Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
370/24.5PISNT.L1-9
Relator: MARIA DE FÁTIMA R. MARQUES BESSA
Descritores: FALTA DE PROMOÇÃO DO PROCESSO
FALTA DE INQUÉRITO
INSUFICIÊNCIA DO INQUÉRITO
INSUFICIÊNCIA DA INSTRUÇÃO
OMISSÃO DE DILIGÊNCIAS ESSENCIAIS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Sumário:
(da responsabilidade da Relatora)
I. Prevê o art.º 119.º, b) do CPP (Código de Processo Penal) como nulidade insanável a falta de promoção do processo pelo Ministério Público e na alínea d) do mesmo art.º 119.º, do CPP a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
II. Na alínea b) cabem as nulidades que dizem respeito a omissões ou sonegação do exercício de funções do Ministério Público, porquanto o Ministério Público tem, no decurso do processo, máxime do inquérito, um conjunto de atribuições, que não exercidas colocam em causa a própria estrutura acusatória do processo, nomeadamente as do art.º 48.º, do art.º 53.º, do art.º 382.º e do art.º 392.º, todos do CPP.
III. Quanto à alínea d) as nulidades dizem respeito à falta total de inquérito ou de instrução. Quanto à falta de inquérito, ele constitui uma fase obrigatória do processo penal, sendo porém, quanto à instrução, a mesma facultativa, contudo, poderá ocorrer obrigatoriedade quando, por exemplo, o Juiz indefira a instrução por inadmissibilidade legal e a decisão venha a ser revogada em recurso.
IV. A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, constitui nulidade sanável prevista no art.º 120.º, n.ºs, 1 e 2, al. d) do CPP, estando dependente de arguição nos termos do art.º 120.º, n.º3, al. c) do CPP.
V. No caso concreto tendo sido realizadas diligências no inquérito como inquirição das ofendidas e recolhida prova documental e tendo havido abertura de instrução em que foram tomadas declarações ao arguido e proferido despacho de pronúncia, não ocorre qualquer nulidade.
VI. Não se tratando de um novo julgamento mas apenas um remédio jurídico, para ser conhecida, pelo Tribunal de recurso, a impugnação ampla da matéria de facto (erro de julgamento), uma das formas de impugnação da matéria de facto, tem o recorrente, nas suas conclusões, o ónus de especificar os pontos concretos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas concretas que impõe decisão diversa da recorrida, sendo caso disso, as provas que devem ser renovadas, bem como, estando a prova gravada, de transcrever ou indicar a passagem ou passagens das declarações/depoimentos da gravação áudio, que suportem entendimento diverso, com indicação do início e termo desses segmentos em cumprimento do previsto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, sob pena de não pode ser conhecida, por incumprimento das formalidades legalmente prescritas, nos referidos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º, do CPP.
VII. Se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, não podendo subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do Julgador da primeira instância, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, só podendo a reapreciação da prova, determinar a alteração à matéria de facto se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.
VIII. O julgador pode formar a sua convicção com base em apenas um único testemunho desde que se convença, para além da dúvida razoável, que nele reside a verdade do ocorrido. Os depoimentos não valem pelo número de testemunhas que se apresentem em juízo para ser ouvidas, mas sim pelo peso da credibilidade que merecem, não vigorando no nosso ordenamento jurídico o velho aforismo “testis unus testis nullus”.
IX. No tipo de criminalidade dita de «violência doméstica», as declarações da vítima não podem deixar de merecer ponderada valorização, sendo atendidas se o seu relato revela ausência de incredibilidade subjectiva, derivada da relação ofendida/arguido, revela verosimilhança no confronto com os demais depoimentos e persistência na incriminação, no tempo, sem ambiguidades, nem inconsistências nem contradições, em nada contrariando o principio da livre apreciação da prova, do contraditório e da imparcialidade.
X. O uso do princípio in dubio pro reo (regra de decisão da prova) só deve ocorrer quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o Julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, se lhe imponha decidir a favor do arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstrata ou de uma mera hipótese.
XI. Como princípio que se projecta em sede de apreciação da prova, a sua violação é tradicionalmente tratada como erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c) do CPP) e, por isso, tal como sucede com os demais vícios da sentença, tem que resultar ou decorrer do próprio texto da decisão recorrida.
XII. Porém, no caso de impugnação alargada da matéria de facto a Relação, que conhece de facto, pode também censurar a violação do princípio in dubio pro reo se, reapreciada a prova, chegou a um estado de dúvida razoável que se impunha, ainda que o Tribunal recorrido não tenha manifestado ou sentido dúvida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, as Juízas Desembargadoras da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Para julgamento em processo comum, perante tribunal singular, foi proferido despacho de pronúncia contra o arguido AA, nascido a ........1967, filho de BB e de CC, nacional de Portugal, divorciado, empresário na construção civil, com morada na ..., ao mesmo imputando um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal e um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal.
2.Realizado o julgamento, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Instância Local Criminal de Sintra– Juiz 1 foi proferido Sentença condenatória, em .../.../2025, cujo Dispositivo aqui se transcreve:
Pelo exposto, decido:
A) Absolver o arguido AA de um crime de violência doméstica do artigo 152º, nº 1, al. e) e nº 2, al. a) do CP;
B) Absolver o arguido AA do pedido de indemnização civil deduzido por DD;
C) Condenar a assistente e demandante DD em taxa de justiça que se fixa em 3 UC´s e nas custas do pedido civil que formulou.
D) Condenar o arguido AA pela prática entre ... a ........2024 em autoria material de um crime de violência doméstica do artigo 152º, nº 1, al. a), nº 2, al. a) e nº 4 do CP, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactar a demandante EE pelo período de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses;
E) Suspender na sua execução a pena de prisão aplicada em C) pelo período de 3 (três) anos mediante a frequência pelo arguido de um programa de prevenção de violência doméstica a ministrar pela DGRSP e bem assim ao pagamento à demandante da indemnização fixada de três mil euros, por depósito à ordem dos autos e que lhe será entregue nos termos do artigo 152º, nº 4 do CP e dos artigos 50º e 51º, nº 1, al. a) e nº 2 do CP.
F) Julgar o pedido civil deduzido por EE parcialmente procedente, por parcialmente provado e condenar o arguido/demandado AA a pagar-lhe a quantia de três mil euros, acrescida de juros desde a data da presente sentença.
G) Condenar o arguido nas custas do processo com taxa que se fixa em 3 UC´s.
H) Condenar demandado e demandante no pagamento das custas civis, na proporção de 60% e 40%, respectivamente.
Notifique e deposite.
Comunique à DGRSP, dando-se pagamento à factura do relatório social.
(…)
Extraia certidão da presente sentença, acompanhada da gravação da sessão onde a assistente prestou declarações, bem como do auto de inquirição da mesma constante do inquérito e remeta a DIAP deste tribunal para promover o procedimento criminal contra a mesma por falsidade de declaração do artigo 359º, nºs 1 e 2 do CP.
Após trânsito:
Comunique ao registo criminal.
Comunique ao organismo da Administração Pública responsável pela área da cidadania e da igualdade de género, bem como à Direcção-Geral da Administração Interna, para efeitos de registo e tratamento de dados, tendo presente a Divulgação n.º 29/2012, do CSM e o ofício circular n.º 32 da DGAJ/DSAJ.
Comunique à DGRSP a fim de diligenciar pelo cumprimento das condições fixadas para a suspensão da execução da pena de prisão.
Notifique a demandante para facultar aos autos o seu IBAN de modo a lhe ser oportunamente entregue a quantia monetária em que o arguido foi condenado a pagar-lhe no período da suspensão da execução da pena.
3.O arguido, não se conformando com a Sentença proferida nos presentes autos, dela vem interpor recurso, em .../.../2025, extraindo da motivação as seguintes conclusões (que se transcrevem):
i. No âmbito dos presentes autos, o FF foi condenado de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1,alínea a), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal, na penade 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão e na pena acessória de proibição de contatar com a Demandante/ EE, pelo período de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses; suspender na sua execução a pena de prisão aplicada pelo período de 3 (três) anos mediante a frequência pelo FF de um programa de prevenção de violência doméstica a ministrar pela DGRSP e, bem assim, ao pagamento de uma indemnização no montante de € 3000,00 (três mil euros);
Sucede que:
ii.Toda a factualidade que sustenta a acusação assenta em declarações prestadas pela Demandante e uma fotografia junta a fls. 105, a qual tem um formato retangular, nada mais;
iii. Não foram feitas quaisquer diligências investigativas na fase de inquérito, que permitissem carrear para os autos, provas que corroborassem os factos alegados pela Demandante;
iv. Ressalva-se, duas circunstâncias de extrema importância:
- A demandante deslocava-se à esquadra da OPC 1 ou 2 dias após a factualidade ter ocorrido, o que significa que as marcas que esta relatava a existir eram evidentes e suscetíveis de serem recolhidas através de fotografia, por aquela autoridade;
- Os aparelhos destruídos, fios de eletricidade e chave do carro partida, as despesas tidas com a reparação, alegadamente na sua posse, não foram juntos, não há fotografias;
- Deslocações ao hospital, o histórico hospitalar por causa das agressões e das relações sexuais não consentânea;
- Os vizinhos e responsável do Banco que assistiram às agressões verbais, à fuga do FF com a chave do carro, a qual, presenciaram a partir – Não hánadajunto aos autos,as pessoas não foramidentificadas,não foram ouvidas!
- Os Agentes da PSP que no dia ........2024, acompanharam o FF a sua casa para recolher os seus bens, que presenciaram este proferir, num tom de voz, que foi audível na casa toda “Agora é que elas estão fodidas comigo!”, não lavraram auto, não foram testemunhas da acusação.
v. Todo o supra permite concluir que, a prova e diligências investigatórias neste processo se resumiram às declarações da Arguida e à foto a fls. 105 dos autos;
vi.A Assistente adeterminadaalturadoprocessodeu entradade um pedido de desistência de queixa e retratou-se, quando em audiência de julgamento explicou que apenas havia prestado queixa contra o seu pai, por se encontrar coagida pela sua mãe e avó,
vii. Em síntese a Assistente declarou que era vítima de maus tratos da mãe que a insultava chamando-a de “puta, vaca, animal”, que ao longo da sua vida, assistiu a mãe a agredir o pai, a insultá-lo e que discutiam diariamente, (minutos 00:19:58 a 00:20:42);
viii. Depoimentoque écorroborado pelosdepoimentos do GG (minutos 00:06:00 a 00:10:23) e do HH (minutos 00:10:00 a 00:10:23).
ix. O depoimento da assistente permite concluir que o ambiente familiar era disfuncional, com comportamentos violentos e agressivos recíprocos entre os progenitores, o que desvirtua a narrativa unilateral de violência exercida exclusivamente pelo arguido.
x.Ressalva-se que não foram encetadas e nem efetuadas nenhumas diligências investigativas em sede de inquérito, além dos autos de queixas e aditamentos efetuados pela vítima, o que claramente indicia, uma completa ausência de inquérito, art. 119º, als. B) e d) do CPP!
xi. Analisadas as declarações da vítima no modo como fala sobre a Assistente, atento o rancor premente na sua voz, que as declarações prestadas por esta última são verdadeiras.
xii. O FF em sede de julgamento apenas prestou depoimento, após produzida a prova que havia contra si, ou seja, o depoimento da Vítima, quis prestar declarações,
xiii. As suas declarações pautam-se pela sua emotividade, carinho com que falae explica o problema psicológico daArguida,o modo como se refere à filha, a preocupação e o cuidado que tem com ela, terminando o seu depoimento a chorar.
xiv. Ao que o Tribunal a quo interpretou a postura do FF de forma contrária ao que resulta constitucionalmente previsto no art. 32.º, nº2, (…)
A postura que o FF manteve em julgamento, optando por falar a final, aparentemente muito calmo, mas pouco acrescentando ao que já dissera nas fases processuais anteriores, fazendo-se passar por vítima da agressividade da “sua senhora” (sic), que caiu numa “cilada”, que é muito nervosa (o que se constatou efetivamente) que nunca sequer na mesma tocou,culminando numchoro descontrolado e semaparente razão,que terá convencido alguns acrernas alegações do Ministério Público,é uma postura de vitimização essa sim encenada e que não pode vingar.(…)
xv. Mas, dando nota de que as declarações do FF não se distanciavam do que havia sido declarado em fases anteriores perante Autoridade Judiciária.
xvi. Existe junto aos autos a fls. 404, uma pen com mensagens trocadas entre o FF e a vítima que também corroboram os modos como esta se lhe dirigia.
xvii. O relatório social do arguido confirma a sua inserção social, ausência de antecedentes, o cumprimento escrupuloso das medidas de coação impostas e o apoio económico prestado à filha, mesmo após o processo, sendo este o seu primeiro contacto o Tribunal.
No entanto, tudo quanto resulta a favor do FF não é valorado em seu benefício e das suas características pelo Tribunal a quo, pelo contrário!
xviii. A gestão da inquirição da vítima, audiência de julgamento pelo Tribunal a quo revelou parcialidade e condução orientada da inquirição da queixosa, nomeadamente ao sugerir ou confirmar respostas, e desvalorizar testemunhos da defesa.
xix. Pelo contrário, o mesmo Tribunal a quo, quando confrontado com factos em que a vítima tem atitudes de agressão psicológica e física nas pessoas do FF e da Assistente, as mesmas são descredibilizadas e/ou há uma tentativa de as justificar.
xx.Chamando-se a atenção para o facto de em Instâncias do Ministério Público do Tribunal a quo, no decurso da inquirição da Vítima, o Tribunal a quo, interfere respondendo por cima do que esta diz, e, respondendo a perguntas que lhe são dirigidas no lugar desta.
Por todo o exposto, será de concluir que:
xxi. A ausência de diligências investigatórias por parte das Autoridades, em sede de inquérito, nomeadamente: a omissão de recolha de imagens das alegadas agressões retratadas em aditamentos e queixas crimes que se sucederam ao longo do inquérito, de perícias médicas demonstrativas da alegada agressão sexual, a dentificação das testemunhas externas ao casal que presenciaram os factos: os vizinhos, o responsável do Banco, a Gestora de conta, comprometeu irremediavelmente a descoberta da verdade material, art. 340.º do CPP.
xxii. A sentença de que ora se recorre mostra-se fundada numa convicção subjetiva do tribunal a quo, a qual assenta tão somente e só!, nas declarações da vítima, fazendo tábua rasa de todas a prova carreada e produzida em audiência de julgamento, contrariando os princípios da livre apreciação da prova, do contraditório e da imparcialidade.
xxiii. Culminando em vícios relativamente à motivação que é insuficiente, parcial e assente em juízos de valor sobre a postura do arguido em julgamento, em prejuízo da sua presunção de inocência.
xxiv. Otribunal não demonstrou ter analisado criticamente as contradições e lacunas nas declarações da queixosa, bem como o seu quadro clínico e histórico psiquiátrico, que vem, conforme apurado em instâncias da Sra. Procuradora do Tribunal aquo,de dataanterior ao casamento e, que resulta corroborado no depoimento do FF (minutos: 00:07:00 a 00:07:48), cuja patologia considera-se de extrema relevância, para aferir dos traços da sua personalidade e, por conseguinte, da sua credibilidade.
xxv.A provaproduzidanão é suficiente parasuportaruma condenação pela prática de dois crimes de violência doméstica agravada, artigo 152.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal nem para sustentar a indemnização civil fixada em €3.000,00 (três mil euros);
xxvi. Pelo supra exposto, pugna-se pela ausência de investigação, por conseguinte, na falta de prova indiciária, porquanto, as declarações da vítima, não podem ser consideradas prova elegível e suficiente, fazendo fé pública e caráter universal, perante tudo o mais que resultou demonstrado e provado em sede de audiência de julgamento, que convenceram e, bem o representante máximo da acusação, o Ministério Público do Tribunal a quo, devendo, por isso, o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se o FF dos crimes imputados e da indemnização decretada.
