Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
321/25.0T8MFR-A.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
REGULAÇÃO PROVISÓRIA
AMAMENTAÇÃO
PERNOITA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. A decisão provisória a que alude o art.º 38º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível deve orientar-se pelo superior interesse do menor, encontrando-se (ainda que provisoriamente) a solução que melhor favoreça um equilibrado e são desenvolvimento do menor e não a solução que mais agrade a um ou aos dois progenitores.
2. Não obstante a criança com cerca de dezoito meses continuar a ser amamentada pela progenitora no período nocturno, mas verificando-se que tal amamentação não se destina a responder a necessidades alimentares da criança e tão só que é praticada para conforto da mesma, não se pode afirmar que a inexistência de amamentação nos dias em que a criança pernoita com o progenitor não guardião (três noites a cada duas semanas) é causa de instabilidade emocional e psíquica em razão da quebra dos especiais laços afectivos que mantém com a progenitora guardiã, em razão da sua tenra idade.
3. Neste caso a necessidade de promover as pernoitas da criança com o progenitor não guardião deve sobrepor-se à necessidade de prestar à criança amamentação nocturna diária de conforto, por não estar em causa qualquer aspecto da alimentação da criança que fique prejudicado por tais pernoitas.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Em 17/4/2025 o Ministério Público intentou acção de regulação das responsabilidades parentais contra F. e T., pais de L., nascida em …/…/2023, alegando que:
• Segundo informação prestada pela requerida a relação afectiva entre os requeridos terminou em Novembro de 2024, residindo a requerida na Ericeira e o requerido intermitentemente entre Portimão e Lisboa;
• Ainda segundo informação prestada pela requerida, os requeridos acordaram informalmente que a criança residia mais ou menos uma semana com cada um dos progenitores, de acordo com as disponibilidades laborais do requerido;
• Ainda segundo informação prestada pela requerida, a criança frequenta creche e beneficia de amamentação nocturna para seu conforto;
• Ainda segundo informação prestada pela requerida, em 16/4/2025 o requerido foi buscar a criança a casa dos avós maternos para a levar à creche, mas desapareceu com a mesma e não atendeu o telefone, tendo depois enviado um vídeo em que a criança aparenta estar bem;
• O requerido informou que a criança estava consigo em Portimão e que regressaria a 20/4/2025;
• A criança está privada da presença da mãe durante quatro dias e quatro noites, devido à deficiente comunicação entre os requeridos, podendo sentir-se abandonada ou rejeitada pela requerida;
• Não estão reguladas as responsabilidades parentais, sendo necessário estabelecer a guarda da criança, um regime de convívios e o valor dos alimentos a prestar.
Em 4/7/2025 foi realizada conferência de pais onde foram tomadas declarações a ambos os progenitores.
Nessa mesma diligência, e após promoção do Ministério Público, foi proferido despacho relativo à fixação de regime provisório, com o seguinte teor:
Considerando as declarações aqui prestadas desde logo, pela progenitora, dando notícia de que a criança não faz alimentação exclusivamente com leite materno, que ela própria faz extracções de leite materno e bem assim que o leite materno que a criança ingere à noite que o faz para conforto, considera o tribunal que o regime provisório proposto pelo Ministério Público, assegura o superior interesse da criança desde logo porque, não só mantém o vínculo bem presente junto de sua mãe, como permite sem prejuízo da sua alimentação, conviver com o seu progenitor.
