Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
125/22.1SMLSB.L1-5
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: BUSCA DOMICILIÁRIA
INTÉRPRETE
DEFENSOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1 – A busca realizada por órgão de polícia criminal à residência da arguida, que por sinal ficava próximo do local onde foi efetuada a detenção, mostra-se perfeitamente justificada pela suspeita, que se veio a comprovar, de que no local buscado se encontrassem objetos relacionados com a prática do crime em questão (tráfico de estupefacientes).
2 – Não está em causa nem a circunstância de os arguidos não dominarem a língua portuguesa, nem a circunstância de a busca não ter por eles sido consentida, já que a mesma foi efetuada em conformidade com o estatuído nos arts. 174.°, n.° 5, al. c) e 177.°, n.° 3, al. a) do CPP, ou seja, aquando da detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão, não sendo caso de obter ou não o consentimento dos visados.
3- Nessas circunstâncias, nem sequer seria caso de equacionar a nomeação de intérprete, uma vez que as formalidades da busca domiciliária, previstas nos artigos 176.º e 177.º do CPP, não o exigem.
4 – Nem seria obrigatória a assistência do defensor em razão de os recorrentes serem desconhecedores da língua portuguesa, dado que uma busca não é um ato processual, mas antes um simples meio de obtenção de prova.
5 – É permitido ao órgão de polícia criminal, na sequência da detenção de um cidadão na via pública em flagrante por crime a que corresponde pena de prisão, levar a cabo uma busca domiciliária na casa deste, mesmo quando aí se encontram a residir mais pessoas, dado que a exposição e importância probatória que o flagrante delito convoca impõem uma intervenção urgente, sob pena de se perderem as provas do crime e o propósito da investigação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum singular n.º 125/22.1SMLSB do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 7, em que são arguidos AA e BB, ambos melhor identificados nos autos, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo (transcrição parcial):
(…)
a. Condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B e I-C anexas ao mesmo diploma legal na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
b. Condenar a arguida BB pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B e I-C anexas ao mesmo diploma legal na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
c. Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA pelo período de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses, sujeita a regime de prova, que deverá assentar nos objectivos que vierem a ser delineados em plano individual de reinserção social a traçar pelos Serviços de Reinserção Social a favor do arguido, nos termos do disposto no art.s 50.°, n.°s 1, 2, 3 e 5, e 53.°, todos do Código Penal;
d. Suspender a execução da pena de prisão aplicada à arguida BB pelo período de 4 (quatro) anos, sujeita a regime de prova que deverá assentar nos objectivos que vierem a ser delineados em plano individual de reinserção social a traçar pelos Serviços de Reinserção Social a favor do arguido, nos termos do disposto no rt.s 50.°, n.°s 1, 2, 3 e 5, e 53.°, todos do Código Penal;
(…)
2. Os arguidos não se conformaram com as respetivas condenações e interpuseram recurso da sentença.
2.1. O arguido AA finalizou a motivação do recurso com as seguintes conclusões (transcrição):
I. No dia .../.../2022, o Recorrente e a sua companheira cidadãos de nacionalidade ..., residiam na ....
II. Os Arguidos apesar de falarem algumas palavras em Português não dominam a língua de Camões, motivo pelo qual a Acusação foi traduzida, conforme documento com a referência citius 38216210;
III. No dia .../.../2022 sem que estivesse a ser cometido, ou houvesse notícia de ter sido cometido qualquer crime no interior da residência do Arguido os agentes da PSP levaram a cabo uma busca domiciliária.
IV. Nem o Recorrente nem a sua companheira deram Autorização á referida busca domiciliária.
V. Sendo o Arguido desconhecedor da Língua Portuguesa, não se encontrando no local um intérprete, e não se encontrando sequer os Autos de Apreensão traduzidos, era imperioso que naquele ato processual o Arguido estivesse acompanhado por defensor;
VI. Constitui Nulidade insanável, nos termos do Artigo 119°, alínea c) do C.P.P., a falta do defensor do Arguido nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência, como era o caso da Busca levada a cabo.
VII. A busca cautelar probatória, como foi o caso em apreço nos presentes autos "...não se pode tratar de busca domiciliária." Tiago Caiado Milheiro, in Comentário Judiciário Do Código de Processo penal, Tomo III, Almedina, pág. 798, em anotação ao artigo 251° do C.P.P.
VIII. Ao valorar a referida busca o Tribunal a quo violou os artigos 126°, 174°, 176°, 177° e 256°, todos do C.P.P. e bem assim os artigos 18° e 34° da Constituição da República Portuguesa.
IX. De um ponto de vista constitucional, o direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência tutela o direito à intimidade pessoal, prevista no artigo 26.° da Constituição.
X. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ao comentarem o artigo 34.° da Constituição, põem em relevo que o domicílio se configura como uma "projeção espacial da própria pessoa e a correspondência como extensão da própria pessoa" (Constituição da república Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, p. 212).
XI. Assim sendo, o direito à inviolabilidade do domicílio é um direito à liberdade da pessoa. É, por isso, que, como dizem os mesmos comentadores, "...a Constituição considera a «vontade», o «consentimento» da pessoa (n.ºs 2 e 3) como condição sine qua non da possibilidade de entrada no domicílio dos cidadãos fora dos casos de mandado judicial" (Constituição, cit., p. 212).
XII. Assim, sempre serão inconstitucionais os artigos art. 174.°, n.° 5 e 177.°, n.° 3, al. a) do C.P.P quando interpretados com o sentido de que:
"Pode o Órgão de Polícia Criminal, efetuar uma busca na residência de cidadãos estrangeiros, sem o consentimento destes, sem a presença de defensor ou intérprete, sem autorização da Autoridade Judiciária."
e no sentido que,
"Na sequência da detenção de um cidadão na via pública, pode o Órgão de Polícia Criminal, levar a cabo uma busca domiciliária na casa deste, quando aí se encontram a residir mais pessoas, sem autorização de Autoridade Judiciária."
Tal interpretação viola os artigos 2°, 18°, 20° e 34° da Constituição da República.
Inconstitucionalidades que desde já se invocam.
XIII. O Recorrente impugna os seguintes pontos da matéria de facto, os quais deveriam ser julgados como NÃO PROVADOS:
1) No dia ........2022, entre as 17h30 e as 18h30, os arguidos encontravam-se na ..., em ..., com o fito de entregar produtos estupefacientes a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
3) Aí chegado, CC entregou aos arguidos uma quantia monetária não apurada e recebeu em troca uma embalagem que continha canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 10,622g e uma embalagem que continha cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1,832g.
13) Na mesma data, pelas 18h30m, o arguido AA estava no interior do imóvel sito na ..., em que habitava com a arguida BB.
14) Nessas circunstâncias os arguidos tinham no interior da sua residência comum o seguinte:
1. Diversas embalagens que continham canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 221,191g;
2. Dois frascos que continham canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 2,092g;
3. Várias embalagens que continham canábis (resina) com o peso líquido de 598,982g;
4. Um frasco que continha canábis (resina) com o peso líquido de 1,388g;
5. Uma caixa que continha cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 0,192g;
6. Três facas com resíduos de canábis;
7. Uma balança de precisão com resíduos de canábis;
8. A quantia de €400;
9. Diversos papéis manuscritos;
10. Um telemóvel;
11. Uma pistola de ar comprimido.
16) As sobreditas quantias monetárias foram entregues aos arguidos em troca de produtos estupefacientes.
17) Os apontados telemóveis destinavam-se aos contactos entre os arguidos e as pessoas a quem entregavam produtos estupefacientes.
18) A referida arma de ar comprimido destinava-se a defender os produtos estupefacientes que os arguidos tinham na sua habitação.
19) Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de receber e ter consigo os referidos produtos estupefacientes, cujas características, naturezas e quantidades conheciam, com o fito de os entregar a terceiros a troco do recebimento de quantias monetárias.
20) Os arguidos actuaram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
XIV. O Tribunal a quo fundamenta a resposta à matéria de facto dada como provada nas declarações dos Arguidos. O Recorrente que declarou nada ter a ver com a atividade de tráfico de estupefacientes a BB declarou ser a única responsável pela referida atividade e que o Recorrente nada tinha a ver com a mesma, conforme resulta da fundamentação da Sentença.