FAZENDO-SE ASSIM A NECESSÁRIA E COSTUMADA JUSTIÇA!
4.O Ministério Público apresentou resposta ao recurso em .../.../2025, nos seguintes termos (transcrição):
Na nossa ordem jurídica, o recurso é um instrumento processual que se insere no princípio constitucional do direito de acesso ao Direito e ao «duplo grau de jurisdição» (arts.º 20, 32 e 202 da C.R.P.).
Mas este direito ao recurso, tem alguns limites materiais e formais. Desde logo, materialmente, o recurso, não se apresenta como um novo julgamento a produzir numa instância superior, mas tão-somente, como um reapreciação selectiva de decisões em aspectos concretos, invocados pelo recorrente, sem prejuízo da possibilidade de algumas reavaliações oficiosas.
Tem portanto natureza instrumental, não se destinando a discutir questões académicas. Como alguns autores dizem, o recurso é apenas um «remédio» jurídico.
O recurso pode ter como fundamentos, questões de facto e questões de direito. Esta dicotomia, atravessa todo o regime dos recursos, estipulando requisitos diferentes para cada situação. Em todo o caso, quaisquer que sejam, os fundamentos do recurso, devem ser concretos, objectivos, precisos, digamos, cirúrgicos. Na verdade há que ter presente que o recurso de uma decisão, visa única e exclusivamente a apreciação dos fundamentos invocados nesse recurso (delimitados pelas conclusões - art.º 412-2) e não um novo julgamento.
Obviamente há questões de apreciação oficiosa, decorrentes da necessidade de evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto insuficiente, contraditória ou fundada em erro. Deve ser portanto o recorrente a levantar as questões, em termos tecnicamente correctos, garantindo assim, a sua apreciação e o triunfo das suas razões.
Sobre a sua importância, se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 15-02.2013 proferido no processo 827/09.3Pamd, in Dgsi.pt, 1- As conclusões da motivação do recurso são extraordinariamente importantes , exigindo muito cuidado devendo ser concisas , precisas e claras , porque as questões nelas sumariadas que serão objecto de decisão. 2- A repetição nas conclusões do que é dito na motivação , traduz-se em falta de conclusões , pois é igual a nada repetir o que se disse antes na motivação , equivalendo a falta de conclusões à falta de motivação . 3- Não havendo indicação concisa dos fundamentos explanados e desenvolvidos nas alegações , não há conclusões , pelo que o recurso deve ser rejeitado .
E , ainda no Acórdão da Relação de Coimbra, de 04.05. 2016 proferido no processo 721/13.8 tacld , in Dgsi.pt : 1- Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiencia comum , a fonte de tal convicção –obtida com o beneficio da imediação e da oralidade –apenas pode ser afastada se tiver demostrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da logica e da experiencia comum . 2- Torna-se necessário que demostre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica , uma impossibilidade probatória , uma violação das regras de experiencia comum , uma patentemente errada utilização de presunções naturais , ou seja , que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção . 3- Quando o Recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado , tal omissão não dá lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso já que as deficiências afectam o próprio corpo da motivação , ou seja , não estamos perante deficiências relativas apenas a formulação das conclusões mas perante deficiências substanciais da própria motivação . Ao fim e ao cabo, o que a recorrente põe em crise, é o princípio da livre apreciação da prova. Apenas isso.
O princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127.° do C.P.P. e aí, se diz que «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente», obviamente sem prejuízo dos critérios gerais que atribuem á prova, valor probatório especifico ou hierárquico ou a proíbam.
A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto. E na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos comportamentais e mímicos dos intervenientes, que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova - seja áudio, seja mesmo vídeo - por mais fiel que ela seja das incidências concretas da audiência. (v. neste sentido, Prof. Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211 e 271)
Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos. (para maiores desenvolvimentos sobre o tema: Ricci Bitti/Bruna Zani, in A comunicação como processo social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997).
De acordo com a Jurisprudência , proferida no processo 446/19.0T9CTB1 do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.02.2023, in DGSI.pt Sumário: I - O único limite que o princípio da livre apreciação da prova impõe à discricionariedade de apreciação da prova oral por parte do julgador resulta das regras da experiência comum e da lógica supostas pela ordem jurídica. II - A livre apreciação da prova oral é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, porque é a 1ª instância que vê e ouve o arguido e testemunhas, que aprecia os seus gestos, hesitações, espontaneidade ou a falta dela.
No processo 234/18.1GBPSR.E1, do Tribunal da Relação de Évora , em 13.07.2022 : Sumário: A livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica da prova, de acordo com as regras da lógica comumente aceite, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar e explicitar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão sobre a matéria de facto.
Ora, no caso destes autos, a Exmª Juíza, para decidir da matéria de facto, ponderou todas as provas de que dispunha, e avaliou-as à luz das regras da experiência comum, de acordo com juízos de normalidade, com a lógica das coisas e com a experiência da vida. Simplesmente, com tal alegação o recorrente limita-se a trazer aos autos a perceção que ele próprio teve da prova.
Da leitura da sentença revidenda verifica-se ter sido seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, ou violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas.
Assim, não foi violado o princípio da livre apreciação da prova. , in DGSI.PT No processo 16/21.3GAAVR.P1, do Tribunal da Relação do Porto , em 19.04.2023. Sumário: I - O artigo 127.º do Código de Processo Penal não fixa as regras da experiência como limite à discricionariedade, antes define essas máximas da experiência como fundamento da apreciação da prova, num ambiente de liberdade de aferição. II – O conceito de liberdade na convicção probatória significa que o julgador não está vinculado a conceções políticas ou ideológicas predefinidas ou a prova tarifada, podendo ajuizar as probabilidades das máximas da experiência necessárias à prova indireta, exigindo-lhe que se liberte dos seus processos psicológicos e da sua moral pessoal, e se coloque numa posição imparcial. III - A livre convicção probatória nada tem de discricionário, constituindo uma atividade profundamente vinculada ao cumprimento dos princípios e regras do direito probatório, às normas da experiência comum pertinentes e da lógica, sendo alvo de um denso escrutínio pelos sujeitos processuais. IV - A convicção do julgador não poderá ser íntima, nem ter segmento algum indecifrável, mas antes, transmissível e partilhável com as partes (num esforço de convencimento e esclarecimento) e com o Tribunal superior, havendo recurso. V - Se o juiz não souber explicar de forma racional a sua convicção, então tem de reconhecer que a mesma não é juridicamente válida, encontrando-se fora dos domínios do artigo127.º do Código de Processo Penal.
A convicção do Tribunal formou-se, como decorre da fundamentação aduzida, em face de dados objectivos conjugados com as regras da experiência comum, da normalidade da vida e das coisas, sem que se vislumbre qualquer apreciação arbitrária da prova, em violação dessas regras, pois que a conjugação e ponderação crítica de todos os elementos de prova permite as presunções, deduções ou interpretações.
Aduziremos ainda que analisada a decisão recorrida, quanto aos factos provados e sua motivação, verifica-se que o Tribunal “a quo” formou a sua convicção de forma muito bem estruturada, clara e fundamentada, em que medida os factos foram valorados e por que motivos lhe mereceram credibilidade e de forma exaustiva, estando isenta de dúvidas e tecnicamente correcta.
Concretamente da fundamentação da convicção do Tribunal “a quo”, constata-se ter sido seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão incongruente, arbitrária ou violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas disponíveis, tendo a convicção expressa pelo tribunal suporte mais que razoável nas mesmas, dela estando isenta qualquer discrepância.
A fundamentação da decisão recorrida, no exame crítico da prova, explica de forma detalhada (exaustiva, até) os motivos pelos quais os elementos de prova foram, conjugadamente, valorados no sentido em que o foram, sendo perfeitamente inteligível o itinerário cognoscitivo que conduziu o tribunal, que beneficiou da oralidade e da imediação, à convicção alcançada, com suporte na regra estabelecida no art. 127.º do CPP, não se mostrando violado qualquer princípio, norma legal ou regra da experiência na apreciação da matéria de facto, não merecendo, por isso, qualquer reparo a formação dessa convicção, bastando para tal fazer uma renovada leitura da mesma. Pelo que a decisão não merece censura devendo ser mantida na integra.
Conclusões
1. A sentença efectuou uma correcta avaliação probatória.
2. Respeitou o principio a que alude o artigo 127º do Código Penal.
3. Deve ser mantida na integra.
4. O recurso deve ser julgado improcedente.
5.Nesta Relação, o Exmo. Sr.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em .../.../2025, que a seguir se transcreve nas partes relevantes:
III. POSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NESTA 2.ª INSTÂNCIA
Confrontados os fundamentos do recurso e a douta decisão recorrida, em consonância com a resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância, também entendemos que a douta sentença recorrida não merece qualquer reparo, encontrando-se bem fundamentada e de acordo com a lei, sendo a pena aplicada adequada e necessária às exigências que no caso se fazem sentir, tendo em consideração as finalidades de proteção dos bens jurídicos em causa e a reintegração do arguido na sociedade.
Como bem se refere na referida resposta do Ministério Público, a discordância do Recorrente em relação à fixação da matéria de facto, não passa de uma tentativa de por em crise o princípio da livre apreciação da prova, para o que não se deteta fundamento válido nas doutas alegações. Citando jurisprudência mencionada nas referidas contra-alegações, pode dizer-se que “da leitura da sentença revidenda verifica-se ter sido seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, ou violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas”. E, como também se refere na referida resposta ao recurso, “a convicção do Tribunal formou-se, como decorre da fundamentação aduzida, em face de dados objetivos conjugados com as regras da experiência comum, da normalidade da vida e das coisas, sem que se vislumbre qualquer apreciação arbitrária da prova, em violação dessas regras, pois que a conjugação e ponderação crítica de todos os elementos de prova permite as presunções, deduções ou interpretações. (…) o Tribunal “a quo” formou a sua convicção de forma muito bem estruturada, clara e fundamentada, em que medida os factos foram valorados e por que motivos lhe mereceram credibilidade e de forma exaustiva, estando isenta de dúvidas e tecnicamente correta. (…) A fundamentação da decisão recorrida, no exame crítico da prova, explica de forma detalhada (exaustiva, até) os motivos pelos quais os elementos de prova foram, conjugadamente, valorados no sentido em que o foram, sendo perfeitamente inteligível o itinerário cognoscitivo que conduziu o tribunal, que beneficiou da oralidade e da imediação, à convicção alcançada, com suporte na regra estabelecida no art. 127.º do CPP, não se mostrando violado qualquer princípio, norma legal ou regra da experiência na apreciação da matéria de facto, não merecendo, por isso, qualquer reparo a formação dessa convicção, bastando para tal fazer uma renovada leitura da mesma”.
Por conseguinte, acompanhando a resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância, sou de parecer que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, julgando-o improcedente e confirmando-se a douta sentença recorrida.
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Cumprido o n.º2 do art.º 417.º, do CPP veio o arguido responder, em síntese, para dizer que mantém na integra o por si alegado no recurso que deverá proceder.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. OBJECTO DO RECURSO
Constitui jurisprudência e doutrina assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).2
Na Doutrina, por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume II, 5.ª Edição atualizada, pág. 590, “As conclusões do recorrente delimitam o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso. Nelas o recorrente condensa os motivos da sua discordância com a decisão recorrida e com elas o recorrente fixa o objecto da discussão no tribunal de recurso(…) A delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente das nulidades insanáveis que afetem o recorrente(…) não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º2 que afetem o recorrente(…).”
Nos termos do n.º 1 do art.º 410.º, do CPP (Fundamentos do recurso):
1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem a matéria de facto e a matéria de direito (art.º 428º do C.P.P), podendo o recurso, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (art.º 410º, nº 1 do C.P.P).
Tendo em conta a natureza das questões submetidas no recurso, importa respeitar as regras da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais (artigo 608º, nº 1 do Código de Processo Civil, “ex vi” do artigo 4º do Código de Processo Penal).
Atendendo às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada são as seguintes as questões a apreciar, por ordem de precedência lógica:
1.ª Da (in) verificação das nulidades insanáveis previstas no art.º 119.º, als. b) e d) do CPP.
2.ª Da impugnação (ampla) da decisão sobre a matéria de factos (art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP): Se ocorre erro de julgamento relativamente aos pontos da matéria de facto provada, em especial pontos 7 a 10, 12, 13 a 17, 19 a 21 e 23 a 26 dos factos provados, se ocorre violação do in dubio pro reo, dos princípios da livre convicção, da imparcialidade e contraditório na apreciação da prova.
3.ª Da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil e montante indemnizatório fixado.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1- Na data de leitura da audiência ocorrida em .../.../2025 foi proferido o seguinte DESPACHO:
"Nos termos e para os efeitos do artigo 358º, nº 1 do Código de Processo Penal, o Tribunal comunica à defesa a seguinte factualidade que será dada como provada e que se considera constituir uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação e concretamente que: Desde data não concretamente apurada, ocorrida pelo menos a partir de ..., o casal passou a suspeitar de infidelidade de parte a parte, o que gerando discussões, levou a que passassem a insultar-se reciprocamente. Por outro lado, ciente da sua superioridade financeira, e da dependência económica da mulher, mesmo sabendo que que esta não pretendia manter qualquer intimidade sexual com o mesmo, o arguido dizia que “queria cona”, (sic), e que se a mesma não lha desse, teria que começar a pagar renda de casa, e não compraria mais nada para casa, o que levava a ofendida a satisfazer a vontade do arguido." Pela defesa do arguido foi dito nada ter a opor ou a requerer.
III.2 O Tribunal recorrido deu como provados e não provados, na sentença condenatória, os seguintes factos de acordo com a seguinte Motivação de facto:
“II- Fundamentação:
A) Provados:

O arguido AA, e EE casaram entre si em ... e passaram a coabitar, residindo na ....

Do casamento nasceu uma filha em comum, DD, a ........2005, que com eles coabitava.

Desde data não concretamente apurada, ocorrida pelo menos a partir de ..., o casal passou a suspeitar de infidelidades de parte a parte, o que, gerando discussões levou a que se passassem a insultar reciprocamente.

