Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2339/23.8T9SNT.L2-9
Relator: DIOGO COELHO DE SOUSA LEITÃO
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ABANDONO
ANIMAL DE COMPANHIA  
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. A nulidade por omissão de pronúncia [artigo 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal] ocorre quando o tribunal não aprecia questões suscitadas, não quando deixe de se pronunciar sobre determinado argumento ou meio de prova invocado por alguma das partes.
II. O crime de abandono de animais de companhia (artigo 388.º do Código Penal) só admite a sua comissão a título doloso.
III. Uma médica veterinária, no exercício das suas funções, pode, em teoria, ser autora deste ilícito.
IV. Não resultando dos elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito, ou na fase de instrução, que a médica veterinária violou as leges artis no diagnóstico e tratamento do gato da assistente, não pode a mesma ser pronunciada, desde logo por ausência dos elementos objectivos do tipo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I RELATÓRIO
No Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 2, no âmbito do processo n.º 2339/23.8..., foi proferido despacho de não pronúncia da arguido AA, devidamente identificada nos autos.
Inconformada com esta decisão, veio a Assistente BB interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. O presente recurso tem como objeto a anulação da decisão instrutória proferida pelo Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa que decidiu não pronunciar a arguida, AA, relativamente ao crime de abandono de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 388º do Código Penal.
2. Ressalta da fundamentação do despacho de não pronúncia que este não se preocupou em verificar se o comportamento da arguida seria suscetível de consubstanciar a prática do crime de abandono de animais de companhia, antes preferindo, sem qualquer objetividade, mas com muita subjetividade, afastar as declarações da assistente sem justificar porque teriam, essas declarações, sido parciais e confusas.
3. Por outro lado, o despacho de não pronúncia considerou, tanto as declarações da arguida, como do Hospital... - também denunciado neste processo, sublinhe-se - como merecedores de credibilidade, esquecendo que enquanto denunciados as suas declarações teriam de ser convenientemente analisadas para que as mesmas não fossem admitidas, sem qualquer reserva.
4. Aliás, quanto aos factos carreados para o processo, tanto na fase de inquérito como nesta fase de instrução, o despacho de não pronúncia fez errada análise e apreciação, incorrendo em erro de julgamento.
5. O despacho recorrido incorre em erro de julgamento (error in judicando) por resultar de uma distorção da realidade factual (error facti) de forma a que o decidido não corresponde à realidade ontológica.
6. Por outras palavras, o erro consiste num desvio da realidade factual por falsa representação da mesma. (vg. acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 30 de setembro de 2010, no processo 341/08.9TCGMR.G1.S2, e em 3 de março de 2021, no processo 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt).
7. Quanto aos factos carreados para o processo, tanto na fase de inquérito como nesta fase de instrução, o despacho de não pronúncia fez errada análise e apreciação, incorrendo em erro de julgamento, nomeadamente:
a) no depoimento de CC, na qualidade de legal representante do denunciado ...;
b) no relatório médico subscrito pela Dra. Dra. DD, médica veterinária.
8. Refere o despacho de não pronúncia no 1º parágrafo da página 17, “A assistente também refere que acha que “meteram o gato no forno” (referindo-se a que fizeram logo a cremação) e não fizeram a necropse. Ora, como se viu, tal não corresponde à verdade, pois, conforme referiu a testemunha CC, legal representante do denunciado Hospital..., relativamente à necrópsia solicitada pela assistente, foi a mesma informada que a operação demora no mínimo cerca de seis meses. Por outro lado, consta da informação que foi prestada à Ordem dos Médicos Veterinários pelo Director Clínico do Centro... que “Por vir através de uma associação a necrópsia requisitada pela senhora EE, foi inserida em contexto de aula e não foi cobrada e por isso não consta no orçamento apresentado, contudo após a necropsia o corpo continua a ter que ser devidamente processado daí ter sido cobrado o valor referente à cremação” (sublinhado nosso).
9. Atendendo ao depoimento de CC e à informação do Diretor Clínico do Centro..., o despacho recorrido nunca poderia ter concluído não existir quaisquer dúvidas de que a necrópsia foi efetuada pelo Hospital….
10. Porquanto, entre a fatura que foi enviada à assistente e o relatório da necrópsia que constam no processo, existe uma divergência totalmente insanável, quanto à data em que essa necrópsia teria sido realizada.
11. Na fatura enviada à assistente com data de ... de ... de 2023 foi lançada a rubrica CONSUMIVEL HOSPITAL - Cremação de cadaver (valor por Kg) no valor de 3,05€
12. No relatório da necrópsia, efetuada na ... (negrito e sublinhado nosso) consta que ela foi efetuada no dia ... de ... de 2023.
13. Decorre destas duas datas que a necrópsia foi realizada a um ser que tinha sido cremado cinco dias antes.
14. É por demais evidente, e salta à vista de qualquer comum mortal, que é impossível realizar uma necrópsia a um animal que já tinha sido reduzido a cinzas, cinco dias antes.
15. Por outro lado, no requerimento de abertura da instrução, a assistente requereu que fosse ouvida como testemunha a Dra. DD, a notificar na ....
16. Por despacho proferido pelo Tribunal a quo em ... de ... de 2024 foi indeferida a inquirição dessa testemunha, por ter considerado que o conhecimento da testemunha dos factos se encontra vertido no relatório de fls.9, verso, ou seja, prova documental e cuja irrecorribilidade está prevista no artigo 291º, nº 2 do CPP.
17. Sobre essa prova documental, o despacho recorrido não proferiu uma palavra sequer, consubstanciando a sua nulidade por não se ter pronunciado sobre essa prova documental que deveria ter apreciado - sobretudo quando o depoimento da testemunha arrolada pela assistente tenha sido indeferido - por omissão de pronúncia, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 379º do CPP.
18. Neste processo, está em causa apurar se o comportamento da arguida, nomeadamente, o diagnóstico e o tratamento efetuado ao FF, gato da assistente, é suscetível de preencher o tipo de crime de abandono de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 388º do Código Penal.
19. Conforme invocado no requerimento da abertura da instrução, o FF não tinha nenhum tumor cerebral, contrariamente ao diagnóstico efetuado pela Dra. GG e que as declarações da própria arguida não colocam em crise esse errado diagnóstico, tendo sido medicado para uma doença da qual não padecia.
20. O FF foi medicado com “prednisolona”, altamente prejudicial para problemas renais, que eram, na verdade, os verdadeiros sintomas da doença de que padecia o FF.
21. Aliás, tendo em conta o relatório de necrópsia realizada em ... de ... de 2023, a lista de lesões apresentadas pelo FF, por ordem decrescente de importância, eram:
a) Atrofia com fibrose renal compatível com nefrite intersticial crónica moderada a grave;
b) Magreza marcada;
c) Regurgitação de conteúdo estomacal com aspiração por falso trajeto;
d) Presença marcada de placa dentária.
22. Esse relatório de necrópsia concluiu que as lesões indicam um quadro moderado a grave de nefrite intersticial crónica, bem como a regurgitação do conteúdo estomacal com aspiração por falso trajeto e muito provavelmente perimortem.
23. Resulta desse relatório que FF não sofria de qualquer temor cerebral diagnosticado pela Dra. GG que chegara a essa conclusão em virtude de lhe ter observado um olhar estrábico.
24. O FF acabou por ter alta no dia ... de ... de 2023, mas sem que a sua doença estivesse tratada ou debelada.
25. Em consulta efetuada pela Dra. DD na ... no dia ... de ... de 2023, foi-lhe diagnosticada uma pancreatite.
26. Isso poderia ter influenciado em todos os valores renais e que ele mostrava dor abdominal ao toque.
27. Referindo ainda que a cortisona não estaria a fazer nada e que teria se ser reduzida a dose para poder fazer novas análises.
28. Estando o FF com uma pancreatite não poderia ter tido alta.
29. Pois teria de estar internado até melhorar da pancreatite sobre controle médico, aliás, como o relatório médico junto aos autos o demonstra.
30. Pois nele se afirma que FF poderia estar a fazer uma pancreatite ou um agravamento do quadro que tinha há 3 semanas atrás.
31. Em bom rigor, o FF acabou por falecer devido a um erro no diagnóstico efetuado no Hospital..., pela Dra. GG.
32. O despacho recorrido fez errada avaliação do relatório de necrópsia elaborado no dia ... de ... de 2023, como também fez errada avaliação o relatório elaborado pela Dra. DD, da Liga....
33. Diz o artigo 20º do Regulamento 730/2021 de 5 de agosto, publicado no Diário da República, 2ª série relativo ao Código Deontológico Médico-Veterinário, que compete ao médico veterinário, em todas as áreas de atividade, promover a saúde dos animais ao seu cuidado e zelar pelo seu bem-estar, de acordo com as boas práticas e a legislação vigente (nº 1 desse artigo).
34. Tendo ainda o médico veterinário, o dever de adotar as medidas necessárias e adequadas a evitar, diminuir ou fazer cessar qualquer ação que ponha em perigo a vida, a saúde ou o bem-estar animal [alínea d) do nº 2 desse artigo 20º].
35. Coisa que não foi, de todo, assegurado pela arguida que assistiu e acompanhou o FF nos oito dias em que esteve internado no Hospital....
36. O médico veterinário que no âmbito da sua atividade profissional viole, seja a que título for, com culpa dolosa ou negligente, criar um risco não permitido que origine uma ofensa ao corpo e à saúde de um animal não pode deixar de ser responsabilizado penalmente pela sua conduta, tendo neste âmbito que, necessariamente, intervir o direito penal, com base no seu ius puniendi.
37. Nesse sentido estabelece o artigo 388º do Código Penal que quem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias (nº 1 desse artigo).
38. Acrescentado o seu nº 2 que se dos factos previstos no nº 1 desse mesmo artigo resultar perigo para a vida do animal - o que no caso presente até resultou na morte do FF - o limite da pena aí referida é agravado em um terço.
39. Para o despacho recorrido, um médico veterinário não pode praticar o crime de abandono de animais de companhia, porque, erroneamente, considera que “Trata-se de crime específico próprio, já que o agente do crime só poderá ser aquele que, por qualquer título, tem o dever de guardar, vigiar ou assistir o animal de companhia. Assim, tanto pode tratar-se do seu “dono”, como quem, ainda que apenas provisoria ou temporariamente tenha a guarda do animal (um treinador, um tratador, alguém a quem o dono confiou o animal, para dele cuidar na sua ausência, etc.)” (negrito e sublinhados nossos).
40. O despacho recorrido afasta a possibilidade da prática do crime de abandono de animais pelo médico veterinário por, expressamente, não o ter sido referido como potencial agente desse crime, conforme consta no terceiro parágrafo da página 13.
41. Também o despacho recorrido refere, erroneamente, no quarto parágrafo da página que “…declarações prestadas pela arguida em sede de instrução, corroboradas pelo teor da prova documental junta aos autos em sede de instrução, bem como corroboradas pelo teor do relatório de necrópsia do gato FF junto aos autos a fls. 60 e 61, tudo leva a concluir que a arguida efectuou um correcto diagnóstico (tanto mais que foi corroborado pelo médico veterinário Dr. HH), que o tratamento ministrado ao gato foi o adequado face à idade avançada do mesmo (veja-se toda a medicação ministrada ao gato e supra referida), pois não pode este Tribunal olvidar que o mesmo contava já com quase 17 anos.”
