Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
254/23.4JAPDL.S1.L1-9
Relator: MARIA DO CARMO LOURENÇO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ESTABELECIMENTO PRISIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: Sumário:
(da responsabilidade da Relatora)
I – O crime de tráfico de estupefacientes é um crime de perigo comum e abstrato, já que o legislador não exige, para a respetiva consumação, a efetiva lesão dos bens jurídicos tutelados. Preenche-se com qualquer um dos comportamentos ou das condutas enunciadas no art. 21.º do D.L. nº 15/93, de 22/01, designadamente pela prática pelo agente (sem que para tal esteja autorizado) de atos de oferta e/ou detenção ilícita de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas anexas ao D.L. nº 15/93, fora dos casos previstos no artigo 40.º do referido Decreto-Lei.
II – A circunstância de o crime de tráfico de estupefacientes ter sido cometido em estabelecimento prisional não produz efeito qualificativo automático, nos termos do art. 24.º, alínea h), do D.L. nº 15/93, sendo necessária a análise do caso concreto para se saber se há uma ilicitude acentuada dos factos na sua globalidade e, consequentemente, se se justifica a agravação.
III - Existem divergências jurisprudenciais sobre aqueles casos que objetivamente preenchem a previsão do art. 24.º do D.L. nº 15/93, mas em que o circunstancialismo fáctico envolvente afasta a sua aplicação, defendendo uma corrente que, desqualificado um crime por afastamento da agravativa da alínea h) do art. 24.º do D.L. nº 15/93, a convolação deve ser feita sempre para o tipo base do art. 21.º, e outra que, em especialíssimas circunstâncias, a conduta pode integrar o tipo de crime privilegiado previsto no art. 25.º, ambos do D.L. nº 15/93, corrente a que aderimos.
IV – No caso em apreço a diminuta quantidade do produto estupefaciente – 0,590 grama de “Alfa-PHiP” - levam a afastar a circunstância qualificativa da alínea h) do art. 24.º do D.L. nº 15/93. A detenção pelo arguido, no estabelecimento prisional, de um embrulho contendo “Alfa-PHiP”, uma droga sintética, sendo as drogas sintéticas consideradas de maior potencialidade de dano, e o facto de destinar o referido produto estupefaciente ao seu consumo e de outros reclusos com quem se dava, apesar de saber que prejudicava o seu processo de integração e dos outros reclusos, faz com que a conduta do arguido se integre na previsão do art. 21.º, nº 1, do citado D.L. nº 15/93.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
1 – No âmbito do processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, com o nº 254/23.4..., que corre termos no Juízo Central Cível e Criminal de ... – J2, foi submetido a julgamento o arguido AA, tendo, a final, sido proferido acórdão com o seguinte dispositivo (transcrição)1:
“Face ao exposto, acordam os juízes que integram o tribunal coletivo da Instância Central - 1ª secção Cível e Criminal - do Tribunal da Comarca dos Açores:
“A) Condenar AA, como autor de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, agravado, previsto pelos artºs.21º, nº.1 e 24º, al.h) do Decreto Lei 15/93, de 22.1 e tabela II-A anexa a este diploma na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
B) Declarar perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido e determinar a sua destruição;
C) Condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça em 3 ucs”.
2 - Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido, concluindo a sua motivação nos seguintes termos (transcrição):
“III. CONCLUSÕES:
1. A discordância do recorrente reporta-se ao facto de o tribunal a quo ter declarado que a conduta do recorrente integra o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e agravado pelo 24.º, al. h) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 e tabela II-A anexa a este diploma.
2. O Tribunal a quo fez uma errada apreciação dos elementos da prova carreados para o processo, incorrendo em erro de julgamento.
3. O arguido, pretendo falar, colaborou na descoberta da verdade material, com certa relevância.
4. Não resultou provado que o recorrente detinha a matéria estupefaciente para com ela lucrar.
5. A convicção do tribunal a quo assentou na circunstância de o arguido ter referido que a matéria estupefaciente encontrada se destinava ao seu consumo juntamente com outros dois reclusos com quem se dava (declarações do arguido prestadas em ........2024, gravadas de 1:24 a 1:36)
6. O tribunal a quo fez uma interpretação, refira-se ipsis verbis, no sentido de que a cedência a terceiro para consumo da matéria estupefaciente encontrada na posse do arguido, é também tráfico e agravado em circunstância de estar em meio que se pretende isento de drogas.
7. Contrariamente ao que se esperava, tal asserção teria sempre de estar associada a outros meios de prova complementares e corroborantes que pudessem comprovar a intervenção do arguido numa atividade de traficância dentro do estabelecimento prisional.
8. A cedência da matéria estupefaciente a outro recluso tratou-se de um ato isolado, circunscrita a uma data específica.
9. Continuando, o tribunal a quo ignorou todas as demais circunstâncias do caso sub judice.
10. A ação cometida pelo recorrente não se reveste de um substanciavel grau de ilicitude, porquanto a quantidade apreendida (0.590 grama) não era apta a ser disseminada entre vários reclusos do estabelecimento prisional, o que coloca em crise a posição assumida pelo tribunal a quo (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 18.03.2020, «I – A agravação do crime de tráfico de estupefacientes quando cometido em estabelecimento prisional, nos ternos da alínea h) do artigo 24.º do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, deriva [...] da adequação do facto à disseminação da droga entre os reclusos. II- A situação ínsita na alínea h) do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, é a de uma disseminação com certa escala entre os reclusos, não um ato isolado de venda ou cedência a um recluso.»
11. Vide ainda o acórdão do STJ, de 17/4/2013 [11], «[...]sendo, porém, relevante, a quantidade total do produto integrante da acção proibida.», que se chama à colação neste caso concreto, essencialmente, porque a ação do arguido não se revestiu de um grau de ilicitude proporcional à medida da pena correspondente ao crime agravado.
12. O relatório de exame pericial n.º ...-BTX não concluiu o grau de pureza da substância ativa ALFA-PHiP, elemento que deveria também concorrer na determinação da sanção penal, conforme tem assumido a jurisprudência dos tribunais portugueses.
13. A condenação do arguido deveria apenas decorrer da quantidade de matéria estupefaciente que, eventualmente, seria cedida ao outro recluso.
14. O recorrente afirmou que a droga apreendida dava para ser consumida por ele e pelos outros dois reclusos durante cerca de uma hora, facto que nunca foi contestado pelo tribunal a quo, pois as quantidades referidas são compatíveis ou ainda ficam aquém do consumo diário de alguém a quem se reconhece comportamento aditivo (Vide Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.12.2012).
15. O produto que detinha e seguramente parte dele, indubitavelmente, destinava-se ao consumo do arguido, aliás o tribunal a quo declarou ser insofismável que o arguido consumia droga sintética no EP onde estava recluso (ponto 5. do acórdão de que se recorre).
16. Posto isto e também pelo que se segue, o recorrente refuta e não aceita a sua incriminação por factos que não consubstanciam a previsão ínsita na al. h) do artigo 24.º do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
17. Não consta do elenco dos factos provados que o arguido obteve o pacote que continha Alfa-PHiP na sala de visitas, mantendo-se a dúvida de como o recorrente adquiriu a matéria estupefaciente.
18. Logo não fica prejudicada a tese de que o arguido guardava o estupefaciente a que tinha acedido através de um outro recluso com quem já tinha combinado de consumirem o produto em conjunto, inexistindo culpa e vontade do agente na prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
19. Por este último motivo elencado, o tribunal a quo violou o princípio do in dubio pro reo, uma vez que sempre decorreria a dúvida quanto ao modo como o arguido adquiriu o produto estupefaciente.
20. O arguido, apresenta um padrão aditivo que condicionou o seu percurso de vida, marcado pelo consumo de substâncias sintéticas, conforme decorre do relatório social.
Termos em que e nos demais de Direito deve ser dado provimento ao presente recurso e , por via dele, ser revogado o acórdão recorrido e, em consequência, ser a recorrento absolvido do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. h) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 e tabela II-A anexa a este diploma em que foi condenado.
Fazendo-se assim a habitual e necessária Justiça”.
3 – Na primeira instância o Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo que lhe deve ser negado provimento ao recurso e terminando com as seguintes conclusões (transcrição):
III. - CONCLUSÃO:
1. Quanto à impugnação da matéria de facto, em concreto quanto aos fatos do ponto n.º 2, afigura-se-nos que a recorrente não cumpriu o ónus que sobre si recai, no que toca à impugnação da matéria de facto.
2. Na verdade, limitou-se o recorrente, no que se refere à indicação da prova que impõe decisão diversa da recorrida, pugnado que não praticou qualquer ilícito criminal.
3. Não podíamos estar mais em desacordo com o recorrente, pois basta ouvir as declarações do recorrente, que optou por prestar declarações, confessando os factos descritos na acusação pública, dizendo que o produto estupefaciente que lhe foi apreendido se destinava ao seu próprio consumo e de outros reclusos com quem se dava.
4. Ora, conjugando as declarações do recorrente com a restante prova, não restam dúvidas que o recorrente praticou os factos descritos na matéria provada em audiência de julgamento.
5. Quanto à errada qualificação jurídica, a nosso ver, as alegações do recorrente não podem colher aplauso quando diz que o Tribunal a quo fez errada qualificação jurídica do crime de tráfico de estupefacientes, pois no acórdão recorrido, o Tribunal a quo fundamentou nos seguintes moldes a sua convicção quanto à demonstração da factualidade dada como provada, o tribunal formou a sua convicção com base na prova documental e pericial junta aos autos, nomeadamente - relatórios do exame pericial realizado ao produto estupefaciente, c.r.c. e relatório social.- conjugados com os depoimentos das testemunhas inquiridas, tudo analisado de forma crítica e em conjugação com regras de experiência comum.
