Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | NUNO GONÇALVES | ||
| Descritores: | REGISTO AUTOMÓVEL PRESUNÇÃO ÓNUS DA PROVA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/20/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | - O registo definitivo da inscrição no Registo Automóvel constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito; - Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz; - Tal presunção pode ser ilidida mediante prova em contrário; - Frustrando-se a ilisão da presunção legal, subsiste a presunção de que o titular inscrito adquiriu o direito de propriedade; - De qualquer forma, invocando a autora que adquiriu o direito de propriedade de um veículo automóvel, esta teria que comprovar tal negócio translativo e ainda que o alienante (e eventuais antecessores) já era o titular desse direito; - Estando inscrita no Registo Automóvel a aquisição do direito de propriedade de uma viatura automóvel a favor do banco, este pode vendê-la com reserva de propriedade, até ser integralmente pago o financiamento concedido à adquirente. Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Relatório. 1.1. A autora Massa Insolvente de N2 - Design e Comunicação, Unipessoal, Lda., demandou o réu Banco Santander Consumer Portugal, S.A., peticionando que seja declarada nula a cláusula de reserva de propriedade a favor do réu que incide sobre o veículo de marca CITROEN, modelo C5, 2.0 HDI, EXCLUSIVE com a matrícula ..-LG-.. e ordenado o cancelamento do respetivo registo, junto da competente conservatória do registo automóvel e inscrita a respetiva propriedade, sem quaisquer ónus ou encargos, a favor da autora, podendo assim, esta proceder à venda de tal veiculo no âmbito da liquidação da massa insolvente. Alegou para o efeito que celebrou com o R., em 19 de Janeiro de 2018, um contrato de mutuo/financiamento para aquisição a crédito da viatura. Foi estabelecida a reserva de propriedade a favor do R, sobre o identificado veículo. Sucede que o referido veículo foi vendido à insolvente em 15/01/2018, pela F2 Car - Comércio de Automóveis, Unipessoal Lda, com sede em Rua de São Rosendo, Nº 427 4300-478 Porto, tendo esta, nessa data, recebido o respetivo preço. A cláusula de reserva de propriedade a favor do R. é nula, já que este, apenas mutuou à insolvente a mencionada quantia, parcial e posteriormente, à efetiva aquisição do veículo, no âmbito da sua atividade bancária, celebrando em concreto, um contrato de mútuo, e não, um contrato de compra e venda. * 1.2. O R. contestou a acção e impugnou a generalidade dos factos invocados pela autora. Alegou ainda que ora R., detém reserva de propriedade sobre a viatura objeto do contrato celebrado com a insolvente, conforme se encontra devidamente registado. A viatura em questão foi propriedade do ora R.. Da certidão do registo automóvel resulta igualmente que foi transferida a propriedade da viatura para a N2 Design e Comunicação Unipessoal, Lda.. E constituída a reserva de propriedade a favor do Banco Santander Consumer Portugal, S.A., ora R.. Pelo que o R., além de financiador da aquisição da viatura, foi também o vendedor daquela à N2 Design e Comunicação Unipessoal, Lda. Assim, a questão da nulidade da reserva não se coloca. Terminou peticionando a absolvição do pedido. * 1.3. A autora respondeu ainda que, quanto ao documento nº 9, este não tem a veleidade de desmentir que, quem vendeu o veículo diretamente à insolvente foi a FCAR - Comercio Automóveis Unipessoal, Lda., e não o R. como pretende fazer valer. * 1.4. Após saneamento e julgamento, foi proferida a sentença recorrida, a qual decidiu julgar a acção totalmente improcedente e absolveu a ré do pedido. * 1.5. A autora interpôs o presente recurso de apelação, em que formulou as seguintes conclusões: “A. Vem a apelante Recorrer da douta Sentença datada de 21/02/2025, com a referência Citius, 156029853, a qual decide o seguinte: “Pelo exposto, julga-se a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se a Ré do pedido”, pedido esse que consiste em: “ser declarada nula a cláusula de reserva de propriedade a favor do BANCO SANTANDER CONSUMER PORTUGAL, S.A que incide sobre o veículo de marca CITROEN, modelo C5, 2.0 HDI, EXCLUSIVE com a matrícula ..-LG-.. e ordenado o cancelamento do respetivo registo, junto da competente conservatória do registo automóvel e inscrita a respetiva propriedade, sem quaisquer ónus ou encargos, a favor de Massa Insolvente de N2 - DESIGN E COMUNICAÇÃO, UNIPESSOAL, LDA, podendo assim, a A., proceder à venda de tal veículo no âmbito da liquidação da massa insolvente.” B. A Recorrente não se resigna com a douta decisão recorrida, pois é do seu entendimento que a interpretação feita pelo tribunal a quo da matéria de facto e de direito com significância para a decisão, se reputa como incorreta. C. A factualidade dada como provada pelo tribunal a quo mostra-se manifestamente desajustada, porque faz vista grossa ao sucedido em sede de audiência de discussão e julgamento e utiliza, ao mesmo tempo, elementos probatórios documentais, disponíveis, de forma incorreta. D. Espelha uma violação de normas instituídas pelo nosso ordenamento jurídico na lei substantiva e adjetiva, uma vez que houve manifesto erro de julgamento, - error in judicando - na modalidade de error facti, já que, se verifica uma flagrante distorção da realidade factual, de tal sorte que o decidido não corresponde à realidade, com o consequente erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo da errada aplicação do direito. E. De forma sintética, a questão que importa apreciar é a validade da reserva de propriedade sobre o veículo apreendido para a Recorrente / Autora (Massa Insolvente) a favor do Recorrido / Réu, de marca Citroen, modelo C5 2.0 HDI EXCLUSIVE e com a matrícula ..-LG-... F. O Tribunal a quo raciocina erradamente quando ali motiva a sua decisão: (…). G. O Tribunal a quo dá como não provado o facto B a) que deveria ter sido dado como provado: a) Em 15.01.2018, F2Car – Comércio de Automóveis Unipessoal Lda. vendeu a N2 – Design e Comunicação Unipessoal Lda. a viatura identificada em 1) (…). H. Ora, as instituições de crédito têm por exclusivo objeto o exercício das atividades elencadas no artigo 4.º e na al. c) do n.º 1 do artigo 14.º do DL n.