42. Tal conclusão só poderia ser admitida, pelo desvio da realidade factual por falsa representação da mesma, nomeadamente, porque:
a) a prova documental junto aos autos, nomeadamente o relatório de fls.9, verso, que coloca em causa tanto o diagnóstico como o tratamento que estava a ser efetuado ao FF, pela arguida.
b) Esse relatório serviu, para num primeiro momento, afastar da instrução o depoimento da Dra. DD e sobre o qual a decisão recorrida acabou, por a final, não proferir uma palavra, sequer;
c) O relatório da necrópsia indica que esta foi efetuada em ... de ... de 2023;
d) Na fatura enviada à assistente consta que a cremação foi feita ou antes do dia ..., ou no próprio dia ... de ... de 2024, a avaliar pela data impressa nessa fatura.
e) O Dr. HH não corroborou o diagnóstico efetuado pela arguida, porque nem sequer foi ouvido em sede de instrução.
f) A essa conclusão bastaram as declarações da arguida, cujo depoimento deveria ter sido objeto de alguma reserva, por não ter sido corroborado por nenhum outro médico veterinário que a arguida nem sequer arrolou.
43. Diz ainda, a decisão recorrida, erroneamente, no terceiro parágrafo da página 16 “Ademais, não se pode igualmente olvidar que também a Ordem dos Médicos Veterinários considerou não existir motivo para abertura de procedimento disciplinar contra a arguida, tendo procedido ao arquivamento imediato da reclamação apresentada por Mónica Mendes. Ou seja, igualmente a Ordem dos Médicos Veterinários considerou que não existiam quaisquer fundamentos válidos na queixa apresentada, ou seja, considerou que a médica veterinária prestou todos os cuidados ao animal.”
44. Tal conclusão só poderia ser admitida, pelo desvio da realidade factual por falsa representação da mesma, nomeadamente, porque:
a) A decisão recorrida confunde processo disciplinar com processo crime, porque pode existir processo disciplinar sem processo crime e vice-versa;
b) Ao ter arquivado de imediato a reclamação apresentada pela arguida resulta, evidentemente, que não foram efetuadas, pela Ordem dos Médicos Veterinários, quaisquer diligências para apurar a responsabilidade disciplinar da arguida;
c) Se não foram feitas quaisquer diligências, como também resulta do entendimento da arguida, como do próprio Tribunal que entre o minuto 00:31:20 e o minuto 00:41:43 do ficheiro 20250115112256_95342_4462833, suprarreferido, concluiu que esse processo foi logo arquivado, à cabeça, por assim dizer, não poderia o despacho recorrido ter referido e prestado “vénia” a uma decisão da Ordem dos Médicos Veterinários que sobre o caso não procedeu a quaisquer diligências disciplinares, muito menos diligências de ordem criminal.
45. Concede ainda o despacho recorrido (quarto parágrafo da página 16) extrema importância à informação que foi prestada à Ordem dos Médicos Veterinários pelo Diretor Clínico do Centro..., que refere “as decisões clínicas referentes ao caso nunca foram tomadas exclusivamente pela Drª GG ou o Dr. HH, mas sim pela junta médica que é realizada todos os dias em relação a todos os pacientes internados no ...”. Ou seja, todas as decisões relativas ao gato FF, no que concerne, a diagnósticos, tratamentos a ministrar, cuidados a prestar, foram sempre decididos pela junta médica.”
46. A importância atribuída a essa informação só poderia ser admitida pelo despacho recorrido pelo desvio da realidade factual, por falsa representação da mesma que não se apercebeu, de todo, da divergência de datas entre a realização da necrópsia e a cremação do FF.
47. A divergência dessas datas deveria ter sido objeto de apuramento, caso o despacho recorrido tivesse efetuado uma correta apreciação dos factos, tanto dos factos invocados pelas duas únicas pessoas ouvidas em sede de instrução, como por toda a documentação existente no processo, sendo que uma dessa documentação serviu de fundamento para afastar da instrução a inquirição da Dra. DD.
48. Da divergência de datas entre a data da cremação e da realização da necrópsia, resulta, sem sombra de dúvidas, que o ... não efetuou nenhuma necrópsia ao FF.
49. Mais, o Centro... parece ter falseado documentos neste processo.
50. Assim, a informação prestada pelo Diretor Clínico do Centro... à Ordem dos Médicos Veterinários, não deveria ter sido dado a extrema importância que o despacho recorrido acabou por lhe dar.
51. Nem existe nada no processo que justifique porque razão a arguida tenha deixado de prestar serviço no Hospital....
52. Pois foi a assistente, através de diligências efetuadas, que ficou conhecedora do paradeiro da arguida que agora presta serviço ..., onde acabou por ser constituída arguida, através de requerimento enviado ao processo em ... de ... de 2024, com o nº de entrada 245252 e referência 50820277.
53. O despacho recorrido incorreu em erro de julgamento, na análise dos factos e das provas existentes no processo, suficientemente incriminadores de a arguida ter praticado o crime de abandono de animais de companhia previsto e punido pelo artigo 388º do CP.
54. Na verdade, diz, expressamente, o nº 1 desse artigo 388º: “Quem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias. (sublinhados nossos).”
55. Para o nº 2 desse mesmo artigo 388º acrescentar: “Se dos factos previstos no número anterior resultar perigo para a vida do animal, o limite da pena aí referida é agravado em um terço.”
56. A má prestação de cuidados médico-veterinários que eram devidos ao FF, pela arguida, é fundamento suficiente para que esta seja levada a julgamento para aí se apurar, ou não, a prática desse crime.
57. A forma como decorreram, tanto o testemunho da assistente, como as declarações da arguida, parecem demonstrar que o despacho recorrido considerou que talvez tenha sido a assistente que praticou um crime, por ter apresentado queixa, nomeadamente:
a) Pela forma ríspida como a assistente foi interrogada;
b) Pela forma coloquial e simpática como a arguida foi interrogada.
58. A instrução constitui uma fase processual autónoma, de carácter facultativo, que visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar tomada no final do inquérito.
59. Quando incide sobre o despacho de arquivamento, a instrução constitui um instrumento colocado nas mãos do assistente para tutela do seu interesse no prosseguimento do processo, com vista à submissão do arguido a julgamento, interesse que radica, afinal, na garantia constitucional de acesso ao direito e à justiça, conforme previsto no artigo 20º, nº 1, da Constituição (vg. acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 19 de fevereiro de 2020, no processo 72/18.1TRCBR.S1, disponível em www.dgsi.pt).
60. No caso sub judice, a instrução visava discutir a decisão de arquivamento, apenas no que respeita ao juízo do MP de considerar que os factos denunciados pela assistente não constituem ilícito criminal.
61. Razão pela qual o despacho de não pronúncia da arguida não deve ser considerado justo, nem merecedor de continuar na ordem jurídica ao não ter fundamentado, convenientemente, a decisão proferida pelo Ministério Público de não levar a arguida a julgamento.
62. Decorre do despacho recorrido que o FF estava condenado a morrer devido à sua idade avançada, pouco importando se a arguida cuidou devidamente da sua saúde, conforme se pode constatar nas declarações, tanto da arguida, como do Ministério Público, no ficheiro 20250115112256_95342_4462833, gravadas entre o minuto 00:35:18 e o minuto 00:39:43.
Termos em que se requer a decisão instrutória proferida pelo Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa de não pronúncia da arguida pela prática do crime de abandono de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 388º do Código Penal seja anulada por:
a. Erro de julgamento;
b. Por omissão de pronúncia, sobre o documento a fls. 9, verso, dos autos, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 379º do CPP;
c. Violação do artigo 20º do Regulamento 730/2021 de 5 de agosto, publicado no Diário da República, 2ª série;
d. Violação do artigo 308º do CPP por, tanto no inquérito, como na instrução, terem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança;
Mais se requerendo que em substituição do despacho de não pronúncia, seja proferido acórdão que pronuncie a arguida, pela prática do crime de abandono de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 388º do Código Penal.
*
O recurso foi admitido por despacho proferido a ... de ... de 2025, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Pelo Ministério Público e pela arguida foram apresentadas respostas, terminando-as as seguintes conclusões (transcrição):
(Arguida)
1. O presente recurso incide sobre a impugnação da decisão que determinou a não pronúncia da arguida pela prática do crime de abandono de animais de companhia, previsto e punível pelo artigo 388.º do CPP.
2. A fundamentação do recurso interposto pela Recorrente baseia-se em meras alegações desprovidas de sustentação fática ou jurídica, contrariando a prova documental e testemunhal constante dos autos.
3. A análise minuciosa dos elementos probatórios demonstra que a arguida não teve qualquer intervenção no segundo internamento do gato “FF”, não podendo, por isso, ser responsabilizada pelo seu estado clínico à data da sua readmissão no Hospital....
4. O despacho recorrido encontra-se devidamente fundamentado, não padecendo de qualquer erro de julgamento, tendo sido apreciada a totalidade da prova produzida em sede de inquérito e instrução.
5. Não se verifica qualquer erro de julgamento, uma vez que o Tribunal a quo avaliou corretamente a prova disponível, nomeadamente o depoimento da Professora II e o relatório subscrito pela Dra. DD, o qual, aliás, não constitui prova pericial nem apresenta fundamentação técnica suficiente para sustentar as alegações da Recorrente.
6. A testemunha Professora II, especialista na área, refutou as conclusões do relatório, apontando falhas metodológicas e reforçando que a atuação da arguida esteve dentro dos parâmetros médicos aceitáveis. Este depoimento tem especial relevância, pois foi prestado por uma profissional com competência reconhecida na área.
7. O relatório elaborado pela Dra. DD não tem validade técnica suficiente para sustentar uma acusação contra a arguida. O documento apresenta inconsistências, não segue o rigor exigido a um exame pericial e não teve em consideração elementos essenciais, como o histórico clínico completo do animal e os tratamentos realizados.
8. O relatório da Dra. DD não inclui qualquer exame diagnóstico complementar, baseando-se apenas numa avaliação clínica de caráter observacional. Além disso, o próprio documento menciona a possibilidade de uma pancreatite, utilizando a expressão: “Poderá estar a fazer uma pancreatite ou um agravamento do quadro que tinha há 3 semanas atrás.”, o que não constitui um diagnóstico conclusivo.
9. Além disso, a necropsia realizada no gato “FF” não identificou qualquer sinal de pancreatite. Pelo contrário, confirmou a presença de patologias renais crónicas, que já haviam sido diagnosticadas e acompanhadas pela arguida durante o período de internamento do animal.
10. É também importante ter em conta que, no momento da alta do “FF” após o primeiro internamento, a arguida aconselhou a Recorrente a regressar à consulta no prazo de uma semana ou antes, caso ocorresse alguma alteração no estado clínico do animal, para que pudesse ser realizada uma nova avaliação, conforme consta no seu relatório junto aos autos.
11. A evolução clínica do animal não pode ser atribuída a qualquer ação ou omissão da arguida, mas antes à gravidade do seu estado de saúde e à possível falta de continuidade nos cuidados após a alta. A documentação médica sugere que o agravamento das condições do gato pode ter resultado de fatores externos que não estão sob a responsabilidade da arguida, incluindo o incumprimento de recomendações médicas por parte da Recorrente.