6. Assim, o Tribunal explicou como e porquê que entendeu que o recorrente é o autor dos factos dados como provados foi o recorrente e em que elementos de prova se baseou, designadamente, declarações do recorrente, da testemunha, e da restante prova produzida durante o julgamento, em concreto explica com exatidão porque considerou provado que o recorrente foi o autor dos factos, designadamente o Tribunal refere que se baseou-se nas declarações do recorrente, depoimento prestado pela testemunha, resulta a descrição dos factos acima dados provados, os quais, de forma isenta, coerente e assertiva, descreveram as circunstâncias espácio-temporais, bem como a dinâmica factual subjacente, o que narraram sem hesitações, nem evasivas, nem ambiguidades, sendo os seus depoimentos merecedores de credibilidade, para além de terem descrito, com rigor e minúcia, como o recorrente adquiriu o produto estupefaciente, para consumir e para outros reclusos com quem se dava dentro do estabelecimento prisional.
7. Pelo que não existem dúvidas de que o recorrente praticou o crime de trafico estupefacientes no interior do estabelecimento prisional.
8. Ora, o crime de tráfico de estupefacientes configura-se como um crime de perigo comum e abstrato, na medida em que visa antecipar a proteção legal de diversos bens jurídicos com dignidade penal, como por exemplo a vida, a integridade física e a liberdade de determinação dos consumidores de estupefacientes (em suma, visa-se a proteção da saúde pública), ainda que em concreto não se tenha verificado o perigo de violação desses bens jurídicos.
9. No caso concreto, ficou demonstrado que o recorrente detinha consigo no estabelecimento prisional Alfa-PHiP”, com o peso de 0.590 grama, que ia ser cedido a outros reclusos no estabelecimento. Ora tal produto estupefaciente, embora se admita que o recorrente poderia destinar parte daquele produto estupefaciente ao seu próprio consumo, dada a clara demonstração do seu historial de dependência do consumo de substâncias psicotrópicas, não podemos igualmente ignorar, que uma parte do produto estupefaciente ia ser disseminado por outros reclusos.
10. Pelo que não tem razão o recorrente quando defende que deve ser absolvido do crime de tráfico de estupefacientes, pois só ia ceder a reclusos.
11. Também não lhe assiste, por um lado, já que, como vimos, a simples circunstância de estar na posse, e cedência de tais substâncias, sem que tivesse ficado demonstrado que por ele era destinada ao seu exclusivo consumo, bastava para preencher o tipo objetivo do crime de tráfico de estupefacientes.
12. Especificamente no caso dos estabelecimentos prisionais, que é o que agora interessa, a agravação dos factos derivará não da infração à disciplina da instituição, mas da adequação do facto à disseminação das drogas entre os reclusos. Por isso, o crime pode ser cometido por reclusos ou não reclusos. O que importa é apurar se a ação era idónea para fazer chegar o estupefaciente à população prisional. No caso afirmativo, a ação deve em princípio ser integrada na citada al. h) do art. 24.ºdo referido diploma legal.
13. Difícil já será defender que, em situações excecionais, o facto ocorrido em estabelecimento prisional possa ser integrado no crime do art. 25.º ou apenas de consumo como alega o recorrente. É que o tipo de tráfico privilegiado pressupõe uma ilicitude consideravelmente diminuída – e, portanto, um caso extraordinário ou excecional relativamente à situação normal de tráfico de estupefacientes – que, por regra, não se verificará nas situações de tráfico de estupefacientes no interior de estabelecimentos prisionais.
14. Sendo assim, e não se afigurando sensivelmente diminuída a ilicitude do facto, principalmente porque ia ser cedido a outros recluso, com os inerentes prejuízos para a sua saúde e para o seu processo de ressocialização, a que se acrescenta o grave transtorno da ordem e organização das cadeias que o tráfico comporta, como justamente salienta o STJ, no acórdão de 7/7/2009, consideramos correta a integração do seu comportamento no tipo matricial de tráfico de estupefacientes previsto no art. 21.º do DL nº 15/93, de 22/1. E como bem refere o Tribunal “a quo”: “o tráfico em estabelecimento prisional é sempre e em qualquer caso agravado”.
15. Em conclusão, o comportamento retratado na matéria de facto não deixa dúvidas que o recorrente praticou, em autoria material, na forma consumada, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. h), do Decreto-lei n.º 15/93 de 22 de janeiro.
16. Valorando, então, os diferentes fatores de determinação da pena a que se referem as diversas alíneas do n.º 2 do art. 71.º do Código Penal, no caso em apreço, verifica-se que:
- Atuou com dolo direto (facto desfavorável ao arguido). Em termos de ilicitude, o grau de ilicitude é elevado, sendo aqui de relevar a natureza (Apha PHIP), o arguido tem antecedentes criminais por diversos crimes e da mesma natureza.
- O recorrente apresenta um percurso ligado ao tráfico de estupefacientes desde 2018, contexto que vem determinando a adoção de um estilo de vida em pouca conformidade com as normas sociais vigentes. Sendo que praticou este crime no estabelecimento prisional, causando assim uma perturbação do processo de ressocialização dos reclusos e principalmente causou o grave transtorno da ordem e organização das cadeias que o tráfico comporta, a difusão de substâncias estupefacientes pelos estabelecimentos prisionais.
17. Tudo ponderado, pugnamos como adequada e proporcional a aplicação de uma pena determina pelo Tribunal a quo de 5 anos e 6 meses de prisão.
18. Assim sendo, no caso sub judice, estando também verificado o elemento subjetivo do crime concernente a esta agravação, impõe-se, pois, a condenação do arguido em conformidade com o exposto: um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º n.º 1 e 24.º al. h), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro.
19. Pelo que, não se vislumbram violações de preceitos legais com o decidido, nomeadamente, as dos artigos 40.º, n.º 1, 50.º, n.ºs. 1 e 2, 70.º, 71.°, n.ºs 1 e 2, alíneas d) e c), tudo do Código Penal.
20. Concluindo, devem improcederem, assim, a totalidade da pretensão do recorrente. Não merece, pois, censura o acórdão recorrido.
Vossas Excelências, melhor saberão fazendo, JUSTIÇA!”.
4 – Os autos foram remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro ao qual foram distribuídos proferido Decisão Sumária a declarar a incompetência do Supremo Tribunal de Justiça para apreciação do recurso interposto em representação do AA, atribuindo a competência para o decidir ao Tribunal da Relação de Lisboa, para onde o recurso foi dirigido.
5 – Neste Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, no parecer que emitiu, declarou acompanhar o teor da resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª instância, entendendo, por apelo aos argumentos naquela deduzidos, que deve o recurso improceder.
*
6 – Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta ao parecer da Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta.
Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi presente à conferência, de acordo com o preceituado no art. 419.º, nº 3, alínea c), do Código de Processo Penal.
Cumpre conhecer e decidir.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
1 – Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no art. 412.º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação pelo recorrente, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso previstas no art. 379.º do Código de Processo Penal, e daquelas a que alude o art. 410.º do referido código (atendendo, relativamente a estas últimas, à jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/05, de 19/10/1995, publicado no DR I-A de 28/12/1995).
No caso presente, as questões a decidir são as seguintes:
a) a impugnação da matéria de facto por erro de julgamento;
b) a violação do princípio in dubio pro reo;
c) do não preenchimento dos elementos típicos do crime de tráfico de estupefacientes;
d) saber se a circunstância de os factos terem sido cometidos num estabelecimento prisional determina automaticamente a qualificação do crime de tráfico de estupefacientes.
*
2 – Do acórdão recorrido.
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“Factos provados.
AA - Da prova produzida resultou assente a seguinte factualidade:
i. Da acusação:
1.
No dia ... de ... de 2023, pelas 14h55 horas, o arguido, que estava recluso no Estabelecimento Prisional Regional de ..., quando estava a sair da zona das visitas do estabelecimento, dirigindo-se à zona de proteção dos reclusos, apercebendo-se de revista, retirou de dentro das calças um embrulho contendo “Alfa-PHiP”, com o peso de 0.590 grama, que tentou atirar para o chão, no que foi impedido por um guarda prisional, que apreendeu aquele embrulho;
O arguido tinha conhecimento que detinha produto estupefaciente e que se encontrava recluso em estabelecimento prisional, e que a posse daquela substância naquele estabelecimento lhe estava vedada, porque proibida por lei penal, e ainda prejudicava o processo de integração do arguido e dos outros reclusos;
Atuou voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;
2.
Mais se provou:
O arguido destinava o produto estupefaciente que lhe foi apreendido ao seu consumo e aos de outros reclusos com quem se dava;
ii. Do relatório social e do CRC do arguido:
3.
a.
