo que, por vezes, também faz os TPC no stand onde o pai trabalha. Questionada, refere que gosta mais de estar uma semana com a mãe e uma semana com o pai, porque tem mais tempo com os dois (por comparação com um regime de residência exclusiva com a mãe com fins-de-semana alternados com o pai). Perguntada sobre se na escola, alguém lhe referiu notar diferenças entre a semana em que está com a mãe e a semana em que está com o pai, nomeadamente, quanto ao seu desempenho ou comportamento, referiu que não. Perguntada ainda sobre se notava essas diferenças (nomeadamente, em termos de atenção, sono) entre as semanas em que estava com o pai e as semanas em que estava com a mãe, disse que não e que tinha tido “muito bom” a todas as disciplinas. Diz que, por vezes, chega atrasada à escola na semana em que está com o pai, explicando que este nem sempre chega a tempo de a menor integrar a “carreirinha” que as crianças fazem de forma ordeira para entrarem na sala de aulas. Mas é poucas vezes. Mas diz que, na escola, nunca fizeram qualquer comentário sobre esses atrasos.
10.  Pelo pai foi dito ser vendedor, trabalhando em […], tendo explicado que, quando leva a filha para o stand é apenas para fechar o estabelecimento, razão pela qual, por vezes, a filha espera no carro, porque se trata apenas de encerrar a loja e não demora muito. Referiu que a filha não chega atrasada à escola quando está consigo, ocorrendo apenas a criança não chegar, por vezes, a tempo de integrar a “fila” que os meninos fazem para entrar na sala de aulas, o que a menor, por vezes, leva a mal. Esclareceu que os trabalhos de casa eram feitos no stand ou em casa do progenitor. Esclareceu que fazia a viagem, por regra, em 45 minutos, uma vez que vai no sentido contrário ao trânsito e que segue sempre na autoestrada. Esclareceu que a filha se levantava às 7h30 quando estava consigo, não sendo verdade o que a criança tinha dito de se levantar, por vezes, às 6h00. Referiu, neste contexto, que as aulas começavam às 9h00.
11.  Pela mãe foi dito que nunca na Escola lhe foi comunicado qualquer atraso, não sentindo diferenças na filha entre a semana em que está com o pai e a semana em que está consigo.
12.  No âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na Conservatória do Registo Civil, o Ministério Público opôs-se à homologação do acordo de regulação referido em 3) por entender que um regime de residência alternada no caso dos autos e atenta a distância entre a residência do pai e a escola da criança mencionada em 8) implicava um sacrifício significativo para a menor em termos de viagens e, em consequência, em termos de desgaste e cansaço, sendo prejudicial ao seu superior interesse.
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IV. Análise dos factos – subsunção ao direito:
Conforme já se referiu, a questão em apreciação consiste em decidir se se a sentença em crise deve ser revogada e substituída por outra que determine um regime de residência única da criança junto da sua progenitora, com estabelecimento de um regime de visitas a favor do progenitor.
Como é consabido, as responsabilidades parentais são inabdicáveis e intransmissíveis, impondo um fluxo interconectado de responsabilidades, direitos e obrigações dos progenitores relativamente aos filhos, sempre no interesse superior dos filhos, nomeadamente, promovendo o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos mesmos e velar pela sua segurança e saúde, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação (artigos 1874.º ss. do Código Civil).
Efetivamente, decorre desde logo do n.º 1 do artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa que “As crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições”, já decorrendo do n.º 5 do artigo 36.º que “Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”, sendo ainda de atender aos artigos 67.ºe 69.º, todos da mesma Lei fundamental. Também na Convenção sobre os Direitos da Criança[3] consta, entre o mais que “Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança” (artigo 3.º nº 1).
Por sua vez, estabelece o artigo 1878.º do Código Civil que “1. Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens. 2. Os filhos devem obediência aos pais; estes, porém, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida”.
Estamos em presença de um processo de jurisdição voluntária, pelo que o julgador não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo, antes, adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, no exercício do poder-dever a que se encontra adstrito (artigo 12.º do RGPTC e 987.º, do CPC), efetuando as diligências de averiguação e de instrução necessárias à prolação mais adequada ao caso concreto.
Seja como for é incontestável que o critério orientador e que terá sempre de presidir à decisão do tribunal é o interesse superior da criança, mesmo que tal divirja do interesse dos progenitores, o qual apenas terá e deverá ser considerado, caso esses interesses se mostrem conformes ao interesse superior da criança.
No caso em apreço, debruçamo-nos sobre a atribuição das responsabilidades parentais decorrente de divórcio dos progenitores. Sobre tal matéria rege o artigo 1906.º do Código Civil:
“(…) 4. O progenitor a quem cabe o exercício das responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente pode exercê-las por si ou delegar o seu exercício.