12. A arguida, na qualidade de Médica Veterinária, adotou todos os procedimentos clínicos adequados e prestou os devidos cuidados de saúde ao animal, conforme as boas práticas da medicina veterinária, inexistindo qualquer comportamento que se possa qualificar como abandono.
13. Pelo contrário, verifica-se que a própria Recorrente desconsiderou as recomendações médicas fornecidas aquando da alta do primeiro internamento do “FF”, sendo esta a única responsável pela deterioração do estado de saúde do animal durante o período em que esteve ao seu cuidado.
14. A insistência da Recorrente em imputar responsabilidades à arguida configura uma tentativa de transferir para terceiros a sua própria omissão no acompanhamento do “FF”, o que não pode ter acolhimento nos presentes autos.
15. Não existe qualquer indício de abandono por parte da arguida, que, enquanto Médica Veterinária, prestou os cuidados necessários ao gato “FF”, tendo o seu diagnóstico sido confirmado pela necropsia.
16. A alegação da Recorrente relativa às datas da necropsia e da cremação resulta de uma errada interpretação dos documentos administrativos, não afetando a validade dos procedimentos clínicos adotados.
17. As alegações da Recorrente, quanto às discrepâncias das datas relacionadas com a necropsia e a cremação do animal, são irrelevantes para a descoberta da verdade material e não comprometem, de forma alguma, a licitude da atuação da arguida.
18. A jurisprudência tem reafirmado que a decisão de não pronúncia só pode ser revogada caso se demonstre, de forma clara e inequívoca, a existência de indícios suficientes da prática do crime. No caso em apreço, a inexistência de tais indícios impõe a manutenção do despacho recorrido, sob pena de violação do princípio da presunção de inocência e do direito a um processo justo e equitativo.
19. O entendimento do tribunal a quo está em consonância com a jurisprudência dos tribunais superiores, que têm sido consistentes ao afastar a imputação de responsabilidade penal a médicos veterinários por atos administrativos alheios à sua competência, nomeadamente:
a) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de março de 2023, no processo 273/19.5GCVFR.P1, que estabeleceu que o crime de abandono de animais de companhia exige a demonstração de uma omissão grave de deveres de assistência, o que não se verifica no presente caso.
b) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 5 de junho de 2021, no processo 190/20.6T9SEI.C1, que distinguiu entre negligência na prestação de cuidados veterinários e o verdadeiro abandono, enfatizando que um erro clínico, ainda que existisse (o que não se verifica no caso concreto), não é suficiente para configurar o crime de abandono previsto no artigo 388.º do Código Penal.
20. O Tribunal a quo, ao considerar que não existiam indícios suficientes para proferir despacho de pronúncia, agiu em consonância com o princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa. A inexistência de prova suficiente para sustentar uma condenação impõe, desde logo, a decisão de não levar a arguida a julgamento.
21. A decisão de não pronúncia baseou-se na falta de indícios suficientes que sustentem uma acusação, sendo que os factos apurados não permitem estabelecer uma relação de causa e efeito entre a conduta da arguida e o alegado sofrimento do animal.
22. A ausência de elementos probatórios que demonstrem a existência de dolo ou negligência grave reforça a inexistência de crime, pois, nos termos do artigo 14.º do Código Penal, a responsabilidade criminal exige a demonstração de uma atuação intencional ou culposa, o que manifestamente não ocorre no presente caso.
23. Assim, a decisão de não pronúncia é a única juridicamente sustentável, pois inexiste qualquer ato que configure abandono de animal de companhia nos termos do artigo 388.º do CP.
24. O recurso apresentado pela Recorrente não introduziu qualquer elemento novo que justifique a revisão da decisão. Pelo contrário, insiste em interpretações subjetivas que não encontram suporte nos elementos objetivos do processo.
25. Pelo exposto, a decisão recorrida deve ser mantida, pois respeita os princípios da livre apreciação da prova e da legalidade, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal. O Tribunal a quo analisou criticamente os elementos probatórios e concluiu, com base na insuficiência de indícios, que não se justifica a submissão da arguida a julgamento.
TERMOS EM QUE COM O MUI DOUTO PROVIMENTO DE V. EXAS. DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE IMPROCEDENTE, MANTENDO-SE NA INTEGRA A DECISÃO RECORRIDA.
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA.
(Ministério Público)
i. O presente recurso circunscreve-se ao entendimento que a douta decisão recorrida padece de erro de julgamento; de omissão de pronúncia; que não atendeu ao artigo 20º do Regulamento 730/2021 de 05 de Agosto e que violou o art. 308º do CPP., entendendo que existiam em inquérito e persistiram na instrução indícios suficientes da prática do crime pela arguida, pelo que deveria ter sido proferido despacho de pronúncia quanto a esta.
ii. Entende o Ministério Público não assistir qualquer razão à Recorrente.
iii. O erro de julgamento reporta-se, normalmente, às seguintes situações:
- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto; - ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado; - prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo; - prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova; - e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.
iv. A diferente valoração da prova não se confunde com o erro de julgamento ou com qualquer dos vícios do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal
v. Tal vício, não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida e esta apreciação diverge daquela que teria sido a da própria recorrente.
vi. O que a recorrente afinal impugna é a convicção adquirida pelo Tribunal “a quo” sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos factos ela adquiriu, olvidando o princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127º do Código de ProcessoPenal.
vii. O Tribunal “a quo” motivou e objectivou o seu convencimento expresso na fundamentação de forma inteiramente racionalízável, em que assumiu compreensível e lógica conjugação de indícios, e bem valorou todos os elementos probatórios, com equilibrada ponderação à luz das regras de experiência comum, ainda que no plano meramente indiciário.
viii. Aflgura-se-nos assim improceder o alegado “ano de julgamento”.
ix. A norma invocada pela recorrente (art. 379º nº 1 alínea c) do Cód. Proc. Penal) tem aplicabilidade apenas para as sentenças. Assim, o recurso da decisão instrutória com base em omissão de pronúncia não é admissível – quando muito poderia admitir-se que, a ter havido omissão de pronúncia (o que não se concede), isso configuraria uma irregularidade, e essa não foi oportunamente arguida, pelo que improcede na nossa óptica o fundamento de recurso alegado.
x. Sem conceder, sempre se dirá que o relatório sobre o qual a recorrente alega omissão de pronúncia – no seu teor – é enunciado em 2º§ da página 12 da douta decisão recorrida, pelo que não foi, de todo, olvidado na mesma, ainda que não tenha sido determinante para a indiciação.
xi. Só há prova indiciária suficiente quando os autos contêm indícios precisos, relevantes e concordantes, conduzindo a uma probabilidade qualificada de condenação da arguida em sede de julgamento.
xii. Aderimos quanto à ausência de indícios ao expendido no douto despacho recorrido, abstendo de aqui o reproduzir.
xiii. Apreciando as questões suscitadas pela recorrente, desde logo, não se poderá concluir que se extraia de relatório a fls. 9v. que foi diagnosticada ao gato FF uma pancreatite. O teor do relatório é «(...) Poderá estar a fazer uma pancreatite ou um agravamento do quadro que tinha há 3 semanas atrás.» (sublinhado nosso). Existe assim uma insegurança do diagnóstico que não sustenta a conclusão enunciada no ponto 25., nem assim o que de mais dela decorre (conclusões enunciadas nos pontos 28. e 29.)
xiv. A pretensa divergência quanto às datas de cremação e necrópsia é facilmente arredada pela análise dos elementos dos autos. O documento que refere a rubrica «Consumível Hospital – cremação de cadáver» não é uma fatura, mas um orçamento, como o mesmo indica claramente: «Orçamento n.ºOT 02P2023/609», datado de ........2023 que, se dúvidas subsistissem acerca da sua natureza, ainda assinala a menção «Observações: este documento não serve de fatura» (fls. 14). E era esta natureza do cabal conhecimento da recorrente, cf. Comunicação electrónica junta a fls. 19. Assim, em nada infirma a data da necrópsia (........2023) indicada em relatório a fls. 60.
xv. Com decisiva relevância para a decisão dos autos, a ora recorrente, nas suas declarações em fase de instrução, aludiu aos factos denunciados como «várias negligências». E refere a conclusão 36. que «o médico veterinário que, no âmbito da sua actividade profissional viole, seja a que título for, com culpa dolosa ou negligente, criar um risco não permitido que origine uma ofensa ao corpo e à saúde de um animal não pode deixar de ser responsabilizado penalmente.»
xvi. O crime de abandono de animais de companhia é um crime exclusivamente doloso, sendo admissível o dolo em qualquer das suas modalidades (art.º 14.º C.P.) – desde o dolo eventual ao dolo direto. Reconhecendo que a punição da negligência é, no ordenamento jurídico nacional, excecional, ao abrigo do disposto no art.º 13.º CP., e não se encontrando expressamente prevista a possibilidade comissão do crime de abandono por negligência.
xvii. Vigora o princípio da tipicidade da lei penal.
xviii. Assim, sempre se dirá que, mesmo na versão dos factos pretendida pela recorrente, nunca seriam os mesmos aptos a preencher o tipo de crime de abandono de animal de companhia, p. e p. pelo art. 388º do Código Penal, designadamente quanto ao elemento subjectivo.
xix. Concluindo-se então que não foram violados os preceitos legais invocados pela recorrente, afigurando-se ser o recurso ora em apreço manifestamente improcedente.
xx. Assim, nenhum reparo merece a decisão proferida pela Mmª Juiz de Instrução Criminal a quo.
Nestes termos, deve improceder o presente recurso apresentado pela Assistente e, em consequência ser integralmente mantida a douta decisão recorrida que decidiu pela não pronúncia da arguida GG
com o que farão V. Ex.as a costumada JUSTIÇA!
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, pela Procuradora-Geral Adjunta foi lavrado parecer, no qual concorda e adere inteiramente ao teor da resposta apresentada em primeira instância, pugnando pela improcedência do recurso.
Cumprido o preceituado no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais foi alegado.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419.º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
É do seguinte teor o despacho de não pronúncia recorrido, no que à sua fundamentação concerne (transcrição):
I - RELATÓRIO
Nos presentes autos a assistente BB, requereu a abertura de instrução na sequência da prolação do despacho final de arquivamento (cfr. fls. 63 e ss.) proferido de harmonia com o disposto no art. 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal relativamente ao crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal.
Como fundamentos alegou, em síntese, discordar dos termos do despacho de arquivamento. Alegou que o FF era um felino com traços de raça Bombaim com estimativa de ter cerca de 16 anos de idade (por indicação da médica veterinária onde realizou consulta no dia ... de ... de 2023). Que a veterinária que atendeu o FF no serviço de urgências do ..., Dra. GG, ao constatar que FF tinha um olhar estrábico logo lhe diagnosticou um temor cerebral, sem mais, mas desde a data em que foi encontrado na rua o FF apresentava uma característica num dos olhos em que a pupila estava sempre em forma dilatada e virada sempre para a esquerda (situação que em consulta veterinária lhe teria sido diagnosticada a falta de visão nesse olho e, contrariamente ao diagnóstico efetuado pela Dra. GG, não tinha nenhum temor cerebral.
Mais alegou que o FF andou a ser medicado pela Dra. GG para uma doença da qual não padecia, com medicação, nomeadamente “prednisolona”, altamente prejudicial para problemas renais que eram na verdade os verdadeiros sintomas da doença de que padecia o FF.
Tendo em conta o relatório de necrópsia realizada em ... de ... de 2023, as lesões observadas indicam um quadro moderado a grave de nefrite intersticial crónica, bem como a regurgitação do conteúdo estomacal com aspiração por falso trajeto é muito provavelmente perimortem. Alega que não resulta desse relatório que FF sofria de qualquer temor cerebral tal como diagnosticado pela Dra. GG.
Mais alegou que FF acabou por ter alta no dia ... de ... de 2023, mas sem que a sua doença estivesse tratada ou debelada. Em consulta efetuada pela Dra. DD na ... no dia ... de ... de 2023, foi-lhe diagnosticada uma pancreatite e que isso poderia ter influenciado em todos os valores renais e que ele mostrava dor abdominal ao toque, referindo ainda que a cortisona não estaria a fazer nada e que teria que ser reduzida a dose para poder fazer novas análises, sendo que estando o FF com uma pancreatite não poderia ter tido alta.
Alegou que o FF acabou por falecer devido a um erro no diagnóstico efetuado no Hospital..., pela Dra. GG.
Por fim, considera que o despacho de arquivamento fez errada avaliação do relatório de necrópsia elaborado no dia ... de ... de 2023, bem como fez errada avaliação o relatório elaborado pela Dra. DD, da ....
Concluiu pugnando pela prolação de despacho de pronúncia dos denunciados pela prática do crime de abandono de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 388º do Código Penal.
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Por despacho proferido a fls. 212 e 212/v foi indeferida a abertura de instrução requerida pela assistente, por inadmissibilidade legal, relativamente ao Hospital....
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Por despacho proferido a fls. 212/v, foi declarada aberta a instrução requerida pela assistente relativamente à arguida GG.
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Procedeu-se ao interrogatório judicial da arguida GG.
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A assistente EE prestou declarações.
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Foi junto aos autos documento da decisão da Ordem dos Médicos Veterinários quanto à queixa apresentada pela assistente contra a arguida naquela Ordem dos Médicos Veterinários.
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Procedeu-se à realização do debate instrutório com observância de todos os legais formalismos, conforme consta da acta respectiva.
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Encerrado que está o debate instrutório, cumpre proferir a presente decisão, nos termos do disposto nos artigos 307º, nº 1 e 308º, ambos do Código de Processo Penal.
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II – SANEAMENTO
O Tribunal é competente.
O assistente tem legitimidade para requerer a abertura de instrução e nada obsta a que a arguida seja demandada criminalmente.
Inexistem quaisquer nulidades ou outras excepções de que cumpra, de imediato, conhecer e que impeçam a prolação de decisão instrutória.
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III - FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA E FACTUAL
De harmonia acordo com o disposto no art. 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão final proferida em sede de inquérito (acusação ou arquivamento do inquérito), em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Nesta fase processual, tem-se em vista a formulação de um juízo seguro acerca da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, juízo esse que será de pronúncia ou de não pronúncia, consoante se conclua, respectivamente, pela existência da suficiência ou insuficiência de indícios da prática de factos subsumíveis a um ou mais tipos de ilícito criminal (cfr. art. 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
No juízo que sustente a decisão de não pronúncia, para além da supra referida insuficiência de indícios factuais que suportem a prática de determinado tipo de ilícito criminal, poderão estar igualmente na base motivações de ordem processual que impeçam a prossecução do processo até à fase do julgamento, v.g., a inadmissibilidade legal do procedimento criminal, ou vício de acto processual, com a virtualidade de obstar prosseguimento do conhecimento do mérito da acção penal.
No que respeita ao despacho de pronúncia, muito embora não se dê por demonstrada a realidade dos factos, terá forçosamente de existir a convicção de que é mais provável que determinado agente tenha cometido um ou mais crimes e de que, submetido a julgamento, exista maior probabilidade de condenação, ao invés, da sua absolvição.
Destarte, o juízo de pronúncia não se consubstancia na certeza judiciária da verificação dos factos, com a consequente condenação de determinado agente, mas antes num juízo de prognose favorável de que tal condenação virá, muito provavelmente, a ocorrer após a realização de julgamento.
Tal juízo de prognose favorável à existência de uma condenação, terá sempre de integrar o núcleo irredutível da decisão instrutória, sem o qual, a submissão de determinada pessoa a julgamento seria atentatória da sua dignidade (cfr. art. 27.º da Constituição da República Portuguesa), uma vez que tal submissão não se apresenta, de todo em todo, como um acto inócuo na esfera jurídica do sujeito processual visado.
Fixadas as orientações que, de acordo com Constituição e a Lei, deverão estar na base da prolação da decisão instrutória, importa neste momento apurar, se em face de todos os elementos constantes dos autos, os quais se consubstanciam na prova concretamente recolhida até ao momento, em que se inclui a que foi produzida na presente fase processual de instrução, se indicia suficientemente a prática pela arguida dos factos que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução ou se, ao invés, se mantém o juízo indiciário plasmado no despacho de arquivamento de fls. 63 e ss dos autos.
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Cumpre, desde logo, referir a prova produzida em sede de instrução:
A assistente prestou declarações, tendo referido em suma que o seu gato tinha cerca 15 ou 16 anos e nos fins de ... começou a ficar doente, começou a comer menos e a beber mais água, sendo que ele já tinha tido episódios de fígado. Que no fim de semana deu-lhe alimento húmido gourmet que lhe tinha sido aconselhado por uma veterinária e ele comeu bem, mas depois vomitou.
Frisou que na 2f foi à consulta do veterinário e disseram que ele estava um pouco desidratado e aconselharam a ir ao hospital para fazer exames, pelo que foi ao Hospital..., tendo sido atendida pela Dra. JJ, que levou o gato para dentro para fazer exames e disseram-lhe para ir para casa pois ia demorar. Referiu que foi para casa e ligou à noite.
Mais mencionou que no dia seguinte recebeu um telefonema sobre o estado do seu gato, era a Dra. GG e disse-lhe para pensar em eutanásia, porque era um gato velho e tinha insuficiência renal e uma massa no cérebro, pelo que lhe perguntou se tinham feito exames e responderam-lhe que fizeram exames de forma externa e que pelo olhar verificaram que o gato tinha essa massa no cérebro, sendo que respondeu que não podia ser, pois o gato era estrábico.
Referiu que falaram em fazer uma ressonância e TAC ao gato, mas disseram que não poderiam fazer, porque o gato teria de ser anestesiado e não estava em condições físicas de fazer, pelo que o gato teria que continuar a fazer soro para ver se o sódio baixava, tendo o gato continuado internado.
Explicou que lhe ligavam sempre de manhã do Hospital... para dar conta da situação e que ela fazia a visita à tarde, mas houve um dia que não foi e que à noite ligava também para saber.
Mais mencionou que no dia seguinte não ligaram, pelo que ligou para saber do gato e atendeu a arguida e disse que a eutanásia era o melhor e falou do estrabismo, pelo que voltou a insistir na realização da ressonância e TAC, sendo que disseram que o gato não estava com condições físicas para fazer esses exames e disseram que o ideal era dar cortisona, pelo que deu autorização para dar cortisona para baixar os níveis do sódio.
Referiu que no dia seguinte baixou os níveis e a Dra. GG disse que o animal ia tomar cortisona para o resto da vida e que podia ir buscar o gato que tinha alta, que ele ia morrer e ia, pelo que mais valia morrer em casa. Frisou que insistiu pela realização dos exames e a Dra. GG disse que os exames não eram realizados ali, pelo que disse à Dra. que não ia buscar naquele dia (6f) e que o gato ficava lá no hospital no fim-de-semana. Que foi visitar o gato no sábado, mas não foi no domingo e parecia que ele estava cada vez pior, pois tinha os olhos dilatados, escorria água pelos olhos, mas na 2f foi buscá-lo e o gato estava pior e saiu com uma conjuntivite e disseram-lhe que só quando recuperasse é que podia fazer os outros exames.
Explicou que em casa foi dando a cortisona e ele começou a comer, mas o gato tinha a língua de lado e a conjuntivite piorou e levou-o a outra medica e mostrou-lhe os exames e ela analisou-os e fez a apalpação ao gato e disse que o mesmo tinha uma pancreatite e achou que a cortisona estaria a piorar os rins e disse que a medicação que estavam a dar era para animais com epilepsia e disse que ele nunca devia ter saído do hospital e disse que ele deveria voltar para o hospital e passou-lhe um relatório.
Frisou que levou o gato de novo para o hospital... e ficou internado, tendo sido recebida pelo Dr. KK e ele voltou da massa no cérebro.
Mais mencionou que o gato ficou internado e o médico disse que estava muito pior.
Referiu que 48 h depois, à noite, o médico ligou a dizer que o gato tinha falecido, sendo que pediu para fazerem necropsia e pediu os relatórios médicos.
Frisou que considera que houve várias negligencias: deram-lhe medicação para epilepsia; diagnosticaram uma massa no cérebro dizendo que ele tinha um olhar estrábico, mas ele tinha era um problema no pâncreas; “meteram o gato no forno” e não fizeram a necropse.
A arguida AA prestou declarações em sede de instrução, tendo referido, em suma, que a ... era docente da faculdade de medicina veterinária da universidade lusófona e era coordenadora da secção do internamento. Explicou que apenas no dia ... é que tomeu conhecimento do internamento do gato FF, sendo que ele deu entrada através de um protocolo de colaboração solidária.
Referiu que o gato deu entrada nas urgências do hospital veterinário na ..., tendo sido atendido pela sua colega JJ, com a indicação de que estava a comer mal há uma semana, a cambalear, a andar descoordenado, hipotérmico de 33 graus (o normal é 38), extremamente magro, desidratado e comatoso (em coma, não responde a estímulos a não a estímulos incomodativos). Que o gato efectuou análises e foi diagnosticado com lesão renal (inicialmente)
Frisou que ao meu exame físico e neurológico, e que foi confirmado pelo especialista da neurologia, ele tinha défices propriacetivos, mioclenias (tremores musculares), o olho esquerdo não tinha resposta com o pilar á luz (o olho bom e não o estrábico).
Afirmou que nesse dia quem falou com a tutora ao telefone não fui ela, foi outra colega e foi dito que iriam aguardar mais 24h.
Mais adiantou que no dia 22 (4f) o gato já se encontrava mais hidratado e com uma temperatura mais normal, mas continuava com as alterações neurológicas e a localização mais provável era o tronco cerebral.
Referiu que explicou à tutora que para detectarem com certeza absoluta a massa do tronco cerebral o que aconselhava seria a ressonância porque é o método que com mais exactidão detectaria massas mais pequenas visto que o ... pode não detectar as mais pequenas, sendo que a tutora questionou quando podiam ser feitos, tendo-lhe respondido que não havia segurança anestésica porque o animal não estava em condições físicas, pelo que o animal teria de estabilizar.
Mais adiantou que o gato continuou a fazer a medicação: soro (fluidoterapi), medicação para prevenir náusea e vomito, Levetiracetam – para alterações neurológicas deve receber esse medicamento, como neuroprotector (estado semicomatoso).
Referiu que na 5f voltaram a falar e a tutora voltou a falar no TAC e na ressonância, mas referiu-lhe que o gato estava no mesmo estado e que mesmo que que quisesse fazer aqueles exames teria que os fazer fora do hospital veterinário, tendo a tutora dito que por razões económicas não conseguiria fazer fora, pelo que aí lhe falou na possibilidade da toma da cortisona visto da impossibilidade do recurso à imagiologia e nesse momento a tutora deu indicações para avançar com a medicação.
Explicou que o gato começou a toma da cortisona e na 6f ele começou a andar e a comer e os valores de sódio começaram a baixar. Que ligou à tutora e recomendou a alta.
Afirmou de forma peremptória que nunca disse à tutora que se era para morrer que morresse em casa.
Mais adiantou que lhes dizem as guide lines que os animais em idade geriátrica que devem estar o máximo com os seus donos e no seu ambiente e como o gato já estava a andar e a comer, a recomendação seria estar com a dona, mas a tutora achou que não, pelo que protelaram a alta.
Frisou que na 2f voltaram a falar com a tutora e o gato teve alta na 2f a comer e a caminhar. Que o gato estava magro, mas não estava com a língua nem de fora, nem de lado, nem a lacrimejar. Mencionou que o gato saiu com a indicação escrita de tomar a cortisona e de regressar uma semana depois para controlo, contudo a tutora não voltou com o gato passado uma semana.
Mencionou que a tutora voltou com o gato 15 dias depois hipotérmico, não responsivo, igual como tinha vindo a primeira vez, mas já não foi ela que o recebeu, mas sim outro médico veterinário na urgência, o Dr. KK.
Referiu que sabe que o caso foi discutido em junta médica e a eutanásia foi aconselhada e a tutora não aceitou. Referiu que o animal acabou por falecer.
Mencionou que neste segundo internamento o caso não era seu.
Explicou que a tutora pediu a necropsia e o animal seguiu para outro edifício da faculdade e foi efectuada.
Mais referiu que a necropsia é gratuita ao abrigo do protocolo pelo qual o gato foi assistido no hospital.
Referiu que a tutora enviou uma queixa à ordem dos médicos veterinários mas a queixa foi logo arquivada.
Mais referiu que o gato tinha um problema renal grave e crónico, mas, entretanto, apura-se que ele tem um problema neurológico, que tinha um problema neurológico que não tinha cura. Perguntado à arguida se um gato com 16 anos com este quadro clínico tem uma prespectiva de vida grande? Foi respondido que não. Só com doença renal crónica e com 16 anos e no estado em que entrou da segunda vez, tem uma esperança de vida de semanas.
Afirmou de forma peremptória que o que poderia ter sido feito pelo gato em internamento foi feito.
Foi igualmente junto aos autos pela arguida, em sede de instrução, um documento: decisão da Ordem dos Médicos Veterinários quanto à queixa apresentada pela assistente contra a arguida naquela Ordem dos Médicos Veterinários.
Ora, de acordo com tal documento, verifica-se que a Ordem dos Médicos Veterinários considerou não existir motivo para abertura de procedimento disciplinar contra a arguida, tendo procedido ao arquivamento imediato da reclamação apresentada por Mónica Mendes. E tomou tal decisão com base na informação que lhe foi prestada pelo Director Clínico do ..., segundo a qual:
“(…)
O FF, gato macho com cerca de 17 anos, deu entrada no Hospital... no dia ... de ... de 2023. pela primeira vez, por referência para investigação e internamento dada a debilidade do quadro. Seguindo o protocolo, foi feita uma triagem no local de recepção de transferências de casos não passando pelos consultórios tradicionais por uma questão de biossegurança.
À entrada a Srª EE reportou hiporexia há uma semana que evoluiu para um quadro de anorexia.
No exame físico inicial o paciente apresentava-se não ambulatório, comatoso, caquetico com condição corporal 2/9, com desidratação de 10%, e hipotermia de 33ºC.
Analiticamente o FF apresentava:
- Hipernatrémia e hiperclorémia severa;
- Acidémia por acidose metabólica e respiratória primarias;
- Alterações compatíveis com lesão renal crónica com agudização:
- Leucocitose por neutrofilia e monocitose.
(…)
Após estabilização o paciente ainda apresentava: ataxia, défices proprioceptivos, mioclonias e obnubilação tendo sido realizado exame neurológico onde o principal diagnóstico diferencial seria lesão a nível do tronco cerebral.
Desde início foi informado à senhora EE que o FF tinha mau prognóstico e quais eram as indicações para estes casos segundo as guidelines da “AAHA: end of life care”.
Também foi informado que caso pretendesse obter um diagnóstico definitivo para a suspeita de lesão a nível de tronco cerebral que o indicado seria ressonância magnética, contudo o paciente não estava em condições de ser submetido a uma anestesia.
Após a tutora ter sido devidamente informada dos riscos e benefícios de iniciar a administração de cortisona, esta foi iniciada, tendo o FF melhorado substancialmente do quadro neurológico ainda antes da normalização dos valores de sódio, o que reforçou a atribuição do quadro a lesão estrutural do tronco cerebral e não à hipernatremia associada a diabetes insípidus por doença renal grave.
Após 07 dias o paciente manteve-se estável e teve alta com níveis de sódio normais e foi recomendado que ao fim de uma semana realizasse controlo analítico. Contudo nunca veio para controlo no ....
Apesar do descontentamento relatado nesta queixa por parte da Srª EE, é com alguma perplexidade que a vimos recorrer aos nossos serviços no dia ... de ... de 2023 com o FF novamente lateralizado e comatoso estando a Srª EE num claro sinal de não “compliance” e sem aparente noção da gravidade do quadro. Voltou-se a reforçar que o quadro do FF era incompatível com a vida e o mau prognóstico. No dia 16 o FF faleceu. A senhora EE pretendia ter os relatórios médicos e de necropsia durante o fim de semana que não é compatível com o horário do hospital.
Todas as análises realizadas durante o internamento foram sempre feitas com aval da senhora EE. sendo que grande parte delas foram mesmo realizadas a pedido da mesma.
Todas as decisões clínicas referentes ao caso nunca foram tomadas exclusivamente pela Drª GG ou o Dr. HH, mas sim pela junta médica que é realizada todos os dias em relação a todos os pacientes internados no Hospital....
Quanto à comunicação lamentamos desde já o desagrado, tentamos sempre que possível centralizar a comunicação no mesmo médico veterinário. contudo sendo um hospital escolar com turnos rotativos nem sempre conseguimos cumprir esse pressuposto.
Por vir através de uma associação a necrópsia requisitada pela senhora EE, foi inserida em contexto de aula e não foi cobrada e por isso não consta no orçamento apresentado, contudo após a necropsia o corpo continua a ter que ser devidamente processado daí ter sido cobrado o valor referente à cremação.
Na presente data o relatório de necrópsia já foi entregue à tutora. Apesar de várias liquidações em falta de pagamentos referentes aos dois internamentos, seguindo os nossos princípios e forma de trabalhar, o FF não foi privado de qualquer procedimento considerado necessário.
O relatório de necrópsia confirma as conclusões e suspeitas apresentadas nesta resposta.
(…)”
Esta foi a prova produzida em sede de instrução.
Já quanto à prova produzida em sede de inquérito:
O inquérito iniciou-se com a denúncia feita pela denunciante/assistente EE contra o ..., a dar nota de “negligência médica veterinária que levou ao óbito” (sic) do animal de raça felina (gato) propriedade da denunciante e a não realização de necropsia solicitada.
Em sede de inquérito a denunciante/assistente relatou de forma circunstanciada tudo o que se passou nos dias que antecederam o óbito do seu gato, o qual foi levado ao Hospital denunciado em virtude do felino “estar a comer menos e a ingerir bastante água e a urinar mais vezes que o habitual, por vezes apresentava enjoos e vómitos, e nitidamente nessa semana começou a emagrecer, piorando nesse fim de semana apresentando algum tipo de dor ao locomover-se” (sic), o que é compatível com a informação constante do relatório médico datado de .../.../2023 junto aos autos a fls. 16, do qual resulta que o animal deu entrada na urgência no dia .../.../2023 por hiporexia/anorexia, prostração, hipotensão e ataxia, com diagnóstico de doença renal crónica e lesão do tronco cerebral.
Do mesmo relatório resulta que o gato teve alta no dia .../.../2023 “com prednisolona e indicação de realizar ressonância magnética quando possível, bom como realizar controlo dos valores renais uma semana após a alta”.
O gato deu entrada novamente no Hospital no dia .../.../2023 por náusea, hiporexia/anorexia e prostração há cerca de 3 dias, com quadro clínico de agravamento das patologias evidenciadas à data do primeiro internamento.
O gato tinha sido levado, no dia anterior, a uma consulta noutro consultório, conforme relatório de fls. 9 verso, do qual consta, para além do mais, que o gato apresentava dor à palpação abdominal, perda de apetite, alguma desidratação e conjuntivite.
O gato acabou por falecer no dia .../.../2023.
A fls. 51 foi inquirida como testemunha CC, legal representante do denunciado ..., que referiu que o gato chegou ao Hospital com um quadro clínico degradado, devido à idade, tendo sido efectuados todos os tratamentos e exames possíveis. Referiu que o felino foi para casa da dona, não tendo esta vindo aos controlos de rotina, conforme lhe tinha sido indicado. Posteriormente o felino deu novamente entrada na universidade, onde acabou por falecer. Relativamente à necrópsia solicitada pela lesada, foi a mesma informada que a operação demora no mínimo cerca de seis meses, tendo já sido entregue à lesada. Devido à idade do gato, 17 anos, não era possível prolongar por mais tempo a vida deste.
A fls. 60 e 61 mostra-se junto o relatório de necrópsia do gato FF. Das conclusões do referido relatório consta:
“As lesões observadas indicam um quadro moderado a grave de nefrite intersticial crónica.
A regurgitação do conteúdo estomacal com aspiração por falso trajecto é muito provavelmente perimortem.
Embora não se tenham observado lesões macroscópicas ao nível do Sistema Nervoso Central as mesmas não podem ser descartadas. O facto do animal estar em fase avançada de autólise impossibilitou obter respostas por histopatologia.”
Face a todo o supra exposto, importa então subsumir tal dinâmica factual aos elementos do tipo de ilícito criminal pelo qual a assistente pretende a pronúncia da arguida GG.
Vejamos pois:
O Artigo 388º do Código Penal, sob a epígrafe “Abandono de Animais de Companhia” prescreve que:
“Quem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou com muito até 60 dias”.
Trata-se de crime específico próprio, já que o agente do crime só poderá ser aquele que, por qualquer título, tem o dever de guardar, vigiar ou assistir o animal de companhia. Assim, tanto pode tratar-se do seu “dono”, como quem, ainda que apenas provisoria ou temporariamente tenha a guarda do animal (um treinador, um tratador, alguém a quem o dono confiou o animal, para dele cuidar na sua ausência, etc.).
À semelhança do que acontece com o crime de maus tratos, não está prevista a responsabilidade criminal das pessoas colectivas. Trata-se de crime de perigo concreto cumulativo (na medida em que têm que se verificar cumulativamente os dois perigos enunciados na norma) e de resultado, consumando-se o ilícito com a efectiva colocação em perigo para a alimentação e prestação de cuidados devidos ao animal. Vale isto por dizer que o referido crime não se basta com o mero abandono do animal de companhia, o qual pode representar um mero acto de execução integrante da tentativa (que, no caso, não é punível, por força do disposto no artigo 23.º, do Código Penal).