AA à data dos factos subjacentes aos presentes autos encontrava-se em cumprimento de pena de prisão no Estabelecimento Prisional Regional de ..., de onde veio transferido para o EPVJ em .... O seu núcleo familiar, constituído atualmente pelos pais e dois irmãos com 25 e 30 anos, mantém disponibilidade para assumir o enquadramento residencial e financeiro, sendo afirmada a existência de vínculos afetivos. A família habita em casa própria, térrea, V3, com terreno envolvente. As despesas fixas respeitantes à manutenção da habitação são referidas pela mãe na ordem dos €200,00 mensais e os rendimentos reportam-se à prestação do subsídio de desemprego do pai e salário daquela, respetivamente na ordem dos €250,00 e €800,00 mensais, respetivamente. À presente data, a mãe encontra-se a beneficiar de cerca de €300,00 decorrente de situação de saúde a que corresponde certificado de incapacidade temporária (CIT). Ambos os irmãos de AA estão inativos, dependendo financeiramente dos pais, tendo um deles sido coarguido no processo pelo qual o próprio cumpre atualmente pena de prisão. AA apresenta um padrão aditivo que condicionou o seu percurso de vida. Situa a adesão ao programa de redução de riscos com substituição opiácea pela administração de metadona, há cerca de 10 anos. Contudo, identifica crescente desorganização e agravamento da sua dependência com o início do consumo de cocaína e substâncias sintéticas. Em período anterior à reclusão atual, AA concluiu formação profissional na área da geriatria, que lhe deu equivalência ao 6º ano de escolaridade, a qual se ajusta às suas competências, sem que tenha tido possibilidade de exercer atividade laboral neste setor. Ao nível laboral, assumiu o cuidado do tratamento dos animais, nomeadamente as cabras existentes no terreno familiar, contudo, é inexistente o exercício de atividade remunerada de forma continuada. Perspetiva a sua libertação e o seu processo de reinserção social assentes no suporte familiar ao nível do enquadramento habitacional e de garantia financeira, confirmado pela mãe. Em meio livre não dispõe de projeto laboral, surgindo a inscrição no centro de emprego, após libertação, um objetivo a equacionar. O seu contacto com o sistema judicial decorre do padrão comportamental aditivo e integração em grupos de pares com comportamentos desviantes, implicando o contacto reiterado com o Sistema da Justiça, essencialmente pela prática de crimes relacionados com estupefacientes, tendo sido condenado em penas alternativas à privação da liberdade. A reclusão atual constitui o primeiro contacto de AA com o regime penitenciário. Identifica que, a execução das medidas não privativas não se revelou facilitadora da alteração do seu comportamento, face à ausência de responsividade pessoal às mesmas e de interesse na adoção de uma conduta e estilo de vida pró-social. Encontra-se preso desde ........2022, em regime comum, sem ocupação e não foi sujeito a exames toxicológicos desde a sua entrada no EPVJ. Atualmente à ordem do proc. nº.267/22.3..., condenado a 6 anos e 9 meses de prisão pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes, detenção arma proibida, ameaça agravada e ofensa à integridade física simples. Estabelece contactos telefónicos assíduos com a mãe. Os familiares procedem a transferências mensais de valores na ordem dos €100,00. A ........2024 dispunha de €50,43 no fundo de uso pessoal e €34,87 no fundo de apoio à reinserção social. Face ao presente processo aguarda que a decisão do mesmo venha a definir a sua situação jurídica, face à qual apresenta a expectativa de poder ser transferido para o estabelecimento prisional na ..., dado identificar como prejuízo direto da situação atual, para si e os familiares, a impossibilidade de visitas. AA apresenta um percurso de vida com um padrão aditivo subjacente a comportamentos desviantes, integrado em grupos de pares com características pró-criminais, que implicaram o contacto com o sistema judicial e a situação atual de reclusão. O trajeto criminal remete para baixa responsividade pessoal à intervenção da justiça, no sentido da motivação para não delinquir, atendendo ao facto de as medidas penais aplicadas não terem tido efeito dissuasor de reincidência. Relativamente ao futuro, aquando em liberdade, AA dispõe de inserção habitacional e de apoio familiar, económico e afetivo, fatores positivos no seu percurso de vida;
b.
Este arguido já foi condenado:
. Por sentença de ........2019, por factos consubstanciadores do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e detenção de arma proibida, praticados em ........2018, na pena de multa;
. Por sentença de ........2021, por factos consubstanciadores do crime de detenção de arma proibida, praticados em ........2020, na pena de multa substituída por trabalho; e
. Por sentença de ........2023, por factos consubstanciadores dos crimes de ameaça agravada, tráfico de estupefacientes, detenção de arma proibida e ofensa à integridade física simples, praticados em ........2021 e ..., na pena de prisão;
*
AB - Factos não provados:
4.
Não ficaram factos por provar.
*
AC - Motivação da matéria de facto:
O tribunal forma a sua convicção com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência, a qual, à exceção da pericial e documental, haverá de ser apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, como preceitua o artº.127º do CPP. 1
1.
À cabeça tiveram-se em conta as declarações do arguido…o qual, pretendendo falar, referiu que à data se encontrava na zona de proteção que partilhava com outro recluso o BB e foi deste e naquela zona que recebeu o pacote de droga sintética que lhe veio a ser apreendido. Tal pacote foi-lhe entregue porque o BB ia tomar banho e corria o riso de o molhar por isso lho passou para o guardar para depois o fumarem em conjunto com outro recluso. Efetivamente a droga que lhe foi apreendida dava para fumar durante cerca de uma hora e ia partilhar esse consumo com os dois colegas que falou. No EP de ... consumia, quando a ela chegava, droga sintética, consumo que apenas largou quando foi transferido para ... onde se encontra. Deixou de ter acesso a droga sintética no EP de ... quando o BB, que era o seu fornecedor, foi transferido para .... Só quando ingressou no EP de PDL é que foi sujeito a teste e foi positivo a consumos. Onde está agora não tem acesso a droga sintética e no período que lá está apenas funou um charro.
2.
Depois, o depoimento da testemunha ouvidas:
CC…guarda prisional, referiu que no dia aqui em causa o arguido deslocou-se, sozinho, da zona de proteção onde estava para a sala das visitas sendo, à entrada dessa sala, revistado por apalpação sem que lhe tenha sido detetado qualquer embrulho ou estupefaciente. Quando o arguido estava na visita chegou-lhes a notícia de que ele traria droga consigo, coisa que os levou a obviarem à revista dele por apalpação a que por regra haveria de ser sujeito quando saísse da visita, encaminhando-o, outrossim, para uma sala que se localiza na zona de proteção para ser alvo de uma revista por desnudação. Quando estava para entrar na sala onde a revista teria lugar, o arguido, apercebendo-se disso, tirou do bolso um pacote que deitou ao solo, pacote esse que o depoente apanhou. Nunca viu o arguido a vender ou ceder droga, contudo, nos meandros do EP dizia-se que ele a isso de dedicava. Quando lhe foi apreendido o pacote de droga apontou que o destinava ao seu consumo. Não se recorda do recluso BB, contudo, ainda que com ele o arguido tivesse contatado não poderia dele ter recebido o pacote aqui em causa porque esbarraria na revista feita ao arguido na entrada para a sala de visitas.
3. A seguir as perícias de fls.28 (exame ... – BTX do Laboratório de Polícia Científica).
4. Finalmente os documentos:
Trazidos do inquérito:
Autos de apreensão de fls.6 e 12;
Fotografia de fls.7;
Relatório do EPR. de fls.9/11;
Auto de pesagem e despistagem de fls.13; e
Fotografia do embrulho e produto estupefaciente de fls.14.
Aqui chegado pela mão do tribunal:
Os resultados dos testes de despiste de consumos de tóxicos por parte do arguido enquanto recluso que estão a fls.221 a 228.
5.
Aqui chegados cumpre analisar de forma crítica o depoimento do arguido e para dizer que, no que toca ao cerne da questão que aqui nos prende, é credível, ainda que parcialmente, designadamente nas questões laterais. Efetivamente…não é credível que o arguido tenha ido para a visita com a droga que lhe foi apreendida quando dela regressava porque a isso se opõe o procedimento de revista que está implementado no acesso à mesma…antes sendo mais lógico, percetível e procedimentalmente viável que a tenha recebido da visita ou de outro companheiro que também na sala estivesse tal como decorre de forma clara e linear do depoimento da testemunha CC. Para lá disso é insofismável que arguido consumia droga sintética no EP onde estava recluso sabendo que o acesso a essa droga naquele espaço era vedado e era sancionado, sabendo, naturalmente, porque até estava a cumprir pena por tráfico, que a cedência desse produto a terceiro para consumo é, também tráfico e agravado em razão da circunstância de estar em meio que se pretende isento de drogas e que contrariou ao obtê-la de forma não apurada na sala das visitas. Ora…a versão do arguido, que aceita a detenção da droga e aceita que a detinha para seu consumo e partilha com outros reclusos, tendo nota clara de que a cedência de droga a terceiro é proibida e mais severamente punida na cadeia, é, como não podia deixar de ser, relevante e credível.
O depoimento da testemunha CC, pela sua clareza, substanciação, isenção e contenção no sentido de as produzirem apenas quanto a factos por si diretamente conhecidos, são credíveis.
As perícias e demais provas documentais, que não foram impugnadas nem nelas foi encontrado qualquer defeito formal ou substancial, são atendíveis, sendo certo que, pela sua singeleza, não carecem de explicações adicionais no que toca à informações que revelam.
Assim…
. o que temos provado e está acima em 1. e 2., vem em razão da confissão parcial do arguido, que admitiu a posse da droga e a partilha dela com outros reclusos, sabendo bem as regras da instituição onde se encontrava recluso e do primado da ausência de tóxicos em tais instituições, primado esse que ele ajudou a quebrar ao promover a entrada de droga que depois consumia e difundia o seu consumo pelos reclusos com quem a partilhava e com isso punha em crise o fito que se quer associar à reclusão. Não restam dúvidas que o arguido sabia que cometia crime e assim era porque tentou livrar-se da droga que o incriminava, tal como sabia que o crime aqui em causa praticado na cadeia era punido de forma mais severa em razão dos fins que com o ingresso na instituição se pretendiam alcançar e das regras que lhe foram dadas a conhecer aquando da sua entrada. Para lá disso teve-se em conta o depoimento da testemunha CC que afirmou existir a nota de que o arguido se encontrava a traficar e que naquele dia iria receber produto na visita, por isso foi selecionado para a revista desnudada à saída. A quantidade de droga nunca poderia ser muita, sabendo, contudo, que mesmo em pequenas doses era coisa de subvertia o fim da vida no EP e, por isso, mais grave. Não se contesta que o arguido era consumidor…contudo, dos elementos que vieram ao processo no que toca aos testes de despiste que lhe foram feitos, esse consumo era raro e perfeitamente compatível com a cedência que da droga que detinha fazia a terceiros e que confessou de foram clara e livre. O que vem de se apontar compagina-se ainda com a perícia de fls.28 (exame ... – BTX do Laboratório de Polícia Científica); os autos de apreensão de fls.6 e 12; a fotografia de fls.7; o relatório do EPR. de fls.9/11; o auto de pesagem e despistagem de fls.13; a fotografia do embrulho e produto estupefaciente de fls.14 e os resultados dos testes de despiste de consumos de tóxicos por parte do arguido enquanto recluso que estão a fls.221 a 228.