Assim, enquanto o arguido apelidava a mulher de “Vaca; puta; cabra; mula; filha da puta”, já esta chamava-o de “cabrão, corno, estúpido, filho da puta”.

No dia ........2022, pelas 23h00, o arguido regressou a casa e guardou no armário do quarto um saco de ráfia que continha a sua roupa e botas de trabalho, em vez de o deixar na varanda como fazia habitualmente.

Porque EE lhe disse que acabara de limpar o quarto, o arguido disse-lhe que era ele quem mandava ali, porque a casa era dele.

Acto contínuo, EE com força, apertando-lhe fortemente o braço direito.

Da conduta descrita, resultaram dores e um hematoma no braço direito de EE.

No dia ........2022, na residência do casal, em hora não concretamente apurada, o arguido começou a discutir com EE por não querer que o namorado da filha lá fosse a casa.
10º
A intensidade da discussão aumentou e, a dada altura, o suspeito destruiu o telemóvel e o computador de EE, pisando-os com as botas de trabalho.
11º
Enquanto pisava e destruía o computador, o suspeito gritava em voz alta:
“EE não faças isso, estás a partir o computador; para”.
12º
Depois, o suspeito desferiu algumas chapadas na cara de EE, causando-lhe dores.
13º
Em ..., em dia não concretamente apurado, o arguido disse a EE que esta tinha de retirar o seu nome da conta conjunta, ao que a mesma anuiu e respondeu que o faria depois de falar com a sua gestora de conta.
14º
Posteriormente, o arguido perguntou a EE pela situação do banco e disse-lhe:
“Vou-te foder a vida toda”.
15º
Quando combinaram ir ao banco por a gestora de EE não lhe ter respondido e a mesma ter uma consulta, acabaram por sair do banco sem nada terem resolvido ao que o arguido lhe disse que queria que a sua consulta “se fodesse”.
16º
Em seguida, o arguido dirigiu-se a casa e levou consigo a chave do carro que EE usava nas suas funções de motorista ....
17º
Como esta foi atrás dele para recuperar a chave, o arguido partiu a chave, o que impediu EE de trabalhar e a fez gastar € 200,00 (duzentos euros) para adquirir uma chave nova.
18º
No dia ........2024, o arguido ficou exaltado por não encontrar o comando da televisão e começou a revirar a sala, local onde EE dormia há pelo menos ano e meio e onde guardava as suas roupas.
19º
Chamada pela filha que estava assustada e com medo do pai, EE, que estava a trabalhar, foi de imediato para casa.
20º
Ao chegar, o suspeito disse-lhe em tom ameaçador e apto a causar-lhe medo:
“Puta”;
“Vaca”;
“Foste uma chula a vida inteira”;
“Eu é que pago tudo aqui em casa”;
“Vou queimar a tua roupa toda”;
“Vou foder a tua vida toda”;
“Tiraste-me o comando”;
“Vou partir o sofá e vais dormir no chão”.
21º
Quando EE lhe disse que ia chamar a polícia o suspeito respondeu-lhe:
“Chama, eu tenho muitos amigos na polícia isso não dá em nada”:
22º
No dia no dia ........2024, quando foi à casa onde até à data residia com a vítima para recolher os seus objetos pessoais, pese embora acompanhado pela polícia e referindo-se a EE e DD, o arguido proferiu:
"Agora é que elas estão as duas fodidas comigo";
23º
O arguido já cortou os fios do interruptor da sala para EE não ter luz.
24º
Sabendo que é o local onde EE dorme, o suspeito já fechou os gatos na sala para lá fazerem as suas necessidades.
25º
O arguido deixou de contribuir para a casa, incluindo as despesas da filha, mas por diversas vezes exibia-se diante de EE e de DD coisas novas que comprava para si para mostrar que tinha mais poder de compra e com isso conseguia diminuí-las e humilhá-las.
26º
Aliás, ciente da sua superioridade financeira e da dependência económica da mulher, mais sabendo que esta não pretendia manter qualquer tipo de intimidade sexual com o mesmo, o arguido dizia-lhe que “queria cona” (sic) e que se a mesma não lha desse então teria de começar a pagar renda de casa e não compraria mais nada para casa, o que levava a ofendida a satisfazer a vontade do arguido.
27º
Ao actuar como descrito, o arguido agiu com o propósito de molestar a saúde física, psíquica e emocional de EE, de a humilhar, diminuir e desconsiderar em todas as dimensões, agindo com desprezo pela sua dignidade pessoal, bem como medo, angústia e sofrimento que pudesse esta pudesse sentir, o que logrou alcançar não obstante ter para com ela um especial dever de respeito e cuidado, bem como de a tratar com dignidade.
28º
O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
29º
O arguido não tem antecedentes criminais.
30º
Do percurso de vida do arguido e sua condição social, provou-se que:
Na sequência da aplicação da medida de coação de proibição de contactos com a vítima com
vigilância eletrónica, o arguido passou a residir junto dos seus progenitores, num apartamento dos mesmos.
O percurso de desenvolvimento psicossocial de AA decorreu inicialmente na aldeia de
... e quando tinha cerca de 11 anos de idade o agregado deslocou-se para ..., na procura de melhor qualidade de vida.
Não obstante, a modesta situação do agregado, foi referida uma vivencia em contexto familiar
estruturado, com laços afetivos e de apoio entre os todos os elementos do agregado. É o único filho do casal.
A trajetória escolar de AA foi marcada por várias retenções, que atribuiu a dificuldades de aprendizagem/desinteresse. Abandonou o sistema de ensino após a conclusão do equivalente ao 8º ano de escolaridade, tinha então 20 anos de idade em regime noturno.
À data dos factos da acusação, trabalhava em nome individual na construção civil. Porém, encerrou a empresa, encontrando-se e, de acordo com o documento apresentado, em situação de desemprego desde .../.../2025. Neste contexto, em .../.../2025 solicitou o Rendimento Social de Inserção.
Atualmente a situação económica do agregado apresenta-se mais restritiva, conseguindo assegurar condições básicas de subsistência, assente essencialmente nas reformas dos progenitores, que no total perfazem 890,00€ mensais. Vivem em casa própria. Deduzem as despesas fixas inerentes às despesas da habitação (água/luz/gás e comunicações). Ajudam financeiramente a neta consoante as suas possibilidades. O arguido vai efetuando trabalhos ocasionais na área da construção civil e suporta o crédito bancário no valor de cerca de 220,00€ mensais, referente à casa, habitada pela vítima.
A filha, autonomizou-se e vive com o atual companheiro, em ....
O arguido presta apoio ao pai, que se encontra dependente de terceiros há cerca de cinco anos, alegadamente por padecer da doença de Alzheimer.
Encontra-se divorciado de EE desde ....
31º
Do pedido civil, provou-se ainda que:
Em consequência das condutas do arguido, a demandante sentiu sofrimento, vexame, perturbação, insegurança e receio pelo ambiente intimidatório, hostil, humilhante e desestabilizador.
E sofreu perturbação do sono, receio pela sua integridade física e angústia quanto ao seu futuro, o que comprometeu o seu bem-estar, relacionamento social e prestação laboral.
B) Factos não Provados:
Não se demonstrou a restante factualidade descrita na acusação que aqui se dá como reproduzida.
Assim, com relevo para a causa, não se provou, designadamente que:
Desde data não concretamente apurada, mas durante o ano de ..., o suspeito começou a desferir murros, bofetadas, pontapés e puxões de cabelos à sua esposa EE.
Desde data não concretamente apurada, mas durante o ano de ..., o suspeito começou a desferir murros, bofetadas, pontapés e puxões de cabelos a DD, filha de ambos.
Como consequência das agressões descritas em 12º, EE teve dores fortes e precisou de assistência médica.
No dia ........2023, pelas 8h30, no interior da habitação do casal, o suspeito foi ter com EE que estava no sofá e começou a discutir por causa dos cartões do telemóvel (NOS) e acrescentou que ia retirar-lhe a chave do carro, sabendo que EE, motorista de ..., necessitava do mesmo para trabalhar.
Como EE recusou, o suspeito agarrou-a pelos cabelos, puxou-a do sofá e arrastou-a pelo chão da sala até à porta de entrada, com o intuito de a por fora de casa.
O suspeito só não conseguiu fazê-lo porque foi interrompido pela filha, DD.
De forma agressiva e adequada a causar-lhe medo e inquietação, disse a EE que esta teria de abandonar a casa.
Na sequência do provado em 17º o arguido disse a EE: “Vamos lá ver se o teu carro não vai aparecer todo fodido”.
Em data não concretamente do mês de ..., o suspeito chegou a casa de madrugada, abriu a porta da sala e insistiu que queria falar com EE, que lhe pediu para ir embora mais de uma vez.
Quando EE tentou fechar da sala, o suspeito impediu-a de o fazer com o pé, ao que aquela gritou:
“Para, deixa-me em paz”.
Ao ouvir isto o suspeito respondeu:
“Grande lata, puta do carvalho, a dizer que lhe estava a bater”.
Por diversas vezes, o suspeito vasculhou e mexeu nos pertences de EE.
Além das expressões e agressões já enunciadas, o suspeito já cuspiu para a cara de EE.
Mais sabia o arguido que praticava as condutas que lhe são imputadas diante da sua filha, ainda menor em algumas das situações, com total desprezo e desconsideração pela sua necessidade de proteção, segurança e cuidado, sendo prejudicial ao seu são e integral desenvolvimento a sujeição a contextos tóxicos e degradantes como o supra descrito.
O suspeito manifestou ainda desprezo pela saúde da sua filha DD, a quem agrediu fisicamente com o propósito, alcançado, de molestar a saúde física, bem como psíquica e emocional.
C) Motivação:
O tribunal procedeu de forma atenta, crítica, à análise da prova que foi trazida a audiência, conjugando-a com a que já constava dos autos e que nos é legítimo valorar, por acordo com os sujeitos processuais, designadamente as declarações que o arguido prestou, quer em sede de primeiro interrogatório judicial, quer na fase de instrução.
A defesa do arguido visou transmitir a este tribunal a ideia de que a ora ex-mulher do arguido é que sempre foi uma pessoa violenta, nervosa e era quem maltratava o marido e a filha, sendo os relatos da mesma o oposto dos factos que ocorreram. Ou seja, o arguido, coloca-se numa posição de vítima de uma grande mentira, trazida a julgamento, sustentada inicialmente também pela sua filha, por medo e manipulação da mãe.
Ora, EE é, conforme se percepcionou ao longo dos actos do julgamento, uma mulher frontal, espontânea, impulsiva, mas genuína, que é certo, peca por irreflexão, o que conjugado com descontrolo e nervosismo, redunda numa certa agressividade, mas não faz da mesma uma mulher menos sofrida, menos sentida na sua dignidade, muito menos mentirosa. Mentira essa que aliás a mesma bem se viu censurar ao longo da produção de prova, até quando repreendeu a sua filha, em pleno julgamento, do que não se coibiu de fazer, apesar do local onde se encontrava. Filha que, ao longo do processo veio a apoiar quem mais lhe convinha, apresentando-se como uma falsa assistente constituída para em julgamento se aliar à defesa do pai, patrocinada pelo mesmo e a expensas certamente deste que suporta os honorários da advogada que agora mandatou.
Note-se que a ora assistente abusou do seu estatuto desvirtuando-o para poder participar em julgamento como se fosse uma segunda defesa do arguido.
E se é certo que esta adolescente sempre vivenciou violência enquanto morou com os pais, ora apoiando a mãe, ora apoiando o pai, num dilema psicológico que a terá levado à exaustão, não menos certo é que, quando o seu pai deixou de pagar as contas de casa e outros luxos que a sua mãe não conseguia custear, com o que auferia do seu trabalho como motorista ... que aliás se viu na necessidade de enveredar por não pretender depender financeiramente do arguido, apoiou a mãe e acusou o seu pai como sendo o agressor. No entanto, mal a sua mãe lhe pediu colaboração para que arranjasse um trabalho, ajudando nas despesas de casa, afinal a assistente não quis estudar para além do 9º ano de escolaridade, já quando o arguido não vivia com as mesmas, eis que a ora assistente foge para a casa do namorado com quem passou a residir e pede ajuda financeira ao pai, o que certamente conseguiu. Foi aliás isso que nos deu conta EE, que com desilusão e sofrimento que não conseguiu disfarçar do tribunal, concluiu que a filha a abandonou e que sempre fez de tudo para que nada lhe faltasse, não negando as discussões que mantiveram, mas que apenas pretendia que a filha se fixasse num emprego estável.
Aliás, em julgamento, esta jovem apresentou-se transtornada, algo desnorteada e descontrolada, mas inequivocamente sofrida, provavelmente a principal vítima deste confronto judicial entre os seus pais, apelando a uma justiça que agora construiu para ilibar o seu pai (certamente com receio de uma condenação), o mesmo que outrora considerara ser agressor.
A mãe, é certo, é uma pessoa directa, exigente e que não alimentou os hábitos de ociosidade da filha, o que gerou conflituosidade entre ambas. Ante o temperamento da ofendida, não custa crer que esta tenha dito à filha que a ia privar de alimentação. Ainda que se censure, obviamente, este jeito “educativo”, a ora assistente abandonou a mãe e aliou-se ao pai para vir agora sustentar a sua inocência invocando que o seu relato anterior é falso e se deveu a uma pressão psicológica exercida pela sua mãe e que para além disso “pensava que o pai a tinha abandonado” (sic).
Acredita-se, com efeito, nas faltas de respeito entre o casal, sendo banal o distrate entre ambos, os insultos recíprocos como forma de resposta aos conflitos e discussões a que a filha do casal assistia.
O temperamento evidenciado pela demandante aliás a outra conclusão não conduz, sendo manifesto que a mesma não aguenta um insulto sem responder ao mesmo com outro insulto.
No entanto, crer que a assistente tenha mentido em inquérito por acreditar que o pai a “tinha abandonado”, acusando agora a mãe de pressão psicológica, ainda que se reconheça a tensão das relações, é algo que não convence este tribunal, estando esta jovem a ser instrumentalizada, ainda que se tenha desentendido com a mãe desde o verão de ..., quando decidiu ir morar com o namorado.
A forma como prestou declarações, alegando aliás que os escritos que constam dos autos a fls. 405-B e 424 não foram da sua lavra, limitando-se a redigir o que o advogado lhe dizia/ditava, sem saber o sentido do que escrevia, sem o ler, sustentando até ser tudo mentira, apenas significa que a ora assistente tem sido infelizmente usada como um instrumento da defesa do seu pai, o que se mantém.
Daí que de acordo com as suas novas declarações a mãe passou de vítima a agressora e o pai de agressor a vítima.
A assistente não pode ter assistido apenas a um episódio de violência entre os pais como o que mencionou (ainda que com contornos bem distintos dos ocorridos) para talvez tentar justificar o hematoma no braço direito que a mãe apresentou quando pela primeira vez, por referência ao dia ... de ... de 2022, EE, decidiu quebrar o silêncio acerca da violência a que o marido a sujeitava, ainda que para depois acabar por desistir desse processo como mencionou (cfr. auto de fls. 74 e ss e fotografia de fls. 105).