XV. O Tribunal a quo refere, ainda, na sua fundamentação, as declarações do Agente DD que presenciou a BB a efetuar duas vendas e o Agente EE, que, atendendo ao resumo efetuado pelo Tribunal a quo, nada de relevante acrescentou.
XVI. Nenhum dos Agentes ouvidos colocou em causa as declarações dos Arguidos.
XVII. Não existe qualquer concreta imputação ao Recorrente de que o mesmo fosse visualizado a cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, por à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar exportar, fizer transitar qualquer produto estupefaciente.
XVIII. Os agentes ouvidos não relataram qualquer situação envolvendo o Recorrente. O Recorrente negou a prática de qualquer facto relacionado com a atividade de tráfico de estupefacientes.
XIX. A BB assumiu integralmente a propriedade e posse do produto estupefaciente apreendido, ouvida na audiência de julgamento do dia 12/11/2024, pelas 11:54:35, ficheiro de origem: Diligencia_125- 22.1SMLSB_2024-11-12_11-54-35, passagens 00:07:51 a 00:09:10 e 00:09:53 a 00:13:10;
XX. O Tribunal a quo violou de forma flagrante o Princípio da Presunção da Inocência e do In dúbio pro reo.
XXI. Se dúvidas existissem quanto á falta de coerência na condenação do Recorrente atente-se que o Tribunal a quo deu como provado:
1) No dia ........2022, entre as 17h30 e as 18h30, os arguidos encontravam-se na ..., em ..., com o fito de entregar produtos estupefacientes a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
XXII. Acontece, que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento levava o Tribunal a quo a ter que concluir que nesse dia e horas o Recorrente encontrava-se em sua casa, a dormir. Isto mesmo decorreu das declarações do Arguido, ouvido em 12/11/2024, pelas 11:16:44, cujo depoimento se encontra gravado no sistema existente no tribunal ficheiro de origem: Diligencia_125-22.1SMLSB_2024-11-12_11-16-44, passagens 00:23:04 a 00:24:05;
• Testemunha DD ouvida em 04/12/2024, pelas 14:08:16, cujo depoimento se encontra gravado no sistema existente no Tribunal ficheiro de origem: Diligencia_125-22.1SMLSB_2024-12- 04_14-08-16, passagens 00:15:20 a 00:15:45.
XXIII. Não é possível imputar ao Recorrente uma única conduta consubstanciadora da prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
XXIV. Acresce que o Recorrente encontrava-se acusado em coautoria material. É doutrina maioritária, com assunção expressa do Supremo Tribunal de Justiça, que a teoria do domínio do facto, desenvolvida por ROXIN, é a vigente no ordenamento penal português. Segundo esta teoria é autor quem governa o curso do facto, isto é, domina a execução do crime, o "como" e o "se" da realização típica, pois tem o domínio do facto e a vontade de o dominar.
XXV. No caso sub judice em relação ao Recorrente não foi feita qualquer prova de que o mesmo dominasse algum dos factos que poderiam ser enquadrados na prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
XXVI. Em face de tudo o qua acima se encontra exposto deveria o Recorrente ter sido absolvido da prática do crime pelo qual foi condenado.
XXVII. Assim, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os artigos 21°, n.°1, do Decreto - Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro, por referência ás tabelas I-B e I-C anexas ao referido diploma, em como os princípios da Presunção da Inocência e do In Dubio Pro Reo.
XXVIII. Caso se considerasse que o facto do Arguido ter permitido que a sua companheira tivesse guardado na casa do casal produto estupefaciente de alguma forma era um facto potenciador do crime de tráfico de estupefacientes, então sempre teria que se enquadrar essa conduta no âmbito de uma cumplicidade.
Contudo, mesmo que assim não se entenda, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se admite à cautela ainda diremos o seguinte:
XXIX. Considerando a imagem global dos factos, se se considerasse que o Recorrente cometeu algum crime, o que apenas por mera hipótese académica se coloca, a alegada conduta do Recorrente não pode ser enquadrada no artigo 21° do Decreto Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro, mas deve sim, ao invés, ser enquadrada no crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25° do referido diploma legal;
XXX. Entende, por isso o Recorrente que ao ser condenado ao abrigo do artigo 21° e não ao abrigo do artigo 25° do Decreto lei n.° 15/93, 22 de janeiro, o Tribunal a quo violou os referidos preceitos legais.
XXXI. A pena aplicada ao Arguido nunca poderia exceder os 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução sem qualquer regime de prova.
2.2. A arguida BB finalizou a motivação do recurso com as seguintes conclusões (transcrição):
I. Sendo a Arguida desconhecedora da Língua Portuguesa, não se encontrando no local um intérprete, nem sequer os Agentes falando …, e não se encontrando sequer os Autos de Apreensão traduzidos era imperioso que naquele ato processual o Arguido estivesse acompanhado por defensor;
II. Constitui Nulidade insanável, nos termos do Artigo 119°, alínea c) do C.P.P., a falta do defensor do Arguido nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência, como era o caso da Busca levada a cabo.
III. As buscas domiciliárias estão sujeitas a uma especial proteção de natureza constitucional nos termos do artigo 34° da CRP.
IV. Como refere Tiago Caiado Milheiro, in Comentário Judiciário Do Código de Processo penal, Tomo III, Almedina, pág. 798, em anotação ao artigo 251° do C.P.P. da possibilidade de buscas encontram-se as buscas domiciliárias: "São pressupostos de realização da busca cautelar probatória: a) Efetivação da mesma por OPC; b) fundada razão para crer que em lugar reservado e não acessível ao público se ocultam objetos relacionados com o crime, suscetíveis de servirem a prova; c) sem busca poderiam perder-se; d) não se tratar de busca domiciliária, ou seja, lugar reservado e não acessível ao público que não seja um domicílio."
V. Ao valorar as referidas buscas o Tribunal a quo violou os artigos 126°, 174°, 176°, 177° e 256°, todos do C.P.P. e bem assim os artigos 18° e 34° da Constituição da República Portuguesa.
VI. Considerando Nula a Busca domiciliária, como se impõem, deve o Artigo 14) da matéria de facto dada como PROVADA ser dado como NÃO PROVADO, porquanto a prova do referido facto decorre da busca levada a cabo.
14) Nessas circunstâncias os arguidos tinham no interior da sua residência comum o seguinte:
1. Diversas embalagens que continham canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 221,191g;
2. Dois frascos que continham canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 2,092g;
3. Várias embalagens que continham canábis (resina) com o peso líquido de 598,982g;
4. Um frasco que continha canábis (resina) com o peso líquido de 1,388g;
5. Uma caixa que continha cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 0,192g;
6. Três facas com resíduos de canábis;
7. Uma balança de precisão com resíduos de canábis;
8. A quantia de €400;
9. Diversos papéis manuscritos;
10. Um telemóvel;
11. Uma pistola de ar comprimido.
VII. Quanto aos restantes factos a Recorrente assumiu que efetivamente se dedicava ao tráfico de pequenas quantidades de canábis. Contudo, volte a frisar-se, numa atividade que era apenas sua e não do seu companheiro.
VIII. A conduta da Recorrente não pode ser enquadrada no artigo 21° do Decreto Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro, mas deve sim, ao invés, ser enquadrada no crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25° do referido diploma legal;
IX. A circunstância de a quantidade de produto estupefaciente ter alguma relevância, não exclui nem dá amparo ao afastamento da subsunção à norma do art.° 25° (tráfico de menor gravidade).
X. Até porque, no caso sub judice o estupefaciente apreendido refere-se a cerca de 7 (sete) gramas de cocaína, 281,47 gramas de canábis em folhas e sumidades floridas, e 613,92 gramas de canábis resina. Temos, portanto, que a quase totalidade do estupefaciente detido se refere a canábis, em folha e resina, ou seja, o que menor danosidade social provoca.
XI. O grau de pureza dos referidos produtos é reduzido. A atividade da Arguida não tem qualquer grau de sofisticação.
XII. Foram apuradas, em concreto, duas vendas de canábis.
XIII. Sendo certo que, como é sabido, a destrinça entre a norma do art.° 21° e a norma do art.° 25° não assenta em critérios exclusivamente quantitativos.
XIV. O produto estupefaciente detido pela sua quantidade e qualidade, nunca se poderá considerar relevante.
XV. Entende, por isso a Recorrente que ao ser condenada ao abrigo do artigo 21° e não ao abrigo do artigo 25° do Decreto lei n.° 15/93, 22 de janeiro, o Tribunal a quo violou os referidos preceitos legais.
XVI. Assim sendo a pena aplicada à Recorrente nunca poderia exceder os 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução sem qualquer regime de prova.
3. A Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta conjunta aos recursos interpostos pelos arguidos, no sentido de que não merecem provimento, mas sem formular conclusões.
4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido de que os recursos não merecem provimento, considerando ser de confirmar a decisão recorrida e acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª instância.
5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), nenhuma resposta foi apresentada.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 do CPP.
No caso concreto, face às conclusões extraídas pelos arguidos das respetivas motivações de recurso, cumpre apreciar as seguintes questões:
• Nulidade da busca domiciliária.
• Erro de julgamento/Impugnação sobre a matéria de facto:
– Quanto ao recorrente AA, por referência aos pontos 1), 3), 13), 14), 16), 17), 18), 19) e 20), que, em relação a si, considera que deveriam ter sido julgados não provados;
– Quanto à recorrente BB, por referência ao ponto 14), que considera que deveria ser dado como não provado.
• Qualificação jurídico-criminal.
Quantum das penas.
2. Da sentença recorrida
2.1. O tribunal a quo deu como provada a seguinte factualidade:
1. No dia ........2022, entre as 17h30 e as 18h30, os arguidos encontravam-se na ..., em ..., com o fito de entregar produtos estupefacientes a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
2. Cerca das 17h30m CC deslocou-se ao ..., da ..., naquele bairro, onde residiam os arguidos.
3. Aí chegado, CC entregou aos arguidos uma quantia monetária não apurada e recebeu em troca uma embalagem que continha canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 10,622g e uma embalagem que continha cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1,832g.
4. Mais tarde, pelas 18h00, FF dirigiu-se à porta de entrada do apontado imóvel.
5. A arguida BB saiu da sua residência, localizada no ... e juntou-se a FF.
6. Nessa sequência, a arguida BB entregou a FF duas embalagens que continham canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 21,490g e uma embalagem que continha canábis (resina) com o peso líquido de 2,223g e recebeu em troca uma quantia monetária não desvendada.
7. Pelas 18h10m a arguida BB encontrava-se na ..., no mesmo bairro.
8. Nesse momento acorreu àquele local a testemunha GG, que pediu canábis à arguida BB.
9. A testemunha GG e a arguida BB tinham previamente combinado esse encontro através de telemóvel.
10. Seguidamente a arguida BB entregou à testemunha GG duas embalagens que continham canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 19,927g e recebeu em troca a quantia de €60.
11. Logo depois, a arguida BB foi interceptada pela PSP.
12. A arguida BB tinha consigo, numa bolsa que usava a tiracolo, o seguinte:
1. Duas embalagens que continham canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 60,284g;
2. Duas embalagens que continham canábis (resina) com o peso líquido de 14,944g;
3. Duas embalagens que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 7,07g;
4. A quantia de €60;
5. Dois telemóveis.
13. Na mesma data, pelas 18h30m, o arguido AA estava no interior do imóvel sito na ..., em que habitava com a arguida BB.
14. Nessas circunstâncias os arguidos tinham no interior da sua residência comum o seguinte:
1. Diversas embalagens que continham canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 221,191g;
2. Dois frascos que continham canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 2,092g;
3. Várias embalagens que continham canábis (resina) com o peso líquido de 598,982g;
4. Um frasco que continha canábis (resina) com o peso líquido de 1,388g;
5. Uma caixa que continha cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 0,192g;
6. Três facas com resíduos de canábis;
7. Uma balança de precisão com resíduos de canábis;
8. A quantia de €400;
9. Diversos papéis manuscritos;
10. Um telemóvel;
11. Uma pistola de ar comprimido.
15. Os referidos papéis tinham inscrições alusivas a entregas de produtos estupefacientes.
16. As sobreditas quantias monetárias foram entregues aos arguidos em troca de produtos estupefacientes.
17. Os apontados telemóveis destinavam-se aos contactos entre os arguidos e as pessoas a quem entregavam produtos estupefacientes.
18. A referida arma de ar comprimido destinava-se a defender os produtos estupefacientes que os arguidos tinham na sua habitação.
19. Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de receber e ter consigo os referidos produtos estupefacientes, cujas características, naturezas e quantidades conheciam, com o fito de os entregar a terceiros a troco do recebimento de quantias monetárias.
20. Os arguidos actuaram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Mais se provou que:
21. O arguido trabalha actualmente para uma empresa … de forma remota, auferindo um vencimento mensal no valor de € 1700,00;
22. A arguida trabalha num call center e aufere um vencimento mensal no valor de € 1200,00;
23. Têm uma filha, de 18 meses;
24. Residem em casa arrendada;
25. Os arguidos têm o 12.° ano de escolaridade;
26. Resulta do relatório social respeitante à arguida o seguinte:
-A relação da arguida e companheiro é de acordo com ambos os elementos de entendimento e suporte mútuo. O casal vive maritalmente desde 2019, tem uma filha em comum de 18 meses, de quem são os únicos cuidadores porquanto a criança não frequenta a creche. A arguida refere contactar regularmente com os familiares de origem, em particular com a mãe, a residirem em ...
-De acordo com a arguida a relação com o companheiro à data era instável, o que justifica com o facto de aquele se encontrar inativo e de ser ela o garante do sustento de ambos.
-Desde ... de 2023 que a arguida e o seu companheiro residem em .... A arguida refere que a deslocação para aquela zona se deveu ao facto de a renda da casa ser mais baixa do que qualquer outra casa em ..., com as mesmas condições. A sua perspetiva é manter a residência em Portugal até ao final das diligências do presente processo e posteriormente regressar para ..., onde poderá beneficiar de outro suporte por parte de familiares e entidades estatais, em especial no que se refere à filha do casal.
-A habitação onde residem atualmente é propriedade de um casal de nacionalidade ... HH e II, os titulares do arrendamento são a arguida e o companheiro, AA
-A arguida desenvolve atividade em regime de teletrabalho, como prestadora de serviços, na qualidade de assistente comercial para empresa ... com sede social na ....
-À data o companheiro encontrava-se desempregado, pelo que a situação económica era muito deficitária.
-A arguida é desconhecida na zona de residência. De acordo com a própria permanece a maior tempo em casa, com a filha e o companheiro e não apresentando qualquer ocupação estruturada do seu tempo livre.
- O presente processo não teve repercussões ao nível familiar, profissional e social, embora a arguida verbalize apreensão e ansiedade.
-A arguida não teve anteriores contactos com a justiça penal, segundo referiu.
-De acordo com OPC da zona de residência não há registo de ocorrências delituosas em nome da arguida.
-A arguida apresenta na atualidade uma situação estável aos níveis pessoal, profissional e económico e um enquadramento familiar percecionado como gratificante, sendo sua espectativa regressar, com o agregado próprio, ao seu país de origem.
27. Resulta do relatório social respeitante ao arguido o seguinte:
- AA integra um agregado familiar constituído pela companheira, coarguida no presente processo e uma filha do casal menor de idade. A relação marital, com cinco anos de duração, é descrita pelo arguido como cordata e de entreajuda, inclusivé no que se refere ao exercício dos seus papeis parentais, sendo avaliada pelo casal como satisfatória.
- Sem outros familiares em Portugal, o arguido refere manter contacto regular com a progenitora e um irmão mais velho residentes em ....
- À data dos factos o arguido coabitava com a companheira BB, no âmbito de uma relação marital, à data grávida.
- O arguido reside na atual morada desde ... de 2023, conjuntamente com a companheira e a filha.
- Habitam um apartamento de tipologia T2, situado numa pequena localidade próxima da zona balnear de ... no concelho de .... Equaciona retorno ao país de origem, ..., com os demais elementos do agregado familiar, após conclusão da presente fase jurídico-processual
- O arguido e a companheira residiam na cidade de …, no bairro da .... No ... de 2023 mudaram para a ..., passando a residir na habitação de uma pessoa conhecida, até terem alterado, de novo, o seu local de residência para o concelho de ....
- AA exerce atividade laboral por conta da empresa ... desde ..., exercendo funções como .... Exerce essa atividade laboral em regime de teletrabalho a partir do seu domicilio, o qual valoriza por facilitar a conciliação entre trabalho/família.
- À data dos factos o arguido refere que se encontrava em situação de desemprego, após se ter desvinculado da entidade patronal por alegada insatisfação com remuneração. Em ... de 2023 começou a trabalhar para a empresa ..., com funções de apoio a clientes, onde permaneceu cerca de um ano. Posteriormente, iniciou atividade laboral para a empresa ..., onde tem permanecido desde então.
- O arguido descreve uma situação económica mais desafogada na atualidade, sustentada pelas remunerações da sua atividade profissional e da companheira, prestadora de serviços para a empresa .... Para além das despesas mensais fixas com a habitação e telecomunicações, menciona outros encargos de montante variável com consumos de água e energia e a manutenção própria e dos restantes elementos do agregado familiar.
- À data dos factos o arguido menciona uma situação económica deficitária, decorrente da sua situação de desemprego e consequente limitação dos rendimentos disponíveis, provenientes das remunerações da companheira.
- O arguido refere ausência de relacionamentos extrafamiliares significativos e escassa sociabilidade com residentes do meio residencial, onde é pouco conhecido. Descreve-se como uma pessoa caseira, que tende a privilegiar ocupações de lazer centradas no espaço domiciliar.
- À data dos factos o arguido menciona uma situação económica deficitária, decorrente da sua situação de desemprego e consequente limitação dos rendimentos disponíveis, provenientes das remunerações da companheira.
- À data dos factos, o arguido era consumidor de cannabis, prática que refere ter cessado após o nascimento da filha.
- AA manifesta intranquilidade com a atual situação jurídico- processual e expectativa em relação às eventuais consequências penais que dela venham a decorrer.
- Não menciona repercussões negativas dessa situação jurídica nos planos familiar, laboral e social.
- Em contacto com órgão de polícia criminal com intervenção na área de residência do arguido, foi mencionada a inexistência de novas ocorrências delituosas que tenham determinado a sua constituição de arguido.
- O arguido apresenta indicadores de inserção social relacionados com um enquadramento familiar próprio, que valoriza positivamente, uma situação de emprego que lhe assegura condições de suficiência económica e uma inserção comunitária discreta não conotada com novas ocorrências delituosas.
28. Os arguidos não possuem antecedentes criminais.
2.2. Motivação
O tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos dados como provados na ponderação do conjunto da prova produzida em audiência de discussão e julgamento conjugada com as regras de experiência comum e acervo documental junto ao processo.
O arguido AA negou a prática dos factos que lhe são imputados. Explicou que efectivamente a sua companheira, a co-arguida BB, se dedicava ao tráfico de estupefacientes, mas que tal actividade era apenas desenvolvida por aquela, não se tendo envolvido na mesma, desconhecendo como se processavam os encontros e salientando que alertou várias vezes a arguida para não continuar esta actividade. Referiu que o produto do tráfico era utilizado para pagamento das despesas domésticas, uma vez que na altura não estava a trabalhar, confirmando que beneficiava do dinheiro que a arguida BB recebia decorrente desta actividade. Referiu que esteve a viver em ... até ...de 2022, data em que regressou a Portugal e passou a viver com a arguida BB, dado que a mesma estava grávida. Confirmou que o produto que estava no interior da habitação foi todo apreendido pela autoridade policial, salientando que estava ciente de que existia produto estupefaciente no interior da residência, mas desconhecia o local exacto onde a mesma se encontrava. Referiu ainda que na altura dos factos estava desempregado, não obstante ter procurado emprego, mas sem sucesso, admitindo que recusou trabalho por o mesmo não ser bem pago. Acrescentou ainda que a arguida BB que dava Cannabis e liamba quando ele lhe pedia, pois era consumidor, atestando que a aquela lhe dava quantidades diminutas. Referiu ainda que a pistola de ar comprimido não lhe pertencia, sendo da arguida BB. Acrescentou que a pistola de ar comprimido pertencia ao arguido AA e tinha sido dada por um amigo, mas não funcionava.
A arguida BB admitiu todos os factos que lhe são imputados e explicou que iniciou esta actividade de tráfico de estupefacientes quando teve conhecimento que estava grávida porque na altura estava a viver sozinha, pois o arguido estava a residir em .... Referiu que nessa altura ganhava pouco e tinha dificuldades financeiras, pois não tinha qualquer familiar em Portugal que a auxiliasse. Explicou que quando os factos ocorreram estava numa fase em que tinha aumentado o “negócio”, pois estava a precisar de dinheiro, atestando que conseguia obter com esta actividade cerca de € 500,00/€ 600,00 de lucro. Referiu que na altura dos factos o arguido AA vivia consigo, mas não trabalhava e não auferia rendimentos, salientando que apenas ela se dedicava a este negócio e que aquele não tinha uma real noção do que ela fazia, pois escondia o produto. Explicou que era ela quem preparava o produto, que o dividia em embalagens e que depois se encontrava com os consumidores. Referiu que à data dos factos estava grávida de seis meses e o arguido estava a viver com ela há cerca de 3 meses, desde ... de 2022, sendo todas as despesas suportadas por ela, atestando que o arguido AA beneficiava do dinheiro que ela auferia com esta actividade, pois partilhava o mesmo com ele. Admitiu que nunca foi consumidora de produto estupefaciente e que apenas vendia haxixe e cocaína. Referiu ainda que o arguido AA é consumidor de produto estupefaciente, designadamente de canabis, mas que não lhe cedia produto, desconhecendo se o mesmo utilizava o produto que tinha lá em casa. Explicou ainda em ... o arguido AA foi residir para ..., pois tinham terminado o relacionamento, mas continuavam a envolver-se quando ele vinha a Portugal, tendo regressado em ... para viver com ela quando soube que a mesma estava grávida. Referiu que o arguido AA ia por vezes a ... e aí adquiria produto para ele consumir, pois tinha melhor qualidade. Foi confrontada com os papeis manuscritos juntos a fls. 18 e confirmou que foi ela que escreveu tudo o que aí consta, sendo o montante de € 2500,00 que ali está indicado o valor de uma dívida que tinha a um fornecedor de produto estupefaciente e que os restantes valores que estão anotados têm a ver com um orçamento para apurar quanto custava ir um fim-de-semana a ... para adquirir haxixe, sendo o valor de € 3280,00 o valor final. Atestou que nunca foi a ... adquirir produto estupefaciente, nem o arguido AA adquiriu produto em ... para ela vender. Confirmou que os contactos os nomes e os contactos que estão nesses papeis que estão juntos aos autos correspondem aos consumidores, salientando que tinha dois telemóveis, um deles pré-pago, que servia apenas para desenvolver esta actividade.
A testemunha DD, agente da PSP, relatou que já tinham recolhido alguma informação acerca de uma suspeita de que na residência dos arguidos se procedia ao tráfico de produto estupefaciente, pelo que decidiram realizar vigilâncias e nesse contexto na data em causa nos autos assistiram a entradas e saídas do prédio, após o que viram a arguida a realizar uma transacção na rua a um individuo de sexo masculino, após o que ambos se deslocaram para o mercado das ... e logo depois viram um outro individuo de sexo masculino abordar a arguida e é realizada outra transacção. Referiu que estes dois indivíduos de sexo masculino e a arguida foram interceptados, sendo que todos tinham produto estupefaciente na sua posse. Explicou que nessa sequência foi efectuada uma busca domiciliária à residência dos arguidos, tendo sido apreendido o que consta dos autos, salientando que estava no local o arguido AA.
A testemunha EE, agente da PSP, explicou que não efectuou qualquer vigilância que tenha feito, mas sabe que o seu colega JJ interceptou um consumidor no dia .../.../2022. Referiu que os arguidos estavam referenciados por haver suspeitas de que se dedicavam ao tráfico de estupefacientes.
O Tribunal atendeu ao acervo documental junto aos autos, designadamente todos o auto de notícia de fls. 2 a 7, auto de apreensão de fls. 8 a 9, auto de busca e apreensão de fls. 10 a 12, reportagem fotográfica junta a fls. 13 a 17, manuscritos juntos a fls. 18, relatórios de vigilância juntos a fls. 19 a 24. Valorou ainda os exames do LPC juntos a fls. 183, 200, 201, 209 e 217.
No que respeita à busca efectuda, e pese embora as dúvidas suscitadas pela defensora do arguido AA em sede de alegações quanto ao cumprimento das formalidades legais, importa referir que a mesma foi realizada em conformidade com o estatuído nos art. 174.°, n.° 5 e 177.°, n.° 3, al. a) do C.P.P., pelo que todas as formalidades legais foram cumpridas.
De facto, atenta a prova produzida em julgamento, designadamente a conjugação das declarações dos arguidos com os depoimentos das testemunhas inquiridas e ainda com o acervo documental junto aos autos, o tribunal criou a convicção segura de que os factos ocorreram conforme descritos na factualidade dada como provada, razão por que foram dados como provados.
Com efeito, a arguida confessou os factos que lhe são imputados, admitindo que desenvolvia a actividade de tráfico de estupefaciente há vários meses e que o fazia a partir da sua habitação, onde residia com o arguido AA.
Por seu turno, o arguido negou a prática dos factos e bem assim que desenvolvesse a actividade de tráfico juntamente com a arguida BB, versão que foi corroborada por esta, que atestou que apenas ela se dedicava a tal actividade sem o envolvimento daquele.
Porém, os arguidos não lograram convencer o Tribunal desta versão desde logo porque resultou evidente das declarações de ambos que não só o arguido AA tinha perfeito conhecimento da actividade de tráfico que era desenvolvida a partir da sua residência como, aliás, o próprio confirmou, como beneficiava da mesma, porquanto consumia produto estupefaciente, designadamente haxixe, que era destinado a esta actividade e beneficiava também do dinheiro proveniente da mesma, conforme foi explicado pela arguida BB e também reconhecido pelo próprio arguido. Com efeito, à data dos factos, o arguido não desenvolvia qualquer actividade profissional, nem auferia qualquer rendimento, sendo todas as despesas suportadas com o produto desta actividade de tráfico.
Ora, não se mostra minimamente verosímil que alguém que não participa, nem quer participar neste tipo de actividade de tráfico, depois utilize o produto da mesma em beneficio próprio, sem qualquer tipo de condicionamento. Aliás, o próprio arguido admitiu que na altura dos factos recusou trabalhos porque eram mal pagos, o que é bem demonstrativo que não sentia qualquer limitação ou reserva em utilizar o dinheiro proveniente do tráfico, fazendo face às suas despesas com o produto conseguido com esta actividade, o que sustenta a convicção do tribunal de que o mesmo participava também no desenvolvimento da mesma.
Além disso, e apesar da arguida BB ter tentado desresponsabilizar o arguido dos factos em causa, alegando mesmo que era ela que procedia ao corte e embalamento do produto e que o fazia de forma disfarçada para que o arguido não se apercebesse da real dimensão desta actividade, a verdade é que tal se mostra totalmente contrariado pelas fotografias juntas aos autos em que é visível diverso produto estupefaciente e em grande quantidade distribuído em vários locais visíveis na cozinha da habitação, nomeadamente em cima da bancada, junto ao fogão, dentro de armários, em cima do micro-ondas, pelo que se afigura evidente que tal corte e embalamento era efectuado de uma forma aberta e explicita no interior da residência, pelo que é inequívoco que o arguido tinha perfeito conhecimento do que se passava no interior da sua residência, sendo a versão apresentada pela arguida totalmente inverosímil e incompatível com as regras de experiência comum, afigurando-se que a mesma faltou à verdade para proteger o seu companheiro.
De facto, resulta inequívoco da conjugação de toda a prova produzida, designadamente do auto de busca e apreensão e da reportagem fotográfica que a actividade de tráfico de estupefacientes era desenvolvida a partir da residência de ambos os arguidos e assumia já uma significativa dimensão atenta a elevada quantidade de produto estupefaciente em causa (mais de 500 gramas de canábis que dariam para mais de três mil doses conforme relatório pericial), a diversidade do mesmo e o numero de consumidores que adquiriam o produto (que resulta dos manuscritos juntos a fls. 18), pelo que não se mostra crível que o arguido AA não estivesse também envolvido e participasse na mesma, tanto mais que o próprio admitiu que fazia face às suas despesas com o dinheiro proveniente daquela.
Aliás, resulta dos relatórios de vigilância constantes dos autos a entrada de diversos indivíduos na habitação dos arguidos, o que sustenta igualmente a nossa convicção de que a actividade de tráfico era desenvolvida por ambos os arguidos no interior daquela residência, cumprindo notar que o arguido admitiu conhecer CC e FF, consumidores que se deslocaram à residência na data que está em causa nos autos.
Acresce que o facto de ser apenas a arguida a realizar as entregas aos consumidores na via pública é também compreensível atentas as regras de experiência comum, na medida em que se trata de uma mulher, de nacionalidade estrangeira e que à data dos factos estava grávida, o que a tornava muito menos suspeita da prática deste tipo de actividade, afigurando- se que tal forma de proceder foi previamente planeada pelos arguidos.
Refira-se ainda que o facto de existir no interior da habitação uma pistola de ar comprimido que o arguido AA reconheceu em ultimas declarações ser dele serviu também para sustentar a convicção do Tribunal, na medida em que é usual a posse deste tipo de arma no contexto da actividade de tráfico de estupefacientes atenta a perigosidade da mesma.
Com efeito, conjugada toda a prova produzida, o Tribunal convenceu-se que os dois arguidos actuaram de forma concertada e em conjugação de esforços e vontades, no desenvolvimento de um plano com o propósito concretizado de comercializar produto estupefaciente com o propósito de beneficiarem das quantias monetárias que eram produto de tais vendas.
As quantidades e o tipo de produto apreendido resultaram demonstrados atento o teor dos exames periciais juntos ao processo.
A factualidade descrita nos pontos 19) a 20) resultou provada atenta a conjugação da prova produzida com as regras de experiência comum e com a factualidade dada como provada, tendo o Tribunal criado a convicção segura que os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de receber e ter consigo os referidos produtos estupefacientes, cujas características, naturezas e quantidades conheciam, com o fito de os entregar a terceiros a troco do recebimento de quantias monetárias, ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
No que concerne à matéria respeitante aos antecedentes criminais, o tribunal valorou o teor dos certificados de registo criminal juntos aos autos e no que respeita às condições pessoais e socioeconómicas dos arguidos atendeu às suas declarações conjugadas com os relatórios sociais.
3. Apreciando
a. Da nulidade da busca domiciliária
Os recorrentes pugnam pela nulidade da busca domiciliária realizada na sua residência no dia 1 de dezembro de 2022, sendo tanto por alegada violação dos arts. 126.°, 174.°, 176.°, 177.° e 256.°, todos do CPP e bem assim os artigos 18.° e 34.° da Constituição da República Portuguesa.
Consideram que não tendo sido assistidos por defensor e intérprete na busca, tal tornaria nulo o respetivo meio de obtenção de prova e, em vista disso, as apreensões daí resultantes.
Na sua perspetiva,
• Não pode o órgão de policial criminal realizar uma busca na residência de cidadãos estrangeiros, sem o consentimento destes, sem a presença de defensor ou intérprete, sem autorização da autoridade judiciária;
• Não pode o órgão de polícia criminal, na sequência da detenção de um cidadão na via pública, levar a cabo uma busca domiciliária na casa deste, quando aí se encontram a residir mais pessoas, sem autorização de autoridade judiciária.
Vejamos.
É pressuposto da busca a existência de indícios de que alguém oculta em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova à investigação - art. 174.º, n.º 2 do CPP.
Por seu turno, as revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência - art. 174.º, n.º 3, do CPP.
Ressalvam-se destas exigências, as revistas e as buscas efetuadas por órgão de polícia criminal nos casos: a) de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em risco a vida ou a integridade física de qualquer pessoa; b) em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma documentado; c) ou aquando da detenção em flagrante delito por crime a que corresponda pena de prisão - art. 174.º, n.º 5 do CPP.
Por sua vez, tratando-se de busca em casa de habitação ou numa sua dependência fechada, a mesma terá de obedecer ao estatuído no art. 177.º, do CPP.
Sem prejuízo, pode ser efetuada pelo órgão de polícia criminal, entre as 7H00 e as 21H00, nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade física de qualquer pessoa; b) em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma documentado; ou c) aquando da detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão (art. 177.º, n.º 3, al. a) do CPP).
Pode ainda ser efetuada pelo órgão de polícia criminal, entre as 21H00 e as 7H00, havendo consentimento do visado, documentado por qualquer forma, ou em flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos (art. 177.º, n.º 3, al. b) do CPP).
Ou seja, nessas situações pode o órgão de polícia criminal levar a cabo buscas domiciliárias, sem a competente autorização judicial.
Olhando ao caso dos autos temos com relevância, por referência ao correspondente “auto de notícia por detenção” (cf. ref. citius 34358778), o seguinte (transcrição parcial):
“(…)
Por haver fortes indícios de estar perante um crime de tráfico de estupefaciente, procedi à abordagem de BB e de (…).
(…) foram de imediato ambos sujeitos a uma revista sumária, (…), da qual foi possível apurar que os visados se encontravam na posse dos seguintes objectos, que foram devidamente apreendidos:
Na posse de BB, no interior da mala a tiracolo:
- 1 (um) telemóvel de marca ..., modelo desconhecido, cor ..., com o IMEI: ... e ....
- 1 (um) telemóvel de marca ..., modelo desconhecido, de cor ....
- 2 (dois) sacos de um produto suspeito de ser Liamba;
- 2 (duas) embalagens de um produto suspeito de ser Haxixe;
- 2 (dois) sacos de um produto suspeito de ser Cocaína.
(…)
Face ao exposto e por existirem assim fortes e sustentados indícios da prática do Crime de Tráfico de Produto Estupefaciente, foi dada voz de detenção a BB, ficando a mesma ciente dos factos que lhe são imputados, bem como da sua condição processual.
(…)
Em ato seguido à detenção, e tendo em conta o ilícito criminal acima explanado, foram efectuadas diligências no sentido de carrear prova com valor probatório, mais propriamente o cumprimento de uma busca domiciliária à residência de BB, que prontamente afirmou residir ..., por forma a perceber se esta tinha algo mais de ilícito armazenado no interior da habitação.
Desta forma e tendo em conta que a residência BB ficava próximo do local onde foi efectuada a detenção, esta Brigada de Investigação Criminal, deslocou-se aquele local, e efectuou abertura de porta com a chave que a suspeita tinha na posse, não havendo danos a registar, tendo a busca à residência iniciado pelas 18H30 e terminado pelas 19H30.
No interior da residência, apurámos que se encontrava AA, namorado de BB, que foi prontamente informado do ocorrido.
Da busca efectuada à cozinha da residência, na presença de ambos, foram apreendidos os seguintes artigos:
- 1 (um) saco plástico, com diversas embalagens plásticas, que continha no interior LIAMBA com o peso de 91.02 gramas;
- 1 (um) saco plástico, que continha no interior LIAMBA com o peso de 55.36 gramas;
- 1 (um) saco plástico, que continha no interior LIAMBA com o peso de 43.57 gramas;
- 1(um) Tupperware, que continha no seu interior LIAMBA com o peso de 58.04 gramas;
- 1(um) Tupperware, que continha no seu interior LIAMBA com o peso de 40.45 gramas;
- 1 (uma) embalagem, com cinco «sabonetes» de HAXIXE com o peso de 503.62 gramas;
- 1 (uma) embalagem «sabonete», de HAXIXE com o peso de 92.09 gramas;
- 1 (um) saco plástico com vários pedaços, de HAXIXE com o peso de 11.26 gramas;
- 1 (uma) embalagem com um pedaço, de HAXIXE com o peso de 4.54 gramas;
- 6 (seis) notas com o valor facial de 10 Euros;
- 17 (dezassete) notas com o valor fácil de 20 Euros;
- 1 (uma) balança digital de cor preta, com resíduos de um produto suspeito de ser HAXIXE;
- 3 (três) facas de cozinha com resíduos de um produto suspeito de ser HAXIXE;
- 1 (um) caderno com várias anotações;
- 1 (uma) balança de marca ...;
- Várias folhas, com várias anotações;
- Vários sacos de plásticos/herméticos;
Da busca efectuada à sala da residência, na presença de ambos, foram apreendidos os seguintes artigos:
- 1 (uma) arma de ar comprimido, modelo GLOCK, calibre 4.5 mm;
- 1 (um) telemóvel de marca ..., modelo desconhecido, cor ... com o IMEI ...;
- 1 (um) frasco com tampa roxa com vários pedaços, de LIAMBA com o peso de 16.09 gramas;
- 1 (um) frasco com tampa com padrão branco e vermelho com vários pedaços, de LIAMBA com o peso de 0.73 gramas;
- 1 (um) frasco com tampa com padrão branco e vermelho com uma embalagem, de HAXIXE com o peso de 1.43 gramas;
- 1 (um) saco plástico com vários pedaços, de HAXIXE com o peso de 22.39 gramas;
- 1 (um) Tupperware de pequenas dimensões, de COCAINA com o peso de 0.19 gramas;
(…)”
Assim observado resulta, à evidência, que a busca domiciliária em questão, realizada em período diurno, é decorrente da detenção em flagrante delito da recorrente BB pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
Nestes termos, foi efetuada em conformidade com o estatuído nos arts. 174.°, n.° 5, al. c) e 177.°, n.° 3, al. a) do CPP, ou seja, aquando da detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão, não sendo caso de obter ou não o consentimento dos visados.
Melhor dizendo, a busca à residência da recorrente, que por sinal ficava próximo do local onde foi efetuada a detenção, mostra-se perfeitamente justificada pela suspeita, que se veio a comprovar, de que no local buscado se encontrassem objetos relacionados com a prática do crime em questão e cuja obtenção para o processo importava salvaguardar.
Desta feita, nunca estaria em causa nem a circunstância de os arguidos serem estrangeiros, e por isso não dominarem a língua portuguesa, nem a circunstância de a mesma não ter por eles sido consentida, já que a busca não foi realizada a coberto da alínea b) do n.º 5 do art. 174.º do CPP.
De qualquer modo, sempre se acrescenta que nem sequer seria de equacionar a nomeação de intérprete, uma vez que as formalidades da busca domiciliária, previstas nos artigos 176.º e 177.º do CPP, não o exigem, para além de que a arguição de qualquer nulidade daí decorrente sempre seria intempestiva, por força do disposto no art. 120.º, n.º 3, al. c) do CPP.
Por outro lado, também não seria caso de consideração do disposto no art. 64.º, n.º 1, al. d) do CPP, conforme ainda pretendido pelos recorrentes, na aceção de ser obrigatória a assistência do defensor em razão de os recorrentes serem desconhecedores da língua portuguesa, dado que uma busca não é um ato processual, mas antes um simples meio de obtenção de prova.
E nem se diga, conforme ainda pretendido, que não pode o órgão de polícia criminal, na sequência da detenção de um cidadão na via pública, levar a cabo uma busca domiciliária na casa deste, sem autorização de autoridade judiciária, quando aí se encontram a residir mais pessoas, pois que está em causa uma detenção em flagrante por crime a que corresponde pena de prisão, cumprindo retirar as devidas consequências.
É que a exposição e importância probatória que o flagrante delito convoca impõem uma intervenção urgente, sob pena de se perderem as provas do crime e o propósito da investigação, o que de todo não se compadece com interpretação pretendida pelo recorrente, destituída de qualquer proporcionalidade e fundamento.
Por conseguinte, não identificamos qualquer nulidade ou restrição dos correspondentes direitos fundamentais, antes verificando que no caso dos autos todas as formalidades legais foram cumpridas.
b. Do erro de julgamento
Relativamente à discordância quanto ao raciocínio explanado pelo tribunal a quo, a mesma corresponderá à impugnação sobre a matéria de facto pretendida por ambos os recorrentes.
No tocante à recorrente BB, essa impugnação mostra-se desde logo prejudicada, uma vez que o juízo que se pretende negativo quanto ao facto provado em 14) decorreria da nulidade, que se julgou improcedente, relativa à busca levada a cabo.
Já quanto ao recorrente AA, mostram-se, na sua perspetiva, incorretamente julgados os factos provados em 1), 3), 13), 14), 16), 17), 18), 19) e 20), que, em relação a ele, deveriam ter sido julgados não provados.
Os factos são os seguintes:
1. No dia ........2022, entre as 17h30 e as 18h30, os arguidos encontravam-se na ..., em ..., com o fito de entregar produtos estupefacientes a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
3. Aí chegado, CC entregou aos arguidos uma quantia monetária não apurada e recebeu em troca uma embalagem que continha canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 10,622g e uma embalagem que continha cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1,832g.
13. Na mesma data, pelas 18h30m, o arguido AA estava no interior do imóvel sito na ..., em que habitava com a arguida BB.
14. Nessas circunstâncias os arguidos tinham no interior da sua residência comum o seguinte:
1. Diversas embalagens que continham canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 221,191g;
2. Dois frascos que continham canábis (folhas e sumidades floridas) com o peso líquido de 2,092g;
3. Várias embalagens que continham canábis (resina) com o peso líquido de 598,982g;
4. Um frasco que continha canábis (resina) com o peso líquido de 1,388g;
5. Uma caixa que continha cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 0,192g;
6. Três facas com resíduos de canábis;
7. Uma balança de precisão com resíduos de canábis;
8. A quantia de €400;
9. Diversos papéis manuscritos;
10. Um telemóvel;
11. Uma pistola de ar comprimido.
16. As sobreditas quantias monetárias foram entregues aos arguidos em troca de produtos estupefacientes.
17. Os apontados telemóveis destinavam-se aos contactos entre os arguidos e as pessoas a quem entregavam produtos estupefacientes.
18. A referida arma de ar comprimido destinava-se a defender os produtos estupefacientes que os arguidos tinham na sua habitação.
19. Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de receber e ter consigo os referidos produtos estupefacientes, cujas características, naturezas e quantidades conheciam, com o fito de os entregar a terceiros a troco do recebimento de quantias monetárias.
20. Os arguidos actuaram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
A decisão sobre a matéria de facto pode ser impugnada por duas vias:
- com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o art. 410.º, n.º 2 do CPP (impugnação em sentido estrito, no que se denomina de «revista alargada»);
- ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP (impugnação em sentido lato).
Quanto aos vícios (impugnação em sentido estrito) - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova -, sendo de conhecimento oficioso, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, limitando-se a atuação do tribunal de recurso à sua verificação na sentença/acórdão e, não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (art. 426.º, n.º 1 do CPP).
Quanto à segunda modalidade (impugnação em sentido lato), impõe-se, conforme resulta da análise do normativo correspondente (n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP), que o recorrente enumere/especifique os pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como que indique as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida, e não apenas a permitam, como também, sendo o caso, as que devem ser renovadas, assim como que especifique, com referência aos suportes técnicos, a prova gravada.
Tal delimitação decorre da circunstância de a reapreciação da matéria de facto não se traduzir num novo julgamento, mas antes num “remédio jurídico”, destinado a colmatar erros de procedimento ou de julgamento.
Se a decisão proferida for uma das soluções plausíveis segundo o princípio da livre apreciação e as regras de experiência, a mesma será inatacável, pelo que importa que o recorrente na indicação das concretas provas torne percetível a razão da divergência quanto aos factos, dando a conhecer a razão pela qual as provas que indica impõem decisão diversa da recorrida.
Porém, no caso concreto, pese embora o recorrente identifique os pontos de facto que considera incorretamente julgados, não dá integral cumprimento ao disposto no n.º 3 do art. 412.º do CPP, na medida em que não indica qualquer prova produzida que tenha a virtualidade de impor, claramente, decisão diversa da sentença recorrida, embora pretenda e alegue (cf. parágrafo 40º da respetiva motivação) que os elementos de prova de que o tribunal se socorreu para formar a sua convicção, apontam em sentido inverso do decidido, ou mesmo que não existem elementos para se darem provados.
Com efeito, não invoca o recorrente em seu apoio meios de prova que não tivessem sido considerados pelo tribunal a quo, mas antes questiona a avaliação que o tribunal fez daqueles, tendo como objetivo “desconstruir” a concertação tida como assente entre os arguidos e assim obter a sua desresponsabilização individual.
Ora, para além de não se verificar a ocorrência de qualquer vício, não se vislumbra que tenha tido lugar um erro de julgamento, mas antes se constata que nunca o tribunal a quo poderia ter acolhido a tese dos arguidos, no sentido de que o elemento masculino não estaria relacionado com a atividade de tráfico de estupefacientes, que apenas teria sido desenvolvida pelo elemento feminino, porquanto a mesma desconsidera as regras da experiência comum conjugada com a prova produzida.
É que para além das declarações dos arguidos, em sintonia quanto à desresponsabilização do recorrente AA, também nós procedemos à audição dos depoimentos prestados em audiência de julgamento pelos agentes DD e EE, que claramente referenciam ambos os arguidos como traficantes, no sentido de que já tinham recolhido informações que apontavam que na ..., no n.º 13, no R/c, havia um casal que se dedicava ao tráfico de estupefacientes, nomeadamente, liamba e cocaína, sendo que alguns dos consumidores entravam no prédio, outros não.
Por outro lado, ao contrário do que pretende o arguido (cf. parágrafo 73º da respetiva motivação), é evidente que se encontrava na ..., em …, pois que, independentemente de se encontrar a dormir aquando da busca domiciliária à residência que partilha com a arguida, a mesma situa-se nesse bairro, e não em qualquer outro, sendo o produto estupefaciente aí apreendido destinado à venda a terceiros, logo com o fito de entregá-lo, assim se interpretando a factualidade tida como assente em 1) e em 3), a conjugar com a provada em 2) (“Cerca das 17h30m CC deslocou-se ao n.° 13, da ..., naquele bairro, onde residiam os arguidos”), que não foi alvo de impugnação.
De forma contextualizada, aquilo que se verifica é que o tribunal recorrido procedeu a uma correta interpretação da prova que lhe foi dada a apreciar, o que não significa que lhe fosse exigível conformar a sua valoração de acordo com as declarações dos arguidos, no sentido de que apenas a arguida seria responsável pela atividade de tráfico.
Resulta, pois, expressamente da fundamentação da sentença recorrida que “supra” se transcreveu que o tribunal recorrido formou a sua convicção de acordo com a globalidade da prova produzida, segundo critérios lógicos, objetivos e em obediência às regras da experiência e da livre apreciação, nos termos do disposto no art. 127.º do CPP.
Por conseguinte, o resultado do processo probatório levaria, sem qualquer margem para dúvidas, às conclusões obtidas, a saber, que os arguidos agiram numa situação de coautoria, dado que que participação de algum ou alguns deles pode assumir maior relevo para o desfecho final, mas não desculpabiliza a participação que cada um deles deu para esse desenlace final, por ambos pretendido e planeado (artigo 26.º do Código Penal).
Destarte, o juízo probatório positivo alcançado pelo tribunal recorrido quanto à verificação dos factos que o arguido recorrente pretende ver como não provados não merece qualquer censura, uma vez que não foi obtido através de provas ilegais ou proibidas, ou contra as regras de experiência comum, ou sequer afronta o princípio in dubio pro reo, nos termos que ainda são sugeridos pelo recorrente.