O que está em 3. dos factos vem do relatório social do arguido e do seu CRC que não foram impugnados”.
*
3 – Apreciação do recurso.
3.1 – A impugnação da matéria de facto por erro de julgamento.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas formas distintas: - uma, de âmbito mais restrito, comummente designada de revista alargada, que contempla os vícios da decisão recorrida previstos no art. 410.º, nº 2, do CPP; - a outra, designada como impugnação ampla da decisão da matéria de facto, que visa o erro de julgamento, a que se refere o art. 412.º, nºs. 3, 4 e 6, do referido CPP.
“Nos termos do art. 428º do Código de Processo Penal, compêndio legal a que pertencem os preceitos doravante citados sem referência a qualquer diploma, os tribunais da relação conhecem não só de direito mas também de facto, assim se concretizando a garantia do duplo grau de jurisdição na matéria de facto, sendo que uma das vertentes aqui admitida é a da impugnação ampla, visando o chamado erro de julgamento.
Este erro resulta da forma como foi valorada a prova produzida, ocorrendo quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.
Nesta forma de impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida (como acontece com os vícios previstos no art. 410º, n.º 2), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431º, al. b).

Todavia, conforme jurisprudência constante, esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição das gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.
Assim, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova nela indicados e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Daí a exigência feita nas als. a), b) e c) do n.º 3 do art. 412º, no sentido de o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto ter de especificar os concretos pontos da mesma que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sendo caso disso, as que devem ser renovadas”2.
O nº 3 do art. 412.º do Código de Processo Penal (doravante, CPP) estabelece que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
A especificação dos concretos pontos de facto consiste na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que o recorrente considera incorretamente julgados, só se satisfazendo com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida3.
Estabelece o nº 4 do art. 412.º do CPP que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do nº 3 do art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. E cabe ao tribunal da relação, nos termos do nº 6 do citado art. 412.º, proceder à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Portanto, ao recorrente é exigível que efetue a indicação concreta da sua divergência probatória, fazendo-o para os suportes onde se encontra gravada a prova, remetendo para os concretos locais da gravação que suportam a sua tese.
Todas estas especificações, atento o disposto no nº 3 do art. 417.º do CPP, deverão constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas.
No caso em análise, o recorrente não indica quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, nem especifica as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Nada concretiza, portanto, em termos de prova produzida que pudesse reverter o juízo efetuado pelo tribunal de primeira instância.
Rejeitamos, pelo exposto, o recurso nesta parte.
3.2. - A violação do princípio in dubio pro reo.
A matéria de facto pode também ser sindicada através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art. 410.º, nº 2, do CPP. Estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios.
O nº 2 do art. 410.º do CPP dispõe que “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova”.
O recorrente defendeu nas conclusões 4 a 6 do recurso, que: a) não resultou provado que o recorrente detinha a matéria estupefaciente para com ela lucrar; b) a convicção do tribunal a quo assentou na circunstância de o arguido ter referido que a matéria estupefaciente encontrada na posse do arguido se destinava ao seu consumo juntamente com outros dois reclusos com quem se dava; c) o tribunal a quo fez uma interpretação, refira-se ipsis verbis, no sentido de que a cedência a terceiro para consumo da matéria estupefaciente encontrada na posse do arguido, é também tráfico e agravado em circunstância de estar em meio que se pretende isento de drogas.
O recorrente acrescenta, ainda, nas conclusões 17 a 19: a) Não consta do elenco dos factos provados que o arguido obteve o pacote que continha Alfa-PHiP na sala de visitas, mantendo-se a dúvida de como o recorrente adquiriu a matéria estupefaciente; b) Logo não fica prejudicada a tese de que o arguido guardava o estupefaciente a que tinha acedido através de um outro recluso com quem já tinha combinado de consumirem o produto em conjunto, inexistindo culpa e vontade do agente na prática de um crime de tráfico de estupefacientes; c) Por este último motivo elencado, o tribunal a quo violou o princípio do in dubio pro reo, uma vez que sempre decorreria a dúvida quanto ao modo como o arguido adquiriu o produto estupefaciente”.
Vejamos se se verifica na sentença algum dos vícios formais previstos no art. 410.º, nº 2, do CPP.
“O princípio in dubio pro reo, consagrado no artigo 32.º, nº 2, da Constituição da Republica Portuguesa e no Código de Processo Penal, estabelece que, em caso de dúvida razoável e objetiva quanto à autoria ou participação em fato delituoso, esta dúvida deve beneficiar o arguido. Este princípio encontra a sua origem no princípio da presunção da inocência, sendo essencial para garantir que o julgamento penal se baseie em certeza moral quanto à responsabilidade criminal, evitando a condenação de um arguido na presença de incerteza insuperável”4.
Dizendo de outra forma, “O art. 127º do Código de Processo Penal consagra o princípio da livre apreciação da prova, o qual pressupõe que esta seja considerada segundo critérios objetivos que permitam estabelecer o substrato racional da fundamentação da convicção.
Por seu lado, o princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo a esse outro princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o tribunal decida pro reo, ou seja a favor do arguido. Decorre desse princípio que todos os factos relevantes para a decisão que sejam desfavoráveis ao arguido e que, face à prova, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador, não podem dar-se como provados. Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, será dado como não provado se lhe for desfavorável, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa.
Porém, não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio - Cf. acórdão do STJ de 04-11-1998, in BMJ n.º 481, pág. 265..
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Terá de ser uma dúvida séria, positiva, racional e que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a íntima convicção do tribunal, que seja argumentada e coerente. Daí que o tribunal de recurso só possa censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.
O princípio in dubio pro reo encerra, portanto, uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
À semelhança do que sucede com os vícios consagrados no n.º 2 do art. 410º, em sede de recurso, a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento, antes sendo um remédio jurídico - Cf. acórdão do TRC de 14-01-2015 (processo n.º 72/11.2GDSRT.C1) disponível em http://www.dgsi.pt”5.
No caso em análise, não resulta do acórdão recorrido que tribunal a quo se tenha defrontado com dúvidas que resolveu contra o recorrente ou tenha demonstrado qualquer dúvida na formação da convicção. Consta o seguinte da motivação da matéria de facto quando o tribunal procede ao exame crítico da prova: “não é credível que o arguido tenha ido para a visita com a droga que lhe foi apreendida quando dela regressava porque a isso se opõe o procedimento de revista que está implementado no acesso à mesma…antes sendo mais lógico, percetível e procedimentalmente viável que a tenha recebido da visita ou de outro companheiro que também na sala estivesse tal como decorre de forma clara e linear do depoimento da testemunha CC. Para lá disso é insofismável que arguido consumia droga sintética no EP onde estava recluso sabendo que o acesso a essa droga naquele espaço era vedado e era sancionado, sabendo, naturalmente, porque até estava a cumprir pena por tráfico, que a cedência desse produto a terceiro para consumo é, também tráfico e agravado em razão da circunstância de estar em meio que se pretende isento de drogas e que contrariou ao obtê-la de forma não apurada na sala das visitas. Ora…a versão do arguido, que aceita a detenção da droga e aceita que a detinha para seu consumo e partilha com outros reclusos, tendo nota clara de que a cedência de droga a terceiro é proibida e mais severamente punida na cadeia, é, como não podia deixar de ser, relevante e credível. O depoimento da testemunha CC, pela sua clareza, substanciação, isenção e contenção no sentido de as produzirem apenas quanto a factos por si diretamente conhecidos, são credíveis”.
Resulta, assim, claro da motivação da matéria de facto, que o tribunal a quo não ficou em estado de dúvida, tendo dado a conhecer o processo de formação da sua convicção, pelo que não tem cabimento invocar aqui a violação do princípio constitucional in dubio pro reo.
Sempre acrescentaremos, porém, que o recorrente não se insurge contra os factos provados.
O que o recorrente defende é que os factos que foram dados como provados não permitem concluir que o arguido praticou um crime de tráfico de estupefacientes, uma vez que não consta do elenco dos factos provados que o arguido obteve o pacote que continha Alfa-PHiP na sala de visitas, mantendo-se a dúvida de como o recorrente adquiriu a matéria estupefaciente. E acrescenta que, sendo assim, “não fica prejudicada a tese de que o arguido guardava o estupefaciente a que tinha acedido através de um outro recluso com quem já tinha combinado de consumirem o produto em conjunto, inexistindo culpa e vontade do agente na prática de um crime de tráfico de estupefacientes”, pelo que “o tribunal a quo violou o princípio do in dubio pro reo, uma vez que sempre decorreria a dúvida quanto ao modo como o arguido adquiriu o produto estupefaciente”.
Sucede que é irrelevante a questão de saber como é que o recorrente adquiriu o estupefaciente.
Conforme desenvolveremos a seguir, no ponto 3.3., o tipo objetivo do crime de tráfico de estupefacientes, preenche-se com qualquer um dos comportamentos ou das condutas enunciadas no art. 21.º do D.L. nº 15/93, de 22/01, podendo o crime consumar-se com a prática pelo agente (sem que para tal esteja autorizado), designadamente, de atos de oferta e/ou detenção ilícita de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas anexas ao D.L. nº 15/93, fora dos casos previstos no artigo 40.º do referido Decreto-Lei.
