Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
873/23.9JAPDL-E.L1-5
Relator: PEDRO JOSÉ ESTEVES DE BRITO
Descritores: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
APREENSÃO DE BENS
PROMITENTE-COMPRADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/21/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. O objeto legal da reclamação é a decisão reclamada e não a questão por ela julgada, pelo que o reclamante tem o ónus de suscitar os respetivos vícios em sede de reclamação para que sobre eles se possa pronunciar e decidir a conferência, confirmando ou revogando a decisão sumária reclamada;
II. A reclamação não se traduz numa oportunidade processual para reconfigurar a motivação do recurso interposto aditando questões aí não abordadas;
III. O mecanismo processual da apreensão de bens a que alude o art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P. tem uma função de segurança processual, isto é, impedir dificuldades ou até a completa perda da prova, mas também uma função de garantia patrimonial, ou seja, acautelar a sua perda posterior;
IV. O promitente-comprador que, em virtude apenas da celebração de um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, sem eficácia real, entregou aos promitentes-vendedores quantia muito longe do preço integral e deles recebeu o imóvel, tudo antes da celebração do negócio translativo do direito real de propriedade, não é titular de um direito que lhe confira um poder sobre o referido imóvel incompatível com a sua apreensão efetuada ao abrigo do disposto no art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório:

I.1. Da decisão reclamada:
No âmbito do exame preliminar, por decisão sumária de 02-09-2025, ao abrigo do disposto nos arts. 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo penal (C.P.P.), foi rejeitado o recurso interposto por AA, por manifesta improcedência.
I.2. Da reclamação:
Inconformado com a decisão, AA dela veio reclamar para a conferência alegando, em resumo, que:
a) Assiste ao reclamante o direito de retenção sobre o imóvel que lhe foi prometido dado que obteve a tradição da coisa (cfr. art.º 755.º, n.º 1, al. f), do Código Civil – C.C.);
b) A apreensão de bens prevista no art.º 178.º do C.P.P. é um meio de obtenção de prova reservada a coisas móveis e não a imóveis nem a direitos;
c) Por seu turno, o arresto preventivo visa garantir que o património do arguido seja suficiente para pagar as consequências financeiras do crime, sendo aplicável a imóveis;
d) A apreensão não respeita o trato sucessivo, pelo que o seu registo é nulo; e
e) Quanto a custas não pode o tribunal decidir ao mesmo tempo que teve em vista a complexidade da causa e considerar a reduzida complexidade do objeto da decisão.
I.3. Das respostas:
Notificados o Ministério Público e os arguidos, apenas a Exma. Procuradora-Geral Adjunta se pronunciou, e no sentido do indeferimento da reclamação.
Colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
II. Fundamentação:
II.1. Da decisão sumária reclamada:
É do seguinte teor a decisão sumária reclamada:
I. Relatório:
I.1. Da decisão recorrida:
No âmbito do apenso E dos então autos de inquérito n.º 873/23.9JAPDL, que correu termos na 5ª Secção de Ponta Delgada, do Departamento de Investigação e Ação Penal dos Açores, em 08-03-2025, pelo Juízo de Competência Genérica da Praia da Vitória, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, foi proferida decisão indeferindo o peticionado pelo requerente AA:
“a) A revogação da medida de apreensão que incide sobre o prédio misto descrito na ...sob o n.º ..., da freguesia de ..., encontrando-se a parte mista do prédio inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...e a rústica sob o artigo ...da secção... da já mencionada freguesia de ...;
b) Autorização para celebração de contrato definitivo de compra e venda do imóvel, com a entrega do remanescente do preço à ordem deste processo, em substituição da medida de apreensão revogada em a) e conquanto se encontre cancelado o registo de penhora pendente – AP. ... de .../.../2024 – posterior ao de apreensão.
c) Ordenar a notificação do arguido BB e de CC para que confirmem se estão de acordo com a celebração do contrato definitivo dentro dos trâmites propostos.”
I.2. Do recurso:
Inconformado com a decisão, o requerente AA dela interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
“1. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor das alíneas a) a cc) da motivação.
2. Em .../.../2025, o ora rcte. formulou um requerimento (ref. 58701859) em que, além do mais, pedia a revogação da apreensão que incide sobre o imóvel identificado e a entrega do remanescente do preço à ordem dos autos com a realização da escritura de compra e venda.
3. A decisão proferida e de que ora se recorre, acolheu as razões invocadas pelo MP e indeferiu o peticionado pelo ora rcte., considerando que, por não ter a propriedade do prédio aprrendido, não tinha legitimidade para o pedido formulado.
4. Só que tal decisão comprime de forma desproporcionada e desnecessária o direito e as legítimas expectativas do rcte., enquanto terceiro e, neste momento, enquanto lesado/ofendido.
5. Além disso, não se pode ignorar que a redacção do art. 178.º/9 do C.P.P. está formulada pela negativa quando prevê que se “... os instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas ou animais apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o”.
6. Podia-se argumentar que a verdade registal desmente que o imóvel pertença aos arguidos, já que a propriedade permanece inscrita em nome dos antepossuidores, padecendo assim de ineficácia o registo da apreensão.
7. Mas o ponto é que, recorrendo à figura civil, e nos termos do art. 408.º, n. 1 do CC, a transmissão da propriedade opera-se por mero efeito do contrato e, portanto, com a celebração do contrato promessa de compra e venda o prédio “deixa de pertencer” ao promitente vendedor, vinculado que está à realização do contrato definitivo.
8. Nesse quadro obrigacional o prédio deixou de pertencer aos arguidos, pelo que aquele preceito (art. 178.º/9 do CPP) não pode ser convocado na lógica com que o foi na oposição do MP e na decisão proferida.
9. Acresce que a Diretiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia, transposta para o nosso ordenamento jurídico através da Lei n.º 30/2017, de 30 de maio, estabelece no art. 6.º, n. 1 que “Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda dos produtos ou dos bens cujo valor corresponda a produtos que, direta ou indiretamente, foram transferidos para terceiros por um suspeito ou arguido, ou que foram adquiridos por terceiros a um suspeito ou arguido, pelo menos nos casos em que o terceiro sabia ou devia saber que a transferência ou a aquisição teve por objetivo evitar a perda, com base em circunstâncias e factos concretos, nomeadamente o facto de a transferência ou aquisição ter sido feita a título gracioso ou em troca de um montante substancialmente inferior ao do valor de mercado” – penaliza a má fé, portanto.
10. Mas o n. 2 da mesma disposição tem a cautela de ressalvar que “O n. 1 deve ser interpretado de forma a não prejudicar os direitos de terceiros de boa-fé” – como é o caso.
11. Além disso, de harmonia com o prescrito no art. 111.º, n. 1 do CP, mesmo no caso da perda de produtos e vantagens, não há lugar a tanto “...se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada.“
12. E o n. 6 do art. 110.º do CP também previne que tal medida não pode prejudicar os direitos do ofendido (leia-se igualmente lesado).
13. De resto, no contexto do nosso ordenamento jurídico-penal, o legislador contemplou no art. 36.º-A do DL 15/93 de 22 de janeiro uma solução de protecção dos terceiros de boa fé que necessariamente se deve alargar a todas as demais situações de apreensão de bens ou direitos.
14. Mas dá-se a circunstância de a apreensão constituir um meio de obtenção de prova, não sendo um direito real de garantia e no caso concreto a apreensão foi determinda exclusivamente como preparatória da declaração de perda patrimonial (como supra se , e não como um meio de obtenção de prova que é a função que na arrumação sistemática do CPP lhe está cometida, integrada no Livro III, Título III, sob a epígrafe “Dos meios de obtenção da prova”.
15. Ora, como meio de prova de um alegado ilícito ou da vantagem decorrente de um alegado ilícito, a existência ou a aquisição do prédio em questão pelos arguidos basta-se com a apreensão da documentação ao mesmo atinente que reflecte o trato sucessivo das inscrições feitas.
16. Um prédio não é um instrumento como uma pistola ou uma faca, por exemplo, que careça de ser apreendido para conservação da prova.
17. O rcte., enquanto promitente-comprador de boa fé, tem legitimidade para deduzir o pedido que formulou, de revogação da apreensão feita sobre o imóvel e de depósito do remanescente do preço à ordem do processo como contrapartida da celebração do contrato definitivo, pelo que, sem quebra de respeito, andou mal o tribunal ao decidir como decidiu, indeferindo esse pedido.
18. Não só a apreensão é ilícita, atenta a finalidade que lhe foi assinalada e os demais fundamentos supra reportados, como assiste legitimidade ao ora rcte. para requerer, como fez, a sua revogação, para dessa forma abrir caminho à conclusão do negócio previamente celebrado.
19. A decisão proferida viola o disposto nos artigos 110.º, n. 6; 111.º, n.s 1 e 4 do CP; 178º/9 do CPP.
20. Além disso, o art. 178.º, n. 9 do CPP, deve ser julgado inconstitucional quando interpretado nos termos, com o sentido e alcance plasmados na decisão sob censura, rejeitando de forma intolerável, desproporcionada e desnecessária o direito de propriedade privada, violando, entre outros, o disposto nos arts. 1.º, 2.º, 9.º, c), 18.º, 20.º, 32º, n. 7 e 62.º da CRepP”
O referido recurso foi admitido por despacho de 23-05-2025.