É que o princípio em questão tem efetiva relevância e aplicação no domínio da apreciação da prova. Porém, refletindo-se nos contornos da decisão de facto, apenas será de aplicar quando o julgador, finda a produção de prova, tenha ficado com uma dúvida não ultrapassável relativamente a factos relevantes, devendo, apenas nesse caso, decidir a favor do arguido.
Assim considerando, a violação desse princípio apenas tem lugar quando, num estado de dúvida insanável, o tribunal opte por decidir de forma desfavorável ao arguido.
Sem prejuízo, a sua eventual violação tem de resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, só podendo ser sindicada, conformando a sua violação uma autêntica questão de direito, se da decisão resultar que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, perante esse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.
No caso concreto, não resulta do texto da decisão recorrida que a 1ª instância tenha ficado com qualquer dúvida quanto à ocorrência de qualquer facto relevante e que nesse estado de dúvida tenha decidido contra o recorrente.
Acresce que tendo sido interposto recurso sobre a matéria de facto, e não se tendo verificado, como já se escreveu, qualquer erro de apreciação da mesma, a dúvida apenas subsiste para o arguido recorrente, não sendo partilhada nem por nós nem pelo tribunal a quo.
Nestes termos, também neste particular o recurso improcede.
c. Do enquadramento jurídico-penal
Tendo os arguidos decaído no respeitante à impugnação da matéria de facto, certo é que se mostram condenados pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, mostrando-se prejudicada a alegação pelo recorrente AA de que no limite sempre teria que se enquadrar a sua conduta no âmbito de uma cumplicidade, pois que não ficou sequer assente que a mesma se bastasse em ter permitido que a sua companheira guardasse produto estupefaciente na habitação comum.
No mais, e pese embora o arguido AA tivesse pugnado em primeira linha pela sua absolvição, o que se mostra naturalmente prejudicado, certo é também que o mesmo contestou, subsidiariamente, a qualificação jurídica a que procedeu o tribunal a quo, de modo a ver alterada a sua condenação para a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.° do DL n.º 15/93, de 22.01.
De igual modo o fez a arguida BB, considerando que a sua conduta não pode ser enquadrada no artigo 21.° do DL n.º 15/93, de 22.01, mas antes no tipo privilegiado.
Para a conclusão acerca da subsunção jurídica dos factos o tribunal a quo considerou todas as circunstâncias provadas, tendo excluído a respetiva integração no art. 25.° do DL n.º 15/93, de 22.01, o que fundamentou nos seguintes termos (transcrição):
“Chegados aqui, e considerando a factualidade dada como provada, cumpre ainda referir que atentas as quantidades de produto que estão em causa e que se mostram descritas na factualidade provada, e bem assim o modo como a actividade de tráfico era desenvolvida pelos arguidos, que a ilicitude se mostra consideravelmente elevada neste caso, pelo que não é, de todo, susceptível de ser reconduzida à previsão do referido art. 25° que prevê o crime de trafico de menor gravidade.
De facto, tendo em consideração a factualidade dada como provada nestes autos, cremos que se mostram verificados os elementos constitutivos do crime de tráfico de estupefacientes, previsto no art. 21.°, n.° 1 do DL 15/93 de 22.01., pelo qual devem ser condenados os arguidos.”
Vejamos.
Estatui o tipo base, ínsito no artigo 21.º do decreto-lei em causa, do seguinte modo: «quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos».
A norma que se citou define o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes, no qual se punem diversas atividades ilícitas, cada uma delas dotada, por si só, de capacidade bastante para integrar o elemento objetivo do ilícito.
Porém, é sabido que na estrutura do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, as situações de tráfico podem revestir outras modalidades, designadamente, o tráfico de menor gravidade, tipo de ilícito privilegiado, previsto no art. 25º.
Dispõe o art. 25.º al. a) do diploma citado nos seguintes termos: «se, nos casos dos arts. 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI».
A ilicitude diminuída a que se refere o preceito pode ser indiciada quer pela “quantidade” ou “qualidade” da droga, quer pelos “meios” utilizados, a “modalidade” ou as circunstâncias da ação, isto sem esquecer que estamos perante um “tipo aberto”, expresso no vocábulo “nomeadamente”, e que, portanto, para o preenchimento do tipo, apenas se torna necessário que determinada circunstância, típica ou atípica, diminua consideravelmente a ilicitude do facto.
Ora, para além da quantidade de produto estupefaciente ter alguma relevância, o que é aceite, inclusive, pelo recorrente (cf. parágrafo 96.º da respetiva motivação), temos ainda para nós, para além da argumentação expendida pelo tribunal recorrido, que olhando às diferentes qualidades de produto estupefaciente apreendido, mostra-se impossibilitada a realização de um qualquer juízo de menor ilicitude.
É que os arguidos detinham não apenas canábis (resina, folhas e sumidades floridas), mas também cocaína, que destinavam à venda a terceiros, o que, na nossa perspetiva, não “casa” com a alegação de uma “menor danosidade social”.
Desta feita, nenhum reparo cumpre apontar ao enquadramento efetuado pelo tribunal a quo, porquanto também nós consideramos que estão verificados, relativamente a ambos os arguidos, os elementos essenciais constitutivos do crime de tráfico de estupefacientes, previsto no artigo 21.º, n.º 1 do DL 14/93, de 22.01.
d) Do quantum das penas
Pela prática do crime em questão, encontra-se o arguido AA condenado na pena de 4 anos e 4 meses de prisão e a arguida BB condenada na pena de 4 anos de prisão.
Ambas as penas foram suspensas por iguais períodos, com regime de prova.
Os arguidos clamam pela redução das penas, concretamente, para 2 anos de prisão, suspensas na sua execução sem qualquer regime de prova.
Ora, como é bom de ver o crime de tráfico de estupefacientes a que alude o art. 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22.01 é punido com pena de quatro a doze anos de prisão, pelo que a pretensão de qualquer um dos arguidos, na perspetiva de ver as respetivas penas reduzidas para apenas 2 anos de prisão, não encontra amparo legal.
Por outro lado, no caso da arguida BB, nada cumpre reduzir, pois que a mesma já se mostra condenada pelo seu limite mínimo.
Quanto ao arguido AA, insurge-se expressamente quanto à circunstância de lhe ter sido aplicada uma pena superior à da arguida (cf. parágrafo 67.º da respetiva motivação).
Porém, no seguimento do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.05.2021 (Proc. 10/18.1PELRA.S1., disponível em http://www.dgsi.pt), «no que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar.»
Ora, olhando à razão pela qual o tribunal recorrido entendeu estabelecer a contestada diferenciação, facilmente se depreende que esta reside na circunstância, que deixou escrita, que “o arguido apresentou uma postura em audiência de julgamento que denota que não interiorizou o desvalor da sua conduta”.
Será tanto bastante para justificar a diferenciação?
Evidentemente que sim, ainda mais porque o tribunal recorrido considerou, por contraposição, que “a arguida confessou os factos, colaborando com o Tribunal na descoberta da verdade material”.
Por conseguinte, não identificamos na determinação da pena concreta operada pelo tribunal a quo qualquer incorreção ou desproporcionalidade que demande intervenção da nossa parte, sendo, pois, de manter.
Por outro lado, não estando em causa a condenação pelo tipo privilegiado, nos termos almejados pelos arguidos, mas antes a condenação pelo tipo base, ínsito no artigo 21.º do decreto-lei em causa, julgamos igualmente acertada a sujeição de ambos os recorrentes a regime de prova, nos termos do disposto nos artigos 50.º, n.ºs 2 e 5, e 53.º, todos do Código Penal, assente nos objetivos que vierem a ser delineados em plano individual de reinserção social a traçar pelos Serviços Reinserção Social, sendo isso conveniente e adequado a uma desejada readaptação social.
Falecendo também esta questão e não verificando nós a violação de qualquer preceito legal, improcedem totalmente os recursos.

III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos AA e BB, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a respetiva taxa de justiça em 4 UC´s.
Notifique.
*
Lisboa, 18 de novembro de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Pedro José Esteves de Brito
Alexandra Veiga