Assim determina-se o seguinte regime provisório, ao abrigo do disposto no artigo 28º, nº 1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro, nos seguintes termos:
a. A menor L. fica entregue aos cuidados de sua mãe com quem residirá. As responsabilidades parentais quanto às questões de particular importância para a vida da criança são exercidas de comum acordo por ambos os progenitores, sendo as questões da vida corrente decididas por aquele dos pais junto de quem a criança se encontrar no momento da decisão.
b. Estabelece-se um regime de convívios em fins de semana alternados com o progenitor, que a irá buscar à creche à sexta-feira, entregando-a nessa mesma creche à segunda-feira, a iniciar no próximo dia 11 de Julho.
c. A título de alimentos o pai contribuirá com uma pensão mensal de € 100,00, que deverá entregar à mãe até ao dia 08 de cada mês, por transferência bancária.
d. O progenitor contribuirá ainda com 50% das despesas médicas e medicamentosas na parte não comparticipada, pelo sistema de saúde de que a menor beneficie (despesas com consultas, medicamentos (incluindo fraldas), e tratamentos prescritos,) e de educação (estas incluindo creche, ATL e material escolar), mediante apresentação pela progenitora de factura que suporte tais despesas, contendo o NIF da menor; sendo o pagamento a efectuar juntamente com a pensão de alimentos do mês seguinte;
e. A pensão será actualizada anualmente, em Julho de cada ano, em função do índice de inflação a divulgar pelo I.N.E. (Instituto Nacional de Estatística), com início em Julho de 2026, relativo ao ano anterior e na mesma proporção”.
A requerida recorre desta decisão, sendo que na sua alegação invoca que as conclusões do recurso são aquelas que constam dos 50 pontos que aqui se reproduzem integralmente (com exclusão do dispositivo da decisão recorrida, já acima reproduzido):
A. O presente recurso vem fixado da ainda assim douta decisão que fixou o regime provisório das Responsabilidades Parentais da menor.
B. Atendendo a que esse Regime priva a menor da amamentação cuja recomendação é estabelecida pela Organização Mundial de Saúde, vem solicitar que seja dado carácter urgente ao presente recurso
C. Isto porque a Recorrente numa primeira análise sempre esperou que a douta decisão não produzisse os efeitos nefastos que se encontra a causar à menor sua filha, conforme adiante se explanará melhor.
D. A Recorrente considera aqui reproduzido todos aos factos alegados de 1 a 119 para os quais se remete.
E. A menor L. nasceu a … de … de 2023
F. De referir que a menor estava a ser amamentada durante a noite e necessitava do leite materno, tendo a mesma dificuldade de adormecer sem mamar, facto que era do conhecimento do progenitor,
G. Criança que tem o Direito a ser amamentada, conforme o regime estabelecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde), entre outras organizações mundiais que recomenda:
H. As crianças devem fazer aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses de idade;
I. A partir dos 6 meses de idade, todas as crianças devem receber alimentos complementares (sopas, papas, etc.) e manter o aleitamento materno;
J. As crianças devem continuar a ser amamentadas, pelo menos, até completarem os 2 anos de idade.
K. Ora, segundo a OMS as crianças devem continuar a ser amamentadas pelo menos até aos dois anos de idade, sendo desejável que se prolongue o período da amamentação para além dos dois anos.
L. A privação brusca de aleitamento materno é um mau-trato infligido à menor.
M. Os maus-tratos contra crianças e jovens podem ser definidos como qualquer acção ou omissão não acidental perpetrada pelos pais, cuidadores ou outrem que ameace a segurança, dignidade e desenvolvimento biopsicossocial e afectivo da vítima.
N. Qualquer tipo de maus-tratos atenta, de forma directa, contra a satisfação adequada dos direitos e das necessidades fundamentais das crianças e jovens, não garantindo, por este meio, o crescimento e desenvolvimento pleno e integral de todas as suas competências físicas, cognitivas, psicológicas e sócio emocionais” (Manual – Crianças e Jovens Vítimas de Violência: compreender, intervir, prevenir (2011) APAV – Associação de Apoio à Vítima; Lisboa).
O. Os maus-tratos físicos resultam de qualquer acção não acidental, isolada ou repetida, infligida por pais, cuidadores ou outros com responsabilidade face à criança ou jovem, a qual provoque (ou possa vir a provocar) dano físico.
P. Este tipo de maus-tratos engloba um conjunto diversificado de situações traumáticas, desde a Síndroma da Criança Abanada até a intoxicações provocadas.
Q. Alguns indicadores, sinais e sintomas de mau-trato físico são:
Equimoses, hematomas, escoriações, queimaduras, cortes e mordeduras em locais pouco comuns aos traumatismos de tipo acidental (face, peri ocular, orelhas, boca e pescoço ou na parte proximal das extremidades, genitais e nádegas);
Síndrome da criança abanada (sacudida ou chocalhada);
lopecia traumática e/ou por postura prolongada com deformação do crânio;
Lesões provocadas que deixam marca(s) (por exemplo, de fivela, corda, mãos, chicote, régua…); Sequelas de traumatismo antigo (calos ósseos resultantes de fractura);
Fracturas das costelas e corpos vertebrais, fractura de metáfise; Demora ou ausência na procura de cuidados médicos;
História inadequada ou recusa em explicar o mecanismo da lesão pela criança ou pelos diferentes cuidadores; Perturbações do desenvolvimento (peso, estatura, linguagem, …);
Alterações graves do estado nutricional.
http://www.aprendersemlimites.pt/blogue-asl/maus-tratos-a-criancas-e-jovens-definicao-e-tipos
R. Para além de o progenitor com a privação brusca da amamentação estar a causar um mau-trato à menor sua filha, pretendia por pura maldade obrigar a Recorrente a deslocar-se ao Algarve, para a ir buscar.
S. O pai subtraiu a criança sem nada o fazer prever, imaginando a Recorrente o choro da sua filha, numa viagem de mais de 3 horas para Portimão, com um pai com pouca ligação afectiva, privando-a do ambiente dela, da mãe e do bem-estar que ela conhece.
T. E mais grave ainda da amamentação e que a mesma carecia e tinha direito conforme estabelecido pela Organização Mundial de Saúde.
U. Porém apesar do acima exposto no dia 4 de Julho de 2025 foi fixado o seguinte regime provisório:
(…)
V. Regime que claramente não preenche os requisitos mínimos para que se possa considerar que o mesmo assegure o superior interesse da menor, indo mais longe nos danos causados, pois constitui um manifesto mau-trato à referida menor com a privação brusca da amamentação.
W. Pois o Tribunal foi para lá da amplitude de amplitude decisória que a lei lhe confere substituindo-se inclusive às regras impostas pela Organização Mundial de Saúde no que diz respeito à amamentação, e que acima se descreve.
X. Ignorando por completo a existência dos processos-crime que se encontram pendentes contra o progenitor da menor e que correm termos no DIAP de Mafra sob o nº Inquérito xxx/25.xxxMFR , xxx/25.xxxMFR, xxxxxx/25.xxxMFR.
Y. Colocando os interesses do progenitor acima dos interesses da própria menor que deveria ter sido protegida.
Z. Incumbe ao Tribunal zelar para que seja acautelado o superior interesse das menores
AA. Se é um facto que a menor tem o direito de privar com o progenitor, não menos certo é que têm o direito a ser amamentada em consonância com as regras delineadas pela Organização Mundial de saúde e tem ainda o direito de ser protegida de comportamentos agressivos e castrantes dos seus direitos.
BB. 138º
CC. Se uma criança tem o direito a ter pai e mãe, tem também não só o direito de os ter funcionais, mas também o direito à amamentação que se sobrepõe a todos os outros.
DD. Este corte brusco se encontra a causar trauma profundo na menor.
EE. A privação de forma brusca inopinada e brutal do aleitamento da menor teve um profundo impacto no comportamento da menor como seria de esperar
FF. Durante a primeira semana após o regresso, a menor apresentava um conjunto de reacções que reflectem um claro estado de perturbação emocional, demonstrando grandes dificuldades em alimentar-se, recorrendo quase exclusivamente ao leite como fonte de conforto.
GG. Na creche, as dificuldades alimentares mantêm-se, sendo o lanche a única refeição que decorre com relativa normalidade.
HH. A separação matinal para ir à creche é extremamente difícil: chora, grita, agarra‑se com força ao pescoço da mãe e recusa-se a soltar.
II. O simples facto de calçar a menor torna-se uma enorme batalha, uma vez que já antecipa que irá para a creche.
JJ. Passou a procurar constantemente a fralda e a chupeta ao longo do dia, comportamentos que anteriormente reservava apenas para o momento de adormecer.
KK. A muda da fralda, mesmo sem fezes, tornou-se um momento de grande resistência, acompanhado por choros intensos e visível desconforto.
LL. 154º
MM. Procura o colo da mãe de forma constante e apresenta uma ligação muito mais intensa e dependente pois até para conseguir dormir, precisa estar abraçada à mãe.
NN. Acorda frequentemente durante a noite com pesadelos, demonstrando angústia e sendo difícil de acalmar.
OO. Nos primeiros dias após o regresso, chorava por longos períodos sem motivo aparente.
PP. Revela comportamentos de irritação, agressividade e revolta, chegando mesmo a bater na avó, algo que não fazia anteriormente.
QQ. Este regime profundamente traumático está a causar grave sofrimento à menor e não acautela o seu superior interesse no que ao Direito à amamentação diz respeito.
RR. Nesse sentido o parecer da Médica especialista em Psiquiatria Perinatal, Dra R.N., OM (…), cujo conteúdo infra se transcreve (Doc-1)
SS. É notório que o regime provisório fixado não acautela o superior interesse da menor motivo pelo qual deverá ser revogado de imediato.
TT. Devendo ser fixado um regime que contemple as necessidades actuais da menor sem descurar a vinculação à figura paterna.
UU. Um regime que permita que a menor esteja com o progenitor em fins de semana alternados sem pernoitas enquanto a mesma estiver a ser amamentada durante a noite
VV. Previsivelmente e enquanto for possível amamentar no limite máximo até a menor perfazer os três anos recomendados pela OMS.
WW. Após o período em que a menor esteja a ser amamentada, passará com o progenitor os fins de semana alternados de sexta a segunda indo buscá-la e entregá-la na creche/escola.
XX. Após os três anos ou quando terminar a amamentação se ocorrer antes a menor passará a Véspera de Natal, Véspera de Ano Novo dia de Natal e dia de Ano Novo será passado alternadamente com cada um dos progenitores sendo que se a menor passar com um a Véspera de Natal passará com esse progenitor o Dia de Ano Novo, cabendo ao outro progenitor o dia de Natal e a véspera de Ano Novo.
Com a sua alegação a requerida junta um documento intitulado “Parecer Médico sobre Separação Precoce da Figura de Referência” (datado de 4/9/2025 e assinado por R.N., mas sem qualquer referência concreta à L.).
Não foi apresentada qualquer alegação de resposta.
***
O objecto do recurso é balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, correspondendo as mesmas à indicação, de forma sintética, dos fundamentos pelos quais pede a alteração ou anulação da decisão.
Os 50 pontos acima reproduzidos não correspondem à referida indicação sintética, mas antes a uma repetição da argumentação expendida anteriormente, apenas expurgada da materialidade fáctica aí alegada.
Todavia, é possível identificar a única questão que emerge da argumentação apresentada pela requerida, sem necessidade de lançar mão do disposto no nº 3 do art.º 639º do Código de Processo Civil (desde logo porque se antevê a incapacidade de síntese que se pretende), e que se prende com o erro de julgamento na fixação do regime provisório de convívios entre a L. e o requerido, pela desconsideração do superior interesse daquela em pernoitar exclusivamente com a requerida, tendo em vista ser amamentada pela mesma durante o período nocturno.
Previamente, porém, há que conhecer da admissibilidade da junção do documento apresentado pela requerida com a sua alegação de recurso.
Decorre do art.º 651º, nº 1, do Código de Processo Civil, que com as alegações as partes apenas podem juntar documentos nas situações excepcionais a que se refere o art.º 425º do Código de Processo Civil, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância. Já do nº 2 resulta que os pareceres de jurisconsultos podem ser juntos até ao início do prazo para a elaboração do projecto de acórdão.
Torna-se manifesto que, não obstante a requerida denominar o documento em questão de parecer, não se está perante qualquer pronúncia sobre as questões de direito, mas de um documento apresentado com finalidades probatórias. O que exclui qualquer possibilidade de admitir a junção do documento ao abrigo do nº 2 do art.º 651º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, nada é dito pela requerida no sentido de estar preenchido o circunstancialismo a que alude o nº 1 do art.º 651º do Código de Processo Civil, e sendo que só nos apertados pressupostos aí definidos é possível a junção de documentos depois de proferida a decisão.
Com efeito, e mesmo tendo presente a superveniência objectiva do documento, já que foi produzido em momento posterior ao da prolação da decisão recorrida, a necessidade da sua junção apenas em sede de recurso não se mostra justificada. Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 786), “tem‑se entendido que a junção de documentos às alegações da apelação só pode ter lugar se a decisão da 1ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam”. Ora, o documento em causa pronuncia-se, em abstracto, sobre as desvantagens da separação, por mais de 48 horas, de crianças de idade inferior a três anos relativamente à figura de referência, assentando tal pronúncia em “conhecimento clínico e científico fidedigno”. Ou seja, tratando-se de uma opinião baseada em conhecimento científico, torna-se patente que a necessidade de junção do documento não decorre da prolação da decisão recorrida e do circunstancialismo fáctico aí relatado, tanto mais que essa factualidade resulta das declarações prestadas pela requerida na conferência de pais. Ou seja, visando a requerida atestar cientificamente a necessidade de não afastar a L. do seu convívio por períodos superiores a 48 horas, naturalmente que era em sede da conferência que podia e devia ter mencionado (e atestar documentalmente) o fundamento “clínico e científico fidedigno” dessa necessidade, e não apenas em sede recursiva.
O que basta para concluir que não está preenchida a previsão do nº 1 do art.º 651º do Código de Processo Civil, assim se indeferindo a junção do documento apresentado com a alegação da requerida.
***
A factualidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
***
Como resulta do art.º 38º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, quando não é obtido acordo na conferência de pais impõe-se ao tribunal decidir provisoriamente sobre o pedido de regulação do exercício das responsabilidades parentais, em função dos elementos já obtidos.
Tendo presente o carácter embrionário da conferência de pais, no âmbito da tramitação do processo especial tendente à regulação do exercício das responsabilidades parentais, daí decorre que a decisão provisória há-de assentar mais em elementos indiciários resultantes da primeira intervenção processual dos progenitores (incluindo a sua intervenção pessoal nessa conferência de pais e as declarações aí prestadas) que naqueles que pudessem resultar da realização de uma actividade instrutória completa, desde logo com recurso aos poderes inquisitórios do tribunal.
Nessa medida, o tribunal recorrido entendeu que, face aos elementos apurados, essencialmente decorrentes das declarações prestadas por cada um dos progenitores, a L. devia residir com a requerida, mas sem prejuízo do estabelecimento de convívios com o requerido em fins de semana alternados, inclusive pernoitando com o mesmo, tendo presente que já não faz alimentação exclusivamente com leite materno, e tendo igualmente presente que o leite materno que ingere à noite apenas se destina ao seu conforto.
Contrapõe a requerida, desde logo, com toda uma situação de facto que não resulta do teor da decisão recorrida, nem tão pouco do âmbito da intervenção de cada um dos requeridos na conferência de pais.