E não pôde porquanto a violência entre o casal passou a ser constante sobretudo a partir de ... enquanto ambos se acusavam de manterem relacionamentos extraconjugais. Como contextualizou EE e se depreendeu das suas declarações, a mesma passou a dormir no sofá da sala e decidiu ir trabalhar como motorista ... (nunca tendo até então trabalhado fora de casa) tentando não depender financeiramente do arguido.
O casal deixou de ter vida sexual em comum, mas o arguido, que era quem continuava a pagar o essencial das despesas do agregado, fazendo-se valer dessa capacidade financeira, fazia com que a mulher se entregasse ao mesmo sexualmente como meio de pagamento pela sua permanência em casa pois que de outra forma passaria a pagar renda e as coisas não eram compradas para casa. No recordar de EE o arguido dizia-lhe que ela lhe tinha de dar “cona” (sic), o que a levava a anuir aos seus pedidos ainda que o arguido indiferente à sua vontade, soubesse que a mesma não o pretendia.
A ofendida recordou os episódios que a acusação descrevia nos termos em que se deram como provados, contextualizando as discussões ocorridas, as motivações, fazendo-o com clarividência, espontaneidade evidenciando um sentimento de pesar pelo vivenciado, em momento algum tendo empolado as situações, nem as dramatizou.
Recordou ainda o episódio do comando da TV da sala que afinal tinha caído para a gaveta do sommier da cama onde o arguido dormia, tendo sido acusada pelo arguido de lhe ter “roubado” o comando, bem como as expressões que o arguido lhe dirigiu, agora olvidadas pela assistente que a tudo assistiu e que foi quem temendo a reacção do seu pai pediu à mãe, que estava a trabalhar, para regressar a casa.
EE não dormia no sofá da sala somente para ver as suas novelas quando chegasse durante a noite da sua jornada de trabalho e ainda para não incomodar o arguido, como este quis fazer ver ao tribunal. O arguido aliás manifestou ao longo do processo enorme incompreensão pela versão que a sua mulher apresentou (e inicialmente até pela sustentada pela filha), sem conseguir encontrar tamanha motivação maldosa. Note-se que já anteriormente à queixa que deu origem aos autos (cf. auto de ........2024 a fls. 3 e ss, EE tinha reportado situações específicas de violência. Fê-lo em ... como já mencionado, cfr. ainda aditamentos àquele auto a fls. 114, a fls. 131, que revelam a conflituosidade permanente e ainda em ... de ... de 2023 – auto de fls. 136 e ss e aditamentos de fls.171 e 172, dos quais se infere ter sido vontade da ofendida em não prosseguir com o processo, equacionando ainda uma reconciliação com o arguido.
Assim, os relatos de EE e os seus pedidos de ajuda às forças da justiça não se deveram a uma capacidade inventiva para elaborar um guião novelístico pois que a vida real que a mesma levava a cabo era suficientemente rica em episódios de violência, uns que a mesma ia sofrendo em silêncio, outros que relevava, outros que denunciou e outros por fim que em julgamento recordou.
A postura que o arguido manteve em julgamento, optando por falar a final, aparentemente muito calmo, mas pouco acrescentando ao que já dissera nas fases processuais anteriores, fazendo-se passar por vítima da agressividade da “sua senhora” (sic), que caiu numa “cilada”, que é muito nervosa (o que se constatou efetivamente) que nunca sequer na mesma tocou, culimando num choro descontrolado e sem aparente razão, que terá convencido alguns a crer nas alegações do Ministério Público, é uma postura de vitimização essa sim encenada e que não pode vingar.
As condutas recordadas pela ofendida e que o arguido levou a cabo são um conjunto de actos que por vingança, de um homem que se sentia traído, visavam rebaixar a ofendida, prejudicando a sua nova vida profissional que claramente o arguido não queria que a mesma levasse a cabo porque lhe dava uma certa autonomia financeira que a mesma nunca antes tinha tido, fazendo com que a mesma sentisse desconforto na sua casa, perturbando o seu sossego e tranquilidade, rebaixando-a como pessoa e como mulher.
As declarações prestadas por EE que o tribunal, pelo exposto, valorou, são sólidas e consistentes e não foram abaladas pela demais prova trazida a julgamento por muito que as defesas, contando aqui com o novo papel da assistente no processo penal, tentasse desacreditá-las.
Com efeito, II, amigo da assistente, visitou a casa deste nalgumas ocasiões mas acrescentou que o arguido praticamente nunca estava sequer em casa. Recordou, no entanto, uma discussão entre o então casal a que assistiu por causa de um veículo que até estava lhe emprestado a si e à assistente, cuja utilização o arguido reclamou. Ouviu EE a chamar o arguido de “filho da puta”, aludindo ainda ao facto de se tratar do aniversário de EE e de o arguido não ter sido convidado para o almoço. Para além disso, recordou ainda ter ouvido enquanto estava em chamada telefónica com a assistente a mãe da mesma a discutir dizendo que a assistente era “uma merda e que não queria fazer nada”.
Por seu turno, JJ, actual namorado da assistente referiu ter estado em três ocasiões com a mãe da namorada, assistindo a discussões e a gritaria, alegando ter ouvido EE a dizer à assistente que lhe tiraria água e comida, sabendo ainda que por lhe ser sido transmitido, que EE tinha agredido a assistente.
Já KK, que se disse amiga da família, na verdade acabou por revelar que nunca teve intimidade com a mesma.
LL, primo do arguido também convivia ocasionalmente com o casal em restaurantes e em tais contextos nunca assistiu a qualquer discussão.
O mesmo se diga de MM que apesar de alegar frequentar a casa do casal, saber que EE dizia mal da sogra e que o arguido era trabalhador, nada mais soube esclarecer.
Quanto a NN, tia por afinidade do arguido, senhora que nem olhou para o tribunal quando era interpelada por este, falou de um clima hostil numa casa que afinal nunca frequentou, limitando-se genericamente a dizer o que pensa do arguido.
Destes relatos nada mais se pode inferir do que o já descrito. Existia um ambiente familiar de conflituosidade latente, com discussões e troca e insulto verbais constantes.
Por fim, OO, mãe da demandante EE, declarou ter conhecimento dos problemas conjugais deste casal através da sua filha e ainda que a mesma era obrigada a ter relações sexuais com o arguido para não ter de pagar renda. Referiu que a filha não andava bem psicologicamente mas que acalentava que o arguido viesse a mudar, apesar de o mesmo andar a fazer outra vida fora de casa, dias existindo em que nem a casa vinha dormir. Por outro lado, mencionou ainda com sinceridade que o arguido chegou a desabafar com a mesma e que admitiu que tratava mal a mulher, que discutiam e que lhe tinha batido mas que nunca se intrometeu na vida do casal, mormente opinando quanto à separação do mesmo.
A matéria que o tribunal deu como não provada não foi corroborada em audiência nem por EE, não tendo sido descrito um episódio específico de violência física dirigia contra a sua filha, que aliás a acusação também não o efectuava para além da utilização de uma fórmula genérica, nem por qualquer outro meio de prova suficiente do qual o tribunal legalmente se pudesse socorrer.
Relativamente à matéria do pedido civil, ainda que tenha ficado prejudicada qualquer factualidade que naquela peça processual se reportasse à assistente, ante as suas declarações, procurou o tribunal expurgar da mesma os juízos conclusivos e de direito, levando aos factos provados somente os factos que se prendem com os sentimentos vivenciados pela demandante, consequentes à actuação do arguido.
Analisou-se o relatório social, ainda que baseado somente em entrevista ao arguido e bem assim o CRC do arguido.
III.3- O Tribunal recorrido Fundamentou de direito a decisão recorrida da seguinte forma:
III- O Direito:
Vistos os factos, analisemos o direito aplicável:
Dispõe o artigo 152º do CP, sob a epígrafe violência doméstica, que:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (ratificada por Portugal em 2013), no seu artigo 3º, alínea b) estabelece que, para os respetivos efeitos, «Violência doméstica» abrange todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima.
Entre nós, o tipo de ilícito em apreço, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visa tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade. O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser atingido por todos os comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge, de pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que coabite com o agressor, ou de descendente menor, ainda que com ele não coabite (cf. alíneas a), d) e e) do nº 1 do artigo 152º do Código Penal).
O preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos.
Por outro lado, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja, hoje, um requisito não imprescindível – uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma. A unidade de ação típica não é excluída pela realização repetida de atos parciais, quer estes atos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime. O tipo legal inclui na descrição da ação uma pluralidade indeterminada de atos parciais.
Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma ação isolada do agente (tão-pouco com vários atos temporalmente muito distanciados entre si), já vinha sendo entendido pela jurisprudência que, em certos casos, uma só conduta, pela sua excecional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.
Importa, assim, analisar e caracterizar o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal das vítimas que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão, «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é suscetível de se classificar como “maus tratos”.
Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30.06.2015, «essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afectar a dignidade pessoal do outro elemento do casal». Em síntese: «A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside, na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva».
Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele.
Por outro lado não pode deixar de ser tido em conta, como se expõe no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.01.2013, que “Aquilo que o legislador pretende não é - apenas - evitar que a pessoa inserida na relação de convivialidade seja «sovada», objecto de torturas, actos cruéis e vingativos, de ofensas que deixem mossas, sim que a sua dignidade individual como pessoa humana que estabeleceu voluntariamente uma relação como igual seja tratada como digno igual, evitando o tratamento como objecto de agressões, de fácil humilhação, de achincalhamento, de menosprezo pela sua dignidade individual e veja negada a sua importância familiar e social através da prática dos factos descritos no tipo. Assegurado isto, a dignidade, assegurado fica o respeito e o evitar da escalada para a crueldade.
Ou seja, a existência da crueldade não é elemento do tipo – o que ajuda a afastar a anterior jurisprudência que apostava na crueldade quer para caracterizar o acto não reiterado, quer os resultados – em sede de facto – que caracterizam uma postura desnecessariamente exigente, dos danos verificáveis.”
E mais adiante, ainda no mesmo aresto, “Que aquela violência está pressuposta no tipo também nos parece evidente. Que deve ser aferida em função dos dois pólos subjectivos e do pólo objectivo da situação também nos parece ser de impor.
Assim, aceitando os critérios propostos por Nuno Brandão, entendemos ser exigível que a análise - fazendo apelo essencial à «imagem global do facto» - se debruce, no pólo objectivo, pela existência de uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração; subjectivamente e da parte do agressor uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; da parte da vítima o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.
No caso dos autos,
Provou-se que a partir de ... o arguido e a mulher passaram a ter divergências, discutindo e insultando-se com reciprocidade.
EE passou a dormir no sofá da sala, levando para esta assoalhada a sua roupa de modo a não ter de privar com o arguido, não pretendendo mais manter relacionamento sexual com o marido, o que ainda gerou mais agressividade por parte do arguido. Assim e para além de vincar que quem mandava naquela casa era ele o arguido rebaixava constantemente a mulher, chegou a agredi-la fisicamente e partiu o seu telemóvel e o seu computador.
Para além disso para boicotar a sua capacidade de trabalho e rendimentos que deste auferia para não depender financeiramente do arguido, partiu a chave do carro que usava como motorista ..., que importou um custo de € 200,00.
O arguido manteve relações sexuais com a mulher contra a vontade desta, como bem sabia.
Exigiu-o como moeda de troca, para que nada faltasse em casa e as contas fossem pagas, considerando assim paga a renda da habitação que passaria a cobrar da mulher.
Com esta conduta o arguido coisificou a mulher, reduziu-a a um objecto sexual que passou a dispor, para sua exclusiva satisfação, valendo-se da dependência económica e da falta de alternativa de residência com que EE se confrontava, algo que é de uma humilhação inqualificável e de indiferença pela vontade e bem-estar do outro.
Para além disso, o arguido ameaçava a mulher e passou a arranjar esquemas para provocar a mulher e lhe retirar o pouco conforto que a mesma tinha no sítio onde pernoitava cortando-lhe a luz da sala, levando os gatos para esta assoalhada para ali deixarem as suas fezes e para a ofendida as ter de limpar.
Fê-lo no domicílio comum e por vezes na presença da filha, que no entanto já não seria menor de idade.
Tal tratamento gera repulsa por ser degradante e se inconciliar com o tratamento de um ser humano e por isso maltratante.
Deve o arguido ser condenado pelo crime de violência doméstica agravado praticado na pessoa da sua ex-mulher mas absolvido quanto ao mais.
IV- Determinação da medida da pena:
O crime de violência doméstica pelo qual o arguido vai condenado é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
De acordo com o disposto no artigo 40º do Código Penal, «as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Assim, a medida da pena há-de ser dada pela medida da tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, que se traduz na tutela das expectactivas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada» (cfr. Figueiredo Dias, in «Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime», Aequitas, p. 227) – cfr. artº 40º, nºs 1 e 2, do Código Penal.
Assim, para a determinação concreta da pena, balizada pela moldura penal abstrata, importa apreciar três fatores: a culpa manifestada pelo arguido na prática do crime em causa, como limite máximo da pena concreta; as necessidades de prevenção geral, como limite mínimo necessário para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar das normas violadas em relação aos valores e bens jurídicos que lhe subjazem; e as necessidades de prevenção especial manifestadas pelo arguido, que vão determinar, dentro daqueles limites, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e/ou ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de novos crimes.
Nessa conformidade, nos termos do artº 71º do Código Penal, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (na medida em que já foram valoradas pelo legislador ao fixar os limites abstratos da moldura legal), funcionem como atenuantes ou agravantes, circunstâncias essas que estão elencadas exemplificativamente no nº 2 do referido preceito legal.
No caso dos autos,
Os bens ou valores jurídicos lesados são comunitariamente muito relevantes,
De destacar, as elevadíssimas necessidades de prevenção geral atentos os bens jurídicos protegidos e a grande frequência com este tipo de crime ocorre na comunidade, tantas vezes com resultados (infelizmente) dramáticos, como se sabe.
Não são, prementes as exigências de prevenção especial posto que o arguido não conta com antecedentes criminais, mas não se descuram ante a personalidade violenta que o mesmo face aos factos evidencia.
O arguido não só não admitiu aos factos como para além de se vitimizar usou a sua filha para dar sustento à sua defesa, visando diabolizar EE, o que é particularmente perverso e censurável.
No que respeita à culpabilidade do arguido, importa frisar a intensidade do dolo com que actuou, directa contra a pessoa da ofendida.
O grau de ilicitude é da mesma sorte elevado ante as consequências das suas condutas na saúde da ofendida, na sua auto estima e na sua qualidade de vida, nas humilhações e rebaixamentos a que sujeitou a mulher, que após mais de duas décadas de convivência marital, acabou por reduzir a um objecto sexual.