I.3. Da resposta:
A este recurso respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, concluindo da seguinte forma:
“1.ª
Veio AA interpor recurso da decisão que consta da referência 5889389, de 08/03/2025.
2.ª
No que aqui importa destacar, nestes autos, os arguidos BB e CC foram acusados pela prática de: um crime de associação criminosa, previsto e punido pelos artigos 299.º, n.ºs 1, 3 e 5, 110.º e 111.º do Código Penal; um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, als. a) e b), 110.º e 111.º do Código Penal; crimes de especulação, previsto e punido pelo artigo 35.º, n.º 1, al. b) e n.ºs 4 e 5, do D.L. n.º 28/84, de 20 de Janeiro e artigos 110.º e 111.º do Código Penal; e um crime de branqueamento, previsto e punido pelos artigos 368-A, n.ºs 1, incluindo al. d), 2 a 6 e 12, 110.º e 111.º do Código Penal.
3.ª
Os factos em que se consubstanciam tais crimes reconduzem-se, em apertada súmula, à criação de um grupo para o efeito a seguir indicados e à execução de um esquema por um conjunto de arguidos, que teve como figura central o arguido o BB e que actuou no âmbito da actividade da arguida ..., esquema esse destinado a defraudar o Estado, por forma a obterem ilicitamente quantias provindas do erário público; tal esquema consistiu na exploração de uma agência de viagens (denominada ...) que se dedicava à venda de viagens aéreas elegíveis para o subsídio social de mobilidade, viagens essas que foram oferecidas ou – como sucedeu na generalidade dos casos, e como forma de atrair um número elevado de clientes – foram vendidas aos passageiros a um preço irrisório (em regra, €25,00 ou €50,00, valores inferiores aos das tarifas aéreas respectivas), com a emissão da pertinente documentação contabilística (factura, recibo ou factura/recibo), que foi entregue aos passageiros, seguida da emissão de outra documentação contabilística (factura, recibo ou factura/recibo) referentes às mesmas viagens mas emitida a favor de terceiros (um dos arguidos comparticipantes), esta falsa (com falsas menções quanto à sua própria natureza e valores das tarifas, aqui sempre ficcionados e inflacionados, valores esses que não foram pagos por quem quer que seja) documentação esta que foi utilizada pelos arguidos para induzir os CTT em erro, para, dessa forma, obterem em benefício do arguido BB valores a título de subsídio social de mobilidade que, na realidade, não eram devidos e, não fosse aquela indução em erro, não seriam entregues aos arguidos; o grosso do dinheiro assim obtido foi feito chegar à arguida ... e, por intermédio desta, ao arguido BB (que, conjuntamente com a esposa, a arguida CC, usou parte na aquisição de imóveis, entre os quais o adiante indicado), sob a forma de pagamentos da aquisição de viagens aéreas, pagamentos esses ficcionados e destinados a ocultar a real origem das quantias em causa.
4.ª
Resulta suficientemente indiciado dos autos, designadamente, que, com parte da quantia que obtiveram da prática dos crimes de falsificação de documentos e burla qualificada por que foram acusados, os arguidos BB e CC, por contrato de compra e venda celebrado a .../.../2024, autenticado nessa mesma data, e pelo valor de €320.000,00, adquiriram o seguinte imóvel:
- Prédio misto composto por cultura arvense e casa de r/c para habitação, garagem e logradouro, cabendo a parte urbana a S.C, com 262m2, confrontando a norte com DD, EE, FF e caminho, a nascente com GG e HH, e a poente com II e JJ, prédio esse desanexado do 724, sito na freguesia de ..., descrito na ... sob o n.º 1456/19990105, com a matriz 127, secção K.
5.ª
Apurados que foram (em termos indiciários, naturalmente) tais factos, no decurso do inquérito, e nos termos constantes do despacho com a referência 57686499, de 05/08/2024 (dos autos principais), foi determinada a apreensão do referido imóvel.
6.ª
Tal apreensão tem sustentação legal no disposto no artigo 178.º, do Código de Processo Penal, pelo que é lícita.
7.ª
Tempos antes de tal apreensão, os arguidos BB e CC celebraram com o recorrente um contrato promessa, pelos quais aqueles prometeram comprar e este prometeu vender o imóvel acima identificado; tal contrato foi celebrado por documento particular e não foi sujeito a registo; aquando a celebração de tal contrato, o recorrente pagou aos arguidos, a título de sinal, o valor correspondente a 10% do preço acordado e estes entregaram o imóvel àquele, para nele proceder a pequenas reparações.
8.ª
É com base nesse contrato que o recorrente sustenta a sua pretensão.
9.ª
Como é consabido, o contrato de compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa.
10.ª
Relativamente ao imóvel aqui em causa, os arguidos BB e CC e o recorrente não celebraram qualquer contrato de compra e venda, pelo que o recorrente não é proprietário/dono do imóvel. Dito de outra forma, o imóvel não lhe pertence.
11.ª
O contrato promessa é o contrato pelo qual as partes (no caso, os arguidos BB e CC, e o recorrente) se obrigam a celebrar um outro contrato: o contrato definitivo (no caso, o contrato de compra e venda do imóvel acima identificado).
12.ª
O contrato promessa não tem a virtualidade de fazer transmitir a propriedade.
13.ª
E, ainda que seja acompanhado de tradição da coisa prometida vender, mas sem que seja o preço acordado pago integralmente ou quase integralmente, o contrato promessa tão pouco tem a virtualidade de transmitir a posse ao promitente-comprador (o qual, com a traditio, adquire corpus possessório, mas não animus possidendi), pelo que este passa a ser um mero detentor da coisa prometida vender.
14.ª
Ademais, se à partida o contrato promessa, ainda que com traditio, e sem mais, apenas produz efeitos entre as partes contraentes, tendo eficácia meramente obrigacional, e não eficácia real, esta pode-lhe ser atribuída, caso em que o promitente-comprador pode fazer valer o seu direito (potestativo de aquisição) em relação a qualquer terceiro e em qualquer situação (mormente em situações de posteriores transmissões ou constituições de ónus), não lhe sendo oponíveis quaisquer ónus registados em data posterior ao registo a que de seguida se fará referência.
15.ª
Para tanto (para que o contrato promessa seja oponível erga omnes), é necessário que (quando essa for a forma que – como no caso em apreço – for exigida para o contrato definitivo), por escritura pública ou documento particular autenticado, as partes o declarem expressamente e inscrevam o contrato no registo predial.
16.ª
O facto de um imóvel ter pendente o registo predial em nome dos promitente-vendedores (ou seja, o facto desse registo ser ainda provisório) à data da celebração do contrato promessa que incide sobre esse mesmo imóvel não obsta ao registo (provisório) do contrato promessa nos termos e para os efeitos acima indicados, sendo que, quer em relação ao registo provisório, quer em relação ao registo definitivo, sempre valerá a regra da prioridade do registo, e o registo definitivo que resulte da conversão de registo provisório manterá a prioridade deste.
17.ª
Ou seja, e sintetizando, na situação em apreço, ao contrato promessa em causa não foi atribuída eficácia real, pelo que o mesmo apenas vincula as partes contraentes, não sendo oponível a terceiros.
18.ª
Para além de não ter qualquer direito oponível a terceiros sobre o imóvel apreendido, o recorrente não é aqui ofendido, pois que não é titular dos interesses especialmente protegidos pelos tipos de crimes que foram objecto de investigação.
19.ª
Temos, pois, que resulta cristalinamente dos autos que o recorrente não é proprietário do imóvel apreendido, ou seu possuidor, nem, nestes autos, assume a posição de ofendido nos autos, para além de que não é parte em contrato promessa que goze de eficácia real; assim, não pode o recorrente beneficiar dos direitos e garantias que a lei reserva a pessoas que assumam uma daquelas qualidades.
20.ª
O levantamento da apreensão não tem, assim, qualquer sustento legal.
21.ª
Ademais, a modificação da apreensão nos termos pretendidos pelo recorrente não é de molde a satisfazer a função conservatória da apreensão, que não fica acautelada com o pagamento (depósito à ordem do processo) do “remanescente” do preço estipulado no contrato promessa (isto é, valor do preço acordado, descontado o valor já pago aos arguidos a título de sinal e de eventuais outros valores necessários ao levantamento de ónus previamente registados).
22.ª
Na verdade, o valor das vantagens do crime que o imóvel representa nunca será inferior ao valor que os arguidos BB e CC pagaram (com o dinheiro que obtiveram com a prática dos crimes de falsificação de documentos e burla qualificada por que foram acusados) pela respectiva aquisição (€320.000,000), podendo ser superior, se entretanto o mesmo valorizar.
23.ª
Pelo que, apenas se poderia conceber a modificação da medida de apreensão do imóvel pelo depósito do valor correspondente ao valor da respectiva avaliação (que teria que ser realizada previamente), ou, se inferior a esta, da aquisição pelos arguidos BB e CC (€320.000,00), por forma a que, sendo de declarar perdido a favor do Estado o imóvel, tal valor substituísse o imóvel apreendido.