O crime de tráfico de estupefacientes é um crime de perigo, já que o legislador não exige para a respetiva consumação, a efetiva lesão dos bens jurídicos tutelados. Trata-se de um crime de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de caráter pessoal – embora todos eles possam ser reconduzidos a um mais geral: a saúde pública. Por outro lado, é um crime de perigo abstrato, porque não pressupõe nem dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da ação para as espécies de bens jurídicos protegidos6.
O recorrente foi condenado por deter produto estupefaciente quando se encontrava recluso em estabelecimento prisional, apesar de saber que a posse daquela substância naquele estabelecimento lhe estava vedada, porque proibida por lei penal (tanto assim que tentou livrar-se da droga quando se apercebeu de que ia ser revistado), e ainda prejudicava o processo de integração do arguido e dos outros reclusos.
Não se verifica, pelo exposto, a violação do princípio in dubio pro reo, pelo que improcede esta questão.
3.3 - Do não preenchimento dos elementos típicos do crime de tráfico de estupefacientes.
O recorrente defende que não praticou um crime de tráfico de substâncias estupefacientes agravado, previsto pelos artºs. 21.º, nº 1 e 24.º, alínea h), do Decreto Lei 15/93, de 22.1 e tabela II-A anexa a este diploma, mas sim “Quanto muito, haveria lugar à aplicação da pena indicada no art. 40.º (integração do arguido como consumo), cuja moldura penal não se parece com a do artigo 21.º do D.L. nº 15/93, de 22/01, erradamente aplicado” – fls. 9 das alegações de recurso.
Estabelece o nº 1 do art 21.º do D.L. nº 15/93 de 22/01: Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artº 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
“Este preceito constitui o crime matricial do crime de tráfico de estupefacientes, onde cabem, o verdadeiro tráfico, grande e médio, permitindo distinguir entre os casos «graves» (art. 21.°), os muito graves (art. 24.º) e os pouco graves (art. 25.º).
Com efeito, conforme se afirma no Ac. do STJ de 17.04.2008[7]«O artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93 contém, pois, a descrição fundamental - o tipo essencial - relativa à previsão e ao tratamento penal das atividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo. A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão interindividual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efetivamente determine: a lei faz recuar a proteção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
A construção e a estrutura dos crimes ditos de tráfico de estupefacientes, como crimes de perigo, de proteção (total) recuada a momentos anteriores a qualquer manifestação de consequências danosas, e com a descrição típica alargada, pressupõe, porém, a graduação em escalas diversas dos diferentes padrões de ilicitude em que se manifeste a intensidade (a potencialidade) do perigo (um perigo que é abstrato-concreto) para os bens jurídicos protegidos. De contrário, o tipo fundamental, com os índices de intensidade da ilicitude pré-avaliados pela moldura abstrata das penas previstas, poderia fazer corresponder a um grau de ilicitude menor uma pena relativamente grave, com risco de afetação de uma ideia fundamental de proporcionalidade que imperiosamente deve existir na definição dos crimes e das correspondentes penas.
Por isso, a fragmentação por escala dos crimes de tráfico (mais fragmentação dos tipos de ilicitude do que da factualidade típica, que permanece no essencial), respondendo às diferentes realidades, do ponto de vista das condutas e do agente, que necessariamente preexistem à compreensão do legislador: a delimitação pensada para o grande tráfico (artigos 21º e 22º do Decreto-Lei no 15/93), para os pequenos e médios traficantes (artigo 25º) e para os traficantes-consumidores (artigo 26º)».
Por outro lado, dispõe o artº 24º al. h) do mesmo diploma que: "As penas previstas nos artigos 21.º e 22.º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se: h) A infracção tiver sido cometida em instalações de serviços de tratamento de consumidores de droga, de reinserção social, de serviços ou instituições de ação social, em estabelecimento prisional, unidade militar, estabelecimento de educação, ou em outros locais onde os alunos ou estudantes se dediquem à prática de atividades educativas, desportivas ou sociais, ou nas suas imediações."
O crime de tráfico de estupefacientes é um crime de perigo, já que o legislador não exige para a respetiva consumação, a efetiva lesão dos bens jurídicos tutelados. Trata-se de um crime de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de caráter pessoal – embora todos eles possam ser reconduzidos a um mais geral: a saúde pública. Por outro lado, é um crime de perigo abstrato, porque não pressupõe nem dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da ação para as espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo para um desses bens jurídicos[8].
Por outro lado, tem vindo a entender a jurisprudência e a doutrina, nesta linha de argumentação, que o crime de tráfico de estupefacientes é um “crime exaurido”, “crime de empreendimento" ou "crime excutido",[9] que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único ato conducente ao resultado previsto no tipo.
Isto quer dizer que o "primeiro passo" dado pelo agente na senda do "iter criminis" já constitui o preenchimento do tipo, valendo os passos seguintes apenas para efeitos de estabelecimento da medida concreta da pena a impor”10.
Dizendo de outra forma, o tipo objetivo do crime de tráfico de estupefacientes preenche-se com qualquer um dos comportamentos ou das condutas enunciadas no art. 21.º do D.L. nº 15/93, podendo o crime consumar-se com a prática pelo agente (sem que para tal esteja autorizado) de atos de cultivo, produção, fabrico, extração, preparação, oferta, venda, distribuição, compra, cedência, receção, transporte, importação, exportação, trânsito ou detenção ilícita de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas anexas ao D.L. nº 15/93, fora dos casos previstos no artigo 40.º do referido Decreto-Lei. Isto é, fora dos casos em que a finalidade é o consumo próprio.
Já o consumo próprio foi descriminalizado pela Lei nº 55/2023, de 08/09, que entrou em vigor a 01/10/2023, e introduziu a seguinte redação ao nº 2 do art. 40.º do D.L. nº 15/93: “a aquisição e a detenção para consumo próprio das plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior constitui contraordenação”.
Provou-se que o recorrente, no dia 24/02/2023, quando estava a sair da zona das visitas do estabelecimento prisional, dirigindo-se à zona de proteção dos reclusos: a) apercebendo-se de revista, retirou de dentro das calças um embrulho contendo “Alfa-PHiP”, com o peso de 0.590 grama, que tentou atirar para o chão, no que foi impedido por um guarda prisional, que apreendeu aquele embrulho; b) tinha conhecimento que detinha produto estupefaciente e que se encontrava recluso em estabelecimento prisional, e que a posse daquela substância naquele estabelecimento lhe estava vedada, porque proibida por lei penal; c) e ainda que prejudicava o processo de integração do arguido e dos outros reclusos; d) o arguido destinava o produto estupefaciente que lhe foi apreendido ao seu consumo e aos de outros reclusos com quem se dava.
Encontra-se, por conseguinte, preenchido o tipo objetivo do crime de tráfico de estupefacientes: o ora recorrente detinha consigo um embrulho contendo “Alfa-PHiP”, com o peso de 0.590 grama, substância estupefaciente prevista na tabela II-A anexa ao D.L. nº 15/93, tendo conhecimento que detinha produto estupefaciente. Tinha conhecimento que tal produto estupefaciente prejudicava o processo de integração do arguido e dos outros reclusos. E destinava o referido produto não ao seu consumo exclusivo, mas também ao consumo de outros reclusos com quem se dava.
Não se tendo provado que o produto estupefaciente se destinasse ao exclusivo consumo do ora recorrente, detentor do mesmo, não se encontra preenchida a previsão do art. 40.º do D.L. nº 15/93.
Encontram-se, pois, preenchidos os elementos típicos do crime de tráfico de estupefacientes e a conduta do arguido é dolosa.
Improcedente, nesta parte, o recurso.
3.4. Saber se a circunstância de os factos terem sido cometidos num estabelecimento prisional determina automaticamente a qualificação do crime de tráfico de estupefacientes.
A) alínea h) do art. 24.º do D.L. nº 15/93 dispõe que as penas previstas nos artigos 21.º e 22.º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se a infração tiver sido cometida em estabelecimento prisional.
“O art. 24.º do D.L. nº 15/93, de 22/01, prevê um tipo agravado de tráfico de estupefacientes, abrangendo situações de especial ilicitude do facto, funcionando como contraponto do art. 25.º do mesmo diploma, que estatui um crime privilegiado de tráfico, em razão de menor gravidade do facto. Assim, a lei prevê, a par do tipo fundamental de tráfico, instituído no art. 21.º, um crime privilegiado, o do art. 25.º, e um outro qualificado, o do art. 24.º, em função da dimensão da ilicitude do facto, que deverá ser consideravelmente menor que a ínsita no tipo fundamental no caso do art. 25.º, e, opostamente, consideravelmente maior no caso do art. 24.º”11.
É entendimento jurisprudencial dominante que “a agravação do crime de tráfico de estupefacientes prevista na alínea h) do art. 24.º do D.L. nº 15/93, de 22/1, por a infração ter sido cometida em estabelecimento prisional, tal como as demais alíneas do mesmo preceito legal, não é de aplicação automática, sendo necessária a análise do caso concreto, para se saber se há uma ilicitude acentuada dos factos na sua globalidade e, consequentemente, se se justifica tal agravação - Acórdão do STJ, de 21/06/2023 – processo nº 222/21.0JELSB.L1.S1 – www.dgsi.pt”.
No mesmo sentido vejam-se os Acórdãos do STJ, de 26/09/2012 – processo nº 139/02.8TASPS.S1; do STJ, de 13/09/2018 – processo nº 184/17.JELSB.L1.S1; da Relação de Lisboa, de 16/01/2025 – processo nº 425/21.8JELSB.L1-9; da Relação de Lisboa, de 06/11/2024 – processo 169/22.3JELSB.L1-3; da Relação do Porto, de 24/04/2024 – processo nº 6246/22.3JAPRT.P1; e da Relação do Porto, de 22/11/2023 – processo nº 134/17.2GAPFR.P2, todos em www.dgsi.pt.
Tem sido considerado indicador da ilicitude e potencial de risco o critério da quantidade de estupefacientes.
“A quantidade de estupefacientes apreendida é um fator crucial para determinar o nível de ilicitude e o impacto potencial da conduta no ambiente prisional. A jurisprudência tem destacado que a posse de quantidades expressivas ou variadas de estupefacientes pode constituir indício claro de intenção de tráfico, o que justificaria a aplicação da agravante ao abrigo do artigo 24.º, alínea h)”12. A qualificação que este preceito prevê é a disseminação com certa escala entre os reclusos, ainda que eventualmente restrita, como as condições de reclusão normalmente impõem, ou, pelo menos, a detenção de uma quantidade de estupefacientes bastante para tal efeito, por só assim se cumprir o princípio da proporcionalidade das penas13.
No caso em apreço provou-se que o arguido/recorrente detinha um embrulho contendo “Alfa-PHiP”, com o peso de 0.590 grama, e que destinava o produto estupefaciente que lhe foi apreendido ao seu consumo e aos de outros reclusos com quem se dava.
Não foi apurado qual o grau de pureza do estupefaciente, nem o número de doses médias individuais diárias para que dava tal quantidade. Mas, podemos afirmar que a posse de 0.590 grama não permite a disseminação do estupefaciente com certa escala entre os reclusos.
Entendemos, por isso, ser de afastar a circunstância qualificativa prevista na alínea h) do art. 24.º do D.L. nº 15/93, e que a conduta do arguido, adiantamos já, se integra na previsão do art. 21.º, nº 1, do citado Decreto-Lei.
Vejamos melhor.
Existem divergências jurisprudências sobre aqueles casos que objetivamente preenchem a previsão do art. 24.º do D.L. nº 15/93, mas em que o circunstancialismo fáctico envolvente afasta a sua aplicação, defendendo uma corrente que, desqualificado um crime por afastamento da agravativa da alínea h) do art. 24.º do D.L. nº 15/93, a convolação deve ser feita sempre para o tipo base do art. 21.º, e outra que, em especialíssimas circunstâncias, a conduta pode integrar o tipo de crime privilegiado previsto no art. 25.º, ambos do D.L. nº 15/9314, aderindo nós a esta última corrente.
O art. 25.º do D.L. nº 15/93 estabelece o seguinte:
“Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV”.
Pressuposto da integração da conduta do agente no art. 25.º do D.L. 15/93 é que a ilicitude do agente se mostre significativamente reduzida, uma vez que “a ilicitude exigida neste tipo legal tem de ser, não apenas diminuta, mas mais do que isso, consideravelmente diminuta, pelo desvalor da ação e do resultado”15.
No caso em análise, entendemos que a ilicitude do recorrente não se mostra consideravelmente diminuída: estava a cumprir pena de prisão pela prática, entre outros, de crime de tráfico de estupefacientes. Apesar disso, detinha ao sair da zona das visitas do estabelecimento um embrulho contendo “Alfa-PHiP”, uma droga sintética, sendo as drogas sintéticas consideradas de maior potencialidade de dano, e destinava o referido produto estupefaciente ao seu consumo e de outros reclusos com quem se dava, apesar de saber que prejudicava o seu processo de integração e dos outros reclusos.
Temos, assim de concluir que a conduta do recorrente se integra na previsão do art. 21.º, nº 1, do D.L. nº 15/93.
B) Da medida concreta da pena.
Ao crime p. e p. pelo D.L. nº 15/93 corresponde a moldura abstrata de prisão de 4 a 12 anos.
“A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa humana do delinquente.
Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena dever-se-ão ter em conta todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido, nomeadamente, os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º n.º 2 do Cód. Penal. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenham sido tidas em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração)”16.
Na concretização da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve atender-se a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade.
Com efeito, parte significativa da população prisional cumpre pena, direta ou indiretamente, relacionada com o tráfico e o consumo de estupefacientes.
As necessidades de prevenção geral impõem, pois, uma resposta punitiva firme, única forma de combater eficazmente o tráfico.
Há que ter em consideração a ilicitude dos factos, nomeadamente porque o arguido detinha consigo uma quantidade pequena mas de um produto de grande danosidade, e o grau de culpa, tendo o arguido agido com dolo direto
Relativamente às necessidades de prevenção especial constata-se que o arguido tem antecedentes criminais também por crimes da mesma natureza, pelo que mostrou indiferença pelas condenações anteriores e insensibilidade às penas. Aquando da prática dos factos era toxicodependente, o que tudo demonstra maiores exigências de prevenção especial.
Tudo visto e ponderado, na consideração de todos os referidos fatores e dos critérios definidos no artº 71º do Código Penal, entende-se que a pena concreta de quatro anos de prisão se mostra adequada à culpa do arguido, assegurando também as exigências de prevenção geral que são elevadas, atentos os interesses tutelados por este tipo de crime, assim se reduzindo a pena imposta no acórdão recorrido.
C) Da suspensão da execução da pena de prisão:
A pena de prisão fixada em medida não superior a cinco anos deve ser suspensa na sua execução se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, se concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O artº 50º do Cód. Penal atribui, assim, ao tribunal o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão não superior a cinco anos, sempre que, reportando-se ao momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido.
Tem-se entendido que a suspensão da execução da pena se insere num conjunto de medidas não institucionais que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que, embora funcionem como medidas de substituição, não podem ser vistas como formas de clemência legislativa, pois constituem autênticas medidas de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos.
Mas esta medida de conteúdo pedagógico e reeducativo só deve ser decretada quando o tribunal concluir, em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e outras circunstâncias indicadas nos textos transcritos, ser essa medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade e à devida proteção aos bens jurídicos postos em causa.
O recorrente já foi condenado: a) por sentença de .../.../2019, por factos consubstanciadores do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e detenção de arma proibida, praticados em .../.../2018, na pena de multa; b) por sentença de .../.../2021, por factos consubstanciadores do crime de detenção de arma proibida, praticados em .../.../2020, na pena de multa substituída por trabalho; c) por sentença de .../.../2023, por factos consubstanciadores dos crimes de ameaça agravada, tráfico de estupefacientes, detenção de arma proibida e ofensa à integridade física simples, praticados em .../.../2021 e ..., na pena de prisão.
Ao nível laboral é inexistente o exercício de atividade remunerada de forma continuada. Não é uma pessoa integrada e cumpridora das regras sociais. Não apresenta ocupação no estabelecimento prisional.
Não é, por conseguinte, possível fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, pelo que se decide pela não suspensão da pena de prisão.
*
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido AA em consequência do que:
- absolvem o arguido da prática de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, agravado, previsto pelos arts. 21.º, nº 1, e 24.º, alínea h), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01 e tabela II-A anexa a este diploma, que lhe era imputado;
- condenam o arguido pela prática do crime de tráfico de substâncias estupefacientes previsto pelo art. 21.º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, e tabela II-A anexa a este diploma, na pena efetiva de quatro anos de prisão.
Sem custas, atento o vencimento parcial (art. 513.º, nº 1, do CPP).
Notifique.
*
Lisboa, 09/10/2025
Maria do Carmo Lourenço
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Ivo Nelson Caires B. Rosa (Voto vencido)

Voto vencido
Não acompanho a decisão que fez maioria quanto à qualificação jurídica dos factos e medida concreta da pena, pelos seguintes motivos:
Por força do disposto no art. 21º, n.º 1 do Dec-Lei 15/93 de 22.01 comete o crime de tráfico de estupefacientes “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos....” produtos estupefacientes previstos nas tabelas anexas ao referido diploma.
O crime de tráfico de estupefacientes é necessariamente doloso, já que, ao contrário do que sucedia no Dec. Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro (e no Dec. Lei n.º 420/70, de 03 de Setembro, que o precedeu) deixou de se prever o seu cometimento por negligência.
O elemento subjetivo do tipo basta-se com o dolo genérico, ou seja, a vontade de praticar qualquer dos atos descritos na previsão normativa (elemento volitivo) e o conhecimento ou representação, por parte do agente, do facto ilícito que realiza (elemento cognitivo ou intelectual).
Na sua configuração base, o crime de tráfico de estupefacientes prescinde de qualquer propósito específico, designadamente do escopo lucrativo do agente, embora este, a existir, não seja indiferente, nomeadamente em termos de punição.
Face aos factos apurados, não tenho dúvidas em afirmar que o arguido praticou, em autoria material, um crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelos arts 21º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro pois que de forma livre e voluntária procedeu à detenção do produto “Alfa-PHiP”, com o peso de 0.590 gramas destinado ao seu consumo e de outros reclusos.
Assim sendo, a factualidade do arguido preenche os elementos do crime enunciados no artigo art. 21º n.º 1do DL 15/93 de 22 de Janeiro.
Porém, há que averiguar se os factos perpetrados devem ser subsumidos à norma do n.º 1 do artigo 21º ou à do artigo 25º.
O crime de tráfico de menor gravidade, previsto no artigo 25º, do DL 15/93, como a sua própria denominação legal sugere, caracteriza-se por constituir um minus relativamente ao crime matricial, ou seja, ao crime do artigo 21º, do DL 15/93.
Na verdade, o artigo 25º a), reportando-se ao tráfico de menor gravidade, estatui que se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI.
Nos autos ficou demonstrado que o arguido, na data e local referido na acusação, detinha o produto “Alfa-PHiP”, com o peso de 0.590 gramas destinado ao seu consumo e de outros reclusos.