Assim, tudo visto e ponderado, considerando o grau de culpa do arguido e consequências da sua conduta, revela-se ajustado fixar a pena em 2 anos e 10 meses de prisão.
Mais se decide aplicar a pena acessória de proibição de contactos com a ofendida EE pelo mesmo período de 2 anos e 10 meses, nos termos do artigo 152º, nº 4 do CP.
Ponderação da suspensão da execução da pena de prisão cominada:
Nos termos previstos no artigo 50º, nº 1 do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Como se ponderou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2021, “Para a aplicação da suspensão da execução da pena (artigo 50.º, do CP), a lei define um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) e estabelece pressupostos subjectivos, determinados por finalidades político-criminais – os que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente.
Trata-se, de alcançar a socialização, prevenindo a reincidência.
Assim, sempre que o julgador puder formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial sobre a possibilidade de ressocialização do arguido, deverá deixar de decretar a execução da pena.
Estão em causa, não considerações sobre a culpa, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção.
Pretende-se, como sublinha, com incontornável autoridade, o Professor Figueiredo Dias, «o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correcção, melhora ou – ainda menos – metanóia das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É, em suma, uma questão de legalidade e não de moralidade que aqui está em causa. Ou como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência.
Depois de se optar por uma pena detentiva, à luz das considerações e com os critérios legais sobre-expostos, importa, pois, determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada, a partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, devendo negar-se a suspensão sempre que, fundadamente, seja de duvidar dessa capacidade.
Nos termos prevenidos no artigo 50.º, do CP, a averiguação de tal capacidade deve ser feita em concreto, através da análise da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou.
Se, dessa análise, resultar que é possível esperar que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são idóneos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, deverá ser decretada a suspensão da execução da pena.”
Assim, subjacente à decisão de suspensão da execução da pena está um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido, ou seja, quando se possa prever que o mesmo não cometerá futuros crimes.
No caso, apesar da personalidade do arguido, atenta a sua idade, condição social e o facto de este ser o seu primeiro contacto com a justiça, crê-se ser possível formular um tal juízo de prognose favorável quanto ao seu futuro comportamento.
Como assim decide o tribunal nos termos do artigo 50º, nº 5 do CP suspender a pena na sua execução pelo período de 3 anos.
No entanto, tal suspensão ficará subordinada à frequência por parte do arguido de um programa de prevenção de violência doméstica a ministrar pela DGRSP nos termos do artigo 152º, nº 4 do CP, bem como no pagamento à demandante da quantia que lhe será arbitrada a título de indemnização civil nos termos do artigo 51º, nº 1, al. a) e nº 2 do CP, o que efectuará por depósito à ordem dos autos e no mesmo período da suspensão da pena.
V- Dos pedidos civis:
A demandante formulou pedido de indemnização civil, peticionando a condenação do arguido/demandado no pagamento, a título de danos não patrimoniais, na quantia de € 10.000,00.
Face aos factos que foram dados como provados, não há dúvida, que se encontram preenchidos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos. Isto porque, resultou apurada a existência de um facto voluntário do agente, consubstanciado na prática de crime; a ilicitude, porque tal conduta violou bens jurídicos; a culpa do lesante, uma vez que se traduziu numa conduta desvaliosa (agindo com dolo directo); o nexo de causalidade, que resulta da adequação da conduta do agente à produção do resultado.
No que respeita aos danos não patrimoniais, há que verificar se, pela sua gravidade, serão merecedores de tutela do direito (artº 496º, do C.C.) e, se se concluir positivamente, deve o montante da indemnização ser fixado equitativamente pelo tribunal tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Sendo o dano toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica é evidente que a ofendida sofreu, em consequência da conduta do arguido, e face aos factos provados supra, danos não patrimoniais, que não são suscetíveis de avaliação pecuniária.
Dispõe o art. 496.º, n.º 1 do Código Civil (aplicável, ex vi art. 129.º do Código Penal) que, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º, como a situação económica do lesante e do lesado.
Não se duvidará de que os danos sofridos pela ofendida assumem gravidade suficiente para merecerem, seguramente, a tutela do direito.
Teremos ainda de considerar o número de condutas em questão, a sua natureza dolosa, a gravidade das mesmas, e suas repercussões na dignidade de qualquer pessoa, designadamente na demandante. Teremos também de considerar que o sujeito passivo da obrigação de indemnizar, o arguido, é detentor de capacidade financeira e de capacidade de trabalho no ramo da construção onde sempre trabalhou.
Ora, a demandante viu a sua esfera jurídica, face à factualidade dada como provada, na sua vertente não patrimonial, afectada pela conduta supracitada do demandado, nomeadamente pelas humilhações, sofrimento físico e psíquico, vergonha e intranquilidade, para além de se ver constrangida na sua autodeterminação e liberdade sexual, que sentiu sobretudo durante dois anos, pelo que, julgo, verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar.
O tribunal fixa o montante da indemnização equitativamente de acordo com o preceituado no artº 496º, nº 3 do Código Civil, que remete para os critérios estabelecidos no artº 494º do mesmo diploma, designadamente o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado, aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência e as flutuações do valor da moeda.
“A indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar; no plano civilístico e com meios próprios do direito privado, a conduta do agente” (Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª edição, Almedina, pág. 608).
Sufragando esta posição o Ac. da Rel. do Porto, Proc. nº 0443639, de 13/07/2005, www.dgsi.pt, onde se diz “A reparação judicial dos danos ou prejuízos, na jurisdição criminal, quer para os danos patrimoniais, quer para dos danos não patrimoniais, deve ser determinada, quanto ao montante da indemnização, segundo o prudente arbítrio do julgador que atenderá à gravidade da infracção, ao dano material e moral por ele causado, à situação económica e à condição social do ofendido e do infractor.”
Neste jaez, e conjugando, in casu, os critérios supracitados e a factualidade dada como provada, decide-se condenar o demandado a pagar quantia de €3.000,00 (três mil euros), à demandante, a título de danos não patrimoniais.
O demandado será também condenado no pagamento de juros sobre o referido montante, contados a partir da data da presente sentença, calculados à taxa legal, até efectivo e integral pagamento (cfr. Ac. uniformizador nº 4/2002, de 9/05, publicado no D.R. nº 146, de 27 de Junho de 2002).
Quanto ao pedido civil deduzido pela ora assistente, é manifesta a sua improcedência, do mesmo sendo o demandado absolvido.(…) (fim de transcrição)
IV- FUNDAMENTOS DO RECURSO E RESPECTIVA APRECIAÇÃO.
Apreciemos, então, as questões a decidir.
IV.1- Da (in)verificação das nulidades previstas no art.º 119.º, al.s b) e d) do CPP:
Um dos princípios basilares do processo penal, o princípio da legalidade ou legitimidade da prova, vem previsto no artigo 125.º do Código de Processo penal (CPP) e dele se retira que só poderão ser admitidas as provas que não forem proibidas por lei, não podendo ser admitidas quaisquer provas obtidas ilicitamente ou que ponham em causa os direitos fundamentais. (vide, Henrique Eiras, Processo Penal Elementar, Quid Juris, 7ª Edição, 2008, pág. 138. 14).
Os art.ºs 118º a 123º do CPP regulam, em geral, as consequências da inobservância das prescrições estabelecidas por lei para a prática dos actos processuais geradoras de invalidade.
E classifica-as a lei processual penal, em três espécies:
- As nulidades insanáveis – art.º 119º;
- As nulidades dependentes de arguição – art.º 120º
– E as irregularidades – art.º 123º.
O art.º 118º n. os 1 e 2 dispõe que a violação ou inobservância das disposições da lei de processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei e que, nos casos em que a lei não comina a nulidade, o acto ilegal é irregular.
Decorre da conjugação das normas dos art.os 119.º e 120º que para que a nulidade seja considerada insanável importa que a lei explicitamente o preveja, enumerando o art.º 119.º as nulidades insanáveis.
O art.º 120.º impõe que qualquer nulidade diversa das previstas no primeiro deve ser arguida, constituindo as dependentes da arguição as previstas no n.º 2 do art.º 120.º, além das que forem cominadas noutras disposições legais.
Só é insanável a nulidade a que a lei assim expressamente designe. Prevendo-se simplesmente nulidade, então, trata-se de vício dependente de arguição.
As nulidades insanáveis são, por definição, insusceptíveis de reparação, podendo ser conhecidas a todo o tempo na pendência do procedimento, oficiosamente ou a pedido, as quais tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar (n.º1 do art.º 122.º, do CPP).
Como se pode ler no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2022, processo 303/12.1JACBR.P1-B.P1.S1-5 EDUARDO LOUREIRO:
I - De acordo com o princípio da tipicidade consagrado no art.º 118.º, n.º 1, do CPP, a violação ou inobservância das disposições da lei de processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que – n.º 2 da norma –, nos casos em que a lei não comina a nulidade, o acto ilegal é irregular.
II - As nulidades insanáveis são, por definição, insusceptíveis de reparação, podendo ser conhecidas a todo o tempo na pendência do procedimento, oficiosamente ou a pedido. Não podem, porém, ser declaradas após a formação de caso julgado sobre a decisão final que, neste aspecto, actua como forma de sanação.
III - A regra geral é a de que as nulidades relativas e as irregularidades ficam sanadas se não forem acusadas nos prazos legais de arguição.
IV - Tais prazos, quanto às nulidades, são o geral de 10 dias previsto no art.º 105.º, n.º 1 e os específicos previstos nos art.ºs 120.º, n.º 3. Podendo a sanação ocorrer, ainda, por via da assunção das atitudes tipificadas no art.º 121º.
V - As irregularidades, essas, haverão de ser arguidas no próprio acto em que tiveram ocorrido, isso estando os interessados presentes. Não tendo assistido ao acto, devem os interessados suscitá-las «nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado» – art.º 123.º n.º 1. Podendo, ainda, reparar-se oficiosamente a irregularidade que possa afectar o valor do acto praticado no momento em que dela se tomar conhecimento. Desde que ainda não sanada, sob risco de, a admitir-se reparação de irregularidades já sanadas, se introduzir grave entorse no sistema qual seja a de, relativamente ao menos solene dos vícios formais se admitir, afinal, um regime de reparação não só mais permissivo do que o das nulidades relativas, como equiparável, até, ao das nulidades insanáveis. in www.dgsi.pt
O princípio da legalidade é indissociável do princípio da necessidade e da adequação. Os direitos fundamentais e a salvaguarda da busca da verdade material, fundamentam as regras de proibição de prova, ao abrigo das quais são inadmissíveis todos os meios de prova que violem os direitos constitucionalmente tutelados. O princípio da legalidade tem em vista uma justiça penal livre de suspeitas, de tentações ou de arbítrio, preservando assim um dos fundamentos do Estado de Direito.
Mais dispõe o art.º 18.º, da CRP que:
1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
Prevê o art.º 119.º, b) do CPP como nulidade insanável a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do art.º 48.º, e na alínea d) a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
Nesta alínea cabem as nulidades que dizem respeito a omissões ou sonegação do exercício de funções do Ministério Público, porquanto o M. P. tem, no decurso do processo, máxime do inquérito, um conjunto de atribuições, que não exercidas colocam em causa a própria estrutura acusatória do processo, nomeadamente do art.º 48.º, do art.º 53.º, do art.º 382.º e do art.º 392.º, do CPP.
Quanto à alínea d) as nulidades dizem respeito à falta total de inquérito ou de instrução. Quanto à falta de inquérito, ele constitui uma fase obrigatória do processo penal, sendo porém, quanto à instrução, a mesma facultativa, porém, poderá ocorrer quando por exemplo o Juiz indefira a instrução por inadmissibilidade legal e a decisão venha a ser revogada em recurso. A insuficiência do inquérito ou da instrução está prevista como nulidade sanável no art.º 120.º, n.º, al. d) do CPP.
Refere o arguido/recorrente que:
“…não foram encetadas e nem efetuadas nenhumas diligências investigativas em sede de inquérito, além dos autos de queixas e aditamentos efetuados pela vítima, o que claramente indicia, uma completa ausência de inquérito, art. 119º, als. B) e d) do CPP.
A ausência de diligências investigatórias por parte das Autoridades, em sede de inquérito, nomeadamente: a omissão de recolha de imagens das alegadas agressões retratadas em aditamentos e queixas crimes que se sucederam ao longo do inquérito, de perícias médicas demonstrativas da alegada agressão sexual, a dentificação das testemunhas externas ao casal que presenciaram os factos: os vizinhos, o responsável do Banco, a Gestora de conta, comprometeu irremediavelmente a descoberta da verdade material, art. 340.º do CPP.”
Ora, ao contrário do afirmado pelo arguido, foram realizadas diligência no inquérito, para além de queixas e aditamentos efectuados pela vítima, pois que foram ouvidas - EE, fls. 52, 165; - DD, fls. 55; bem como foi recolhida prova Documental no Inquérito, conforme decorre dos Autos de denúncia, fls. 41-45, 83-90, 157-161; - Fotografia, fls. 105; - Certificado de registo criminal, fls. 73-78; - Aditamento, fls. 110, 114.
Ademais, foi requerida a abertura de instrução pelo arguido, que foi admitida, marcada data para prestação de declarações do arguido, para debate instrutório e data para decisão instrutória, tendo sido proferido despacho de pronúncia.
Do exposto se conclui, sem mais delongas, não existir falta de promoção do inquérito, falta de inquérito ou de instrução, não se verificando qualquer nulidade insanável, nem sequer sanável, sendo certo que esta, de qualquer forma estaria sanada por falta de arguição no prazo legal, tal como decorre do art.º 120.º, n.ºs 1 e 2, al. d) e n.º 3. al. c) do CPP.
Assim, há que julgar não provida esta questão.
IV.2- Da impugnação (ampla) da decisão sobre a matéria de factos (art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP): Se ocorre erro de julgamento relativamente aos pontos da matéria de facto provada, em especial pontos 7 a 10, 12, 13 a 17, 19 a 21 e 23 a 26 dos factos provados, se ocorre violação do in dubio pro reo, dos princípios da livre convicção, da imparcialidade e contraditório na apreciação da prova.
O ordenamento jurídico-processual-penal consagra duas formas de impugnação da matéria de facto.
Uma designada por impugnação ampla (erro de julgamento), que consiste na reapreciação da prova gravada e que tem de ser invocada pelo recorrente, pois não é de conhecimento oficioso, recaindo sobre o recorrente o duplo ónus de especificação previsto no art.º412º, nº3 e 4 do CPP.
Outra, designada por impugnação restrita, (revista alargada) que consiste na invocação dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do nº2 do art.410º, do CPP que, aliás, são de conhecimento oficioso.
São duas formas distintas de “atacar” a matéria de facto, estando por isso sujeitas a regimes processuais diferentes.
No que respeita à impugnação alargada, dispõe o art.º 412.º, do CPP: (Motivação do recurso e conclusões)
1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
5 - Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse.