Sucede que, não obstante a materialidade fáctica que vem exposta na alegação de recurso, a requerida não cuida de concretizar se a mesma devia ser considerada no âmbito da decisão recorrida, para efeitos de fundamentar o regime provisoriamente estabelecido, tão pouco fazendo indicação dos meios de prova (e, se respeitassem às declarações prestadas, transcrevendo as partes relevantes das mesmas ou remetendo para a sua gravação) a partir dos quais a mesma factualidade se devia dar como demonstrada, ainda que de forma indiciária.
Com efeito, e não obstante o carácter provisório da decisão recorrida, a requerida não estava dispensada de dar cumprimento ao disposto no art.º 640º do Código de Processo Civil, caso pretendesse que a materialidade fáctica em questão fosse considerada como provada, para efeitos de fundamentar a decisão sobre o regime provisório.
Dito de outra forma, desde logo nas conclusões do seu recurso devia a requerida especificar quais os pontos concretos de facto que foram considerados na decisão recorrida e que estão errados, e/ou quais aqueles factos concretos que deviam ser aditados, para ser considerada uma factualidade distinta. E, pelo menos no corpo nas alegações, devia identificar com suficiente precisão os elementos de prova que fundamentavam a pretensão de alteração da factualidade a considerar. Caso contrário, e como refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 200), está-se perante a “mera manifestação de inconsequente inconformismo” no que respeita à determinação da factualidade apurada, determinante da rejeição de qualquer alteração à mesma pela via recursiva.
Assim, e porque a requerida se limitou a alegar toda uma situação de facto como se estivesse em fase de articulados perante a instância recorrida, e não em fase de recurso de uma decisão proferida na instância recorrida, há que desconsiderar toda a referida descrição factual constante da alegação de recurso.
No mais, importa não ignorar que entre mãe e filho se estabelece uma especial ligação durante a primeira infância, desde logo assente em aspectos nucleares como a amamentação.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/6/2022 (relatado por Eugénia Cunha e disponível em www.dgsi.pt), “o critério da preferência maternal - princípio esse segundo o qual as crianças, sobretudo na chamada primeira infância, devem ficar com as mães (que assentava em razões históricas, sociológicas e culturais e, até, em razões de ordem biológica, designadamente as relacionadas com a gestação, o parto, a amamentação, propiciadoras de grande proximidade física entre a mulher e os filhos) - perdeu actualidade, sendo ambos os progenitores considerados numa posição de igualdade (cfr. Convenção dos Direitos da Criança e a lei fundamental - cfr. art.º 36.º da Constituição da República Portuguesa), e foi sendo substituído pelo critério da figura de referência (primary caretaker), ou seja, aquele progenitor que tem a primeira responsabilidade pelo desempenho dos deveres de cuidado e sustento da criança”. Como igualmente aí se salienta é, “contudo, um facto notório que, na maior parte dos casos, esta figura de referência coincide com a mãe, mas vamos assistindo a que, cada vez mais, esta figura é, também, desempenhada pelo pai, sendo que, até, no competitivo quotidiano dos nossos tempos, com frequência, não existe, apenas, uma figura de referência para as crianças mas sim duas, sendo ambos os progenitores chamados a essas tarefas dados os afazeres profissionais que lhes tomam grande parte do tempo diário”. Mas igualmente aí se adverte que “mesmo este critério da figura primária de referência não tem consagração legal”, sendo que o “único, relevante e decisivo critério com consagração legal (cfr. a parte final do n.º 5 do art.º 1906.º do Código Civil) é o da proximidade, ou seja, deverá ser escolhido o progenitor que fornece indícios de mais facilmente permitir à criança ter contactos com o outro progenitor, por isso se revelar do interesse da criança”.
Como igualmente se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 7/8/2017 (relatado por Pedro Martins e disponível em www.dgsi.pt), “não se vê que, para efeitos do princípio VI da Declaração dos Direitos da Criança, resolução da AG das NU 1386 (XIV), de 20/11/1959 [… salvo em circunstâncias excepcionais, a criança de tenra idade não deve ser separada da sua mãe. …], se deva considerar que a alternância de residências por metades da semana, distantes entre si cerca de 500m, pudesse corresponder à separação da criança da mãe.
A questão tem sido posta de outra forma, ou seja, com a ligação ao período da amamentação (…). De qualquer modo, a simples invocação da amamentação também não pode servir, só por si, como factor decisivo, tanto mais que as mães, querendo, podem prolongar até aos 5 anos, ou mais, esse período, sem que tal corresponda, sem mais ao interesse do filho”.
No caso concreto é certo que a L. ainda não atingiu dois anos de vida e continua a ser amamentada, inclusive à noite e para seu próprio conforto. Pelo que se poderia afirmar, numa primeira abordagem, que a existência dessa especial ligação entre a L. e a requerida levaria a concluir (como pretende a requerida) pela impossibilidade da criança pernoitar fora de casa da mãe, sob pena de tal ausência nocturna (e a consequente falta de amamentação nocturna, entendida a mesma como correspondendo ao acto de dar de mamar à L.) criar na criança uma instabilidade emocional e psíquica, contrária ao seu superior interesse em manter tal especial ligação materno-infantil.
No que respeita ao exercício das responsabilidades parentais em caso de cessação da convivência entre os progenitores (nos termos do nº 2 do art.º 1911º do Código Civil), resulta do nº 5 do art.º 1906º do Código Civil que “o tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro”, mais resultando do seu nº 8 que “o tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores”.
Ou seja, tal como vem sendo afirmado pacificamente pela jurisprudência (como no acórdão de 27/1/2022 do Supremo Tribunal de Justiça, relatado por Tomé Gomes e disponível em www.dgsi.pt), “a lei consigna a prevalência do superior interesse do filho menor como critério decisório orientador na regulação do regime das responsabilidades parentais entre os progenitores separados.
O superior interesse da criança encontra-se também inscrito como vector fundamental no artigo 7.º da Declaração dos Direitos da Criança, proclamada pela Resolução da Assembleia Geral da ONU, de 20/11/1959, nos artigos 9.º, n.º 1, e 18.º, n.º 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque, a 26/01/1990, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12/09, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12-09, e no artigo 6.º, alínea a), da Convenção Europeia Sobre o Exercício dos Direitos da Criança, adoptada em Estrasburgo, a 25/01/1996, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, de 13-12-2013 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, de 27-01.
Nessa conformidade, o superior interesse da criança traduz-se num conceito jurídico indeterminado que visa assegurar a solução mais adequada para a criança no sentido de promover o seu desenvolvimento harmonioso físico, psíquico, intelectual e moral, especialmente em meio familiar, sendo, por isso, aferível em função das circunstâncias de cada caso”.
Dito de outra forma, o superior interesse da criança demanda a promoção do seu desenvolvimento total e completo de forma igualmente próxima com cada um dos progenitores, o que pressupõe a presença de ambos em todos os aspectos e fases desse desenvolvimento.
Assim, e não obstante a L. continuar a ser amamentada pela requerida no período nocturno, mas verificando-se que tal amamentação não se destina a responder a necessidades alimentares da criança e tão só que é praticada para conforto da mesma, não se pode afirmar que a inexistência de amamentação nos dias em que a L. pernoita com o requerido (três noites a cada duas semanas) é causa de instabilidade emocional e psíquica em razão da quebra dos especiais laços afectivos que mantém com a requerida, em razão da sua tenra idade.
O que é o mesmo que dizer que a implementação de um regime provisório de convívios da L. com o requerido que compreende três pernoitas com este a cada duas semanas não desconsidera o superior interesse da criança em manter com a requerida a especial ligação materno-infantil própria da primeira infância, não colocando em causa o papel da requerida como figura primária de referência da L. e não colocando em causa o desenvolvimento psíquico e emocional harmonioso e saudável da mesma.
Pelo contrário, a dispensa de pernoitas da L. com o requerido é que é susceptível de colocar em causa o desenvolvimento completo e integral que se pretende para a mesma, tendo presente que as pernoitas integram o processo normal de relacionamento próximo de qualquer criança com os seus progenitores e, nessa medida, são fonte de satisfação acrescida. O que é o mesmo que dizer que a ausência de pernoitas com o progenitor não guardião é susceptível de criar na criança um quadro psíquico e emocional decorrente da falta de qualidade dos contactos que mantém com este, quando comparado com os contactos que mantém com o progenitor guardião, prejudicando a manutenção de relações de grande proximidade com ambos os progenitores e, nesta medida, desrespeitando o comando do nº 8 do art.º 1906º do Código Civil.
Neste mesmo sentido, e como já ficou expresso no acórdão de 7/12/2023 do Tribunal da Relação de Guimarães (relatado por Raquel Rego e disponível em www.dgsi.pt), “numa criança de dois anos é mais importante um significativo convívio com o pai que o prolongamento da amamentação”, e sendo que tal significativo convívio não pode dispensar as pernoitas, como elemento integrante da “relação de grande proximidade com os dois progenitores” expressa no referido nº 8 do art.º 1906º do Código Civil.
Dito de forma mais simples, a pretensão da requerida de que a L. só conviva com o requerido em fins de semana alternados, do mesmo modo não pernoitando com este, não satisfaz objectivamente o interesse da menor em manter relações de grande proximidade com ambos os progenitores, assentes no convívio regular e de qualidade com cada um deles.
Acresce que o “regime estabelecido pela OMS” a que a requerida alude, no que respeita às necessidades de aleitamento materno, não passa de um conjunto de recomendações sobre boas práticas relativas à alimentação de crianças até aos dois anos, não se referindo aí a amamentação como fonte de mero conforto, mas a necessidade de alimentação de crianças com leite materno até aos seis meses, a par da necessidade de tal alimento constituir complemento de outros alimentos, após os referidos seis meses e até aos dois anos de idade.
Pelo que não se pode retirar, a partir de tais recomendações, que a ausência de amamentação nocturna diária, relativamente a crianças com mais de dezoito meses, como a L., constitui uma privação brusca de recurso da mesma ao leite materno, correspondendo a maus tratos contra a criança. Aliás, entre os invocados indicadores, sinais e sintomas de maus tratos físicos que a requerida elenca (designadamente perturbações do desenvolvimento associadas ao peso, estatura ou linguagem, ou alterações graves do estado nutricional) não se encontra qualquer um que possa estar relacionado com a falta de amamentação nocturna para conforto da criança. O que bem se compreende, já que aquilo que poderia estar em causa não era a amamentação (entendida como o acto de dar de mamar), mas a alimentação com recurso a leite materno (directamente através da amamentação, ou indirectamente através da prévia obtenção de leite materno por meios mecânicos e sua conservação para posterior alimentação da criança) E no caso concreto a questão da alimentação da L. (diurna ou nocturna) com leite materno nunca esteve em causa, já que para além de estar demonstrado que a criança não “faz alimentação exclusivamente com leite materno”, está igualmente demonstrado que a requerida “faz extracções de leite materno”, o que significa que esse leite materno assim extraído está disponível para poder ser dado à L., mesmo na ausência da requerida.
Ou seja, também por esta via é de afirmar que a necessidade de promover as pernoitas da L. com o requerido deve sobrepor-se à necessidade de prestar à L. amamentação nocturna diária de conforto, por não estar em causa qualquer aspecto da alimentação da criança que fique prejudicado por tais pernoitas.
O que faz concluir, sem necessidade de ulteriores considerações, que improcedem na sua totalidade as conclusões do recurso da requerida, não sendo de fazer qualquer censura à decisão recorrida.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.

Lisboa, 20 de Novembro de 2025
António Moreira
Fernando Caetano Besteiro
João Paulo Raposo