Como vimos, o Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, desenhou um tipo base ou fundamental de tráfico de estupefacientes, no seu artigo 21º, tendo aditado a este circunstâncias relativas à ilicitude (e não à culpa), que agravam – artigo 24º - ou que o atenuam – artigo 25º - a pena prevista para o tipo base. O artigo 21º dirige-se, pois, aos casos de média e grande dimensão, o artigo 24º aos casos de excecional gravidade, e o artigo 25º aos de pequena gravidade, normalmente associada ao pequeno tráfico de rua.
E é certo que o crime de tráfico de estupefacientes, enquanto crime de perigo, vê, em qualquer uma das suas modalidades, a proteção do bem jurídico recuada a momentos iniciais da ação, independentemente da produção de qualquer resultado, pelo que o facto de o produto estupefaciente detido pela arguida não ter sido comercializado não afasta a consideração de que tenha, pela mera detenção da droga, cometido um crime de tráfico de estupefacientes.
No art. 25º prevê o legislador comportamentos em que a ofensa ao bem jurídico – ou a potencialidade dessa ofensa – tem gravidade menor do que aqueles a que se refere o artigo 21º, de tal modo que existe uma diminuição da ilicitude, a qual pode ter como fonte, entre outros, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade dos produtos. Será a imagem global do facto, em confronto com a ilicitude subjacente às molduras dos artigos 21º e 22º, que vai determinar a punição atenuada.
No acórdão do STJ de 27 de Junho de 2002, diz-se que:
“Embora timidamente enunciado, teve o legislador o propósito de não “meter no mesmo saco” todos os traficantes, distinguindo entre os casos “graves” (art. 21), os muito graves (art. 24), os pouco graves (art. 25) e os de gravidade reduzida (art. 26), redução essa motivada no fundo pela condição de toxicodependente do agente.

Pois bem: a jurisprudência esvaziou quase completamente os arts. 25 e 26, remetendo para o art. 21 a generalidade das situações. Para tanto, faz uma interpretação contra legem do art. 25. Com efeito, estabelece este artigo que se aplica às situações em que “a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade” das drogas.
A interpretação que parece mais consentânea com o texto (e com a epígrafe do artigo) é a de que o legislador quis incluir aqui todos os casos de menor gravidade, indicando exemplificativamente circunstâncias que poderão constituir essa situação. Assim, será correto considerar-se preenchido este crime sempre que se constate a verificação de uma ou mais circunstâncias que diminuam consideravelmente a ilicitude, como poderá ser, por exemplo, uma quantidade reduzida de droga, ou esta ser uma “droga leve”, ou quando a difusão é restrita, etc. O crime do art. 25 é para o pequeno tráfico, para o pequeno “retalhista” de rua (Eduardo Maia Costa, Direito penal da droga, RMP 74-103, ps. 114 e ss)”.
No mesmo sentido, o estudo de João Conde Correia, revista Lusíada/Direito, 2002, Coimbra Editora, Outubro de 2003, Aspetos Jurídico-Penais da Lei da Droga: as fontes, muita jurisprudência e alguma doutrina, págs. 105 a 126: “a generalidade das situações julgadas nos nossos tribunais é, de facto, de pequeno tráfico, mesmo quando não são rotuladas como tal. Inicialmente essa jurisprudência [sobre o artigo 25] era muito restritiva. Hoje é mais flexível. O carácter cruzadista vai-se perdendo”.
E ainda neste mesmo sentido veja-se o artigo do Procurador da República Victor Paiva, na Revista do Ministério Público, nº. 99, págs. 137 a 153.
No acórdão do STJ de 29/11/2005 chama-se de novo a atenção para que: “A integração do crime de tráfico de menor gravidade, do art. 25, não pressupõe necessariamente uma ilicitude diminuta. Como resulta, designadamente, da moldura prevista na sua al. a), a ilicitude pode ser já considerável; deve, é, situar-se em nível acentuadamente inferior à pressuposta pela incriminação do tipo geral do art. 21”.
E ainda que “a jurisprudência do STJ dos últimos anos tem vindo a alargar o campo de aplicação do aludido art. 25 a tudo quanto seja pequeno tráfico, aos ‘dealers’ ou ‘retalhistas’ de rua, sem ligações a quaisquer redes e quase sempre desprovidos de quaisquer organizações ou de meios logísticos, e sem acesso a grandes ou avultadas quantidades de droga – enfim, os pequenos tentáculos situados na base da grande pirâmide do narcotráfico”.

Neste sentido vejam-se os seguintes acórdãos (alguns deles citados no acórdão do STJ de Carmona da Mota) com casos que foram enquadrados, pelo STJ e pelas relações, no art. 25 e não no art. 21 do Dec. Lei:
1-O acórdão do STJ de 15/01/98, publicado na CJ.STJ.98.I. 161, referente à posse para consumo de um grupo de 15 pessoas num fim-de-semana, de 150 gramas de haxixe.
2-O acórdão do STJ de 8/10/98, publi­cado na CJ.STJ.98.III. 188, referente a uma senhora que foi detida com 18 embalagens de he­roína, com o peso de 5,687 g, que as destinava em parte à venda e em parte ao seu consumo pessoal e que no espaço de tempo de 2 meses tinha ido outras 6 vezes a Lisboa adquirir droga para o mesmo fim.
3-O ac. do STJ de 20/10/99, Proc. n.º 918/99: detenção de 1,46g de heroína; arguido atuava sozinho, por sua conta e risco, comprando pequenas doses, de que consumia metade e vendia a restante, a outros toxicodependentes; duração: 5 meses; quantidade vendida 17,3 gramas do referido produto (tanto quanto consumiu, no mesmo período).
4-O acórdão do STJ de 28/06/2000 refere-se a um consumidor de estupefacientes desde há três/quatro anos, que se abastecia então sem o recurso aos lucros do tráfico e que é referenciado como pequeno negociador de tais produtos durante três semanas antes da sua detenção.
5-O ac. do STJ de 30/11/2000, processo 2849/2000-5 refere-se a um arguido consumidor habitual de heroína, e por vezes, de cocaína; ia abastecer-se duas vezes por mês; nos últimos seis meses antes da sua detenção, dividia parte do produto em palhinhas que vendia esporadicamente em número não superior a cinco ou seis a consumidores que para o efeito o procurassem, ao preço de 1000$ cada; foram-lhe encontradas 3,089 g de heroína e 0,236 g de cocaína, adquiridas nesse dia, num total de 10 quarteiras de heroína e 1 quarteira de cocaína, tudo pelo preço de 27.500$.
6-O acórdão do STJ de 24/01/2001 Proc. 3826/00–3 (citado pelo de 19/12/2007, publicado sob o nº. 07P4203) refere-se à detenção, uma única vez, de 200,6 g de haxixe Note-se, no entanto, que o acórdão do STJ de 19/12/2007 refere, contra, que o STJ já considerou que integrava a previsão do tipo base (art. 21) uma única detenção para venda de 174 gr de haxixe (no ac. de 12/6/97 publicado na CJ.STJ.97, T2, págs. 233 a 235) ou uma única detenção de 246,089 g do mesmo produto estupefaciente (ac. de 26/09/2001 publicado na mesma CJ.STJ.2001, T3, págs. 172 a 174: neste caso, o TRL tinha condenado na pena de 5 anos de prisão e o STJ baixou a pena para 4 anos e 4 meses).
7-O ac. do STJ de 14/2/2001, processo 4210/00-3, refere-se a um arguido consumidor da heroína, que atuava sozinho, e que ia buscar 15 a 20 "quartas" de heroína por semana, pelas quais pagava cerca de 50.000$, fazendo de cada "quarta" cerca de 5 ou 6 doses individuais, que vendia por 1.000$ cada, atividade que se prolongou por cerca de sete meses, tendo sido surpreendido, no momento da sua detenção, na posse de 23 embalagens com 1,231 g daquele produto, tendo cedido 0,110 g, em duas embalagens, à sua coarguida (num total que não atinge 2 gramas) (tem um voto de vencido).
8-O acórdão do STJ de 05-12-2001 Proc. 3017/01-3ª (citado pelo de 19/12/2007, publicado sob o nº. 07P4203) refere-se à detenção pelo arguido de 3122,5 g de haxixe (não existem outros dados publicados).
9-Acórdão do STJ com o nº. 1101/03-5 nos sumários do STJ (citado pelo de 19/12/2007, publicado sob o nº. 07P4203). Foi tido como «tráfico de menor gravidade» a detenção de 911,058 g de haxixe, uma vez que todas as demais circunstâncias provadas favoreciam o arguido, assim dando uma imagem global do facto suscetível de algum enfraquecimento da ilicitude (não existem outros dados publicados).
10-O acórdão do STJ de 29/11/2005, publicado na CJ.STJ.2005.III.219/222 altera a decisão da 1ª instância, passando a qualificar o crime como de tráfico de menor gravidade, do art. 25/a) do Dec. Lei 15/93, e baixando a pena de 9 anos de prisão para 3 anos e 6 meses de prisão, relativamente a um indivíduo, consumidor ocasional de droga, que foi apanhado, num dia, a vender cocaína, detendo ainda em seu poder 25 embalagens com o peso total de 9,572 gr, bem como 154,20€ provenientes de vendas anteriores desse produto, mas que não foi possível quantificar. Este arguido cometeu este crime num período de liberdade condicional de uma pena por um outro crime de tráfico de droga. E tinha pendente uma outra pena pelo crime de resistência e coação sobre funcionário.
11-No ac. do STJ de 12/10/2006, nº. 06P2683 da base de dados do ITIJ, condenaram-se dois arguidos, um por ter entregue, outro por ter recebido, 429 g de cocaína, ato esporádico e desinteressado, pelo crime do art. 25, na pena de 3 anos de prisão. Estes arguidos tinham sido condenados, no ac. substituído, nas penas de 4 anos e 6 meses e 5 anos e 6 meses, respetivamente. Diz-se no ac. que mesmo lidando com a posse de «droga dura», até, já em quantidade apreciável, não fica afastada a hipótese de aplicação do artigo 25 do DL 15/93, reportando-se a «tráfico de menor gravidade», já que não se limita a prever bagatelas, condutas «sem gravidade», tendo em conta que a moldura penal, em parte coincidente com a do artigo 21, pode ir até aos 5 anos de prisão.
12-No acórdão do TRP de 10/10/2007, publicado sob o nº. 0714610, substitui-se uma pena de 6 anos e 3 meses de prisão pelo crime do art. 21, por uma pena de 3 anos e 4 meses de prisão, pelo crime do art. 25, dizendo-se que comete este crime e não o outro aquele que detém cocaína e heroína suficiente para confecionar, respetivamente, 63 e 25 doses, não lhe sendo conhecidos outros atos enquadráveis na atividade de tráfico.
13-O acórdão do STJ de 8/11/2007 (sob o nº. 07P3164 da base de dados do ITIJ/STJ) condena dois arguidos não toxicodependentes que, após complicados contactos, faziam o transporte de um produto com cerca de 50 g (cujo princípio ativo era cocaína), pelo crime do art. 25, ao contrário da 1ª instância e da Relação, em penas de 2 anos e 6 meses e 3 anos de prisão respetivamente – o arguido punido com 3 anos já tinha estado anteriormente, num outro processo, preso por tráfico de droga).
14-O acórdão do STJ de 24/10/2007 (sob o nº. 07P3317 da base de dados do ITIJ/STJ) condena um arguido que não é toxicodependente e que já tinha estado preso por tráfico de droga e que vendeu droga desde meados de 2005 até 22/5/2006, a diversos indivíduos dela consumidores, nomeadamente: cocaína, por duas ou três vezes, a MR; cocaína, por uma ou duas vezes, a SF; heroína, regularmente (quase todos os dias) e durante quatro ou cinco meses, a JB. Em nenhum destes negócios foram transacionadas mais que duas doses de heroína ou de cocaína; por cada dose das mencionadas substâncias estupefacientes o arguido cobrava € 10; no dia 18/11/2005, tinha em seu poder 0,632 g de cocaína (cloridrato) e 1,255g de heroína, produtos que destinava à venda a terceiros; pelo crime do art. 25 na pena em 3 anos de prisão efetiva (tinha sido condenado pelo crime do art. 21 na pena de 5 anos e 6 meses de prisão).
15-O ac. do STJ de 19/12/2007, nº. 07P4203 da base de dados do ITIJ, pune com 3 anos e 6 meses de prisão, um arguido que tinha sido condenado em 4 anos e 3 meses de prisão pelo artigo 21, entendendo que a infração praticada integra os elementos constitutivos do crime previsto no art. 25.º do DL 15/93, de 22/01, considerando que: -a imputação genérica de uma atividade de tráfico nos sobreditos termos não oferece relevância em termos de qualificar a atuação do arguido como integrando o crime p. e p. no art. 21.º do DL 15/93; -resta a posse de cerca de 30 e 46 g de haxixe, a qual se situa numa zona limite de traficância entre o dealer de rua, com uma menor densificação da intensidade da ilicitude, porque reduzida a um tráfico de vizinhança, no qual o agente representa o último lugar da distribuição, e o tráfico de estupefacientes que se destina a um mercado mais amplo e a uma procura mais geral por forma a obter substanciais proveitos económicos.
16-O acórdão do STJ de 30/04/2008, publicado sob o nº. 08P1416:
I - A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado de tráfico de estupefacientes, respetivamente, dos arts. 21/1 e 25 do DL 15/93, de 22/01, reverte ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), mediada por um conjunto de circunstâncias objetivas que se revelem em concreto, e que devem ser globalmente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da ação e a qualidade ou a quantidade dos produtos.

17-O acórdão do TRC de 19/11/2008 (2212/06.4 TAAVR.C1 na base de dados do ITIJ) alterou a decisão da 1ª instância, convolando o crime do art. 21 para o do art. 25 – a pena do tráfico baixou de 5 anos para 4 anos de prisão).
Diz-se no acórdão:
1. O regime do tráfico de menor gravidade fundamenta-se na diminuição considerável da ilicitude do facto, revelada pela valoração conjunta dos diversos fatores que se apuraram na situação global dada como provada pelo Tribunal.
2. O juízo a emitir sobre a menor gravidade do tráfico deve ser um juízo global e abrangente sobre a conduta delitiva do agente.
3. A atividade que perdura por período de cerca de 2 anos, com largos períodos parcialmente indefinidos em termos de números de pessoas a quem vendiam estupefacientes e quantidades transacionadas, encontrando-se provadas vendas a 14 consumidores, não se sabendo exatamente que quantidades foram vendidas ou cedidas, sendo que no período em causa viviam os arguidos, na altura consumidores de heroína e de cocaína, essencialmente dos lucros que retiravam da diferença entre o preço de compra da heroína e cocaína e o maior preço que obtinham na sua venda a retalho, lucros esses modestos, integra a prática de um crime de crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25, al. a) do DL 15/93.
18 O ac. do TRL de 04/12/2008, publicado sob o nº. 7874/2008-9 da base de dados do ITIJ, alterou a decisão da 1ª instância, passando a aplicar o art. 25 e diminuindo as penas de 6 anos e 5 anos e 6 meses para, respetivamente, 4 anos e 3 anos e 6 meses, suspensas; isto tendo em conta que as qualidades e as quantidades que foram apreendidas aos arguidos bem como as restantes circunstâncias apuradas (a atuação sem sofisticação nem organização -venda à porta de casa, feita pelos membros da família - que, consequentemente, diminui o risco de disseminação; o número e o tipo de transações efetuadas; o não se ter apurado que auferissem grandes lucros), a imagem global dos factos revela uma projeção menor de ilicitude tendo por referência os pressupostos que enquadram o tipo base de tráfico de estupefacientes.
Assim, tendo em conta a jurisprudência citada, a quantidade e natureza do produto estupefaciente apreendido ao arguido e, sobretudo não tendo sido apurado o seu grau de pureza, há que concluir que a sua conduta se consubstancia na mera detenção de quantidade não elevada, ou melhor, muito reduzida, de produto estupefaciente.
Este quadro factual não é, seguramente, aquele que o legislador pretendeu, em abstrato, censurar como uma situação punível com a pena de 4 a 12 anos de prisão, sobretudo se tivermos em conta o bem jurídico protegido pela norma que é, como sabemos, a saúde pública.
Nestes termos, considero o que os factos típicos praticados e queridos pelo arguido assumem um grau de ilicitude desfasado da realidade a que se dirige o artigo 21º nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, espelhada na moldura abstrata que lhe corresponde, antes devendo enquadrar-se no tipo objetivo e subjetivo de menor gravidade consagrado pelo artigo 25º do mesmo diploma legal, dado que da imagem global da conduta do arguido resulta que a mesma é a de uma ilicitude reduzida ou diminuta, que afasta a aplicação do tipo base do tráfico de estupefacientes, devendo ser considerada no âmbito do tipo privilegiado.
Constata-se, portanto, que este arguido cometeu um crime de tráfico de estupefacientes não nos exatos termos em que vinha acusado e condenado, mas sim um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, pelo qual deveria ser condenado numa pena de prisão fixada em 2 anos e 6 meses.
Ivo Rosa
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1. - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.
2. - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09/11/2020 – processo nº 308/19.1PBBGC.G1 – www.dgsi.pt.
3. - Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15/02/2012 – processo nº 72/07.7JACBR.C1 – www.dgsi.pt.
4. - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/11/2024 – processo nº 169/22.3JELSB.L1-3 – www.dgsis.pt.
5.- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09/01/2017 – processo nº 783/12.5GAFAF.G1 – www.dgsi.pt
6. - Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22/11/2023 – processo nº 134/17.2GAPFR.P2 – www.dgsi.pt.
7. - Proferido no Proc. Nº 08P571, Cons. Henrique Gaspar, disponível em www.dgsi.pt.
8. - Cfr. João Luís de Moraes Rocha in “Droga – Regime Jurídico” e Acs. do TC de 06.11.91, in BMJ, 411, pág. 56-73, de 07.06.94, in DR II nº 249, de 27.10.94, e nº 262/01, de 30.05.01.
9. - “Crime exaurido” é «uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros atos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa»; ou seja, «aquele em que o resultado típico se obtém logo pela realização inicial da conduta ilícita» vide Ac. do STJ de 18.04.96 in Col. Jur., Acs. do STJ, IV, 2, 170 e segs.
10. - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22/11/2023 – processo nº 134/17.2GAPFR.P2 – www.dgsi.pt.
11. - Acórdão do STJ, de 13/09/2018, processo nº 184/17.9JELSB.L1.S1 – www.dgsi.pt.
12. - Acórdão da Relação de Lisboa, de 06/11/2024 – processo 169/22.3JELSB.L1-3 – www.dgsi.pt.
13. - Neste sentido o Acórdão do STJ, de 13/09/2018 – processo nº 184/17.JELSB.L1.S1 – www.dgsi.pt.
14. - Veja-se, para melhor esclarecimento, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 16/01/2025 – processo nº 425/21.8JELSB.L1-9 -, e a jurisprudência citada no mesmo – www.dgsi.pt.
15. - Acórdão do STJ, de 12/03/2015 – processo nº 7/10.0PEBJA.S1 – www.dgsi.pt.
16. - Acórdão da Relação do Porto, de 22/11/2023 – processo nº 134/17.2GAPFR.P2 – www.dgsi.pt.