º 298/92, de 31-12, na sua redação atual. I. Da simples leitura a estas disposições legais, constata-se que a compra para revenda de viaturas, compreendendo esta operação a perceção de uma remuneração pela intermediação, ou de uma margem de lucro com a venda do bem, não consta da sua lista de atividades. J. As instituições de crédito não são, nem podem ser, revendedoras de bens de consumo, nos termos em que esta operação é realizada no contrato financiado. Ao ser assim, iria levar a «deixar entrar pela janela aquilo que não se quis deixar entrar pela porta…». K. Tanto basta para concluir que o veículo teria que ter sido vendido pela F2Car – Comércio de Automóveis Unipessoal Lda., e que o Recorrido/Réu, apenas poderia ter financiado a operação, aliás, nem poderia intervir no contrato de compra e venda desse mesmo veículo. Raciocinar de forma diferente disto, é subverter a lei. L. Resulta do documento nº 2 junto aos autos com a p.i, designadamente a fls_ (página 1) – contrato de financiamento para aquisição a crédito nº 2018.002014.01 firmado entre a Ré e a insolvente: neste contrato é identificado o “fornecedor e local de entrega” e verdadeira vendedora a F2CAR-COMÉRCIO AUTOMÓVEIS, UNIPESSOAL, LDA; Página 10 : A F2 Car- Comércio de Automóveis, Unipessoal, Lda declara “ter recebido da N2 DESIGN E COMUNICAÇÃO UNIPESSOAL,LDA a quantia de 15000€ referente ao pagamento da viatura de marca Citroen c5 da matricula ..-LG-... “ M. Esta declaração que não mereceu qualquer impugnação traduz desde logo que o veículo custou à insolvente a quantia de € 15000 e que para o pagar, a insolvente se financiou junto do Recorrido/R. em € 13000. N. Como ainda resulta do documento nº 5 junto com a p.i que o Recorrido/Réu impugnou a lista de credores reconhecidos pugnado pelo reconhecimento do seu crédito sobre a insolvente proveniente do “contrato de financiamento para aquisição a crédito nº 2018.002014.01” e que tal impugnação foi julgada procedente como se vê do documento nº 6 ( Pág. 6 da Sentença de Graduação de Créditos): O. Como conta dos factos 8 e 9 dados como provados: (…) P. De acordo com o n.º 1 do artigo 408.º do Cód. Civil: “A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei.” E de acordo com o n.º 1 do artigo 409.º do Cód. Civil: “Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.” Q. O n.º 1 do artigo 409.º do Cód. Civil permite que as partes num contrato de alienação acordem que a propriedade da coisa fique reservada para o alienante até ao cumprimento total ou parcial das obrigações que impendem sobre o adquirente ou até à verificação de qualquer outro evento. R. O Tribunal a quo, não coloque em causa a literalidade deste preceito legal mas defende interpretação inovadora: “É alvo de intenso debate jurisprudencial e doutrinal saber da validade da reserva de propriedade a favor do mutuante. Contudo, essa querela existe apenas quando o mutuante não seja simultaneamente alienante, situação que não se verifica no caso em apreciação. Com efeito, da base factual é possível retirar que a Ré foi a alienante do veículo objecto do financiamento garantido à insolvente sendo que, por outro lado, não se provou que a viatura tenha sido vendida à insolvente por terceiros em data anterior ao registo de propriedade constituído a favor do R. (cf. factos 5 e a). Sendo a R. alienante da viatura dos autos, é lícita a constituição da reserva de propriedade a seu favor de acordo com o citado art. 409º/1 do CC.” S. Este raciocínio não se pode compreender de todo, pois desconsidera a declaração do vendedor do veículo de que quem lhe pagou o preço foi a compradora -Insolvente- (sendo irrelevante “in casu”, saber-se como e onde se financiou para o pagar), tanto mais que as instituições financeiras como se sabe, estão impedidas de vender veículos automóveis. T. O artigo 4.º do DL n.º 298/92, de 31-12, na sua redação atual (Regime das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras) estabelece a “Atividade das instituições de crédito “; cujo teor se remete para a alegação; A al. c) do n.º 1 do artigo 14.º do mesmo diploma legal estabelece os “Requisitos Gerais”, cujo teor integra se remete para a alegação e a al. b) do n.º 1 do artigo 5.º do DL n.º 54/75, de 12.02, na sua redação atual, (registo automóvel) estabelece que: “Estão sujeitos a registo: (…) b) A reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis; (…)” U. Da conjugação destas disposições legais resulta que a lei faculta a convenção da reserva da propriedade a favor do alienante da coisa, sendo que o Recorrido / Réu é apenas a mutuante no contrato de mútuo celebrado com a insolvente, para esta adquirir o veículo a um terceiro. Dúvidas não restam que nunca poderia ser vendedor / fornecedor, por imposição legal (decorre das atividades taxativas que pode exercer), e ainda porque o seu registo foi efetuado por imposição legal na medida em que a reserva de propriedade não pode ser registada, sem prévio registo de propriedade ( Artº 5 nº 1 do DL nº 54/75 de 12 de fevereiro - Registo da Propriedade Automóvel). V. Aliás, da simples análise do registo, vê-se que o mesmo foi efetuado no mesmo dia a favor do Recorrido e logo de seguida do insolvente, ou seja, apresentados e concluídos no mesmo dia 12.02.2018 (cfr. Factos Provados que resultaram da instrução da causa), tudo em simultâneo, pois de outra forma não poderia ser, nem as conservatórias o podem aceitar. W. Não podendo o Recorrido /Réu, como instituição financeira, ter vendido o veículo, designadamente por impossibilidade legal, na verdade, a reserva de propriedade não foi reservada à alienante do veículo, como permite aquela disposição legal, mas a favor de um terceiro, a Recorrida, isto é, uma instituição financeira que nada tem a ver com o vendedor do veículo que, de facto, é a F2 Car- Comércio de Automóveis, Unipessoal, Lda , nem resulta dos autos que, são sequer empresas do mesmo grupo. X. Por aplicação destas normas, a reserva de propriedade a favor do Recorrido / Réu mutuante não se encontra contemplada nas citadas disposições legais. Y. Só nos contratos de alienação é lícita a estipulação da cláusula de reserva de propriedade, o contrato entre o Recorrido/ Réu e a F2 CAR, nunca poderia ser nem contrato de transmissão, nem sequer se pode falar em contratos coligados para daí ultrapassar a questão de venda de um bem não admitido por lei, a quem exerce atividade financeira. Z. Deste modo, o Recorrido /Réu, na qualidade de financiador, nada vendeu ao insolvente e daí que não possa reservar para si aquilo que nunca teve – a propriedade do bem. AA. A este respeito Fernando Gravato Morais, em Cadernos de Direito Privado, n.