24.ª
Pelo exposto, entendemos que a decisão recorrida não merece qualquer censura.”
Foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação.
I.4. Do parecer:
Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer através do qual propugnou pela improcedência do recurso, acompanhando a resposta do Ministério Público apresentada em 1.ª instância.
I.5. Da tramitação subsequente:
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (C.P.P.), nada foi acrescentado.
Efetuando o exame preliminar, verifico ser de proferir, de imediato, decisão sumária, com fundamento nos arts. 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. a), do C.P.P.
II. Fundamentação:
II.1. Dos poderes de cognição do tribunal de recurso:
Está pacificamente aceite na doutrina (cfr., por exemplo, MESQUITA, Paulo Dá, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, 2024, Livraria Almedina, pág. 217; POÇAS, Sérgio Gonçalves, in “Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, Julgar, n.º 10, 2010, pág. 241; SILVA, Germano Marques da, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, 2000, pág. 335) e jurisprudência (cfr., por exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2024, processo n.º 105/18.1PAACB.S12) que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de determinadas questões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso (cfr., por exemplo, art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.), são as conclusões que delimitam o seu objeto e âmbito, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-1995, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 298, I Série A, de 28-12-1995, págs. 8211 e segs.3).
Na verdade, se o objeto do recurso constitui o assunto colocado à apreciação do tribunal de recurso e se das conclusões obrigatoriamente devem constar, se bem que resumidas, as razões do pedido (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P.) e, assim, os fundamentos de facto e de direito do recurso, necessariamente terão de ser as conclusões que identificam as questões que a motivação tenha antes dado corpo, de forma a agilizar o exercício do contraditório e a permitir que o tribunal de recurso identifique, com nitidez, as matérias a tratar.
II.2. Da questão a decidir:
A esta luz, a questão a decidir consiste em saber se deve ser revogada a apreensão de um imóvel determinada ao abrigo do disposto no art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P., que foi entregue ao promitente-comprador do mesmo, em virtude da celebração de um contrato-promessa de compra e venda, sem eficácia real, e autorizada a realização do contrato prometido relativamente ao imóvel em causa, sendo o valor remanescente relativo à compra deste entregue nos autos.
II.3. Ocorrências processuais com relevo para apreciar a questão objeto do recurso:
Ora, com relevo para o definido objeto do recurso, e resultante dos atos processuais a seguir assinalados, importa atentar no seguinte:
II.3.A. Da apreensão do imóvel (cfr. ref.ªs 57686499 de 05-08-2025 do processo principal):
Por despacho de 05-08-2024, o Ministério Público, considerando estar em causa factos suscetíveis de integrarem, em abstrato, a prática dos crimes de crimes de burla qualificada, falsificação de documentos e branqueamento de capitais, ps. e ps., respetivamente, pelos arts. 218.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), por reporte ao art.º 217.º, n.º 1, 256.º, n.º 1, als. a), d) e e), e 368.º-A, n.º 1, todos do Código Penal (C.P.), e que o imóvel em causa havia sido adquirido pelos arguidos BB e CC com valores que obtiveram da dita atividade criminalmente ilícita, sendo, pois, vantagem da mesma, ao abrigo do disposto no art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P. determinou a apreensão do mesmo.
II.3.B. Do requerimento apresentado por AA (cfr. ref.ª 58701859 de ...-...-2025 do apenso E):
Em 21-01-2025, AA apresentou um requerimento do seguinte teor:
“AA, solteiro, maior, contribuinte fiscal n.º ..., titular do cartão de cidadão n.º ..., válido até .../.../2031, residente na ..., adiante designado por requerente, vem junto de V. Exa., nos termos e para os efeitos do n.º 7 do artigo 178.º do Código de Processo Penal, expor e requerer o seguinte:
1.
O requerente, no dia ... de ... de 2024, celebrou contrato-promessa de compra e venda do prédio misto descrito na ...sob o n.º 1456, da freguesia de ..., encontrando-se a parte mista do prédio inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1784 e a rústica sob o artigo 1784 da secção K, da já mencionada freguesia de Sobral de Monte Agraço, com CC e com BB, cfr. contrato-promessa (doc. 1).
2.
O contrato-promessa visava a realização de um contrato definitivo sobre o aludido prédio, pelo valor de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), tendo ficado acordado o pagamento de um sinal de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), correspondente a 10% do preço contratado, cfr. contrato-promessa (doc. 1).
3.
Foi pelas partes convencionada a tradição da coisa: o intuito era o da imediata realização de obras no prédio objecto do contrato-promessa, cfr. contrato-promessa (doc. 1).
4.
Pese embora tenha sido convencionada a tradição da coisa, a verdade é que o aludido contrato-promessa de compra e venda não foi registado, designadamente por se encontrar pendente o registo de aquisição anterior, cfr. certidão permanente do registo predial (doc. 2).
5.
Ao dia de hoje constata-se que o referido prédio se encontra ainda inscrito em nome de KK e de LL, cfr. certidão permanente do registo predial (doc. 2).
6.
O registo de aquisição pelos vendedores encontra-se pendente na ..., pela AP. ... de .../.../2024.
7.
O registo de aquisição encontrava-se pendente porque existia uma divergência de áreas entre a caderneta predial urbana (doc. 3), a caderneta predial rústica (doc. 4) e a descrição predial.
8.
É de notar que o prédio se encontra descrito (na certidão predial) como tendo 1440m2: à parte urbana correspondem 262m2 de zona coberta e 200m2 de zona descoberta.
9.
Existe uma coincidência com a caderneta predial urbana, contudo, não existe coincidência na caderneta predial rústica, uma vez que nas parcelas é apenas indicado que no terreno consta uma parcela de área correspondente a 0,144000ha.
10.
Em termos práticos, a caderneta predial rústica carece de correcção, devendo ser actualizada para que fique a constar uma parcela urbana de 462m2, ao qual corresponde uma área coberta de 262m2 e uma área descoberta de 200m2.
11.
Por esse motivo, não se procedeu ao imediato registo do contrato-promessa acima referido.
12.
Importa referir que previamente à celebração do contrato-promessa, ao requerente foi entregue o documento particular autenticado que titulava a AP. … de .../.../2024 que ainda hoje se encontra pendente.
13.
O requerente na sequência de contacto com a ..., na qual lhe foi explicado o motivo pelo qual o aludido registo se encontrava pendente (doc. 5), deu conta de tal facto aos promitente-vendedores.
14.
Qual não é o seu espanto quando se apercebe da pendência de um registo na ... – AP. ... de .../.../2024 – o qual trata de uma apreensão em processo penal.
15.
Em simultâneo, deu igualmente conta de que o promitente vendedor BB havia sido preso preventivamente.
16.
Nessa sequência, o requerente procurou por diversos meios resolver o problema, designadamente, obter soluções que lhe permitissem a celebração do contrato definitivo.
17.
Constatou que se encontra pendente um averbamento à AP. .../.../2024, desconhecendo qual a alteração à AP que se pretende.
18.
Constatou ainda que se encontra igualmente pendente na ... um pedido de registo de penhora: AP. … de .../.../2024.
19.
O requerente, em ... de ... de 2024, notificou os promitente-vendedores, através de carta entregue em mão, de que pretendia realizar o contrato definitivo e que se encontrava em condições para o efeito (doc. 6).
20.
A comunicação promitente vendedora CC indicou que não iria poder comparecer na escritura, porquanto a mesma havia sido “arrestada”.
21.
Sem prejuízo disso, por contacto pessoal, manifestou a sua disponibilidade em celebrar o contrato definitivo de compra e venda, se se conseguisse ultrapassar o referido impedimento (doc. 7).
22.
O requerente pretende celebrar o contrato definitivo relativo ao imóvel em causa.
23.
O imóvel destinar-se-ia à habitação própria e permanente do requerente.
24.
O requerente investiu não só o valor do sinal, como também realizou pequenas obras de reabilitação do mesmo para que aquele esteja habitável.
25.
Determina o n.º 7 do artigo 178.º do Código de Processo Penal que os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objectos ou coisas ou animais apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida.
26.
O requerente celebrou, como se referiu, contrato-promessa de compra e venda sobre o prédio misto descrito na ...sob o n.º 1456, da freguesia de ..., encontrando-se a parte mista do prédio inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1784 e a rústica sob o artigo 1784 da secção K, da já mencionada freguesia de Sobral de Monte Agraço.
27.
O referido imóvel foi objecto de apreensão – posterior – no âmbito do referido processo.
28.
Dúvidas inexistem de que o requerente é um terceiro de boa-fé, o qual, nos termos do contrato celebrado, tem direito a requerer a execução específica do contrato.
29.
A não celebração do contrato definitivo implica um dano injustificado para o requerente, o qual não se traduz apenas na perda do sinal e no valor das despesas em que incorreu na sequência da celebração do contrato-promessa – a reclamar caso o requerente não venha a celebrar o contrato definitivo –, mas também no facto de se ver privado da habitação própria e permanente que adquiriu.