6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. Tratando-se de impugnação ampla, porém, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E, é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
Assim, impõe-se-lhe:
i. a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado;
ii. a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa.
iii. a especificação das “provas que devem ser renovadas”, sendo caso disso, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma.
iv. Quando as provas tenham sido gravadas as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão recorrida, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.
Como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.03.2012, publicado no D.R. I Série, nº 77, de 18.04.2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”
No caso dos autos, o arguido/recorrente respeita a especificação, insertas no nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal, dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, que correspondem aos pontos 7 a 12, 13 a 15, 16, 17, 19, 20, 21 e 23 a 26 (conjugação das conclusões com a motivação do recurso), mais indica “concretas provas que (a seu ver) impõem decisão diversa da recorrida”, (declarações do arguido e da assistente DD, e das testemunhas PP e JJ).
Analisando a motivação da decisão de facto, o Tribunal recorrido formou a sua convicção examinando criticamente toda a prova produzida, articulando-a e conjugando-a, na seguinte e exaustiva operação valorativa, (cujos realces e sublinados são nossos):
“O tribunal procedeu de forma atenta, crítica, à análise da prova que foi trazida a audiência, conjugando-a com a que já constava dos autos e que nos é legítimo valorar, por acordo com os sujeitos processuais, designadamente as declarações que o arguido prestou, quer em sede de primeiro interrogatório judicial, quer na fase de instrução.
A defesa do arguido visou transmitir a este tribunal a ideia de que a ora ex-mulher do arguido é que sempre foi uma pessoa violenta, nervosa e era quem maltratava o marido e a filha, sendo os relatos da mesma o oposto dos factos que ocorreram. Ou seja, o arguido, coloca-se numa posição de vítima de uma grande mentira, trazida a julgamento, sustentada inicialmente também pela sua filha, por medo e manipulação da mãe.
Ora, EE é, conforme se percepcionou ao longo dos actos do julgamento, uma mulher frontal, espontânea, impulsiva, mas genuína, que é certo, peca por irreflexão, o que conjugado com descontrolo e nervosismo, redunda numa certa agressividade, mas não faz da mesma uma mulher menos sofrida, menos sentida na sua dignidade, muito menos mentirosa. Mentira essa que aliás a mesma bem se viu censurar ao longo da produção de prova, até quando repreendeu a sua filha, em pleno julgamento, do que não se coibiu de fazer, apesar do local onde se encontrava. Filha que, ao longo do processo veio a apoiar quem mais lhe convinha, apresentando-se como uma falsa assistente constituída para em julgamento se aliar à defesa do pai, patrocinada pelo mesmo e a expensas certamente deste que suporta os honorários da advogada que agora mandatou.
Note-se que a ora assistente abusou do seu estatuto desvirtuando-o para poder participar em julgamento como se fosse uma segunda defesa do arguido.
E se é certo que esta adolescente sempre vivenciou violência enquanto morou com os pais, ora apoiando a mãe, ora apoiando o pai, num dilema psicológico que a terá levado à exaustão, não menos certo é que, quando o seu pai deixou de pagar as contas de casa e outros luxos que a sua mãe não conseguia custear, com o que auferia do seu trabalho como motorista ... que aliás se viu na necessidade de enveredar por não pretender depender financeiramente do arguido, apoiou a mãe e acusou o seu pai como sendo o agressor. No entanto, mal a sua mãe lhe pediu colaboração para que arranjasse um trabalho, ajudando nas despesas de casa, afinal a assistente não quis estudar para além do 9º ano de escolaridade, já quando o arguido não vivia com as mesmas, eis que a ora assistente foge para a casa do namorado com quem passou a residir e pede ajuda financeira ao pai, o que certamente conseguiu. Foi aliás isso que nos deu conta EE, que com desilusão e sofrimento que não conseguiu disfarçar do tribunal, concluiu que a filha a abandonou e que sempre fez de tudo para que nada lhe faltasse, não negando as discussões que mantiveram, mas que apenas pretendia que a filha se fixasse num emprego estável.
Aliás, em julgamento, esta jovem apresentou-se transtornada, algo desnorteada e descontrolada, mas inequivocamente sofrida, provavelmente a principal vítima deste confronto judicial entre os seus pais, apelando a uma justiça que agora construiu para ilibar o seu pai (certamente com receio de uma condenação), o mesmo que outrora considerara ser agressor.
A mãe, é certo, é uma pessoa directa, exigente e que não alimentou os hábitos de ociosidade da filha, o que gerou conflituosidade entre ambas. Ante o temperamento da ofendida, não custa crer que esta tenha dito à filha que a ia privar de alimentação. Ainda que se censure, obviamente, este jeito “educativo”, a ora assistente abandonou a mãe e aliou-se ao pai para vir agora sustentar a sua inocência invocando que o seu relato anterior é falso e se deveu a uma pressão psicológica exercida pela sua mãe e que para além disso “pensava que o pai a tinha abandonado” (sic).
Acredita-se, com efeito, nas faltas de respeito entre o casal, sendo banal o distrate entre ambos, os insultos recíprocos como forma de resposta aos conflitos e discussões a que a filha do casal assistia.
O temperamento evidenciado pela demandante aliás a outra conclusão não conduz, sendo manifesto que a mesma não aguenta um insulto sem responder ao mesmo com outro insulto.
No entanto, crer que a assistente tenha mentido em inquérito por acreditar que o pai a “tinha abandonado”, acusando agora a mãe de pressão psicológica, ainda que se reconheça a tensão das relações, é algo que não convence este tribunal, estando esta jovem a ser instrumentalizada, ainda que se tenha desentendido com a mãe desde o verão de ..., quando decidiu ir morar com o namorado.
A forma como prestou declarações, alegando aliás que os escritos que constam dos autos a fls. 405-B e 424 não foram da sua lavra, limitando-se a redigir o que o advogado lhe dizia/ditava, sem saber o sentido do que escrevia, sem o ler, sustentando até ser tudo mentira, apenas significa que a ora assistente tem sido infelizmente usada como um instrumento da defesa do seu pai, o que se mantém.
Daí que de acordo com as suas novas declarações a mãe passou de vítima a agressora e o pai de agressor a vítima.
A assistente não pode ter assistido apenas a um episódio de violência entre os pais como o que mencionou (ainda que com contornos bem distintos dos ocorridos) para talvez tentar justificar o hematoma no braço direito que a mãe apresentou quando pela primeira vez, por referência ao dia ... de ... de 2022, EE, decidiu quebrar o silêncio acerca da violência a que o marido a sujeitava, ainda que para depois acabar por desistir desse processo como mencionou (cfr. auto de fls. 74 e ss e fotografia de fls. 105).
E não pôde porquanto a violência entre o casal passou a ser constante sobretudo a partir de ... enquanto ambos se acusavam de manterem relacionamentos extraconjugais. Como contextualizou EE e se depreendeu das suas declarações, a mesma passou a dormir no sofá da sala e decidiu ir trabalhar como motorista ... (nunca tendo até então trabalhado fora de casa) tentando não depender financeiramente do arguido.
O casal deixou de ter vida sexual em comum, mas o arguido, que era quem continuava a pagar o essencial das despesas do agregado, fazendo-se valer dessa capacidade financeira, fazia com que a mulher se entregasse ao mesmo sexualmente como meio de pagamento pela sua permanência em casa pois que de outra forma passaria a pagar renda e as coisas não eram compradas para casa. No recordar de EE o arguido dizia-lhe que ela lhe tinha de dar “cona” (sic), o que a levava a anuir aos seus pedidos ainda que o arguido indiferente à sua vontade, soubesse que a mesma não o pretendia.
A ofendida recordou os episódios que a acusação descrevia nos termos em que se deram como provados, contextualizando as discussões ocorridas, as motivações, fazendo-o com clarividência, espontaneidade evidenciando um sentimento de pesar pelo vivenciado, em momento algum tendo empolado as situações, nem as dramatizou.
Recordou ainda o episódio do comando da TV da sala que afinal tinha caído para a gaveta do sommier da cama onde o arguido dormia, tendo sido acusada pelo arguido de lhe ter “roubado” o comando, bem como as expressões que o arguido lhe dirigiu, agora olvidadas pela assistente que a tudo assistiu e que foi quem temendo a reacção do seu pai pediu à mãe, que estava a trabalhar, para regressar a casa.
EE não dormia no sofá da sala somente para ver as suas novelas quando chegasse durante a noite da sua jornada de trabalho e ainda para não incomodar o arguido, como este quis fazer ver ao tribunal. O arguido aliás manifestou ao longo do processo enorme incompreensão pela versão que a sua mulher apresentou (e inicialmente até pela sustentada pela filha), sem conseguir encontrar tamanha motivação maldosa. Note-se que já anteriormente à queixa que deu origem aos autos (cf. auto de ........2024 a fls. 3 e ss, EE tinha reportado situações específicas de violência. Fê-lo em ... como já mencionado, cfr. ainda aditamentos àquele auto a fls. 114, a fls. 131, que revelam a conflituosidade permanente e ainda em ... de ... de 2023 – auto de fls. 136 e ss e aditamentos de fls.171 e 172, dos quais se infere ter sido vontade da ofendida em não prosseguir com o processo, equacionando ainda uma reconciliação com o arguido.
Assim, os relatos de EE e os seus pedidos de ajuda às forças da justiça não se deveram a uma capacidade inventiva para elaborar um guião novelístico pois que a vida real que a mesma levava a cabo era suficientemente rica em episódios de violência, uns que a mesma ia sofrendo em silêncio, outros que relevava, outros que denunciou e outros por fim que em julgamento recordou.
A postura que o arguido manteve em julgamento, optando por falar a final, aparentemente muito calmo, mas pouco acrescentando ao que já dissera nas fases processuais anteriores, fazendo-se passar por vítima da agressividade da “sua senhora” (sic), que caiu numa “cilada”, que é muito nervosa (o que se constatou efetivamente) que nunca sequer na mesma tocou, culimando num choro descontrolado e sem aparente razão, que terá convencido alguns a crer nas alegações do Ministério Público, é uma postura de vitimização essa sim encenada e que não pode vingar.
As condutas recordadas pela ofendida e que o arguido levou a cabo são um conjunto de actos que por vingança, de um homem que se sentia traído, visavam rebaixar a ofendida, prejudicando a sua nova vida profissional que claramente o arguido não queria que a mesma levasse a cabo porque lhe dava uma certa autonomia financeira que a mesma nunca antes tinha tido, fazendo com que a mesma sentisse desconforto na sua casa, perturbando o seu sossego e tranquilidade, rebaixando-a como pessoa e como mulher.
As declarações prestadas por EE que o tribunal, pelo exposto, valorou, são sólidas e consistentes e não foram abaladas pela demais prova trazida a julgamento por muito que as defesas, contando aqui com o novo papel da assistente no processo penal, tentasse desacreditá-las.
Com efeito, II, amigo da assistente, visitou a casa deste nalgumas ocasiões mas acrescentou que o arguido praticamente nunca estava sequer em casa. Recordou, no entanto, uma discussão entre o então casal a que assistiu por causa de um veículo que até estava lhe emprestado a si e à assistente, cuja utilização o arguido reclamou. Ouviu EE a chamar o arguido de “filho da puta”, aludindo ainda ao facto de se tratar do aniversário de EE e de o arguido não ter sido convidado para o almoço. Para além disso, recordou ainda ter ouvido enquanto estava em chamada telefónica com a assistente a mãe da mesma a discutir dizendo que a assistente era “uma merda e que não queria fazer nada”.
Por seu turno, JJ, actual namorado da assistente referiu ter estado em três ocasiões com a mãe da namorada, assistindo a discussões e a gritaria, alegando ter ouvido EE a dizer à assistente que lhe tiraria água e comida, sabendo ainda que por lhe ser sido transmitido, que EE tinha agredido a assistente.
KK, que se disse amiga da família, na verdade acabou por revelar que nunca teve intimidade com a mesma.
LL, primo do arguido também convivia ocasionalmente com o casal em restaurantes e em tais contextos nunca assistiu a qualquer discussão.
O mesmo se diga de MM que apesar de alegar frequentar a casa do casal, saber que EE dizia mal da sogra e que o arguido era trabalhador, nada mais soube esclarecer.
Quanto a NN, tia por afinidade do arguido, senhora que nem olhou para o tribunal quando era interpelada por este, falou de um clima hostil numa casa que afinal nunca frequentou, limitando-se genericamente a dizer o que pensa do arguido.
Destes relatos nada mais se pode inferir do que o já descrito. Existia um ambiente familiar de conflituosidade latente, com discussões e troca e insulto verbais constantes.
Por fim, OO, mãe da demandante EE, declarou ter conhecimento dos problemas conjugais deste casal através da sua filha e ainda que a mesma era obrigada a ter relações sexuais com o arguido para não ter de pagar renda. Referiu que a filha não andava bem psicologicamente mas que acalentava que o arguido viesse a mudar, apesar de o mesmo andar a fazer outra vida fora de casa, dias existindo em que nem a casa vinha dormir. Por outro lado, mencionou ainda com sinceridade que o arguido chegou a desabafar com a mesma e que admitiu que tratava mal a mulher, que discutiam e que lhe tinha batido mas que nunca se intrometeu na vida do casal, mormente opinando quanto à separação do mesmo.”
Decorre deste excerto que o Tribunal explicou, de forma lógica e congruente, porque não acreditou nas declarações do arguido e da assistente, (filha) no que se reporta às ofensas perpetradas na pessoa da ofendida EE, mais explicou num raciocínio coerente, estruturado e organizado como valorou os depoimentos das testemunhas e porque deu credibilidade ao depoimento da ofendida.
Todo o raciocínio encetado pelo Tribunal recorrido tem apoio na prova produzida, valorada à luz do princípio da livre apreciação e das regras de experiência comum (art.º 127.º, do CP).
Efectivamente, procedendo este Tribunal à audição da prova gravada correspondente às passagens que o recorrente invoca como impondo decisão diversa, relevante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, nos termos dos n.ºs 4 e 6 do art.º 412.º, do C. Processo Penal, e fazendo uma súmula dos depoimentos:
O arguido, que prestou declarações no final da demais produção de prova, de facto, negou, no essencial, a prática dos factos, diz que nunca bateu na sua mulher nem é capaz de dizer as palavras ofensivas que constam da acusação. Não apresenta qualquer motivo para a ofendida prestar o depoimento como prestou em audiência. Afirma que ela sempre foi impulsiva e nervosa e que a filha tem problemas psicológicos. Nunca se chateou ou bateu na filha. Não conseguiu explicar a mudança de versão da filha. Confirmou ser ele a pagar os honorários da advogada da filha. Está a viver com os pais. Nunca foi de maltratar ninguém. A ofendida tem uma raiva a si e não sabe a razão. Admitiu, no entanto, altercação com a mulher na data do episódio descrito na acusação de .../.../2022, por causa da roupa de trabalho, mas não admitiu a prática de qualquer ofensa. Confirma, não obstante ter agarrado a ofendida com as duas mãos no braço, afirmando que é normal que ela tenha ficado com marca porque ele trabalha nas obras e tem força. Admitiu controvérsia no dia .../.../2022 por causa do namorado da filha, negando qualquer ofensa. Confirma que a ofendida dormia no sofá porque começou a trabalhar como ... e chegava tarde. Nega que tenha partido a chave do carro. Admite que ferve em pouca água. Quanto à situação do comando da TV nega as expressões, confirma que houve confusão com o comando mas não dirigiu nomes à ofendida. Quanto aos fios do interruptor diz que foi a ofendida que pôs os fios de fora. No decurso do seu depoimento negou qualquer outra das imputações descritas na acusação.