º 6, Abril / Junho de 2004, pp. 51-52, em anotação ao Ac. da RL de 21.II.2002: sustenta “(…) não restam dúvidas que literalmente (…) só nos contratos de alienação, maxime nos contratos de compra e venda é lícita a estipulação, sendo certo que a finalidade do legislador, ainda que interpretada atualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão só o financia, a constituição a seu favor de uma reserva de domínio sobre o objeto que não produziu nem forneceu – apenas em razão do fracionamento das prestações”. (Itálico, negrito e sublinhados nossos) BB. Não se pode assim, sequer falar, em “contratos ligados” quando sentença em cotejo refere, “que entre a insolvente e a Ré foi celebrado um contrato de compra e venda financiada, coexistindo dois contratos distintos: um contrato de compra e venda para aquisição de veículo automóvel, e um contrato de crédito, estabelecendo-se entre os contratos uma ligação com o objectivo de que o crédito concedido sirva para financiar o pagamento do bem.” CC. Embora a celebração do primeiro contrato de compra e venda entre o insolvente e o stand tenha ocorrido para permitir a realização do segundo, contrato de financiamento entre o insolvente e o agora Recorrido /Réu, este contrato de mútuo celebrado entre Recorrido / Ré e o agora insolvente é autónomo em relação ao contrato de compra e venda celebrado entre o então comprador insolvente e a vendedora do automóvel a F2 CAR. DD. Sustentar o contrário é encapotar uma situação que a lei não permite. Acresce que a reserva de propriedade a favor do financiador não é, por natureza, compatível com o regime do crédito ao consumo, dada a finalidade de tutela do consumidor que este desempenha. Aliás, se o Recorrido / Réu quisesse garantir o seu financiamento, teria outros meios ao seu dispor, designadamente as seguintes garantias lícitas: aval, fiança ou hipoteca. Já para não falar da hipótese de lançar mão de locação financeira, mecanismo este, distinto da situação dos presentes autos. Ora, a finalidade típica do contrato de locação financeira é à cedência do uso da coisa, cedência esta que só se torna possível com a aquisição prévia da coisa pelo locador. EE. O financiamento inicial ligado a esta operação tem lugar na esfera do locador que só obtém resultados externos através da cedência do uso do bem adquirido com esse financiamento. Sendo que os elementos da locação financeira e de mútuo não se confundem, isto porque no caso de locação financeira a verdadeira prestação do locador é a cedência do uso da coisa. GG. Tal não é o que acontece nos presentes autos, pelo que também por aqui não se pode dizer que o Recorrido / Réu tenha sido o fornecedor da viatura em questão. HH. No momento da celebração do contrato de compra e venda e do contrato de financiamento, o Recorrido /Réu não era proprietário do veículo, tanto mais que o contrato de financiamento foi celebrado em 19.01.2028 como resulta da página 6 do documento 2 e página 14 do documento nº 5 juntos com a petição inicial. II. Para garantia do reembolso do valor financiado, foi constituída uma “reserva de propriedade” a favor do Recorrido até que se mostrasse liquidado, na íntegra, o contrato de financiamento celebrado. JJ. Para efetuar o registo da reservada propriedade, foi necessário registar a propriedade a favor do Recorrido pelo registo de propriedade n.º nº 385 em de 12.02.2018 e acto continuo, no mesmo dia, registar a propriedade a favor do insolvente (nº 395 em 12.02.2028). KK. A entidade financiadora não expressa qualquer vontade de fazer seu o bem. E se a instituição de crédito nunca adquire, nem deseja adquirir a propriedade, torna-se forçoso concluir que a assim designada “reserva de propriedade” mais não pretende ser do que uma garantia real constituída a seu favor. LL. O Recorrido/Réu não juntou qualquer fatura de aquisição do veículo, nem o podia fazer, uma vez que não o comprou, mas apenas financiou a sua aquisição. MM. É insustentável que à mingua de fatura que a Autora não podia colher junto da insolvente por logisticamente impossível que o único documento disponível declaração da F2CAR (página 10 do documento nº2 junto com a p.i) não prove inequivocamente que quem pagou, foi a insolvente (compradora) e quem recebeu foi a F2 CAR (vendedora). NN. E que, “é apresentado o documento 2 junto na petição inicial, que consubstancia uma declaração de recebimento de preço por parte da insolvente referente à viatura automóvel objecto de discussão nestes autos (cujo teor foi aludido no testemunho de AA, colaborador do administrador de insolvência da massa insolvente Autora).” OO. E que: “Contudo, da análise de tal documento não é possível retirar se foi ou não consensualizado um acordo de compra e venda da viatura, e quais as partes contraentes”. PP. E que: “Ainda que tal não fosse o caso, uma mera declaração de recebimento de preço, desacompanhada de um documento que pudesse atestar a titularidade da propriedade do veículo a favor de determinado terceiro, não pode ser tida para efeitos de contrariar um documento com força probatória plena como é a certidão narrativa do registo automóvel junta na contestação. Dito por outras palavras, a situação factual descrita no referido doc. 2, na ausência de qualquer prova que a corrobore, não colhe idoneidade para contrair a propriedade da viatura assente em documento com força probatória plena.” QQ. O Recorrido / Réu financiador, é aqui uma instituição de crédito, sendo que o bem adquirido é uma viatura automóvel e as instituições de crédito têm por exclusivo objeto o exercício das atividades elencadas no artigo 4.º e na al. c) do n.º 1 do artigo 14.º do DL n.º 298/92, de 31-12, na sua redação atual, sendo que neste rol não consta a compra para revenda de viaturas. RR. O regime específico das sociedades financeiras para aquisições a crédito é ainda mais limitativo do seu objeto social. As instituições de crédito não são, nem podem ser, revendedoras de bens de consumo, nos termos em que esta operação é realizada no contrato financiado. Distinto seria em contrato de locação financeira, em que o objeto, aí sim, seria distinto e admitido por lei. SS. O tribunal a quo desconsidera a declaração da F2 CAR (de pags 10 do documento nº2 - - que atesta ter recebido o preço e que esse preço foi pago pelo insolvente não o conjuga com os demais elementos constantes desse documento nº2, designadamente com a data da celebração do contrato de financiamento e com as regras da experiencia comum na compra e venda de veículos automóveis, nem com o regime das instituições de crédito e das sociedades financeiras para concluir que a mesma não pode ilidir a presunção registral de que quem vendeu o veiculo foi o Recorrido e não o fornecedor do mesmo, dando por isso como não provado que: “Em 15.01.2018, F2Car – Comércio de Automóveis Unipessoal Lda. vendeu a N2 – Design e Comunicação Unipessoal Lda. a viatura identificada em 1).” TT. No sentido de que a estipulação da reserva a favor do financiador é nula se pronuncia o Acórdão de 14/11/2022, no proc. 741/22.1T8VLG.P1, do TRP; O Acórdão do TRL nº 10306/2008-1 de 31-03-2009, citados na presente alegação UU. Neste sentido, veja-se ainda a doutrina expressa por PAULO RAMOS DE FARIA, em “A reserva de propriedade constituída a favor de terceiro financiador”, publicado na revista JULGAR n.º 16, 2012, Coimbra Editora, pág. 37 e ss., citada na presente alegação. VV. Da cláusula inscrita no contrato de financiamento retira-se que mutuante e mutuário, abstraindo-se dos pressupostos contidos no n.º 2 do artigo 409 do Cód. Civil, visam aparentemente alcançar os efeitos de garantia da “constituição de reserva de propriedade” em sentido próprio, o que se conclui do facto de se referirem a este acordo acessório, como sendo de “crédito com reserva de propriedade usados”, inserindo-o numa cláusula contratual dedicada a “Condições do Contrato” que termina com o título “Garantias do Contrato” AC RES LIV EM BRANCO AVALIZADA P/SOCIOS. WW. E existe uma razão para tal acontecer e mais uma vez o que se pretende é «deixar entrar pela janela aquilo que não se quis deixar entrar pela porta…». XX. Os efeitos de garantia reconduzem-se ao direito de o credor haver para si a coisa, em caso de incumprimento, resolvendo o contrato, e ao direito de ser pago pelo seu valor, com preferência sobre os demais credores do comprador. Ora, o direito do credor a ser pago pelo valor da coisa com preferência sobre os demais credores encontra-se previsto, nas figuras que ora relevam, designadamente nos artigos 666.º e ss. (penhor) e nos artigos 686.º e ss. (hipoteca). Se a “reserva de propriedade” constituída a favor do mutuante disser respeito a coisa sujeita a registo, dever-se-á confrontar a cláusula com a hipoteca. Sendo este um regime específico e completamente distinto do que está em causa nestes autos. E esta estipulação, por não estar abrangida pelo artigo 409.º do Cód. Civil, ou por qualquer outra norma legal tipificadora, é claramente violadora designadamente do disposto nos seguintes artigos do Código Civil: “Artigo 604.º (Concurso de credores); “Artigo 1306.º («Numerus clausus») YY. Tendo em conta a função, a estrutura e os efeitos da reserva de propriedade constituída a favor do Recorrido /Réu financiador já analisados, conclui-se sem esforço que o pacto comissório está presente nesta estipulação, pois, o que é decisivo é o resultado económico que se pretende evitar, sendo indiferente o instrumento jurídico empregue pelas partes. ZZ. O acordo visado pelas partes não é a constituição de reserva de propriedade, mas sim a estipulação de uma garantia real dissimulada. E neste caso estamos perante a aplicação do regime da simulação, ou seja, deverá ser aplicado o n.º 2 do artigo 240.º do Cód. Civil “O negócio simulado é nulo.”, e n.º 1 do artigo 241.º do Cód. Civil (“Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.”). AAA. De acordo com o estipulado no artigo 694.º do Cód. Civil, relativamente à hipoteca, é ainda estipulado o seguinte: “É nula, mesmo que seja anterior ou posterior à constituição da hipoteca, a convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir.” BBB. O pacto comissório, por natureza, exerce uma função de garantia especial do crédito. Se pudermos afirmar a proibição geral do pacto comissório no âmbito do direito das garantias, tal proibição vem prevista no regime da hipoteca, da constituição do penhor, da consignação de rendimentos e dos privilégios creditórios, estando ainda presente, pela remissão que opera para estas garantias, na caução resultante de negócio jurídico. Estamos, pois, perante uma proibição comum a todo o direito das garantias reais de fonte negocial, o mesmo é dizer, comum a todo o direito civil. CCC. Extrai-se que, a norma contida no artigo 694.º do Cód. Civil é uma norma geral, comum a todo o direito das garantias. Independentemente da estrutura da figura negocial adotada e do momento em que opera a transferência da propriedade, o resultado a que se chega com a “reserva de propriedade” constituída a favor do Recorrido /Réu mutuante é sempre aquele que a lei visa obstar, pelo que o âmbito da proibição do pacto comissório ferirá de nulidade tal estipulação. DDD. Ainda aqui que, o processo de insolvência tem como objetivo a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores. De acordo com o artigo 1.º do CIRE, trata-se de um processo de execução universal (uma vez que todo o património do devedor insolvente responde pelas suas dívidas), que tem como finalidade a satisfação dos credores. EEE. Essa satisfação alcança-se pela forma prevista num plano de insolvência, que se baseará na recuperação do devedor ou na liquidação do seu património e repartição do seu produto pelos credores. FFF. Subjacente está, o princípio da igualdade entre credores, que se concretiza no tratamento de forma diferente, de realidades diversas, traduzindo-se sempre a ideia geral de proibição do arbítrio. GGG. Entre as “razões objetivas” que justificam a diferenciação dos credores, destaca-se a diferenciação entre créditos garantidos e privilegiados, créditos comuns e créditos subordinados, prevista no artigo 47.º do DL n.º 53/2004, de 18 de março, na sua redação atual (CIRE). HHH. Chamam-se por isso, aqui, à colação, os seguintes factos 8, 9 e 10, dados como provados: (…) III. Atente-se ainda ao reconhecimento do crédito do Recorrido Doc.5 e 6 sendo que o caracteriza de natureza comum. JJJ. Decorrendo da lei, que em primeiro lugar, é dado pagamento aos créditos com garantias ou privilégios creditórios e o remanescente, se o houver, será distribuído pelos créditos comuns, pelo que, o que o Recorrido pretende, na prática, é precisamente subverter a lei, passando à frente dos restantes credores com a mesma graduação. Situação que não poderá ser permitida e relativamente à qual, este Venerado Tribunal com certeza, fará inteira justiça. KKK. Consequentemente, a não ser válida a cláusula de propriedade, por nula, deverão proceder os pedidos da Autora, não podendo, o Recorrido beneficiar designadamente do regime do artigo 104.º do CIRE. LLL. A decisão recorrida, objeto do presente Recurso, não pode manter-se, pois por um lado não valorou devidamente os factos carreados para os autos, designadamente as declarações de AA, (funcionário do AI) bem como dos documentos carreados para os autos, designadamente os documento nº 2, 5 e 6 juntos com a Petição Inicial, relativamente ao Processo de Insolvência n.º nº 5146/20.6T8VNG, que corre termos no Juízo do Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz em que a N2 DESIGN E COMUNICAÇÃO,LDA, NUIPC 507837460, foi declarada insolvente. MMM. A decisão recorria, violou inda a interpretação dada pelos artigos 408.º, n.º1, 409.º, n.º 1, 604.º, n.º 2, 694.º e 1306, n.º 1, 280º, todos do Cód. Civil; bem ainda do artigo 4.º e al. c) do n.º 1 do DL n.º 298/92, de 31-12; al. b) do n.º 1 do artigo 5.º do DL n.º 54/75, de 12.02; art.4º, nº1, al.o), do DL. nº133/2009, de 02 de junho; e ainda dos artigos 1.º, 47.º e 104.º do CIRE; Deverá a douta sentença ser revogada e ser substituída por outra que declare: - a nulidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do recorrido / réu banco Santander Consumer Portugal, S.A., que incide sobre o veículo de marca citroen, modelo c5, 2.0 hdi, exclusive com a matrícula …-lg-…; - ordene o cancelamento do respetivo registo, junto da competente conservatória do registo automóvel: - ordene a inscrição da respetiva propriedade, sem quaisquer ónus ou encargos, a favor de massa insolvente de N2 - Design e Comunicação, unipessoal, Lda”. * 1.6. O réu Banco respondeu e concluiu que: “A. No tocante ao facto dado como não provado, a Recorrente limitou-se a fazer uma mera alegação, sem corroborar a sua posição, como, aliás, referiu o Tribunal a quo que na ausência de qualquer prova que a corrobore, não colhe idoneidade para contrair a propriedade da viatura assente em documento com força probatória plena. B. Mais a mais, a Recorrente faz alusão ao DL n.º 298/92, de 31 de dezembro, referindo que, nos termos do art.º 4.º desse diploma legal, as instituições financeiras – como o Recorrido – estão impedidas de vender veículos automóveis. C. Mais refere que o elenco das atividades que podem ser exercidas pelo Recorrido estão dispostas no art.º 4.º, sendo esse mesmo elenco taxativo. D. Todavia, olvidou-se de que dispõe esse mesmo artigo, nomeadamente na alínea s), que as instituições financeiras podem realizar outras operações análogas e que a lei lhes não proíba. E. Como tal, desse preceito legal conclui-se que o elenco é tudo menos taxativo e, como tal, a alegação da Recorrente é meramente vaga e escassa em fundamento. F. Caso assim não se entenda, dispõe o n.º 1, do art.º 409.º do CC que a reserva de propriedade é a convenção pela qual a alienante reserva para si a propriedade do bem, até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte, ou até à verificação de qualquer outro evento futuro. G. No caso de bens sujeitos a registo, tal como ocorre com os veículos automóveis, a cláusula de reserva de propriedade tem de ser registada para que possa ser oponível a terceiros. H. Ademais, veja-se a Cláusula 3.ª das Cláusulas Gerais do Contrato já junto aos autos e que dispõe que caso fique previsto nas condições particulares, o SC pode reservar para si a propriedade do bem financiado (caso em que o SC adquirirá previamente o bem reservando para si a propriedade do bem até integral cumprimento das obrigações do CLT ao abrigo do Contrato) ou beneficiar de hipoteca voluntária a seu favor até ao integral pagamento das obrigações assumidas pelo CLT, o que, efetivamente, ocorreu. I. De resto, seguiu o mesmo entendimento o Tribunal a quo, referindo que nos termos do aludido contrato, as partes contraentes acordaram na constituição a favor da Ré de uma reserva de propriedade sob o veículo objeto do contrato, que foi devidamente registada na conservatória do registo automóvel. J. Acresce que, das Condições Particulares do Contrato, na alínea i) da Cláusula 2.ª decorre que o contrato foi aceite com reserva de propriedade e livrança avalizada pelos sócios. K. Como tal, a reserva de propriedade a favor do ora Recorrido encontra-se devidamente registada, conforme é possível apurar pela Certidão Permanente do Registo Automóvel que já se juntou aos autos. L. A partir desta mesma certidão e do histórico de proprietários, a viatura foi propriedade do ora Recorrido, conforme registo de propriedade registado sob n.º 00385 de 12/02/2018. M. Isto em respeito pelo preceituado no contrato, nomeadamente na alínea i) da Cláusula 2.ª das Condições Particulares e no n.º 4 da Cláusula 3.ª das Condições Gerais do contrato. N. Dessa mesma certidão resulta também que na mesma data foi transferida a propriedade da viatura para a N2 Design e Comunicação Unipessoal, Lda. pelo registo n.º 00395 de 12/02/2018 e, ainda, nessa mesma data foi constituída a reserva de propriedade a favor do Banco Santander Consumer Portugal, S.A., ora Recorrido. O. Pelo que o Recorrido, além de financiador da aquisição da viatura, foi também o vendedor daquela à N2 Design e Comunicação Unipessoal, Lda. P. Da mesma forma decidiu o Tribunal a quo, entendendo que é possível concluir que entre a insolvente e a Ré foi celebrado um contrato de compra e venda financiada, coexistindo dois contratos distintos: um contrato de compra e venda para aquisição de veículo automóvel, e um contrato de crédito, estabelecendo-se entre os contratos uma ligação com o objetivo de que o crédito concedido sirva para financiar o pagamento do bem. Q. Assim, a questão da nulidade da reserva não se coloca, uma vez que a possibilidade de reserva de propriedade a favor do alienante tem cobertura expressa na lei. R. Neste sentido veja-se o artigo 409.º do Código Civil, segundo o qual, ns contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. S. Pelo que, detendo o ora Recorrido, além da posição de financiador da aquisição da viatura, também a posição de vendedor daquela, dúvidas não podem restar de que a cláusula de reserva de propriedade constituída a seu favor sobre a viatura em análise, é válida. T. Posição esta que foi corroborada pelo Tribunal a quo, o qual menciona que, da base factual é possível retirar que a Ré foi a alienante do veículo objeto do financiamento garantido à insolvente sendo que, por outro lado, não se provou que a viatura tenha sido vendida à insolvente por terceiros em data anterior ao registo de propriedade constituído a favor do R. U. Sendo a R. alienante da viatura dos autos, é lícita a constituição da reserva de propriedade a seu favor de acordo com o citado art.º 409º/1 do CC. V. Ainda que assim não fosse, o que não se aceita, a interpretação literal do art.º 409.º do CC, pode levar a defender que a reserva de propriedade funciona como um meio de proteção exclusivo do vendedor do bem, porém, tal interpretação encontra-se desatualizada. W. Sendo defensável a interpretação segundo a qual a cláusula de reserva de propriedade é válida quando constituída também em benefício da entidade financiadora da aquisição da viatura objeto do contrato de compra e venda. X. Muitas das vezes acontece que, nos contratos de Financiamento para Aquisição a Crédito, não é a vendedora dos veículos automóveis que reserva a propriedade do bem, mas antes a entidade financiadora. Y. Ora, o que nesses casos acontece é a celebração de um contrato de compra e venda, relativa a um veículo automóvel e é igualmente celebrado um contrato de financiamento para aquisição a crédito, destinando-se o respetivo capital ao pagamento do preço de veículo. Z. Não podemos deixar de referir, a existência de uma forte conexão dos contratos, derivada do nexo de dependência existente entre os mesmos. AA. Neste sentido, ocorrendo “uma espécie de relação jurídica triangular” envolvendo a vendedora do veículo, o comprador e a entidade financeira que se obriga a mutuar ao comprador o preço devido pela aquisição do veículo, entregando-o ao vendedor. BB. O contrato de financiamento surge como uma condição essencial para a celebração do contrato de compra e venda, uma vez que, sem esse financiamento, o comprador não poderia proceder à compra da viatura, sem ser através do pagamento integral do preço. CC. Neste sentido, importa ter presente a evolução social e as novas modalidades de contratação, sendo, igualmente, essencial fazer uma interpretação o mais atualista da realidade contratual emergente. DD. Prossupõe assim, que em caso de incumprimento do contrato, pode a entidade financiadora fazer reverter a propriedade do veículo. EE. E mais, nos contratos de financiamento, é estabelecida uma relação triangular e essa relação é aceite pelo comprador, à data de celebração do contrato, pelo que não pode a declaração de insolvência do comprador fundamentar, sem mais, a nulidade da reserva. FF. A entidade financiadora, disponibiliza o montante para que o comprador adquira o veículo com essa condição, assegurando assim o cumprimento das obrigações emergentes do contrato. GG. Ora, estando o contrato de financiamento conexo com o contrato de compra e venda, pode a entidade financiadora deter a reserva de propriedade do veículo como garantia do cumprimento das obrigações do contrato. HH. Consagrando o artigo 409.º do CC “qualquer outro evento”, permite-se que outras realidades sejam abrangidas na letra da lei, nomeadamente a validade da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora. II. Pelo exposto, mesmo que o ora Recorrido não tivesse sido proprietário da viatura antes de a transmitir à N2 Design e Comunicação Unipessoal, Lda., o que não se aceita porque não corresponde à verdade atento o teor da certidão de registo automóvel já junta, a cláusula de reserva de propriedade constituída e registada na Conservatória do Registo Automóvel competente a seu favor sobre a viatura Citroen C5 2.0 HDI Exclusive, com a matrícula …-LG-…, é válida. JJ. Assim, basta a consulta da Certidão do Registo Automóvel, acessível a todos, incluindo à Recorrente, para se verificar que a presente ação carece em absoluto de fundamento. KK.Em suma, resulta evidente que não se encontra violado qualquer normativo do ordenamento jurídico português, razão pela qual, o presente recurso carece de fundamento e só tem de improceder”. Terminou no sentido do presente recurso ser julgado improcedente. * 1.9. As questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões dos recorrentes e centram-se na impugnação da matéria de facto e na consequente procedência dos pedidos. * 2. Fundamentação. * 2.1. Factos provados: Com relevo para boa decisão da causa, foi julgado provado que: 1. Em 19.01.2018, N2 – Design e Comunicação Unipessoal Lda. e a Ré celebraram um acordo escrito, nos termos do qual a Ré concedeu à referida sociedade um crédito no montante de € 13.241,95 para aquisição da viatura de marca CITROEN, modelo C5, 2.0 HDI, EXCLUSIVE, matrícula ..-LG-.., tendo a sociedade N2 se obrigado a pagar à Ré em 72 prestações mensais e sucessivas, o montante total €18.072,72, com início a 19.01.2018 e término a 19.12.2023. 2. Nos termos do referido acordo, foi entregue por BB ao Réu uma livrança em branco, com autorização de preenchimento da mesma. 3. Nos termos do referido acordo, foi acordada a constituição de reserva de propriedade sobre o veículo em 1) a favor da Ré. 4. Pelo registo nº 370, de 05.05.2015, foi inscrita a favor de CC, Lda a propriedade do bem identificado em 1). 5. Pelo registo nº 385, de 12.02.2018, foi inscrita a favor da Ré a propriedade do bem identificado em 1). 6. Pelo registo nº 395, de 12.02.2018, foi inscrita a favor de N2 – Design e Comunicação Unipessoal Lda a propriedade do bem identificado em 1). 7. Pelo registo com o nº de ordem 0000, de 12.02.2018, foi inscrita a favor da Ré reserva de propriedade sob o bem identificado em 1). 8. N2 – Design e Comunicação Unipessoal Lda., NIPC 507837460, foi declarada insolvente por decisão proferida a 28.08.2020 no âmbito do processo nº 5146/20.6T8VNG, que corre termos no Juízo do Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 5 - do Tribunal Judicial da Comarca do Porto. 9. A viatura referida em 1) foi apreendida para a massa insolvente Autora. 10. BB exercia funções de gerência da N2 – Design e Comunicação Unipessoal Lda. * 2.2. Facto não provado: Foi julgado não provado que: a) Em 15.01.2018, F2Car – Comércio de Automóveis Unipessoal Lda. vendeu a N2 – Design e Comunicação Unipessoal Lda. a viatura identificada em 1. * 2.3. A questão da impugnação da matéria de facto. O artigo 640.º, do Código de Processo Civil, impõe ao recorrente o dever de obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/1/2022 sintetizou a orientação jurisprudencial aí seguida, ao referir que: “No que diz respeito ao enquadramento processual da rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça considerou no acórdão de 3/12/2015, proferido no processo n.º 3217/12.1 TTLSB.L1.S1 (Revista-4.ª Secção), que se o Tribunal da Relação decide não conhecer da reapreciação da matéria de facto fixada na 1.ª instância, invocando o incumprimento das exigências de natureza formal decorrentes do artigo 640.º do Código de Processo Civil, tal procedimento não configura uma situação de omissão de pronúncia. No mesmo acórdão refere-se que o art.º 640.º, do Código de Processo Civil exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permitem pôr em causa o sentido da decisão da primeira instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados. Acrescenta-se que este conjunto de exigências se reporta especificamente à fundamentação do recurso não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art.º 640.º, n.ºs 1e 2 do CPC. Por fim, conclui-se que versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados. A propósito do conteúdo das conclusões, o acórdão de 11-02-2016, proferido no processo n.º 157/12.8 TUGMR.G1.S1 (Revista) – 4.ª Secção, refere que tendo a recorrente identificado no corpo alegatório os concretos meios de prova que impunham uma decisão de facto em sentido diverso, não tem que fazê-lo nas conclusões do recurso, desde que identifique os concretos pontos da matéria de facto que impugna (Cfr. no mesmo sentido acórdãos de 18/02/2016, proferido no processo n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 03/03/2016, proferido no processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, de 12/05/2016, proferido no processo n.º 324/10.9 TTALM.L1.S1 e de 13/10/2016, proferido no processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, todos da 4.ª Secção). No que diz respeito à exigência prevista na alínea b), do n.º 1, do art.º 640.º do Código de Processo Civil, o acórdão de 20-12-2017, proferido no processo n.º 299/13.2 TTVRL.C1.S2 (Revista) - 4ª Secção, afirma com muita clareza que quando se exige que o recorrente especifique «os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», impõe-se que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 417/18.4T8PNF.P1.S1. O inconformismo do recorrente foi concretizado relativamente ao único facto julgado não provado na sentença. * 2.4. Idem, o facto julgado não provado. Está provado que, em 15.01.2018, F2Car – Comércio de Automóveis Unipessoal Lda., vendeu a N2 – Design e Comunicação Unipessoal Lda. a viatura identificada em 1)? Merece censura a decisão recorrida que julgou não demonstrado tal facto? Trata-se de um facto alegado pela autora no artigo 4.º, da douta petição inicial, e que visa contrariar e ilidir o que consta do registo predial (Facto # 5: Pelo registo nº 385, de 12.02.2018, foi inscrita a favor da Ré a propriedade do bem identificado em 1). Consequentemente, enquanto facto constitutivo do direito alegado pela autora (aquisição do direito de propriedade de um veículo automóvel), é a esta que cabe fazer a respectiva prova – art.º 342.º, do Código Civil. E, a subsistir uma dúvida relevante sobre a realidade deste facto, a mesma será resolvida contra a autora, a quem o facto aproveita – art.º 414.º, do Código de Processo Civil. O facto insere-se na versão apresentada pela autora. A autora N2 (massa insolvente) impugna a aquisição do veículo automóvel pelo réu Banco, sendo que tal acto seria essencial para o ulterior reconhecimento do reconhecimento do seu direito de propriedade (caso lograsse o cancelamento da reserva a favor do réu, claro está). Portanto, a autora não quer ser compradora do veículo ao réu banco. A autora quer ser reconhecida como compradora do veículo à firma F2Car – Comércio de Automóveis Unipessoal, Lda.. E o pedido essencial que motiva a presente acção (reivindicação do veículo, com vista à sua venda no âmbito da liquidação da massa insolvente da autora) só poderá proceder se a autora lograr demonstrar que o direito de propriedade lhe foi transmitido por quem tinha legitimidade para tal. Assim, em termos lógicos, necessária e criticamente importa começar por perguntar se a firma F2Car – Comércio de Automóveis Unipessoal Lda., tinha legitimidade material para vender o veículo automóvel à autora? Sucede que a autora – algo obcecadamente – centrou a sua versão apenas na impugnação da aquisição do direito pelo réu banco e não alegou absolutamente nada na petição inicial para comprovar que tal firma F2Car era a titular do direito de propriedade sobre tal veículo. De tal forma, que em face da factualidade apurada (e não impugnada) se constata do registo automóvel a seguinte sucessão de titulares inscritos:
A firma F2Car até poderá ser a vendedora do veículo, mas tal afirmação dependeria do conhecimento dos factos essenciais relativos à sucessiva transmissão, por aquisição derivada e contratual, do direito de propriedade. Lá voltaremos. Porém, em face da forma lacónica como a autora apresentou a sua versão, nota-se a dificuldade de reconhecer uma alegada compra, quando nem sequer se comprova que a alegada vendedora teria adquirido o direito a transmitir à adquirente. Por outro lado, o documento n.º 2, pág. 1, da petição, consubstancia um denominado “contrato de financiamento para aquisição a crédito” e não um “contrato de compra e venda de um veículo automóvel”. Nesse contrato denominado “contrato de financiamento para aquisição a crédito” a firma F2Car não figura como vendedora do veículo, mas apenas aparece indicada por baixo da identificação do “fornecedor e local de entrega”. Não se afigura líquido que, apenas com base nessa indicação, se possa concluir que o Banco Santander Consumer estaria a reconhecer que o “fornecedor e local de entrega” corresponderia ao proprietário e vendedor e não apenas, por exemplo, a quem meramente detinha ou guardava a coisa. Também se constata do documento n.º 2, pág. 10, da petição, que se trata unicamente de uma declaração de quitação relativa ao recebimento da quantia de € 15.000, supostamente entregue pela autora N2 à tal firma F2Car, emitida com a data de 15/1/2018, referente ao pagamento da viatura em causa. Porém, a firma F2Car não explicita a que propósito é que recebe tal quantia, nomeadamente se corresponde ao preço da venda que realizou à autora. Tal documento é um documento particular, sujeito à apreciação crítica e não se vislumbra que evidencie razões objectivas para alicerçar a comprovação da versão da autora, nomeadamente porque a firma F2Car nunca tratou de registar a aquisição desse direito no junto da Conservatória do Registo Automóvel. A relação entre as firmas N2 e F2Car apresenta-se dúbia. E também custa a crer que o réu Banco fosse adquirir e registrar o direito de propriedade do automóvel sem diligenciar e se assegurar de que estaria a fazê-lo junto do verdadeiro e legitimo proprietário. O Banco pode comprar algo a uma pessoa que não é o seu legitimo proprietário (porque ilegitimamente a subtraiu ou dela se apossou), registar a compra e reservar a propriedade com vista a salvaguardar o seu crédito. Porém, não é de crer que tal seja uma situação normal e plausível. A circunstância do registo automóvel evidenciar a transmissão até à inscrição do direito em nome do réu banco, apesar de poder ser ilidida, constitui uma prova de primeira aparência em como este agiu com cuidado e diligência. Entende-se que a ilisão da transmissão do direito de propriedade até ao réu banco, nomeadamente em face do alegado e inexplicado negócio com a firma F2Car e corporizado sobretudo no documento n.º 2, pág. 10, da petição, manifestamente não convence. Não colhe idoneidade, como foi afirmado na douta sentença recorrida. E é este o problema central da versão apresentada pela autora. Por conseguinte, comunga-se o entendimento da primeira instância e julga-se improcedente a impugnação do facto julgado não provado. * 2.5. A questão da invalidade da reserva de propriedade. A autora fundamenta o pedido de declaração de nulidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do réu que incide sobre o veículo na circunstância de, no momento da celebração do contrato de compra e venda e do contrato de financiamento, o Recorrido/Réu não ser proprietário do veículo - conclusão HH. do recurso. Porém, evidencia-se da matéria de facto que: “Pelo registo nº 385, de 12.02.2018, foi inscrita a favor da Ré a propriedade do bem identificado em 1)” – cfr. Facto # 5. E não se evidencia da factualidade que a firma F2Car alguma vez tivesse sido titular do direito de propriedade, nomeadamente por aquisição derivada ao anterior proprietário, considerando que a factualidade essencial para tal nem sequer foi alegada. Nem tão pouco que a firma F2Car tivesse transmitido o direito de propriedade para a autora. Tais circunstâncias evidenciam a falta de fundamento factual para o acolhimento da pretensão da autora. Acresce que, como já se aludiu anteriormente, resulta do registo automóvel a seguinte sucessão de titulares inscritos:
No caso dos autos, presume-se que o Banco Santander é o titular do direito de propriedade sobre o veículo em causa. Em face do que se evidencia pelas inscrições no registo automóvel, a autora também poderia ser reconhecida como proprietária, mas apenas e tão só por transmissão desse direito (venda) do réu (e após cancelamento da reserva de propriedade). Mas a autora rejeita essa transmissão, na medida em que alega que “o Recorrido /Réu não era proprietário do veículo”. A autora arroga-se, outrossim, a propriedade do veículo por compra à firma F2Car. Nos termos do disposto no artigo 350.º, do Código Civil: 1 . Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz. 2. As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir. Tendo a seu favor a aludida presunção registral em como adquiriu o direito de propriedade sobre o veículo automóvel, o réu escusa de provar o facto que a ela conduz. Logo, a circunstância do Recorrido/Réu não juntar qualquer fatura de aquisição do veículo – cfr. Conclusão LL. do recurso – é irrelevante. O réu banco apenas tem que comprovar a inscrição do direito no registro predial para se prevalecer da presunção legal. Não tem que provar mais nada e não está obrigado a realizar a contraprova do que a autora alega – art.º 346.º, do Código Civil. A autora pode ilidir a presunção registral e propôs-se realizar tal ilisão na presente acção. Mas sem sucesso, em vista do que se evidencia da matéria de facto julgada provada e não provada. Prevalece, assim, o entendimento expresso na douta sentença recorrida em como “entre a insolvente e a Ré foi celebrado um contrato de compra e venda financiada, coexistindo dois contratos distintos: um contrato de compra e venda para aquisição de veículo automóvel, e um contrato de crédito, estabelecendo-se entre os contratos uma ligação com o objectivo de que o crédito concedido sirva para financiar o pagamento do bem”. E “sendo o R. alienante da viatura dos autos, é lícita a constituição da reserva de propriedade a seu favor de acordo com o citado art. 409º/1 do CC.”. Ademais, sempre se nota que a autora, buscando construir um negócio alternativo à compra do veículo automóvel ao réu banco, acabou por se dirigir para um caminho sem saída, nomeadamente ao invocar a compra do veículo automóvel à firma F2Car, sem indicar mais nenhum outro facto relevante para fundamentar a sua pretensão. Na verdade, o direito de propriedade adquire-se, entre o mais, por contrato – art.º 1316.º, do Código Civil. No caso da aquisição derivada, a autora apenas seria reconhecida como proprietária se comprovasse que adquiriu o direito a quem já era reconhecidamente o proprietário. Como refere, entre tantos, refere o acórdão desta Relação de 23/2/2023: “O actual Código Civil, refere-se à acção de reivindicação, acção real por excelência, concedida para defesa da propriedade, no seu Art.º 1311º. Tal preceito estabelece: «O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa, o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.» O direito de propriedade, pode existir num património, em virtude de aquisição originária ou derivada. Na aquisição originária, o direito de propriedade é um direito autónomo, um direito independente do direito de propriedade anterior. Na aquisição derivada, tem de levar-se em conta o direito do transmitente, o qual influi profundamente no direito do adquirente, pois os negócios translativos, como a compra e venda, a doação e outros, não criam a propriedade, apenas a transferem. Na reivindicação é necessário conhecer a forma de aquisição, porque a situação do proprietário reivindicante, varia conforme a aquisição do direito que invoca, se fez por um ou por outro daqueles modos. Na aquisição derivada, não basta o título de aquisição para se provar que ao adquirente pertence um direito real que vale sobre qualquer possuidor ou detentor. Tal título, prova, somente, que o adquirente recebeu os direitos que eram pertença do alienante” - Disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 2542/17.0T8CSC.L1-8. Afigura-se evidente que, uma vez cancelado o registo de aquisição e de reserva de propriedade a favor do réu banco, também teria que ser cancelado o registo de aquisição a favor da autora, à luz do princípio do trato sucessivo. E com base em que factos é que o tribunal ordenaria a inscrição da propriedade daquele bem a favor da autora? Com base na compra à firma F2Car, sem que se comprove que aquela adquiriu o direito ao antecedente titular registral? Não se afigura que tal fosse de todo admissível, na medida em que a autora descuidou a alegação em como tal firma F2Car tivesse adquirido legitimamente o direito ao(s) anterior(es) proprietário(s). Também por aqui se constata que o pedido de declaração da nulidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do réu que incide sobre o veículo de marca CITROEN, modelo C5, 2.0 HDI, EXCLUSIVE com a matrícula ..-LG-.. e a ordem para o cancelamento do respetivo registo, junto da competente conservatória do registo automóvel e inscrição da respetiva propriedade, sem quaisquer ónus ou encargos, a favor da autora, podendo assim, esta proceder à venda de tal veiculo no âmbito da liquidação da massa insolvente, estava votado ao insucesso. Em suma, a autora não apresentou os argumentos, nem comprovou os factos que se impunham para a procedência da sua pretensão, devendo ser mantida a douta decisão recorrida em vista do acerto dos seus fundamentos. * 3. Decisão: 3.1. Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença. 3.2. As custas são a suportar pela apelante, em vista do respectivo decaimento e sem prejuízo do benefício de apoio judiciário. 3.3. Notifique. Lisboa, 20 de Novembro de 2025 Nuno Gonçalves Adeodato Brotas Eduardo Petersen Silva |