5. O tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro.
6. Quando corresponder ao superior interesse da criança e ponderadas todas as circunstâncias relevantes, o tribunal pode determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores, independentemente de mútuo acordo nesse sentido e sem prejuízo da fixação da prestação de alimentos. (…)
O n.º 6 deste artigo, que veio estabelecer as condições em que o tribunal pode decretar a residência alternada do filho, em caso de divórcio ou separação, alterando o Código Civil, foi introduzido pela Lei n.º 65/2020, de 4 de novembro. “A recente alteração ao artigo 1906.º do código Civil, efetuada pela Lei n.º 65/2020, de 4 de novembro, veio sanar essas divergências quanto à admissibilidade da residência alternada e regime desta, clarificando que a imposição legal prescinde do acordo dos pais, mas não da competência e aptidão dos mesmos na medida em que o fundamento da imposição da residência alternada é sempre a salvaguarda do superior interesse da criança[4]”.
Não existe definição legal do que deve entender-se como interesse superior da criança, sendo este uma conceção em aberto, que haverá de concretizar em presença das circunstâncias de cada caso em apreciação. “Os critérios normativos que continuam a nortear a escolha do regime de guarda do menor continuam a ser, sempre e em primeiro lugar, o superior interesse da criança, tendo em conta nomeadamente a disponibilidade manifestada por cada um dos pais para promover relações habituais do filho com o outro, a manutenção de uma relação de grande proximidade com os dois progenitores e a partilha de responsabilidades entre os pais, de forma a que a fixação de residência do menor junto de um dos progenitores, ou junto de cada um deles alternadamente, se afigure como a opção que melhor contribui para o bem-estar da criança, de forma a minorar os efeitos adversos que decorrem da separação ou da rutura de laços entre os seus progenitores, a aferir caso a caso”[5].
Definidos que estão os critérios a adotar na apreciação do caso, haverá que apreciar o caso de forma mais concreta. A questão levantada mais relevante refere-se à distância entre a residência do pai da menor e a escola, de cerca de 61 Km, e os efeitos que tal possa ter na menor, nomeadamente, no seu de descanso.
Sumariando a matéria de facto, temos que: no acordo de regulação das responsabilidades parentais os progenitores concordaram na residência alternada da menor, por períodos de uma semana com a transferência de residência a ocorrer à sexta-feira, sendo que a distância entre […] é de 61,4 Km, sendo a distância percorrida de carro em cerca de 56 minutos, residindo a mãe em […] onde também se encontra o colégio frequentado pela menor, e o Pai em […] Odivelas, sendo esta a distância entre a localidade de residência do pai e a da residência da mãe; esta rotina da criança já se verifica há cerca de sete meses à data da prova dos factos, por acordo do pais; Quando está em casa do pai e tem de ir para a escola, a criança acorda pelas vezes, às 7h30, sendo que, de acordo com a menor, o caminho é “grande”, sendo habitual ver vídeos e jogar no telemóvel durante a viagem realizada pelo progenitor; Questionada, refere que gosta mais de estar uma semana com a mãe e uma semana com o pai, porque tem mais tempo com os dois; Esclarece que não é complicado fazer os trabalhos de casa nas duas residências, sendo que, por vezes, também faz os TPC no stand onde o pai trabalha; Questionada sobre as viagens que faz com o pai, diz que gosta de fazer as viagens, mas que, por vezes, fica tonta, sendo a deslocação mais cansativa de manhã do que à tarde; Diz que, por vezes, chega atrasada à escola na semana em que está com o pai, mas são poucas vezes.
Ora, a distância em causa por si só, não sendo desprezível e podendo gerar alguma incomodidade, não nos parece que no caso concreto seja de molde a impedir a residência alternada, superando as vantagens desta. Não resulta dos autos que as viagens efetuadas entre casa do pai e o colégio sejam de tal forma cansativas para a criança que afetem a sua saúde ou bem-estar, apesar de, segundo o pai, a mesma acordar às 07h30h (não se provou ou indiciou qualquer influência disso na diminuição do período de sono da menor, no aproveitamento escolar, ou noutros aspetos da sua vida). Veja-se que não existe qualquer evidência de que as pontuais tonturas referidas pela menor tenham como origem as próprias viagens ou de qualquer circunstância resultante do regime acordado. O Alegado cansaço também não resulta dos factos considerados. Os atrasos (poucos) à chegada à escola parecem referir-se apenas a integrar “carreirinha” e não às aulas propriamente ditas (sendo que a escola nunca nada comentou sobre esse assunto). Por outro lado, decorridos cerca de sete meses da mesma rotina (agora já decorrido cerca de um ano), a mesma diz: que gosta de fazer as viagens com o pai e, mais contundente: que gosta mais de estar uma semana com a mãe e uma semana com o pai, porque tem mais tempo com os dois[6]. Também não se vê que o facto do pai quando leva a filha para o stand, por vezes, apenas para fechar o estabelecimento, a menor esperar esse tempo no carro, seja prejudicial à menor. Tratam-se de circunstâncias normais da vida, sabendo-se que hoje em dia é normal levar-se uma ou duas horas de carro para se chegar a casa, ao trabalho ou para levar as crianças à escola, nas horas de ponta nos subúrbios das grandes cidades (e vice-versa), onde residem a maior parte das famílias que trabalham nessas cidades.
O Ministério Público também não concorda com a decidida fiscalização do acordo pelo EMAT. Essa discordância tem como fundamento o facto de o mesmo entender que já se verificam as dificuldades da [...] em “lidar com as viagens” pelo que não seriam situações supervenientes. No entanto, conforme temos vindo a defender, tal não é assim, não se verificando tais dificuldades, pelo que também nesta matéria não podemos igualmente dar razão ao recorrente.
Noutra vertente, o acórdão do STJ citado pelo Ministério Público incide sobre situação bem diferente da que agora nos ocupa. Com efeito, tratava-se de uma criança de 4 anos, a distância em causa era de 118 Km (praticamente o dobro da aqui em causa), e a razão principal invocada pelo referido acórdão foi o facto da residência alternada não permitir que a criança pudesse frequentar um único jardim de infância, continuadamente, com o mesmo educador e com o mesmo grupo de colegas (o que também não é aqui manifestamente o caso).
“Entre os argumentos que favorecem a instituição da residência alternada avultam os seguintes: satisfaz o princípio da igualdade dos progenitores; permite uma estruturante identificação aos modelos parentais, fundamental para um normal desenvolvimento da identidade pessoal do menor; diminui o conflito parental e previne a violência na família; potencia a qualidade da relação progenitor/criança; reduz o risco e a incidência da “alienação parental”; mantém relações familiares semelhantes às do momento pré-divórcio, porque os relacionamentos com o pai e a mãe se aproximam dos da família intacta; os conflitos de lealdade que os jovens mostram tendem a desaparecer com a organização dos tempos em família e a igual importância dos pais na vida dos mais novos; fortalece a atividade e os laços afetivos entre os filhos e os pais e reforça, por esta via, o papel parental; a criança sentirá que pertence aos dois lares em igualdade de circunstâncias; melhor aptidão para preservar as relações de afeto, proximidade e confiança que ligam o filho a ambos os pais. (…) a instabilidade é uma realidade na vida de uma criança com pais separados, que começa com a separação, a qual implica que as crianças terão que se integrar sempre em duas residências; trata-se de mais uma adaptação a fazer nas suas vidas, sendo certo que as crianças são dotadas de grande aptidão para se integrarem em situações novas; a continuidade e estreitamento da implicação materna e paterna, da cooperação parental, e dos benefícios daí resultantes para o menor sobrelevam face a tal inconveniente” [7].
“1. A alternância de residências é uma solução adequada ao exercício conjunto das responsabilidades parentais desde que sirva o interesse dos filhos e possa ser implementada, mesmo sem acordo dos pais, salvo se o desacordo se fundamentar em razões factuais relevantes. 3. A residência alternada assenta no superior interesse da criança em manter com os progenitores uma relação em moldes igualitários e de grande proximidade com cada um deles. 4. A tal não obsta, necessariamente, uma distância entre as residências dos progenitores de cerca de 90 km (55-60 minutos de viagem) e a circunstância de a criança ter dois anos de idade”[8].
Assim, o presente recurso não poderá proceder.
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V. Decisão.
Por tudo o que expendeu e tendo em conta as normas legais invocadas: julgo o recurso apresentado pelo Ministério Público, improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Sem custa uma vez que o Ministério Público, delas está isento (alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais).

Lisboa, 09-10-2025
Rui Vultos
Carla Matos
Rui Oliveira
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[1] Não decorrendo da lei a obrigatoriedade de transcrição das conclusões, as mesmas são elencadas de forma a melhor se entender a posição dos intervenientes e as suas razões de divergência.
[2] Atender-se-á apenas aos factos da decisão em crise, que poderão ter interesse para a questão em causa no presente recurso.
[3] Adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de setembro de 1990.
[4] Ac. do STJ de 30/11/2021, proc. 794/20.7T8VCT.G1.S1.
[5] Ac. da RC de 4/06/024, proc. 791/23.0T8CVL-D.C1.
[6] “A vontade manifestada pela criança (art.ºs 4°, n.º 1, alínea c), e 5°, n.º 1, do RGPTC) – genuinamente sua e conforme com o seu interesse, objetivamente apreciado – é um fator importante a atender, a ponderar com os demais, no contexto da regulação do exercício das responsabilidades parentais” – Ac. da RC de 05/03/2024, proc. 632/17.8T8VIS-B.C1.

[7] Ac. da RL de 29/04/2025, proc. 1960/19.3T8VFX-B.L1-7.
[8] Ac. da RC de 28/02/2023, proc. 1810/21.0T8ACB.C1.