30.
Como se referiu acima, o n.º 7 do artigo 178.º do Código de Processo Penal permite a modificação ou a revogação da medida sobre os bens apreendidos.
31.
O requerente pretende que seja revogada a medida de apreensão sobre o imóvel, propondo-se a celebrar o contrato definitivo de compra e venda do imóvel, entregando o preço à ordem dos autos, para substituição da medida de apreensão do imóvel, conquanto seja expurgado o registo pendente da penhora existente sobre o bem, posterior ao registo de apreensão e que, por isso, deverá ser cancelada.
32.
Talqualmente resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n.º 7418/21.3T8LSB-E.L1-8, em 23/03/2023, cujo relator foi Luís Correia de Mendonça1: (…) A apreensão incide sobre o património comprovadamente resultante do crime, isto é, sobre o património ilícito do arguido, com uma dupla função probatória e conservatória.
33.
Ou seja, a apreensão tem uma dupla-função, como resulta do supraindicado Acórdão o qual cita João Conde Correia: «a apreensão tem dupla natureza: é um inquestionável meio de lograr a prova (desenvolvendo uma função processual penal probatória), e, em paralelo, uma incontornável garantia processual penal da perda (desempenhando uma função processual penal conservatória)» (…) A este mecanismo processual penal costuma-se atribuir uma dupla função: «uma função de segurança processual (impedir dificuldades ou, até, a completa perda de prova) e também uma função de garantia processual (acautelar a sua perda posterior). Ela procura prevenir a demonstração futura do facto e, ao mesmo tempo, quando chegar o momento oportuno, a cabal execução da decisão final».
34.
No caso concreto, aquilo a que o requerente se propõe em nada ofende qualquer uma das funções da apreensão: por um lado, é seguro e inquestionável continuará a existir, na esfera de uma outra pessoa; por outro lado, acautela a sua perda posterior, uma vez que o requerente se propõe a efectuar o pagamento do preço à ordem dos autos.
35.
Dir-se-á que, no limite, ficará demonstrada a vantagem patrimonial do arguido, fruto da actividade ilícita e criminal que eventualmente tenha desenvolvido, uma vez que é notório que vendeu um imóvel ao requerente que lhe conferiu uma vantagem de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros).
36.
Em simultâneo, com a revogação da medida e substituição por uma outra – recebimento do preço – o Tribunal acautelará que o interesse de terceiro adquirente de boa-fé (requerente) não seja afectado pela actividade ilícita do arguido, assim se salvaguardando devidamente os interesses do terceiro de boa-fé.
Nestes termos e nos demais, sempre com o mui douto suprimento de v. Exa., desde já se requer
a) A revogação da medida de apreensão que incide sobre o prédio misto descrito na ...sob o n.º 1456, da freguesia de ..., encontrando-se a parte mista do prédio inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1784 e a rústica sob o artigo 1784 da secção K, da já mencionada freguesia de Sobral de Monte Agraço;
b) Autorização para celebração de contrato definitivo de compra e venda do imóvel, com a entrega do remanescente do preço à ordem deste processo, em substituição da medida de apreensão revogada em a) e conquanto se encontre cancelado o registo de penhora pendente – AP. 4128 de .../.../2024 – posterior ao de apreensão.
c) Ordenar a notificação do arguido BB e de CC para que confirmem se estão de acordo com a celebração do contrato definitivo dentro dos trâmites propostos.”
II.3.C. Da decisão recorrida (cfr. ref.ª 58893989 de 08-03-2025):
É do seguinte teor a decisão recorrida:
“I. Relatório
Veio AA, nos termos do art. 178.º, n.º 7, do CPP, do CPP, invocar que no dia ... de ... de 2024 celebrou com os Arguidos CC e BB contrato promessa de compra e venda relativo ao prédio misto descrito na ...sob o n.º 1456, da freguesia de ..., encontrando-se a parte mista do prédio inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1784 e a rústica sob o artigo 1784 da secção K, da freguesia de Sobral de Monte Agraço, com tradição da coisa (na qual realizou pequenas obras) e pagamento de sinal, não registado porque estava pendente o registo a favor dos promitentes-compradores, sendo que o prédio em causa foi, entretanto, apreendido nos presentes autos, com registo de .../.../2024.
Em consequência, entendendo que é um terceiro de boa-fé e que não há qualquer prejuízo para os autos, e pretendendo cumprir o contrato-promessa, tal como os promitente-vendedores, peticionam que seja revogada a medida de apreensão sobre o imóvel em causa, autorizada a realização do contrato definitivo relativamente ao imóvel em causa, sendo o valor remanescente relativo à compra deste entregue nos autos, e notificados os arguidos BB e CC para que confirmem se estão de acordo com a celebração do contrato definitivo relativamente ao imóvel em causa.
*
Devidamente notificado, a Digna Magistrada do Ministério Público sustentou, em termos que aqui se dão por integralmente reproduzidos, que está em causa a realização pelos Requerentes de um contrato-promessa, não sendo estes donos do imóvel em causa, ainda que tenha havido tradição da coisa, pelo que carecem de legitimidade para o peticionado.
*
No exercício do contraditório à oposição, pois que a Digna Magistrada do Ministério Público se defendeu invocando a excepção de ilegitimidade, e à resposta a tal contraditório, tudo nos termos do art. 3.º, n.º 3, do CPC, ex vi art. 4.º, do CPP, as partes mantiveram, no essencial, as suas posições, nos termos que antecedem e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
II. Fundamentação de Facto
A. Factos Provados e respectiva motivação
Considerando o teor dos autos principais, os documentos juntos pelo requerente e a ausência de impugnação do invocado pelo Requerente, com relevância para a decisão a proferir considera-se provado:
1. Em ... de ... de 2024, AA celebrou, como promitente-comprador, com CC e BB, negócio jurídico designado de contrato promessa, relativo ao prédio misto descrito na ...sob o n.º …, da freguesia de ..., encontrando-se a parte mista do prédio inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … e a rústica sob o artigo … da secção …, da freguesia de …..
2. Não se procedeu ao registo do negócio referido em 1. porque estava, ainda, pendente, o registo de aquisição em favor dos promitentes-vendedores.
3. Em .../.../2024 foi registada a apreensão do imóvel referido em 1., no âmbito do processo crime de que constitui apenso os presentes autos.
4. No processo crime de que constitui apenso os presentes autos a arguida CC e o arguido BB estão indiciados da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelo artigo 36.º, n.º 1, als. a) e c), n.º 2, e n.º 5, al. a), do DL 28/84, de 20/01, e de um crime de branqueamento de capitais, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, n.º 1, e n.º 3, do Código Penal.
5. CC e BB, em .../.../2024, compraram o imóvel referido em 1. a KK e a MM, estando pendente o registo de tal aquisição.
*
III. Fundamentação de Direito
Isto posto, cumpre decidir.
A questão que, aqui se coloca consiste, apenas, em saber se deve ser revogada a medida de apreensão e autorizada a realização do contrato definitivo relativamente ao prédio misto descrito na ...sob o n.º …, da freguesia de ..., encontrando-se a parte mista do prédio inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …e a rústica sob o artigo … da secção …, da freguesia de …, sendo o valor relativo à compra deste entregue nos autos, com prévio pedido aos promitentes-vendedores de confirmação se estão de acordo com a celebração do contrato definitivo relativamente ao imóvel em causa.
Conforme resulta do facto 3, dado como provado, o prédio misto descrito na ...sob o n.º …, da freguesia de ..., encontrando-se a parte mista do prédio inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … e a rústica sob o artigo … da secção …, da freguesia de …, encontra-se apreendido nos autos principais, com registo de .../.../2024.
E, está apreendido nos termos do art. 178.º, n.º 1, do CPP, porque os seus titulares estão indiciados em tais autos da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelo artigo 36.º, n.º 1, als. a) e c), n.º 2, e n.º 5, al. a), do DL 28/84, de 20/01, e de um crime de branqueamento de capitais, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, n.º 1, e n.º 3, do Código Penal (cfr. os factos 4 e 5, dados como provados).
Sobre a possibilidade de terceiros reagirem à apreensão de bens em processo crime versa o art. 178.º, n.º 7, do CPP, nos seguintes termos: “Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objectos ou coisas ou animais apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida”.
Invoca o requerente ser titular de contrato-promessa, não registado, sem eficácia real e com tradição da coisa, relativamente ao imóvel em causa.
Ora, como é sabido, o contrato promessa a que se referem os art. 410.º e seguintes, 441.º, 442.º e 830.º, todos do Código Civil, é, em princípio, um contrato de eficácia obrigacional, só produzindo efeitos entre as partes.
Podem, contudo, as partes atribuir eficácia real (erga omnes) ao contrato promessa quando tenha por objecto a transmissão ou constituição de direitos reais sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo, o que é inequívoco que não ocorreu no caso dos autos, independentemente do motivo pelo qual assim foi.
Se assim é, tendo o contrato promessa eficácia meramente obrigacional, a apreensão deste não cede perante tal contrato, implicando a apreensão a impossibilidade de cumprimento do contrato promessa enquanto o bem em causa se encontre apreendido.
Como é ponto assente, não sendo conferida eficácia real ao contrato promessa, este tem eficácia meramente obrigacional, e, tendo-o, não é oponível a terceiros.
Isto é, se o requerente não celebrou o contrato-promessa que invoca com atribuição de eficácia real, nos termos expostos, não pode ter-se por titular do imóvel apreendido, nem de qualquer direito oponível à apreensão, sendo mero titular de um direito obrigacional, o qual, enquanto se mantiver a apreensão, não pode ser satisfeito pelos proprietários do imóvel.
E o facto de ter obtido a tradição da coisa a isso não obsta, pois é apenas mero detentor da coisa e não possuidor desta, independentemente de estar, ou não, de boa-fé.
Carece, assim, o requerente de fundamento para peticionar a revogação ou modificação da apreensão efectuada sobre tal bem, pois não é titular de instrumento, produto ou vantagem, objecto, coisa ou animal apreendidos.
Aliás, não se encaixa, sequer, nessa premissa, o demais pretendido por este, pois que pretendia não só a revogação da apreensão, mas também que fosse autorizada a realização do contrato definitivo relativamente ao imóvel em causa, sendo o valor remanescente relativo à compra deste entregue nos autos, e que fossem notificados os arguidos BB e CC para que confirmem se estão de acordo com a celebração do contrato definitivo relativamente ao imóvel em causa.
Tais pedidos extravasam o âmbito de aplicação do mencionado art. 178.º, n.º 7, do CPP, e sempre teriam, ainda, de soçobrar.
Tem, pois, sem mais, de improceder totalmente o peticionado.
*
IV. Decisão
Em face do exposto e ao abrigo do disposto nas normas legais supra mencionadas, decide-se indeferir o peticionado por requerentes AA nestes autos incidentais.
Custas incidentais pelos Requerentes.
Registe e notifique.”
II.4. Da apreciação da questão objeto do recurso:
Cumpre agora analisar a já elencada questão suscitada pelo recorrente (cfr. II.2.).
São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova (cfr. art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P.).
A apreensão consiste na colocação de uma coisa sob o domínio, de facto e de direito, do poder público, numa imposição de um vínculo de indisponibilidade sobre uma coisa, por forma a garantir a sua integridade, que condiciona o seu uso, fruição e disposição, traduzindo-se, assim, numa restrição de direitos sobre a mesma, ainda que com carácter provisório (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-01-2023, processo n.º 267/21.0JELSB-G.L1-94; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03-02-2021, processo n.º 756/16.9TELSB-C.L1-35; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 22-10-2019, processo n.º 589/15.0JALRA-E.E16; CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, 2019, § 1 e 2, págs. 622 e 623).
O mecanismo processual da apreensão de bens tem uma função de segurança processual, isto é, impedir dificuldades ou até a completa perda da prova, mas também uma função de garantia patrimonial, ou seja, acautelar a sua perda posterior (cfr. CORREIA, João Conde, in “Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime?”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 25, 2015, pág. 508).
A apreensão é, pois, um meio processual que serve quer a prova do crime em investigação quer para a execução da decisão judicial que venha a declarar o que foi apreendido perdido a favor do Estado (cfr. ANDRADE, Manuel da Costa e ANTUNES, Maria João, in “Da apreensão enquanto garantia da perda de vantagens do crime”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 146.º, pág. 361).
No presente caso, de acordo com o teor da decisão proferida pelo Ministério Público (cfr. II.3.A.), a apreensão do imóvel em causa teve unicamente como fundamento a conservação dos ativos provenientes de uma atividade criminalmente ilícita, sendo que tal finalidade, como resulta do exposto, de acordo com a lei de processo, pode efetivamente fundamentar a apreensão (cfr. art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P.).
Assim, não servindo a apreensão do referido imóvel um interesse probatório, servirá um importante interesse confiscatório. Na verdade, “a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos apreendidos à ordem do processo até à decisão final” (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/2008, de 29-05-2008 ).
Ora, o C.P. prevê a perda a favor do Estado de instrumentos (cfr. art.º 109.º, n.º 1, do C.P.), produtos (cfr. art.º 110.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do C.P.) e vantagens de facto ilícito típico (cfr. art.º 110.º, n.ºs 1, al. b), 2, e 3, do C.P.).
A perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico, pese embora a divergência doutrinal quanto à sua natureza jurídica (pena acessória, providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança ou tertium genus dentro da panóplia das reações penais), enquanto consequência jurídica de um facto ilícito típico (cfr. ANDRADE, Manuel da Costa e ANTUNES, Maria João, in “Da apreensão enquanto garantia da perda de vantagens do crime”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 146.º, pág. 366), cumpre uma função específica preventiva, procurando evitar a circulação na comunidade de instrumentos suscetíveis de serem utilizados ou reutilizados em outros factos ilícitos típicos, bem como eliminar o que tenha sido produzido ou resultado da prática de facto ilícito típico que incentivem a prática de outros (cfr. DUARTE, José Nuno R., in A Perda de Instrumentos, Produtos e Vantagens do Crime no Código Penal Português: história, soluções e desafios, Almedina, 2023, pág. 94), ligado à ideia antiga, mas nem por isso menos prezável, de que o crime não compensa (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in Direito Penal Português – as consequências jurídicas do crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág. 632).
O C.P. determina que a perda a favor do Estado não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens de facto ilícito típico não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada (cfr. art.º 111.º, n.º 1, 2.ª parte, do C.P.).
Contudo, acrescenta que ainda que os instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico pertençam a terceiro, é decretada a perda, quando:
- Tenham concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tenham retirado benefícios;
- Os instrumentos, produtos ou vantagens tenham sido, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou
- Tiverem sido, por qualquer título, transferidos para o terceiro para evitar a sua perda, sendo ou devendo tal finalidade ser por eles conhecida (cfr. art.º 111.º, n.º 1, 1.ª parte, e n.º 2, als. a) a c), do C.P.).
A atual redação da dita norma (cfr. art.º 111.º do C.P.) resulta da Lei n.º 30/2017, de 30-05 (cfr. art.º 10.º) que transpôs Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 03-04-2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia7 onde, nos considerandos 24 e 25, consta:
“(24) A prática de os suspeitos ou arguidos transferirem os seus bens para terceiros com conhecimento de causa, de modo a evitar a sua perda, é muito comum e cada vez mais generalizada. O quadro jurídico da União em vigor não contém regras vinculativas em matéria de perda de bens transferidos para terceiros. Por conseguinte, afigura-se cada vez mais necessário autorizar a perda dos bens transferidos para terceiros ou por eles adquiridos. A aquisição por terceiros abrange as situações em que, por exemplo, os bens tenham sido direta ou indiretamente adquiridos por um terceiro ao suspeito ou arguido, nomeadamente através de um intermediário, inclusive quando a infração tenha sido cometida em seu nome ou em seu benefício e quando o arguido não possuir bens suscetíveis de perda. Deverá ser possível decidir a perda pelo menos nos casos em que o terceiro saiba ou deva saber que a transferência ou aquisição teve por objetivo evitar a perda, com base em circunstâncias e factos concretos, inclusive no facto de a transferência ter sido efetuada a título gracioso ou em troca de um montante substancialmente inferior ao do valor de mercado. As regras relativas à perda de bens de terceiros dever-se-ão aplicar tanto a pessoas singulares como a pessoas coletivas. Em qualquer dos casos, os direitos de terceiros de boa-fé não deverão ser lesados. [negrito nosso]
(25) Os Estados-Membros são livres de definir a perda de bens de terceiros como uma medida subsidiária ou alternativa à perda direta, consoante seja adequado nos termos do direito nacional.”
Acresce que, na sequência desses considerandos, a referida Diretiva determinou aos Estados-Membros no seu art.º 6.º, sob a epigrafe “perda de bens de terceiros”:
“1. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda dos produtos ou dos bens cujo valor corresponda a produtos que, direta ou indiretamente, foram transferidos para terceiros por um suspeito ou arguido, ou que foram adquiridos por terceiros a um suspeito ou arguido, pelo menos nos casos em que o terceiro sabia ou devia saber que a transferência ou a aquisição teve por objetivo evitar a perda, com base em circunstâncias e factos concretos, nomeadamente o facto de a transferência ou aquisição ter sido feita a título gracioso ou em troca de um montante substancialmente inferior ao do valor de mercado.
2. O n.º 1 deve ser interpretado de forma a não prejudicar os direitos de terceiros de boa-fé. [negrito nosso]
Conforme se acabou por reconhecer na Proposta de Lei n.º 51/XIII8, apresentada em 17-01-20279, que esteve na origem da nova legislação, a noção comunitária de produtos do crime abrange o que entre nós é tido por produtos e também como vantagens do crime.
Seja como for, o confisco implica a perda da propriedade da coisa para o visado e a sua transferência, com eficácia real, para a esfera patrimonial do Estado (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in Direito Penal Português – as consequências jurídicas do crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág. 627).
“O n.º 1, do artigo 111.º do Código Penal, determina que a perda a favor do Estado de bens relacionados com o crime não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens pertencerem a um terceiro, o que, numa leitura imediata e restritiva do texto, em que pertença equivale a propriedade, apenas o direito de propriedade dos terceiros seria salvaguardado daquela perda.
Contudo, tendo em consideração que essa perda não constitui uma aquisição originária desses bens pelo Estado, mas apenas uma transmissão ope judicis dos mesmos, não há razão para que outros direitos reis limitados ou menores (v.g. direitos de superfície, usufruto, uso e habitação, habitação periódica, penhor, hipoteca, direito de retenção), a promessa real e direitos pessoais de gozo (v.g. o direito do locatário e do comodatário) não permaneçam na titularidade do terceiro, apesar da transferência do direito de propriedade para o Estado não deixar de se efetivar. A diferença é que, existindo um direito de propriedade de terceiro, em princípio, a perda já não pode ocorrer, uma vez que a mesma teria como consequência a transmissão desse direito para o Estado, o que é incompatível com a sua manutenção na esfera jurídica de terceiro, enquanto nos restantes direitos reais limitados ou nos direitos pessoais de gozo dos terceiros, a transmissão do direito de propriedade para o Estado pode ocorrer, mantendo-se incólumes aqueles direitos no património dos terceiros” (cfr. MARIANO, João Cura, in “A perda de bens de terceiros relacionados com o crime”, O Novo Regime de Recuperação de ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs, 1.ª edição, INCM, 2018, págs. 142 e 143).
“O mesmo é dizer que se trata aqui de uma perda relativa e que o direito adquirido pelo Estado há de coincidir então com o direito do agente, sem atingir, desta forma, os direitos a favor de terceiros que onerem a coisa ou o direito transmitido. Passando o Estado a ter sobre a coisa ou direito perdido a mesma posição que cabia ao titular anterior, refletem-se, naturalmente, na sua posição quaisquer vicissitudes ou quaisquer vícios inerentes ao título de aquisição a favor do titular anterior, bem como quaisquer ónus ou encargos que porventura gravassem a coisa ou o direito adquirido” (cfr. ponto 3.5. do Parecer n.º 15/CC/2018, do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado, homologado em 17-04-201810).
Sob o ponto de vista processual, no caso da apreensão, com a Lei n.º 59/98, de 25-08, o art.º 178.º do C.P.P. passou a prescrever que:
“6 - Os titulares de bens ou direitos objeto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 68.º, n.º 5.
7 - Se os objetos apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o. A autoridade judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível.”
Por outro lado, a Lei n.º 30/2017, de 30-05, que transpôs Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 03-04-2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia, alterou o art.º 178.º do C.P.P. (cfr. art.º 15.º) e aditou a tal diploma o art.º 347.º-A, do C.P.P. (cfr. art.º 16.º).
O art.º 178.º do C.P.P. passou então a dispor:
“7 - Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida.
8 - O requerimento a que se refere o número anterior é autuado por apenso, notificando-se o Ministério Público para, em 10 dias, deduzir oposição.
9 - Se os instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o.
10 - A autoridade judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível.
11 - Realizada a apreensão, é promovido o respetivo registo nos casos e nos termos previstos na legislação registal aplicável.
12 - Nos casos a que se refere o número anterior, havendo sobre o bem registo de aquisição ou de reconhecimento do direito de propriedade ou da mera posse a favor de pessoa diversa da que no processo for considerada titular do mesmo, antes de promover o registo da apreensão a autoridade judiciária notifica o titular inscrito para que, querendo, se pronuncie no prazo de 10 dias.”
Por seu turno, o art.º 347.º-A do C.P.P., sob a epigrafe “declarações do terceiro titular dos instrumentos, produtos ou vantagens suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado” prescreve:
“1 - Ao terceiro ao qual pertençam instrumentos, produtos ou vantagens suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado, é garantido o exercício do direito de contraditório e a prestação de declarações, mediante perguntas formuladas por qualquer dos juízes ou dos jurados ou pelo presidente, a solicitação do próprio terceiro, do Ministério Público, do defensor ou dos advogados do assistente ou das partes civis.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 4 do artigo 145.º e no n.º 3 do artigo 345.º”
Por outro lado, no considerando 33 da dita Diretiva consta:
“(33) A presente diretiva afeta consideravelmente os direitos das pessoas, não só os direitos dos suspeitos ou arguidos, mas também os de terceiros que não sejam sujeitos processuais. Por conseguinte, importa estabelecer garantias específicas e vias de recurso judicial para assegurar que, ao executar a presente diretiva, se respeitem os direitos fundamentais das pessoas. Isso inclui o direito a ser ouvido que assiste a terceiros que alegam ser proprietários dos bens em causa ou titulares de outros direitos de propriedade («direitos reais» ou «ius in re»), como o direito de usufruto. A decisão de congelamento deverá ser comunicada à pessoa em causa o mais rapidamente possível após a sua execução. No entanto, por imperativos da investigação, as autoridades competentes podem adiar a comunicação dessas decisões à pessoa em causa.” [negrito nosso]
Acresce que, no seu art.º 6.º, sob a epigrafe “salvaguardas”, a referida Diretiva determinou aos Estados-Membros:
“1. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que as pessoas afetadas pelas medidas previstas na presente diretiva tenham acesso a vias de recurso efetivas e a um julgamento equitativo, para defender os seus direitos.
2. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que a decisão de congelamento seja comunicada à pessoa em causa o mais rapidamente possível após a sua execução. Essa comunicação inclui, pelo menos em forma resumida, o fundamento ou os fundamentos de tal decisão. Quando tal for necessário para não prejudicar uma investigação criminal, as autoridades competente podem adiar a comunicação da decisão de congelamento à pessoa em causa.
3. As decisões de congelamento apenas vigoram enquanto tal for necessário para salvaguardar os bens tendo em vista a eventual decisão de perda subsequente.
4. Os Estados-Membros devem prever a possibilidade efetiva de a pessoa cujos bens sejam afetados impugnar em tribunal a decisão de congelamento, em conformidade com os processos previstos no direito nacional. Esses processos podem prever que, caso a decisão inicial de congelamento tenha sido tomada por uma autoridade competente que não seja uma autoridade judiciária, essa decisão tenha de ser submetida primeiro a uma autoridade judiciária para validação ou revisão, antes de poder ser impugnada em tribunal.
5. Os bens congelados que não venham a ser objeto de uma decisão de perda subsequente são restituídos imediatamente. As condições ou as regras processuais que permitem restituir tais bens são determinadas no direito nacional.
6. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que todas as decisões de perda são fundamentadas e que a decisão é comunicada à pessoa em causa. Os Estados-Membros devem prever a possibilidade efetiva de a pessoa destinatária de uma decisão de perda impugnar em tribunal essa decisão.
7. Sem prejuízo da Diretiva 2012/13/UE e da Diretiva 2013/48/UE, as pessoas cujos bens sejam afetados pela decisão de perda têm o direito de ter acesso a um advogado durante todo o processo de decisão de perda em relação à determinação dos produtos e instrumentos, a fim de poder defender os seus direitos. As pessoas em causa são informadas deste direito.
8. Nos procedimentos referidos no artigo 5.º , a pessoa em causa deve ter a possibilidade efetiva de contestar as circunstâncias do caso, nomeadamente os factos concretos e as provas disponíveis com base nos quais os bens em causa são considerados bens provenientes de comportamento criminoso.
9. Os terceiros têm direito a invocar o seu título de propriedade ou outros direitos reais, inclusive nos casos referidos no artigo 6.º.
10. Caso, em consequência de infração penal, as vítimas possam pedir uma reparação a pessoas sujeitas a medidas de perda previstas ao abrigo da presente diretiva, os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que as medidas de perda não impeçam que as vítimas reclamem uma indemnização.” [negrito nosso]
Por fim, a Lei n.º 39/2020, de 18-08, conferiu a redação atual ao art.º 178.º (cfr. art.º 3.º), introduzindo, nos n.ºs 7 e 9 alterações por forma a incluir “coisas ou animais” na referência ao que estava apreendido.
Sendo inequívoco que a lei de processo penal estabelece a possibilidade de uma pessoa que não seja sujeito processual requerer ao juiz a modificação ou a revogação da apreensão de algo suscetível de ser declarado perdido a favor do Estado (cfr. art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P.) e de ser ouvido oficiosamente (cfr. art.º 178.º, n.º 9, do C.P.P.), devendo depois serem retiradas as consequências processuais (manutenção, alteração ou revogação da apreensão), sendo-lhe também garantido, em julgamento, o exercício do direito de contraditório e a prestação de declarações (cfr. art.º 347.º-A do C.P.P.), não é muito clara quanto ao âmbito subjetivo em causa no que se refere aos direitos de a mesma deve ser titular.
Na verdade, embora os termos “titulares” (cfr. art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P), “pertencerem” (cfr. art.º 178.º, n.º 9, do C.P.P.) e “pertençam” utilizados (cfr. art.º 347.º-A, n.º 1, do C.P.P.) pareçam equivaler, numa leitura imediata e restritiva, ao conceito corrente ou quotidiano de propriedade, tendo em conta a restrição de direitos em que se traduz a apreensão, ainda que provisoriamente, bem como a evolução histórica dos preceitos, os mesmos não são incompatíveis com outras leituras de acordo com as quais as pessoas em causa podem ser titulares do direito de propriedade sobre o que foi apreendido (cfr. CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, 2019, § 18, pág. 631; CABRAL, José António Henriques dos Santos, in Código de Processo Penal comentado, Almedina, 2014, págs. 759 e 760; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27-09-2023, processo n.º 261/21.1T9ACB-D.C111; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-11-2009, processo n.º 17/09.0TELSB-B.L1-912), mas também de outros direitos (cfr. BUCHO, José Manuel Saporiti Machado da Cruz, in “A Transposição da Diretiva 2014/42/EU. Notas à Lei n.º 30/2017, de 30 de maio (aspetos processuais penais)”, O Novo Regime de Recuperação de ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs, 1.ª edição, INCM, 2018, nota 37 de pág. 199 e págs. 228 e segs.; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23-08-2021, processo n.º 324/14.0TELSB-DF-313; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21-01-2004, processo n.º 031577714).
No caso, é pacífico que foi celebrado entre o recorrente e os arguidos BB e CC uma convenção pela qual se obrigaram a celebrar um contrato de compra e venda do referido imóvel (cfr. art.º 410.º, n.º 1, do Código Civil – C.C.).
Convém ter presente que as razões de celebração de um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel podem ser as mais diversas, entre as quais se contam até estarem em curso formalidades burocráticas para regularizar o direito do próprio vendedor, ficando assim assegurado, desde logo, a realização futura do negócio durante a ultimação daquelas (cfr. VARELA, João de Matos Antunes, in Das Obrigações em Geral, Volume I, 8.ª edição, Almedina, 1994, págs. 310 e 311).
Face à alegação do próprio recorrente, é também pacífico que, no caso, o promitente-comprador pagou aos promitentes-vendedores uma quantia a título de sinal, como antecipação de uma pequena parte do pagamento devido pelo promitente-comprador com a celebração do contrato prometido, existiu entrega do imóvel ao promitente-comprador e que não foi registado o direito emergente da promessa, pelo que o contrato-promessa celebrado não tem eficácia real (cfr. art.º 413.º do C.C.).
Deste modo, o contrato-promessa celebrado, tendo por objeto prestações de facto positivos dado que criou a obrigação para cada uma das partes de serem emitidas as declarações de vontade correspondentes ao contrato prometido, produz efeitos apenas entre os contraentes, não sendo oponível a terceiros (cfr. art.º 406.º do C.C.; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 27-04-2023, processo n.º 3037/18.0T8BRG-C.G115; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-12-2008, processo n.º 08B137516).
Produzindo o contrato-promessa de transmissão do dito real de propriedade sobre o referido imóvel celebrado efeitos meramente obrigacionais, criando tão somente a obrigação de os contratantes celebrarem, no futuro, o contrato definitivo de compra e venda, pelo qual se operará esses efeitos translativos daquele direito real (cfr. art.º 408.º do C.C.), é evidente que o contrato-promessa celebrado, com entrega daquele imóvel ao promitente-comprador e aos promitentes-vendedores de quantia muito longe do preço integral, antes da celebração do negócio translativo do direito real de propriedade, por si só não é suscetível de transmitir a posse ao promitente-comprador, sendo este mero detentor ou possuidor em nome alheio do imóvel que lhe foi entregue pelos promitentes-vendedores no âmbito do contrato-promessa celebrado (cfr. LIMA, Pires de e VARELA, Antunes, in Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª edição, Coimbra Editora, págs. 5 e 6; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02-05-2000, processo n.º 495/200017; acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 12-03-2015, processo n.º 3566/06.8TBVFX.L1.S218).
Na verdade, o promitente-comprador não pode ignorar não ter celebrado com os promitentes-vendedores qualquer negócio translativo do direito de propriedade ou de outro direito real sobre o imóvel que estes lhe entregaram por via da celebração do contrato-promessa e que, por isso, o direito de uso e de fruição que o promitente vendedor lhe concedeu é um direito meramente obrigacional, de crédito e precário, apenas oponível entre os próprios contratantes e dependente da celebração futura do contrato prometido (cfr. arts. 1251.º e 1253.º, al. c), do C.C.).
Deste modo, não sendo o recorrente, por força do contrato-promessa celebrado, titular de um direito que confira ao seu titular um poder sobre o imóvel incompatível com a apreensão do mesmo, mostra-se absolutamente fundada a decisão recorrida, inexistindo qualquer restrição intolerável, desproporcionada e desnecessária dos seus direitos.
Ora, assim sendo, o recurso é manifestamente improcedente pois na análise necessariamente perfunctória a que se procedeu no exame preliminar, se concluiu, face à factualidade apurada, à alegação do recorrente, à letra da lei e à posição da jurisprudência, que o recurso está votado ao insucesso, ou seja, que não tem aptidão para o fim pretendido (cfr. DIAS, Maria do Carmo Silva, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, Livraria Almedina, 2024, pág. 260; SIMAS SANTOS, Manuel e LEAL-HENRIQUES, Manuel, in Recursos Penais, 9.ª edição, Rei dos Livros, 2020, pág. 130; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-06-2022, processo n.º 38/20.1PKSNT.L1.S119).
Deste modo, deve o recurso ser rejeitado (cfr. arts. 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. a), do C.P.P.).
II.5. Das custas e importância sancionatória:
É devida taxa de justiça pelo recorrente uma vez que decaiu, e totalmente, no recurso que interpôs, devendo ser condenado entre 3 UC e 6 UC a esse título, tendo em vista a complexidade da causa (cfr. arts. 524.º do C.P.P. 8.º, n.º 9, do R.C.P. e da Tabela III).
No entanto, a rejeição do recurso, qualquer que seja o motivo, implica ainda a condenação do recorrente no pagamento de uma sanção processual a fixar entre 3 UC e 10 UC, que acresce à condenação no pagamento das custas e, assim, independentemente destas, dado que visam propósitos diferentes (cfr. art.º 420.º, n.º 3, do C.P.P.; DIAS, Maria do Carmo Silva, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Livraria Almedina, 2024, pág. 262; SIMAS SANTOS, Manuel e LEAL-HENRIQUES, Manuel, in Recursos Penais, 9.ª edição, Rei dos Livros, 2020, pág. 130; MADEIRA, António Pereira, in Código de Processo Penal Comentado, Livraria Almedina, 2014, pág. 1446; GONÇALVES, Manuel Lopes Maia, in Código de Processo Penal anotado, 17.ª edição, Almedina, 2009, pág. 988; Magistrados do Ministério Público do distrito judicial do Porto, in Código de Processo Penal – comentários e notas práticas, Coimbra Editora, 2009, pág. 1070; ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, in Comentário do Código do Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 1152; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-05-2024, processo n.º 1332/22.2T9ALM.L1.S120; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-12-2015, processo n.º 59/14.3PDPRT.P1.S121; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-01-1989, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 393, pág. 294; decisão sumária de 25-08-2023, proferida no processo n.º 885/17.1T9VNG.P1, do Tribunal da Relação do Porto22; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01-06-2016, processo n.º 215/15.7T8MMV.C123; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07-10-2010, processo n.º 656/09.9GELLE.E124).
Atendendo, por um lado, à reduzida complexidade do objeto da decisão, mas, por outro, ao facto de a questão ter sido suscitada sem o rigor técnico que seria desejável, considero ajustado fixar a taxa de justiça em 3 UC e aquela importância em 5 UC.
III. Decisão:
Rejeito o recurso interposto por AA.
Condeno o recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça devida pelo mesmo em 3 UC, a que acresce a importância de 5 UC.
II.2. Da apreciação:
Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional não é inconstitucional, por violação do direito fundamental de acesso à Justiça (cfr. art.º 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – C.R.Portuguesa) e do direito fundamental dos arguidos ao recurso (cfr. art.º 32.º, n.º 1, da C.R.Portuguesa), a norma extraída do art.º 417.º, n.º 6, al. b), do C.P.P., quando permite ao relator proferir decisão sumária de indeferimento, em caso de manifesta improcedência do recurso, decisão essa passível de reclamação para a conferência (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 17/2011, de 12-01-201125).
Na verdade, o direito fundamental ao recurso não se traduz num direito subjetivo ilimitado ou irrestringível, não exige um duplo grau de recurso, nem impõe, de modo algum, que a decisão sobre a procedência de determinado recurso ordinário seja imediatamente apreciada por um coletivo de juízes desembargadores.
Por outro lado, a consagração legislativa do poder do relator para proferir decisões sumárias não conflitua, em nada, com o direito fundamental de acesso à Justiça. De facto, tal opção legislativa não se revela nem desnecessária, nem desadequada, nem tão pouco desproporcionada em sentido estrito. A decisão sumária de rejeição do recurso consubstancia uma efetiva decisão sobre o recurso interposto e, simultaneamente, uma medida adequada e idónea a assegurar uma maior eficiência e celeridade na tramitação processual, sendo sempre possível ao recorrente reclamar para a conferência, demonstrando que os fundamentos invocados para aquela ser proferida não se verificavam.
Na verdade, o objeto legal da reclamação é a decisão reclamada e não a questão por ela julgada, pelo que o reclamante tem o ónus de suscitar os respetivos vícios em sede de reclamação para que sobre eles se possa pronunciar e decidir a conferência, controlando a legalidade daquela e, assim, confirmando ou revogando a decisão sumária reclamada (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10-07-2025, processo n.º 26/21.0TELSB-W.L1-526; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06-05-2025, processo n.º 1182/22.6GEALM.L1-527; acórdão do Tribunal de Guimarães, de 12-06-2023, processo n.º 669/06.2PBGMR-A.G128; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17-12-2014, processo n.º 453/10.9GBFND.C129; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01-06-2011, processo n.º 1959/08.5PBCBR.C130).
Nessa perspetiva, o reclamante não aduz qualquer fundamento para impugnar a decisão sumária, sendo que só isso seria suficiente para julgar improcedente a reclamação.
Acresce os recursos são meios para obter o reexame das questões já submetidas à apreciação do tribunal de que se recorre, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame daquele (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-05-2006, processo n.º 06P79831), sendo que a reclamação de uma decisão sumária também não se traduz numa oportunidade processual para reconfigurar a motivação do recurso interposto (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31-10-2019, processo n.º 7078/18.9T9LSB-A.L1.S132).
Sob esta perspetiva, cumpre salientar que o que estava em causa no recurso interposto era saber se deveria ser revogada a apreensão de um imóvel determinada ao abrigo do disposto no art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P., que foi entregue ao promitente-comprador do mesmo, em virtude da celebração de um contrato-promessa de compra e venda, sem eficácia real, e autorizada a realização do contrato prometido relativamente ao imóvel em causa, sendo o valor remanescente relativo à compra deste entregue nos autos, não estando, pois, em causa, a apreciação dos pressupostos em que tal apreensão assentou ou a regularidade do seu registo.
Ora, o só agora invocado direito de retenção sobre o imóvel (cfr. art.º 755.º, n.º 1, al. f), do C.C.), como resulta da própria lei, enquanto direito real de garantia, visa apenas salvaguardar o crédito resultante do não cumprimento do contrato-promessa imputável à outra parte, nos termos do art.º 442.º do C.C., pelo que, não garantindo a execução específica de tal contrato, também não tem a virtualidade de conferir a posse ao promitente-comprador sobre o imóvel objeto do contrato-promessa celebrado sem eficácia real, não sendo, pois, incompatível com a apreensão do mesmo (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 27-04-2023, processo n.º 3037/18.0T8BRG-C.G133).
Seja como for, a apreensão para confisco já estava prevista no art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P., na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17-02, quando referia “são apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa (…)”, e continuou a estar na redação dada pela Lei n.º 30/2017, de 30-05, quando passou a referir que “são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico (…)”.
Acresce que a alteração introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18-08, no art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P., apenas acrescentou a referência a “animais” e “coisas” e na parte em que o referido preceito legal prevê a apreensão para conversação da prova.
Aliás, que a apreensão é um meio processual que serve também para a execução da decisão judicial que venha a declarar o que foi apreendido perdido a favor do Estado é uma posição que, para além de decorrer da lei de processo, é há muito defendida quer na doutrina (cfr., para além da já citada na decisão sumária, CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, 2019, págs. 624 a 630; BUCHO, José Manuel Saporiti Machado da Cruz, in “A Transposição da Diretiva 2014/42/EU. Notas à Lei n.º 30/2017, de 30 de maio (aspetos processuais penais)”, O Novo Regime de Recuperação de ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs, 1.ª edição, INCM, 2018, pág. 196), quer na jurisprudência (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/2008, de 29-05-200834; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14-01-2025, processo n.º 2182/23.4JABRG-A.G235; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24-02-2022, processo n.º 3/22.4JAFUN-A.L1-936; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 11-10-2022, processo n.º 209/18.0JAFAR-J.E137; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27-09-2017, processo n.º 316/16.4T9AVR-A.P138; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18-12-2013, processo n.º 1420/11.0T3AVR-C.P139; ).
Por outro lado, não tem qualquer apoio na lei a limitação da apreensão prevista no art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P. a coisas móveis, não suscitando qualquer dúvida na jurisprudência a possibilidade também serem apreendidos bens imóveis (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08-01-2025, processo n.º 2026/23.7JACBR-B.C140). Na verdade, tendo o produto ou a vantagem de um facto ilícito típico sido reinvestido na compra de um imóvel, resulta da própria lei penal que este pode ser declarado perdido a favor do Estado (cfr. art.º 110.º, n.ºs 1, als. a) e b), e 3, do C.P.) e, assim, pode ser apreendido (cfr. art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P.).
São bem demarcados na lei os diferentes âmbitos de aplicação da apreensão e do arresto, mas não é a natureza móvel ou imóvel do seu objeto que os distingue. Na verdade, embora o património não contaminado e aquele relativamente ao qual não é possível demonstrar ser o mesmo contaminado não possam ser alvo de apreensão (cfr. arts. 178.º do C.P.P.), podem ser alvo de arresto, preventivo (cfr. art.º 228.º do C.P.P.) ou alargado (cfr. art.º 10.º Lei de combate à criminalidade organizada e económico-financeira) (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06-05-2025, processo n.º 922/18.2TELSB-H.L1-541).
Acresce que o facto de ter sido apreendido em processo penal um imóvel cuja aquisição em nome dos arguidos não está registada, ou está registada provisoriamente, determina que o registo da sua apreensão seja efetuado provisoriamente (cfr. arts. 68.º, 70.º e 92.º do Código do Registo Predial – C.R.P.).
Finalmente, o reclamante reage quanto a custas e, assim, no respeita à fixação efetuada na decisão sumária da taxa de justiça devida, e não quanto à sanção processual, igualmente aí fixada, que não se inclui ou confunde com aquelas (cfr. art.º 3.º, n.ºs 1 e 2, do R.C.P.). Pretende o reclamante imputar à decisão sumária uma contradição a nível da fixação da taxa de justiça devida. Contudo, inexiste qualquer contradição. Na verdade, conforme decorre da lei, a taxa de justiça foi fixada tendo em vista a complexidade da causa (cfr. arts. 524.º do C.P.P. 8.º, n.º 9, do R.C.P. e da Tabela III). Ora, variando a mesma entre 3 UC e 6 UC, precisamente por ter sido entendido que era reduzida a complexidade do objeto da decisão sumária, foi a mesma fixada no mínimo legal.
Assim, entende-se que o juízo alcançado na decisão sumária reclamada é de manter, não havendo qualquer razão para a sua alteração.
II.3. Das custas:
Nos termos do arts. 524.º do C.P.P. e 8.º, n.º 9, do R.C.P. e da Tabela III a ele anexa, deve o reclamante ser condenado entre 1 UC e 3 UC a título de taxa de justiça, tendo em vista a complexidade da causa (cfr. DIAS, Maria do Carmo Silva, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, Almedina, 2024, pág. 1072), a que acrescerão as quantias já fixadas na decisão sumária (cfr. acórdão do Tribunal de Guimarães, de 12-06-2023, processo n.º 669/06.2PBGMR-A.G142).
A referência legal à complexidade da causa a atender para efeitos de determinação da taxa de justiça devida deve ser interpretada por forma a abranger a complexidade inerente ao procedimento desencadeado, nomeadamente o número e dificuldade das questões colocadas e, assim, o volume de trabalho a que deu origem, mas também a decorrente da concreta intervenção processual e, deste modo, a razoabilidade e a pertinência da posição assumida por quem o provocou (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25-09-2024, processo n.º 294/23.3PFCBR.C143).
Desta forma, mostra-se plenamente justificado que um encargo maior seja suportado por quem desencadeia uma atividade processual sem lograr demonstrar o bem fundado da sua posição.
Revertendo ao caso dos autos constata-se que não obstante não terem sido muitas as questões suscitadas, não sendo as mesmas complicadas no que respeita à solução jurídica que merecem, o certo é que é manifesta a falta de razão da reclamante que, não obstante, ignorando completamente o que já constava da decisão reclamada, a letra da lei e a jurisprudência dos tribunais superiores, apresentou uma reclamação, acionando o funcionamento do aparelho judicial, sem lograr demonstrar o bem fundado da sua posição.
Assim, julga-se adequado fixar a taxa de justiça no máximo legal, ou seja, em 3 UC.

III. Decisão:
Julga-se totalmente improcedente a reclamação apresentada por AA, mantendo-se na íntegra a decisão sumária de 02-09-2025 de rejeição do recurso por si interposto.
Condena-se o reclamante no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça por ela devida em 3 UC, a que acrescerão as quantias já fixadas na decisão sumária.

Lisboa, 21-10-2025
Pedro José Esteves de Brito
João Grilo Amaral
Paulo Barreto
____________________________________________
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