A assistente DD, filha do arguido e da ofendida, refere que sempre se deu bem com o pai e nunca teve uma relação estável com a mãe. Refere que a mãe insultava o seu pai mas o pai não respondia, o pai foi injustiçado por si própria. Afirma que cometeu uma injustiça. Afirma que pai nunca tocou na mãe, porém, admitiu que, em ..., quando o pai ia sair de casa e a mãe meteu-se à frente e não queria que ele saiu, o pai a agarrou com mais força para cima da cama, referindo-se à marca no braço que está na fotografia do processo. Diz-se pressionada pelo pai e pela mãe e angustiada e que chegou a tentar matar-se. Admitiu que está de relações cortadas com a sua mãe. Afirma que tinha que parar com essa mentira. A dada altura passou a ligar ao pai para falarem e que nunca se separou a partir daí do pai. Confirma ter assinado uma declaração que está no processo, (fls. 405-B e 424), mas que não leu nada do seu conteúdo, foi ditada pelo advogado. O advogado ditou tudo e ela escreveu, mas diz que não era o que queria escrever. Afirma que o pai nunca lhe bateu negando as ofensas descritas na acusação em relação a si pelo arguido.
EE, (ofendida) afirma que a vida no casamento com o arguido foi sempre um inferno. Afirma que foi parar ao hospital mais do que uma vez. O marido sempre foi agressivo e violento. Ele não fazia vida marital com ela. Ia ter com outras mulheres. Teve depressões. Depois teve a filha e resolveu cuidar dela. Ele dizia que ela andava metida com estes e com aqueles. Confirma que a filha está de relações cortadas consigo. Confirma que as agressões, retratadas na acusação, aconteceram. Confirma os impropérios que lhe eram dirigidos pelo arguido e referidos na acusação. Ele muitas vezes atirava a comida pelo ar. Ele dizia que ela tinha um amante que a mantava a ela e a ele. Confirmou os episódios ocorridos em ... por causa da roupa do trabalho e as ofensas perpetradas pelo arguido na sua pessoa, explicando como ocorreram. Confirmou igualmente o ocorrido no mesmo mês e ano que teve a ver com o namorado da filha e as ofensas perpetradas pelo arguido que arrancou-lhe o computador e partiu-o com os pés e lhe partiu o telemóvel, e tirou-lhe o carro que era partilhado. Mais confirmou o episódio de ... relacionado com a conta bancária e com o carro bem como com a chave do carro que foi partida pelo arguido e os 200 euros que gastou. Confirma igualmente o episódio de ... relacionado com o comando da TV, confirmando as ofensas que lhe foram perpetradas pelo arguido. Mais confirma o ocorrido no dia .../.../2024, em que o arguido foi buscar as coisas dele e disse “agora é que estão as duas fodidas comigo”. Confirma igualmente os factos relacionados com o interruptor da luz e dos gatos na sala para fazerem necessidades lá. Confirmando finalmente os factos relativos à intimidade sexual, bem como à não contribuição para as despesas e à exibição de coisas novas por e para ele arguido.
Mais explicou que a filha quando estava bem com ela foi depor contra o pai. Esteve afastada do pai e depois voltou a aproximar-se e a relação com a mãe esfriou. Ela saiu de casa depois. O namorado era do ... e ela foi viver com ele para o .... A mãe passou de Anjo a Diabo. Ela finge que não a conhece.
QQ, amigo da assistente, que confirmou que o arguido e a ofendida não se davam bem. Falou em comentários de que o Sr. AA mas que privou pouco com o Sr. AA. Assistiu a uma discussão antes de irem para o aniversário da ofendida e por causa do carro. O Sr. AA quis o carro que era dele, e que tinha sido emprestado a ele GG e à filha houve uma discussão normal. A DD comentou com ele que o Sr. AA era agressivo e violento. Entregaram o carro ao Sr. AA. Diz que a D. DD chamou nomes ao Sr. AA no elevador. Foi a única discussão que assistiu entre os dois. A testemunha referiu que a DD lhe disse que, uma vez em que o pai queria sair de casa e a mãe não o deixou sair e ele agarrou-a pelo braço.
JJ, namorado da filha da ofendida e do arguido, começou a namorar em .../.../2025. Os pais já estavam separados. Diz que havia discussões entre a mãe e a filha. Nunca viu nada nem conviveu com o casal.
Ora, reapreciada a prova gravada por este Tribunal de Recurso, esta não é susceptível de impor outra leitura da prova que não a realizada pelo Tribunal recorrido.
Indo mais em concreto ao alegado pelo arguido em sede de motivação do recurso: Em relação aos factos provados e impugnados 7.º e 8.º (Acto contínuo, EE com força, apertando-lhe fortemente o braço direito.Da conduta descrita, resultaram dores e um hematoma no braço direito de EE.), ao contrário do afirmado pelo arguido, a marca é compatível com o apertar forte da mão deste, além disso, o próprio arguido admitiu ter agarrado com força o braço da ofendida, a assistente igualmente o confirmou, conforme resulta da súmula supra desses depoimentos. Ademais, a prova do facto não está dependente de relatório médico. Conjugando a fotografia junta aos autos, com o depoimento da ofendida, do arguido e da assistente, não podemos deixar de concordar com a apreciação realizada pelo Tribunal recorrido.
Quantos aos pontos 10º a 12º e 13.º a 15.º e 16.º a 17.º, 19.º, 20.º, 21.º refere o arguido que apenas resultam das declarações da Queixosa, não havendo mais quaisquer outras provas.
O Tribunal recorrido, é certo, fundou a sua convicção essencialmente nas declarações da ofendida que, no seu depoimento os confirmou e que lhe mereceu credibilidade, sem contudo ter deixado de realizar um exame crítico de toda a prova, fazendo-o num raciocínio lógico e estruturado, salientando-se que o arguido no seu depoimento confirmou a ocorrência de altercações na data desses episódios bem como os motivos que as originaram, porém, negou as ofensas, sendo que os depoimentos das testemunhas (GG e HH) a que se reportam as passagens mencionadas pelo recorrente, não são de molde a por em causa as declarações da ofendida.
O Tribunal a quo explicou porque não acreditou nas declarações da assistente, de forma consistente e conforme com o comportamento processual da mesma e da forma como depôs. beneficiando da oralidade e da imediação, valoração com a qual se concorda.
O declarado pelo arguido, quantos aos pontos 20.º e 21º tão pouco põe em causa a valoração do depoimento da ofendida, feita pelo Tribunal recorrido.
Refere o arguido que também os pontos 23º a 26º, são factos dados por provados com fundamento nas declarações da queixosa, que não existe outra prova que permita aferir da veracidade de forma isenta. Porém, não foi essa a apreciação que o Tribunal recorrido fez das declarações da ofendida a quem atribuiu credibilidade, nem tão pouco foi demonstrada uma qualquer doença psiquiátrica, (para além das depressões mencionadas pela própria ofendida), de que esta pudesse padecer e que pudesse prejudicar o seu depoimento, para além de não ter sido evidente para o Tribunal que a ofendida tivesse alguma doença psiquiátrica, pois que se assim fosse, o Tribunal teria averiguado, igualmente da reapreciação do seu depoimento por esta instância de recurso, constante da gravação não se depreendem sinais de doença desse foro, que pudesse tirar credibilidade ao depoimento.
Destarte, a prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada. O julgador tem de apreciar e valorar a prova na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou “hominis”, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção e este foi o método realizado pelo Tribunal recorrido.
Ademais, ressalvando sempre o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, o mesmo olvida o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127º, do Código de Processo Penal, norma de acordo com a qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Outrossim, o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um único testemunho, desde que se convença, para além da dúvida razoável, que nele reside a verdade do ocorrido, pois os depoimentos não valem pelo número de testemunhas que se apresentem em juízo para ser ouvidas, mas sim pelo peso da credibilidade que merecem.
Deste modo, nada impede que o tribunal alicerce a sua convicção no depoimento de uma única pessoa, no caso, as declarações da assistente, desde que tais declarações se lhe afigurem pertinentes e credíveis, uma vez que não mais vigora no nosso ordenamento jurídico o velho aforismo «testis unus testis nullus» [testemunha única, testemunha nula].
Tal como entendimento exarado no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/06/2025, Processo 61/23.4GECUB.E1 Relator Fernando Pina disponível em www.dgsi.pt:
I- As declarações da vítima do crime de violência doméstica podem, por si só, conduzir à condenação. Não o reconhecer seria um retrocesso “ilegal” ao sistema da “prova vinculada” (ou “prova tarifada”) e inviabilizaria, em muitas situações, a perseguição de crimes que ocorrem na absoluta privacidade e relativamente aos quais não existem testemunhas.
II - O Tribunal pode formar a sua convicção apenas com base no depoimento da vítima do crime de violência doméstica, desde que tal depoimento seja prestado de forma séria e credível, ao contrário das declarações prestadas pelo arguido, mas devendo o Tribunal, nessa situação, explicitar na sentença condenatória, de modo claro e conciso, as concretas razões do seu convencimento.(sublinhado nosso).
No mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 669//16.4JABRG.G1 de 08/05/2017 disponível em www.dgsi.pt:
“Num sistema como o nosso em que a prova não é tarifada, não podemos olvidar que o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova, não estando inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta, nem das declarações de uma única testemunha. Mas, como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos”. (sublinhado nosso).
No caso dos autos, o Julgador da 1.ª instância atribuiu credibilidade às declarações da ofendida, concluindo da valoração que:
“A ofendida recordou os episódios que a acusação descrevia nos termos em que se deram como provados, contextualizando as discussões ocorridas, as motivações, fazendo-o com clarividência, espontaneidade evidenciando um sentimento de pesar pelo vivenciado, em momento algum tendo empolado as situações, nem as dramatizou.
As declarações prestadas por EE que o tribunal, pelo exposto, valorou, são sólidas e consistentes e não foram abaladas pela demais prova trazida a julgamento por muito que as defesas, contando aqui com o novo papel da assistente no processo penal, tentasse desacreditá-las.”
Teremos, ademais, que atender a que no tipo de criminalidade dita de «violência doméstica», as declarações das vítimas não podem deixar de merecer ponderada valorização, pois que, reconhecidamente, os maus-tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem, por via de regra, dentro do domicílio conjugal, no recato da impunidade não presenciada, preservado da observação alheia, não obstante, tal não significa se deva ter como certo que o acusado mente e a(o) ofendida(o) conta sempre a verdade, mas sim que o tribunal deve estar particularmente atento às declarações e à atitude de um e de outro, pois são eles, especialmente a(o) ofendida(o) quem forma as bases em que vai assentar a convicção do julgador. E como decorre da motivação da decisão de facto o tribunal recorrido analisou de forma atenta as declarações da ofendida e do arguido, explicando porque deu credibilidade àquelas e não a estas.
Ademais, o relato da ofendida revelou ausência de «increbilidade subjetiva» derivada das relações ofendida/arguido que poderiam conduzir à dedução da existência de ressentimento, vingança, interesse, ou de qualquer outra índole, revelou verosimilhança, no confronto com os demais depoimentos, e com a admissão dos episódios pelo arguido, ainda que não das ofensas além de existir persistência na incriminação, no tempo sem ambiguidades nem contradições.
Não é demais referir que a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente. Isto para dizer que a perceção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros e de todos os elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal
Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05-06-2002, proferido no processo nº 0210320, disponível em www.dgsi.pt:
“a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente. (…). Assim, a reapreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª instância, caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas.”.
Ademais, em caso de impugnação alargada e reapreciação da matéria de facto, o tribunal ad quem deverá avaliar “se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade. (...) Por outro lado, reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão (Acórdão da Relação de Coimbra de 12-09-2012, proferido no processo n.º 245/09.8 GBACB.C1 disponível em www.dgsi.pt) (destaque nosso).
E, no caso dos autos, como decorre da súmula supra dos depoimentos, a convicção do Tribunal tem suporte adequado e verosímil na gravação da prova produzida em audiência e reapreciada, à luz do princípio da livre convicção inserido no art.º 127.º, do CP ainda que pudesse permitir outra decisão, que não é o caso, não a impõe, tal como exigido pelo art.º 412.º, n.º3, alínea b).
Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, “Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”.
Mais, refere o recorrente ter sido violado o princípio da livre apreciação incerto no art.º 127.º, do CPP, do contraditório e da imparcialidade, alegando que a sentença de que ora se recorre mostra-se fundada numa convicção subjetiva do tribunal a quo, a qual assenta tão somente e só!, nas declarações da vítima, fazendo tábua rasa de todas a prova carreada e produzida em audiência de julgamento, contrariando os princípios da livre apreciação da prova, do contraditório e da imparcialidade.
Culminando em vícios relativamente à motivação que é insuficiente, parcial e assente em juízos de valor sobre a postura do arguido em julgamento, em prejuízo da sua presunção de inocência.”
Ora, no caso dos todos todas as provas foram sujeitas ao contraditório, nomeadamente pela defesa, as quais foram produzidas e examinadas em audiência nos termos do art.º 355.º, do CPP.
É certo que a livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana. ( no ensinamento do Professor Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206).
Como decorre da Jurisprudência do STJ o princípio inserto no art.º 127.º, do CPP estabelece três critérios para a apreciação da prova:
1. O primeiro é a apreciação da prova meramente objectiva quando a lei o determina (por exemplo na apreciação do caso julgado (art.º 84.º) na apreciação da prova pericial (art.º 163ª) na apreciação do valor probatório de alguns documentos (art.º 169.º) na confissão integral e sem reservas (art.º 344.º);
2. O segundo também objectivo advém de conhecimentos científicos genéricos e das regras da experiência comum, da normalidade do pensar e agir humano;
3. O terceiro será eminentemente subjectivo que resulta da livre convicção objectivável e motivável do julgador (neste sentido Acórdão do STJ de 18/01/2010, processo 3105/00, in www.dgsi.pt. e Fernando Gama Lobo, Código de Processo penal Anotado, Almedina, 4.ª Edição)
Ao Tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
De acordo com o aludido princípio da livre apreciação da prova, o julgador é livre ao apreciar as provas, estando tal apreciação apenas vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório sendo que “A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspetivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento. Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.” – cfr. Professor Figueiredo Dias, ob. e loc. citados e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.02.2012, proferido no processo nº 38/10.0 TAFIG.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc.
Na realidade, ao Tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar, “Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
Alega, ainda o arguido/recorrente a violação do in dubio pro reo, ao dar, o Tribunal recorrido, como provados os factos impugnados, sustentando a existência de dúvida razoável.