É um crime de omissão pura ou própria, já que a conduta típica se traduz numa omissão, num non faccere, numa acção que era devida e foi omitida – a prestação de alimentação e de demais cuidados devidos ao animal – por quem tinha, sobre ele, o dever de garante – de o guardar, vigiar e assistir.
Quanto ao tipo subjectivo é um crime exclusivamente doloso, sendo admitida qualquer uma das modalidades do dolo.
São elementos objectivos do tipo:
a) O dever de garante do detentor, possuidor ou dono do animal de companhia, relativamente à vida, integridade ... e bem-estar daquele;
b) O abandono do animal que o agente deveria proteger,
c) O perigo que assim é criado, para a sua alimentação e demais os cuidados que lhe são devidos.
Diferentemente do previsto na norma em análise, o artigo 6.ºA, do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, considera abandono de animal de companhia “a não prestação de cuidados no alojamento, bem como a sua remoção efectuada pelos seus detentores para fora do domicílio ou dos locais onde costumam estar mantidos, com vista a pôr termo à sua detenção, sem que procedam à sua transmissão para a guarda e responsabilidade de outras pessoas, das autarquias locais ou das sociedades zoófilas”.
Tal norma é mais clara que a norma do Código Penal, já que concebe uma definição de abandono, tendo um âmbito de aplicação mais alargado do que aquela, na medida em que não exige a criação de qualquer tipo de perigo para o animal.
No dever de alimentação inclui-se, obviamente, o de abeberamento. E quer num quer noutro, há-de fazer apelo às regras impostas pelo artigo 12.º, do diploma citado.
Já nos cuidados devidos incluem-se as condições de alojamento (v.g. condições de temperatura, ventilação luminosidade, que vêm regulados nos artigos 8.º, 9.º e 15.º, do mencionado Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro), higiene e cuidados de saúde, nos quais se incluem o controlo de reprodução (de acordo com o disposto nos artigos 14.º, 16.º, 17.º, 18.º e 22.º, do mesmo diploma).
Especial relevância assume agora o artigo 1305.º-A, do Código Civil, o qual dispõe que:
“1 – O proprietário de um animal deve assegurar o seu bem-estar e respeitar as características de cada espécie e observar, no exercício dos seus direitos, as disposições especiais relativas à criação, reprodução, detenção e protecção dos animais e à salvaguarda de espécies em risco, sempre que exigíveis.
2 – Para efeitos do disposto no número anterior, o dever de assegurar o bem-estar inclui, nomeadamente:
a) A garantia de acesso a água e alimentação de acordo com as necessidades da espécie em questão;
b) A garantia de acesso a cuidados médico-veterinários sempre que justificado, incluindo as medidas profilácticas, de identificação e de vacinação previstas na lei.
3 – O direito de propriedade de um animal não abrange a possibilidade de, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte.”
Na esteira do que é definido para a contra-ordenação de abandono, também o crime de abandono não se resume às clássicas condutas de remoção do animal do local onde habitualmente é mantido para a via pública, podendo consumar-se, também, e como ensina Paulo Pinto de Albuquerque, “(1) quer o omitente permaneça no local onde se encontra o animal e omita a acção devida [ou] (2) quer o omitente se afaste do local onde se encontra o animal”.
Como resulta da norma, para que o crime se tenha por verificado, é necessário que, por força do referido abandono, o animal veja em perigo a sua alimentação e os cuidados que lhe são devidos.
O conceito de animal de companhia encontra-se plasmado no Art.º 389º do Código Penal e visa qualquer animal detido ou destinado a ser detido por humanos, no lar, para companhia e entretenimento.
Pois bem, da conjugação da prova indiciária contante dos autos parece evidente que o gato foi assistido no ... pela arguida, contudo, das declarações prestadas pela arguida em sede de instrução, corroboradas pelo teor da prova documental junta aos autos em sede de instrução, bem como corroboradas pelo teor do relatório de necrópsia do gato FF junto aos autos a fls. 60 e 61, tudo leva a concluir que a arguida efectuou um correcto diagnóstico (tanto mais que foi corroborado pelo médico veterinário Dr. HH), que o tratamento ministrado ao gato foi o adequado face à idade avançada do mesmo (veja-se toda a medicação ministrada ao gato e supra referida), pois não pode este Tribunal olvidar que o mesmo contava já com quase 17 anos.
Note-se igualmente que durante todo o internamento o gato FF teve todos os cuidados necessários 24 horas por dia, uma vez que o ... (hospital veterinário escolar), encontra-se aberto 24 horas por dia e está sempre em funcionamento e sempre em contexto de aula pelos alunos em estágio, pelo que os animais estão sempre a ser vigiados 24 horas por dia, pelo que o gato FF em momento algum esteve largado à sua sorte, como a assistente quis fazer crer na denuncia que apresentou. Assim, todos os cuidados e vigilância devidos ao gato FF foram devidamente prestados.
Mais se saliente que o gato FF quando teve alta estava a caminhar e a comer e com os níveis de sódio normais, tendo sido recomendado à assistente que ao fim de uma semana realizasse controlo analítico e se deslocasse ao ..., contudo, é a própria assistente que não se desloca a essa consulta de controlo ao Hospital, ou seja, sabendo que o seu gato está extremamente doente (tem uma doença renal crónica, mas é alertada que o mesmo tem uma massa no cérebro - suspeita de lesão a nível de tronco cerebral), que já tem uma idade avançada (quase 17 anos) e que tinha que ir a uma consulta de controlo passado uma semana, a assistente opta por sua única iniciativa por não ir, sendo que apenas 14 dias após a alta, quando o animal já está num estado novamente lastimável (o gato entra nas urgências novamente lateralizado e comatoso) é que se dirige às urgências do Hospital veterinário, onde o gato acaba por falecer.
Ora, o óbito do gato não pode vir a ser imputado a falta de cuidados, de assistência e de tratamentos por parte da arguida, que face aos indícios existentes nestes autos, esta tudo fez, para que o gato tivesse o melhor dos tratamentos nos últimos tempos da sua vida.
Ademais, não se pode igualmente olvidar que também a Ordem dos Médicos Veterinários considerou não existir motivo para abertura de procedimento disciplinar contra a arguida, tendo procedido ao arquivamento imediato da reclamação apresentada por Mónica Mendes. Ou seja, igualmente a Ordem dos Médicos Veterinários considerou que não existiam quaisquer fundamentos válidos na queixa apresentada, ou seja, considerou que a médica veterinária prestou todos os cuidados ao animal.
Mais se saliente, por se considerar de extrema importância, que, segundo a informação que foi prestada à Ordem dos Médicos Veterinários pelo Director Clínico do ..., todas “as decisões clínicas referentes ao caso nunca foram tomadas exclusivamente pela Drª GG ou o Dr. HH, mas sim pela junta médica que é realizada todos os dias em relação a todos os pacientes internados no Hospital...”. Ou seja, todas as decisões relativas ao gato FF, no que concerne, a diagnósticos, tratamentos a ministrar, cuidados a prestar, foram sempre decididos pela junta médica.
Refira-se que a assistente prestou declarações, mas não pode este Tribunal deixar de referir que as mesmas se apresentaram extremamente parciais e confusas.
Na verdade, certamente motivada pelo forte amor que a unia ao seu animal de estimação e pela dor da perda do mesmo, o Tribunal verificou que a assistente apenas quer encontrar um culpado pela morte do seu animal, mas a verdade é que o gato FF devido à avançada idade que tinha e aos problemas renais crónicos que sofria já não conseguia sobreviver, nem ter qualidade de vida no estado em que se encontrava. O animal já se encontrava num estado de sofrimento enorme e “crime” seria querer manter um animal vivo em sofrimento, apenas para dar o conforto da sua companhia ao seu dono.
A assistente também refere que acha que “meteram o gato no forno” (referindo-se a que fizeram logo a cremação) e não fizeram a necropse. Ora, como se viu, tal não corresponde à verdade, pois, conforme referiu a testemunha CC, legal representante do denunciado Hospital..., relativamente à necrópsia solicitada pela assistente, foi a mesma informada que a operação demora no mínimo cerca de seis meses. Por outro lado, consta da informação que foi prestada à Ordem dos Médicos Veterinários pelo Director Clínico do Centro... que “Por vir através de uma associação a necrópsia requisitada pela senhora EE, foi inserida em contexto de aula e não foi cobrada e por isso não consta no orçamento apresentado, contudo após a necropsia o corpo continua a ter que ser devidamente processado daí ter sido cobrado o valor referente à cremação”.
Ou seja, não existe quaisquer dúvidas de que a necropsia foi efectuada pelo Hospital veterinário e que após a sua realização o animal foi cremado, sendo que apenas foi cobrado à assistente o valor da cremação, dado que a necropsia era gratuita ao abrigo do protocolo pelo qual a assistente foi atendida no Hospital veterinário, motivo pelo qual o mesmo não constava da fatura.
Mais se saliente que tal não foi a dedicação e cuidados pelo gato FF por parte da arguida e do Hospital..., que mesmo a assistente não tendo os pagamentos em dia para com aquele Hospital..., ainda assim, o gato não deixou de ter direito a ser tratado como qualquer outro animal e tal conclusão retira-se do teor da informação que foi prestada à Ordem dos Médicos Veterinários pelo Director Clínico do Centro..., de onde consta: “Apesar de várias liquidações em falta de pagamentos referentes aos dois internamentos, seguindo os nossos princípios e forma de trabalhar, o FF não foi privado de qualquer procedimento considerado necessário”.
Ademais, o próprio relatório de necrópsia confirma que efectivamente o diagnóstico apresentado ab initio pela arguida no ... era o correcto, pelo que todos os cuidados e tratamentos prestados ao gato FF foram os correctos.
Assim, de toda a prova indiciária existente nos autos, considera-se que a arguida efectuou um correcto diagnóstico, o tratamento ministrado ao gato foi o adequado e durante todo o internamento o gato FF teve todos os cuidados e vigilância necessários.
*
Em face do exposto, não existindo nos autos indícios suficientes de que praticou o ilícito que lhe é imputado pela assistente, a arguida GG, será não pronunciada da prática do crime de abandono de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 388º do Código Penal.
IV – DECISÃO
Em face do exposto, não existindo nos autos indícios que a arguida praticou qualquer ilícito criminal, decido, de harmonia com o disposto no art. 308.º, n.º 1, 2.ª parte do Código de Processo Penal, NÃO PRONUNCIAR a arguida AA, relativamente ao crime de abandono de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 388º do Código Penal.
(…)
III – FUNDAMENTOS DO RECURSO
Questões a decidir no recurso:
Constitui jurisprudência assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417.º, todos do Código de Processo Penal), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).2
Assim, são colocadas à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
I. Omissão de pronúncia;
II. Existência de indícios para pronunciar a arguida pelo crime de abandono de animais de companhia.
*
Tal como refere o artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
De acordo com o artigo 308.º, n.º 1 do mesmo diploma, «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».
Por sua vez, o artigo 283.º, n.º 2 refere que «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
Assim, sendo este o entendimento legal em que deve assentar a prolação de despacho de pronúncia ou de não pronuncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se puder formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
É certo que não se exigindo um juízo de certeza quanto à condenação, no entanto é pressuposto que a prova existente em inquérito ou na instrução apontem, se mantida e contraditoriamente comprovada em audiência, para uma probabilidade quase certa de condenação.
Aliás, sobre a noção de indícios suficientes muitas têm sido as interpretações e posições quer da doutrina, quer da jurisprudência.
Deste modo, há quem defenda, embora minoritariamente, que a acusação e a pronúncia bastam-se com uma mera probabilidade de condenação em julgamento, tendo esta posição como fundamento, nomeadamente, o artigo 311.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal, argumentando que só é possível rejeitar a acusação quando manifestamente infundada3.
Outros defendem que existem indícios suficientes, e como tal deve ser proferida acusação e despacho de pronúncia, quando em julgamento seja maior a probabilidade de condenação do que de absolvição. Esta posição é conhecida pela tese da probabilidade predominante. Perfilhando-a temos GERMANO MARQUES DA SILVA, quando refere «probabilidade razoável é uma probabilidade mais positiva do que negativa»4.
Já para FIGUEIREDO DIAS a condenação deverá ser altamente provável, dizendo que «os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição»5.
Finalmente, há ainda quem defenda a chamada teoria da probabilidade qualificada, exigindo-se, quer para a acusação, quer para a pronúncia, um juízo de prognose de quase certeza na futura condenação. Neste sentido, afirma LUÍS OSÓRIO DA GAMA: «devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fizerem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado»6.
A jurisprudência mais recente tem vindo a aderir a este último critério. A título de exemplo podemos convocar o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09/03/20167:
Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado (…) os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação (…). Na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final.
Contudo, e não obstante esta última posição, tem sido entendimento maioritário que também em sede de instrução deve ser tido em conta o princípio da presunção de inocência e o princípio do in dubio pro reo. Ora, afastada desde logo a primeira das teorias, sem suporte no nosso direito penal e constitucional, as outras duas, bastantes próximas a nosso ver, são compatíveis com tais princípios.
Não obstante, a posição que acaba por ter acolhimento na grande maioria da nossa jurisprudência é a que defende que quando a possibilidade de futura condenação for mais provável do que a possibilidade de absolvição deve o arguido ser pronunciado; mais sustenta que a fase de instrução não pode nem deve ser confundida com a fase do julgamento.
Assim, o juízo sobre a suficiência dos indícios deverá passar pela probabilidade elevada, a qual se traduz num juízo de prognose não só da condenação ser mais provável que a absolvição, mas mais, que em julgamento será ultrapassada a barreira do in dubio pro reo.
Acontece que, na prática, muito facilmente as duas teses se confundem, parecendo não existirem duvidas que quando está ultrapassada, em fase de instrução, aquela barreira do princípio do in dubio pro reo, a probabilidade de condenação do arguido em julgamento é muito superior à da sua absolvição.
Impõe-se por isso uma análise cuidada caso a caso, a qual obviamente não poderá esquecer o artigo 308.º do Código de Processo Penal, nem os princípios constitucionalmente consagrados, inclusive o da presunção da inocência, devendo existir uma articulação entre os mesmos.
Aqui chegados não podemos deixar de citar CASTANHEIRA NEVES8, que a este respeito escreveu:
na apreciação da suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução (…) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.
Descendo ao caso sub judice, após decurso do inquérito, e tendo-se constituído a ofendida como assistente, não se conformou esta com a decisão do Ministério Público de arquivar aquele e requereu a abertura de instrução. Decorrida esta fase, veio a Juiz de Instrução a proferir despacho de não pronúncia.
Todos os argumentos esgrimidos pela Assistente reconduzem-se à errada interpretação e valoração da prova feita pela Mma. Juiz de Instrução Criminal, pelo que importará apreciar cada um deles para, a final, concluir pelo acerto ou desacerto da decisão do Tribunal a quo.
Preliminarmente ainda, olhando para a Decisão objecto de recurso, impõe-se apontar falecer aquela da melhor técnica jurídico-processual, ao não elencar, de forma completa e autónoma, os factos com relevo para a decisão que reputa indiciados e não indiciados.
Com efeito, tem sido entendimento da larga maioria da jurisprudência que «no despacho de não pronúncia terá, pelo menos, de constar uma síntese autónoma e sistematizada da matéria factual que se considerou indiciada e não indiciada», podendo tal omissão redundar numa irregularidade, a qual será de conhecimento oficioso.9
No caso vertente, contudo, fruto da manifesta improcedência da pretensão da Assistente, como infra se verá, não se impõe trilhar aquele caminho, face à total e completa ausência de indícios da prática do crime pela arguida.10
I. Como primeira questão a apreciar temos a invocada omissão de pronúncia por o Tribunal a quo não se ter pronunciado sobre o documento junto a fls. 9 – informação clínica subscrita pela Dra. DD –, o que, na óptica da Assistente, determina a nulidade nos termos previstos na al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal.
Dispõe o artigo 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal que «[é] nula a sentença: (…) c) Quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
O vício de omissão de pronúncia consubstancia-se assim numa ausência, numa lacuna, quer quanto a factos, quer quanto a consequências jurídicas – isto é, verificar-se-á quando se constatar que o tribunal não procedeu ao apuramento de factos, com relevo para a decisão da causa que, de forma evidente, poderia ter apurado e/ou não investigou, na totalidade, a matéria de facto, podendo fazê-lo ou se absteve de ponderar e decidir uma questão que lhe foi suscitada ou cujo conhecimento oficioso a lei determina.
Como anota OLIVEIRA MENDES11, «a nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe que o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º, do Código de Processo Penal. Evidentemente que há que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o citado n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil.
«A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão.»
Dito de outro modo, o tribunal tem o dever de se pronunciar sobre todas as questões – relevantes para a decisão a proferir – suscitadas na acusação e na contestação (aqui, mutatis mutandis, no requerimento de abertura de instrução), bem como sobre todos os factos resultantes da discussão relevantes para a decisão12.
Por fim, como lapidarmente sintetizado, o vício de omissão de pronúncia prende-se «com o incumprimento do dever de resolver as “questões” submetidas à apreciação do tribunal, exceptuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra»13
Por outras palavras, adaptando ao caso sub judice, ao tribunal não é imposto que se debruce sobre todos os meios de prova documentais juntos ao processo, mas apenas sobre aqueles que no seu entender se mostrem relevantes para a decisão a proferir.
Acresce que a norma invocada pela Recorrente – artigo 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal – tem aplicabilidade apenas para as sentenças, como da mesma consta ipsis verbis. Assim mesmo vem decidindo a nossa jurisprudência, citando aqui a título de exemplo o Acórdão deste Tribunal, de 12/10/202214:
A omissão de pronúncia e a falta de fundamentação são nulidades, não sendo a 1ª aplicável à decisão instrutória, consubstanciando a falta de fundamentação apenas uma irregularidade a invocar no prazo previsto no art.º 123.º do CPP.
Não existe qualquer norma que determine a aplicação destas nulidades e seu regime ao despacho de pronúncia, desde logo porque a lei é clara sobre os requisitos do despacho que encerra a instrução, como se vê do art.º 308.º e das nulidades do mesmo despacho, taxativamente indicadas no artigo seguinte, o 309.º.
Vigorando no nosso sistema processual penal, como resulta de forma inequívoca do CPP, e bem explicitado pela doutrina e na jurisprudência processual penal, o regime da taxatividade das nulidades processuais penais, ao despacho de pronúncia, para além destas nulidades apenas podem ser apontadas as que resultem, na parte aplicável, da violação do disposto nos art.ºs 119.º e 120.º, caso contrário apenas, se se verificar alguma desconformidade com as regras processuais, consubstanciarão meras irregularidades cujo regime de arguição se mostra estabelecido no art.º 123.º do mesmo código.
Não obstante a assistente impute a falta e indagação por parte do tribunal de instrução criminal de questões que em seu entender seriam importantes para a leitura que faz dos factos e consequente imputação jurídico criminal que faz dos mesmos à pessoa do arguido, a sindicância dessa decisão está vedada a este tribunal de recurso.
Concluindo, e porque sempre qualquer sorte de irregularidade – que a nosso ver não se verifica – estaria já sanada por decurso do prazo para a respectiva arguição (cfr. artigo 123.º do Código de Processo Penal), falece o recurso nesta parte.
II. Façamos agora um enquadramento do crime que está em causa nestes autos, com vista a apreciar da existência de indícios da prática do mesmo por banda da arguida:
Artigo 388.º
Abandono de animais de companhia.
1- Quem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias.
2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar perigo para a vida do animal, o limite da pena aí referida é agravado em um terço.
Seguiremos aqui o quanto está escrito no Despacho recorrido, porque analisa de forma completa e lapidar este ilícito.
Estamos perante um crime específico próprio, já que o agente da infracção só poderá ser aquele que, por qualquer título, tem o dever de guardar, vigiar ou assistir o animal de companhia. Assim, tanto pode tratar-se do seu “dono”, como quem, ainda que apenas provisória ou temporariamente tenha a guarda do animal (v.g. um treinador, um tratador, alguém a quem o dono confiou o animal, para dele cuidar na sua ausência, etc.).
À semelhança do que acontece com o crime de maus tratos, não está prevista a responsabilidade criminal das pessoas colectivas. Trata-se de crime de perigo concreto cumulativo (na medida em que têm que se verificar cumulativamente os dois perigos enunciados na norma) e de resultado, consumando-se o ilícito com a efectiva colocação em perigo para a alimentação e prestação de cuidados devidos ao animal. Vale isto por dizer que o referido crime não se basta com o mero abandono do animal de companhia, o qual pode representar um mero acto de execução integrante da tentativa (que, no caso, não é punível, por força do disposto no artigo 23.º do Código Penal).
É um crime de omissão pura ou própria, já que a conduta típica se traduz numa omissão, num non faccere, numa acção que era devida e foi omitida — a prestação de alimentação e de demais cuidados devidos ao animal — por quem tinha, sobre ele, o dever de garante – de o guardar, vigiar e/ou assistir.
Quanto ao tipo subjectivo é um crime exclusivamente doloso, sendo admitida qualquer uma das modalidades do dolo.
São pois elementos objectivos do tipo:
a. O dever de garante do detentor, possuidor ou dono do animal de companhia, relativamente à vida, integridade física e bem-estar daquele;
b. O abandono do animal que o agente deveria proteger;
c. O perigo que assim é criado, para a sua alimentação e demais os cuidados que lhe são devidos.
Diferentemente do previsto na norma em análise, o artigo 6.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, considera abandono de animal de companhia «a não prestação de cuidados no alojamento, bem como a sua remoção efectuada pelos seus detentores para fora do domicílio ou dos locais onde costumam estar mantidos, com vista a pôr termo à sua detenção, sem que procedam à sua transmissão para a guarda e responsabilidade de outras pessoas, das autarquias locais ou das sociedades zoófilas».
Tal norma é mais clara que aquela do Código Penal supra citada, já que concebe uma definição de abandono, tendo um âmbito de aplicação mais alargado, na medida em que não exige a criação de qualquer tipo de perigo para o animal.
No dever de alimentação inclui-se obviamente o de abeberamento. E quer num quer noutro, há-de fazer apelo às regras impostas pelo artigo 12.º do citado diploma.
Já nos cuidados devidos incluem-se as condições de alojamento (v.g. condições de temperatura, ventilação luminosidade, que vêm regulados nos artigos 8.º, 9.º e 15.º, do mencionado Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro), higiene e cuidados de saúde, nos quais se incluem o controlo de reprodução (de acordo com o disposto nos artigos 14.º, 16.º, 17.º, 18.º e 22.º, do referido texto legal).
Especial relevância assume agora o artigo 1305.º-A, do Código Civil, o qual dispõe que:
l – O proprietário de um animal deve assegurar o seu bem-estar e respeitar as características de cada espécie e observar, no exercício dos seus direitos, as disposições especiais relativas à criação, reprodução, detenção e protecção dos animais e à salvaguarda de espécies em risco, sempre que exigíveis.
2 – Para efeitos do disposto no número anterior, o dever de assegurar o bem-estar inclui, nomeadamente:
a) A garantia de acesso a água e alimentação de acordo com as necessidades da espécie em questão;
b) A garantia de acesso a cuidados médico-veterinários sempre que justificado, incluindo as medidas profilácticas, de identificação e de vacinação previstas na lei.
3 – O direito de propriedade de um animal não abrange a possibilidade de, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte.
Na esteira do que é definido para a contra-ordenação de abandono, também o crime de abandono não se resume às clássicas condutas de remoção do animal do local onde habitualmente é mantido para a via pública, podendo consumar-se, também, e como ensina PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «(1) quer o omitente permaneça no local onde se encontra o animal e omita a acção devida, (2) quer o omitente se afaste do local onde se encontra o animal»15.
Como resulta da norma, para que o crime se tenha por verificado, é necessário que, por força do referido abandono, o animal veja em perigo a sua alimentação e os cuidados que lhe são devidos.
O conceito de animal de companhia encontra-se plasmado no artigo 389.º do Código Penal e visa qualquer animal detido ou destinado a ser detido por humanos, no lar, para companhia e entretenimento.
III. Como seguinte argumento recursório, temos um alegado «erro de julgamento». Diz a Recorrente que o Tribunal a quo, na esteira do Ministério Público na fase de inquérito, «fez errada análise e apreciação, incorrendo em erro de julgamento, nomeadamente: a) no depoimento de CC, na qualidade de legal representante do denunciado Hospital...; b) no relatório médico subscrito pela Dra. DD, médica veterinária»16.
Assim, começa por sustentar que o Tribunal a quo não podia concluir, como concluiu, que a necrópsia foi efectuada no hospital veterinário. Para tanto alude a uma discrepância entre a data de uma factura, datada de .../.../2023, que lhe foi enviada a cobrar o valor correspondente à cremação do seu animal, e a data da realização daquele exame – .../.../2023.
Não assiste razão à Assistente neste particular.
O documento a que alude, datado de .../.../2024, não é uma factura, mas antes um mero orçamento, como do próprio resulta (cfr. documento junto com a queixa-crime). E este orçamento reportava-se ao segundo internamento de que o gato foi alvo, em .../.../2023, tendo vindo a morrer no dia 18 seguinte.
Ou seja, aquando da emissão daquele orçamento, estando o animal já morto, era evidente que viria a ser cremado, pelo que nada se estranha tenha o respectivo custo sido incluído. Por outro lado, tal não é incompatível com a realização da necrópsia dias depois, estando igualmente explicado o porquê do respectivo custo não ter sido imputado à Assistente – esse exame, solicitado pela Assistente, foi gratuito ao abrigo do protocolo pelo qual a Assistente foi atendida no hospital veterinário.
Finalmente, temos as declarações da própria arguida, corroboradas pela informação prestada pelo Director Clínico à Ordem dos Médicos Veterinários, que a necrópsia teve lugar, culminando no respectivo relatório junto aos autos.
IV. Aqui chegados resta então avaliar se dos autos resultam indícios suficientes da prática pela arguida do crime que lhe é imputado pela Assistente e, a existirem, se os mesmos são de molde a formular um juízo apriorístico de que à primeira venha a ser imposta uma pena em consequência do julgamento a efectuar.
Como inicialmente começamos por afirmar, o tipo de crime em causa apenas admite a sua comissão a título doloso. Exclui-se, pois, desde logo, a punibilidade da negligência, subsistindo a punição a título de dolo em qualquer uma das suas modalidades, e que consiste aqui na vontade do agente em fazer perigar a alimentação ou a prestação de cuidados ao animal. Por outras palavras, o agente tem de representar os elementos do tipo, que se dirige ao seu dever de assistir o animal de companhia, e de conhecer o dever de prestar tal assistência, não o fazendo.
No caso em apreço o abandono de que fala o tipo incriminador reporta-se à falta de prestação por banda da arguida dos devidos cuidados médicos ao gato da Assistente, tendo no mínimo configurado como possível que tal omissão colocaria em perigo a vida do dito animal.
De toda a prova carreada para o processo, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, não resulta evidenciada tal matéria factual.
É certo que a arguida efectuou um inicial diagnóstico que logo referia padecer o animal de insuficiência renal; mais significou que se verificavam igualmente lesões neurológicas que se deveriam situar ao nível do tronco cerebral, mas que tal só poderia ser confirmado através de uma ressonância magnética. Este não poderia ser realizado no hospital, devido ao estado débil em que o gato se encontrava, sendo que foi a própria Assistente quem, na sequência de sugestão da arguida, disse que não tinha meios para efectuar tal exame noutro lado.
Quanto às palavras que a Assistente imputa à arguida – «se era para morrer que morresse em casa» –, esta nega tê-las proferido, pelo que ficamos num estado de dúvida: é palavra de uma contra a outra, funcionando então aqui o princípio do in dubio pro reo.
Atalhando, na sequência de queixa que apresentou junto da Ordem dos Médicos Veterinários, esta instituição, na posse de todos os elementos relativos à assistência prestada ao animal da Assistente arquivou liminarmente essa reclamação com base na informação escrita prestada pelo Director Clínico do ..., que é detalhada e completa (cfr. documento junto em audiência em .../.../2025).
Aliás, note-se que é a própria Assistente, quando ao apresentar em .../.../2023 a queixa-crime, quer no título do próprio email através do qual o fez, quer depois no texto em que descreve o ocorrido, que sempre alude a negligência na assistência prestada ao seu gato.
Também a legal representante do Hospital..., CC, ouvida em sede de inquérito, sustenta terem sido cumpridos todos os passos exigíveis para o tratamento de um gato com a sintomatologia que o animal de estimação da Assistente apresentava.
Atente-se também no relatório da necrópsia (junto aos autos em .../.../2023), onde não se descarta a possibilidade de existir as referidas lesões ao nível do cérebro:
As lesões observadas indicam um quadro moderado a grave de nefrite intersticial crónica.
A regurgitação do conteúdo estomacal com aspiração por falso trajecto é muito provavelmente perimortem.
Embora não se tenham observado lesões macroscópicas ao nível do Sistema Nervoso Central as mesmas não podem ser descartadas. O facto do animal estar em fase avançada de autólise impossibilitou obter respostas por histopatologia.
De igual sorte, o documento a que a Assistente recorre e que atrás fizemos referência – informação clínica da médica veterinária DD, junta com a sua participação criminal –, que apresentou junto do Hospital... aquando do primeiro internamento, nada permite acrescentar. Refere apenas a hipótese de o gato poder estar a desenvolver uma pancreatite ou tratar-se de mero agravamento do estado que apresentava já 3 semanas antes (qual seja, não o diz). Ou seja, desta informação, conjugada com tudo o mais que foi trazido aos autos, não vemos como devesse a arguida ter agido de modo diverso, tanto mais que ab initio foi referido que o animal apresentava insuficiência renal.
V. Por tudo o expendido, face à ausência de indícios mínimos da existência de factos típicos culposos que possam ser imputados à Arguida, este recurso terá de improceder na totalidade.

IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pela Assistente BB, confirmando a decisão recorrida de não pronúncia da Arguida.
Vai a recorrente condenada nas custas do recurso, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça devida – artigo 515.º do Código de Processo Penal, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro), sem prejuízo do benefício de apoio judiciária de que possa gozar.
Notifique.
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Lisboa, 8 de Maio de 2025
Diogo Coelho de Sousa Leitão
Paula Cristina Bizarro
André Alves
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1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, Diário da República – I Série, de 28/12/1995.
2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/01/2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, da 5.ª Secção.
3. Neste sentido, v.g. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14/03/90 (BMJ, 395.º, pág. 656).
4. Curso de Processo Penal, vol. III, Lisboa, 1994, pág. 183.
5. Direito Processual Penal, vol. 1, Coimbra, 1974, pág. 133.
6. In Comentário ao Código de Processo Penal Português, vol. IV, Coimbra, 1933, pág. 441.
7. Proc. n.º 436/14.0GBFND.C1 (www.dgsi.pt).
8. Processo Criminal, Sumários, Coimbra, 1968, pág. 39.
9. Neste sentido, vide Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24/10/2024, Proc. 8526/19.6T9LSB-A.L1-9, e de 09/11/2023, Proc. 6339/21.4T9LSB.L1-9 (www.dgsi.pt).
10. Aliás, em bom rigor poderia, em tese, ter sido rejeitado o requerimento de abertura de instrução por abertura de instrução apresentado, putativamente, não consubstanciar uma acusação alternativa, nos termos legalmente exigidos e conforme jurisprudência pacífica e uniforme.
11. In Código de Processo Penal Comentado, Coimbra, 2022, pág. 1157.
12. SÉRGIO POÇAS (Da sentença penal – fundamentação de facto, in Julgar, n.º 3, Set.-Dez. 2007, págs. 24-25) ensina, sobre a questão, que «(…) O tribunal, como resulta nomeadamente do disposto nos artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, do CPP, deve indagar e pronunciar-se sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Ou seja, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/não verificação - o que pressupõe a sua indagação -, se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível. É que em impugnação por via de recurso pode vir a ser considerado pelo tribunal ad quem que o facto sobre o qual o tribunal a quo especificadamente não se pronunciou por entender ser irrelevante, é afinal relevante para a decisão, o que determinará a necessidade de novo julgamento, ainda que parcial, com todas as maléficas consequências consabidas. Sejamos claros: indagam-se os factos que são interessantes de acordo com o direito plausível aplicável ao caso; dão-se como provados ou não provados os factos conforme a prova produzida. A pronúncia deve ser inequívoca: em caso algum pode ficar a dúvida sobre qual a posição real do tribunal sobre determinado facto. Na verdade, se sobre determinado facto não há pronúncia expressa (o tribunal nada diz), pergunta-se: o tribunal não se pronunciou, por mero lapso? Não se pronunciou porque não indagou o facto? Não se pronunciou porque considerou o facto irrelevante? Não se pronunciou porque o facto não se provou? Face ao silêncio do tribunal todas as interrogações são legítimas. Das duas, uma: ou o facto é inócuo para a decisão e o tribunal, com fundamentação sintética, di-lo expressamente e não tem que se pronunciar sobre a sua verificação/não verificação, ou, segundo um entendimento jurídico plausível, é relevante e nesse caso deve pronunciar-se de acordo com a prova produzida.»
13. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20/07/2017, Proc. 360/12.0TAVNF.G1 (www.dgsi.pt).
14. Proc. 4859/19.0T9LSB.L1-3 (www.dgsi.pt).
15. Comentário do Código Penal, Lisboa, 2022, pág. 1361.
16. Cfr. conclusão 7.ª.