É certo que o princípio in dubio pro reo, emanado do princípio político-jurídico da presunção de inocência, até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art. 32.°, n.° 2, da CRP), vem sendo assumido, genericamente, que se encontra, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), do qual constitui faceta, e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal, ou tarifada, ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum.
O princípio in dubio não é uma regra para a apreciação da prova, pois que apenas se aplica depois de finalizada a valoração e apreciação crítica da prova. O princípio in dubio pro reo é, assim, apenas uma regra de decisão da prova.
O uso do princípio in dubio pro reo só deve ocorrer quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, se lhe imponha decidir a favor do arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstrata ou de uma mera hipótese.
O princípio in dubio pro reo resulta, igualmente, do princípio da culpa, que se retira dos artigos 18ºn.º2 e 27º da CRP. Com efeito, o princípio da culpa, é um princípio material de direito penal substantivo e sem determinação da culpa, não pode recair sobre quem quer que seja um juízo de censurabilidade.
Neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de novembro de 2002, Proc. nº 3316/02-5ª in www.dgsi.pt: “I – O princípio in dubio pro reo constitui um princípio probatório segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto tem sempre de ser valorada favoravelmente ao arguido, e traduz o correspetivo do princípio da culpa em direito penal, sendo a dimensão jurídico processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena”.
Se o juiz não lograr tal convicção, isso equivale a duvidar. Na dúvida in dubio pro reo. A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dubio pro reo deve ser insanável, razoável e objetivável. (neste sentido Ac. STJ de 12/01/2023 processo n.º 569/20.3JAAVR.P1.S1 relatora LEONOR FURTADO in www.dgsi.pt).
A doutrina e a jurisprudência têm, assim, adotado o critério anglo-saxónico da dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given).
Como escreve FERNANDO GAMA LOBO “O princípio in dubio pro reo não é mais do que um corolário da presunção de inocência, consagrado constitucionalmente no art.º 32.º, n.º2 da CRP. Produto da Revolução Francesa, repousa na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.º 11.º) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art.º 6.º). Tem na apreciação da prova o seu campo jurídico de aplicação natural e lógico, a qual é da competência do Juiz. Com efeito enquanto não for demonstrada a culpabilidade do arguido, não é admissível a sua condenação. Tal princípio, serve para resolver a dúvida que surjam numa situação probatória incerta. Mas a dúvida tem que ser do juiz e não dos restantes intervenientes processuais(…).” in Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição.
Como em parte sumariado no Acórdão da Relação de Coimbra de 12-09-2018 proc. 28/16.9PTCTB.C1Relator ORLANDO GONÇALVES:
“(…)IV - O princípio do “in dubio pro reo” é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido.
V- O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
VI -A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.”
Como princípio que se projecta em sede de apreciação da prova, a sua violação é tradicionalmente tratada como erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal) e, por isso, tal como sucede com os demais vícios da sentença, tem que resultar ou decorrer do próprio texto da decisão recorrida.
Porém, este Tribunal de recurso (que conhece também da impugnação da matéria de facto), pode igualmente censurar a violação desse princípio em sede de impugnação alargada, se, reapreciada a prova, chegou a um estado de dúvida insanável, que se impunha, isto é chegou à conclusão que, com a prova produzida que reapreciou, existem dúvidas que impõem o in dubio, ainda que o Tribunal recorrido não tenha manifestado ou sentido dúvida.
Neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/09/2020 processo 3773/12.4TDLSB.L1-5, relator Jorge Gonçalves in www.dgsi.pt:
“(…)Na reapreciação da prova importa articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do C.P.P., princípio que vale também para o tribunal de recurso. Essa articulação há-de necessariamente ter em conta que as condições de que beneficia a 1.ª instância – em particular, a oralidade e a imediação – para avaliar os depoimentos prestados, no contexto de toda a prova produzida, se não verificam (pelo menos em toda a extensão) quando o tribunal de recurso vai julgar.
Traduzindo-se a livre apreciação das provas numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, a falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, a não vivência do julgamento, sede do contraditório, com privação da possibilidade de intervir na produção da prova pessoal, serão, por assim dizer, limites epistemológicos a que a Relação deverá atender na sua apreciação, ainda que não barreiras intransponíveis a que faça a ponderação, em concreto e autónoma, das provas identificadas pelo recorrente, que pode conduzir à conclusão de que tais elementos de prova impõem um juízo diverso do contido na decisão recorrida.
Os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes devem ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se corroboram e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram.
Assim, procedeu-se à audição da gravação da prova pessoal indicada, importando cotejá-la com a motivação da decisão de facto e verificar se as provas indicadas pelo recorrente (e agora reapreciadas), impõem decisão diversa da proferida pela 1.ª instância.(…)
Sendo o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, compreende-se o entendimento, repetidamente afirmado na jurisprudência do Supremo, de que não resultando da decisão que o tribunal ficou num estado de dúvida sobre os factos e que «ultrapassou» essa dúvida, dando-os por provados, contra o arguido, ao S.T.J. fica vedada a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio «in dubio pro reo» dado o quadro dos respectivos poderes de cognição, restritos a matéria de direito.
Por isso se diz que no S.T.J. só pode conhecer-se da violação desse princípio quando da decisão recorrida resultar que, tendo o tribunal a quo chegado a um estado de dúvida sobre a realidade dos factos, decidiu em desfavor do arguido; ou então quando, não tendo o tribunal a quo reconhecido esse estado de dúvida, ele resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, nos termos do vício do erro notório na apreciação da prova.
Não se compreende que se siga o mesmo raciocínio na Relação.
Realmente, a recondução da violação do princípio “in dubio” ao erro notório na apreciação da prova enunciado na alínea c) do n.º2 do artigo 410.º do C.P.P., leva a que se diga, por vezes, que não se trata de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio…” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas” e que a apreciação pelo Tribunal da Relação da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto do artigo 410.º, n.º 2 (cfr. acórdãos da Relação de Coimbra, de 9/09/2009, processo 363/08.00GAACB.1, de 4/02/2015, processo 421/13.6GCMBR.C1 e de 25/02/2015, processo 28/13.0GAAGD.C1).
Para quem entenda que apenas o estado de dúvida subjectivamente sentida pelo julgador constitui o pressuposto específico do princípio in dubio pro reo, aquele princípio não se mostrará violado quando o tribunal de julgamento não se confrontou com dúvida séria sobre a prova do facto desfavorável ao arguido.
Uma outra abordagem da questão é a de que o princípio in dubio pro reo deve ser entendido objectivamente, não se exigindo a dúvida subjectiva ou histórica, para que possa ocorrer a sua violação.
Nesta perspectiva – que é a nossa -, no caso de o tribunal dar como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça, há violação do princípio se, do confronto com a prova produzida, se conclui que se impunha um estado de dúvida.
A Relação, diversamente do S.T.J., conhece de facto.
Mesmo que a violação do princípio in dubio não resulte do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum, enquanto erro notório na apreciação da prova [cfr al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P.), pode a mesma ser detectada no âmbito de impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Ou seja: fora dos limites do erro notório na apreciação da prova, o recurso da decisão de facto, no âmbito da impugnação ampla, habilita a Relação, que conhece de facto, a reapreciar as provas, a formular a sua livre convicção quanto às mesmas e a determinar se o tribunal de 1.ª instância, independentemente de se ter visto subjectivamente confrontado com a situação de dúvida, julgou provado facto desfavorável ao arguido apesar de a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das regras da experiência e/ou de regras legais ou princípios válidos em matéria de direito probatório, ultrapassar o estado de dúvida sobre a realidade do facto (neste sentido, o acórdão da Relação de Évora, de 13/09/2016, processo 89/15.8GTABF.E2, relator António João Latas).(…)”
O in dubio pro reo é convocável em matéria de prova quando o tribunal, mesmo o de recurso, se encontre numa situação de dúvida razoável quanto a algum ponto da matéria de facto, circunstância em que a deve resolver em benefício do arguido; e, inversamente, já não colhe pertinência o in dubio pro reo quando o tribunal, com apoio nos meios de prova disponíveis e lendo-os criticamente à luz das regras da experiência comum, não tem qualquer dúvida razoável quanto aos factos a deles extrair ou, tendo-a tido em algum momento, a esclareceu, convencendo-se positivamente do facto em causa (entre tantos outros, vide o Acs. do STJ de 7.11.2002, da RC de 12.09.2018 e da RP de 28.10.2015, relatados por Oliveira Guimarães, Orlando Gonçalves e Ernesto Nascimento, respetivamente, in www.dgsi.pt; vide ainda Paulo Pinto de Albuquerque, ob cit., pg. 1121).
Retornando ao caso concreto, este Tribunal de recurso, procedeu à audição da gravação da prova pessoal indicada pelo recorrente, e reapreciada esta, não ficou com dúvida razoável sobre os factos provados e impugnados, não impondo, a sua análise decisão diversa da proferida pela 1.ª instância, não se impondo o princípio in dubio, concordando com o Tribunal aquo que igualmente não manifestou qualquer dúvida a respeito de qualquer desses factos dados como provados, com apoio nos meios de prova disponíveis e lendo-os criticamente à luz das regras da experiência comum, justificando devidamente a versão que acolheu, como se denota da motivação.
Como vimos, o percurso seguido pelo Tribunal a quo na convicção formada e nos motivos dela determinantes, mostra-se, perfeitamente explicado, de forma lógica e objectivável e, tem suporte plausível e seguro na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso, e nessa medida, porque beneficiou da imediação e da oralidade, deve prevalecer a convicção expressa pelo tribunal a quo.
Como refere o Acórdão deste TRL de 11.03.2021, Proc. nº 179/19.8JDLSB.L1-9 relator ABRUNHOSA DE CARVALHO:
“(…) II – Os Tribunais da Relação têm poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), mas não podem sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto;
III – Normalmente, esses erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar;
IV - Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes; (…).”
Pelo exposto, e, em suma, as premissas da sentença recorrida, secundadas pelas considerações supra, no que toca à matéria de facto, encontram-se fundadas na prova produzida conjugada com as regras de experiência comum e não se baseou em qualquer prova proibida nem em violação das regras sobre a sua força legal, concluindo-se pela inexistência de erro de julgamento, merecendo esta questão o não provimento por este Tribunal de recurso.
Assim, conclui o Tribunal recorrido, e bem, que os actos praticados pelo arguido são adequados para o preenchimento do tipo legal do crime de violência doméstica, do artigo 152º, nº 1, al. a), nº 2, al. a) e nº 4 do CP, no seu elemento objectivo, pois integram a prática de mau trato psicológico e físico e reiterado, circunstância de tais factos terem sido praticados também na residência onde ambos viviam, impedindo a sua normal vivência dentro do seu espaço habitacional e convivial, permite concluir, sem necessidade de mais considerações, pelo preenchimento dos elementos objectivos do tipo em legal de crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152°, nºs 1, a) e 2 a) do Código Penal. Além disso, está também preenchido o elemento subjectivo do crime em causa pois o arguido actuava motivado pela sua própria vontade e consciente do alcance da sua conduta e das suas consequências.
Há, assim que julgar não provido o segmento do recurso em análise.
IV.2 -Da responsabilidade civil e do montante indemnizatório fixado.
Vigora no processo penal o princípio da adesão, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de crime é deduzido no processo penal respetivo – cfr. artigo 71.º, do Código de Processo Penal.
De acordo com o artigo 74.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente.
Estatui o artigo 129.º, do Código Penal, que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil. Tendo em conta que a indemnização que se pode fazer valer em processo penal se funda exclusivamente em danos emergentes da prática de um crime, a remissão para a lei civil tem somente em vista a responsabilidade aquiliana, nos termos do artigo 483.º, do Código Civil .
De acordo com o artigo 483.º, n.º 1, do Código civil, aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
A obrigação de indemnização derivada de responsabilidade civil exige a existência de um facto voluntário, ilícito, culposo, que cause um dano e que se verifique um nexo de causalidade adequada entre o dano e o facto.
Voltando-nos para o caso concreto, encontram-se verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana.
Atendendo a que já se determinou a responsabilidade criminal do arguido, sendo-lhe imputável a conduta ilícita tal como ela foi qualificada jurídico-penalmente no atrás exposto, não restam dúvidas quanto à existência do facto ilícito, do dano, de dolo e do nexo de causalidade entre ambos, tendo os factos praticados acarretado a afetação da integridade física e psíquica da ofendida, tendo daí decorrido danos, nos termos vertidos na factualidade provada. Tratam-se de danos não patrimoniais.
De acordo com o artigo 496.º, do Código Civil, na fixação de indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Os danos não patrimoniais não são suscetíveis de avaliação pecuniária e estão relacionados com as dores físicas, os desgostos, vexames, perda de prestigio ou reputação, atingindo bens que não integram o património do lesado (a saúde, o bem-estar, a liberdade, a honra ou o bom nome), podendo apenas ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente responsável, que corresponde mais a uma satisfação do que uma indemnização (vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10.ª Ed., pág. 601).
A indemnização é fixada em dinheiro, porquanto a reconstituição natural não é possível tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos, julgando em última instância equitativamente, caso não seja possível averiguar o valor exacto (art.º 566.º, do CC).
De acordo com o artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil, o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º.
A fixação da indemnização de acordo com a equidade significa que o seu valor é determinado considerando a culpa do agente, a sua situação económica e a situação económica do lesado, as especiais circunstâncias do caso, a gravidade do dano, ou seja, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida: a indemnização deve ser proporcional à gravidade do dano, a avaliar objectivamente, e ser fixada de acordo com critérios de boa prudência e ponderação das realidades da vida.
O Tribunal recorrido, considerando a gravidade dos factos, a consequência dos mesmos para a ofendida e as atuais possibilidades económicas do arguido (considerando os seus rendimentos), fixou em € 3.000,00 (três mil euros) a compensação devida à ofendida, acrescendo juros de mora desde a condenação (cfr. artigos 805.º, n.º 3 e 806.º, n.º 1, do Código Civil).
Esse valor não é excessivo, mas sim justo e equitativo à equidade, face às agressões em causa, à culpa e as consequências delas advenientes para a saúde da ofendida dadas como provadas e tendo ainda em conta a situação económica do lesante (factos provados 30 e 31).
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Em síntese, o recurso improcede totalmente porque nenhuma censura nos merece a sentença recorrida.
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V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas Desembargadoras da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando a sentença recorrida.
Mais se condena o arguido/recorrente nas custas do recurso, fixando-se em 4 Ucs a taxa de justiça devida nos termos dos artigos 513º e 514º, ambos do Código de Processo Penal e tabela III do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro com as sucessivas alterações legislativas.
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Lisboa, 09 de Outubro de 2025
Elaborado e integralmente revisto pela Relatora (art.º 94.º n.º2 do C. P. Penal)
Assinado digitalmente pela Relatora e pelas Senhores Juízas Desembargadoras Adjuntas
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Ana Paula Guedes
Cristina Luísa de Encarnação Santana
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1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995
2. Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção.