Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
61/21.9NJLSB.L1-3
Relator: ANA RITA LOJA
Descritores: LENOCÍNIO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/19/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Sumário:
I-Em fase anterior dos autos já a recorrente suscitara a inconstitucionalidade da norma incriminatória do artigo 169º nº1 do Código Penal tendo o Tribunal Constitucional decidido não julgar inconstitucional tal norma e não fazendo qualquer distinção nem tão-pouco condicionando tal juízo à demonstração da existência, no caso concreto, da exploração de uma vulnerabilidade da vítima ou da diminuição da sua autonomia.
II-Tal decisão faz caso julgado no presente processo, como decorre do artigo 80º nº1 e nº3 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, pelo que não pode ser repristinada em fase de recurso como pretende a recorrente.
III- São elementos constitutivos do tipo objetivo do crime de lenocínio que o agente fomente, favoreça ou facilite o exercício por outra pessoa de prostituição e que pratique tais condutas profissionalmente ou com intenção lucrativa, sendo elementos constitutivos do seu tipo subjetivo que a atuação seja com dolo genérico, consubstanciado no conhecimento e vontade de praticar o facto, abarcando todos os elementos do tipo objetivo.
IV- A factualidade dada como provada permite concluir pela prática pela recorrente do crime de lenocínio, pois, evidencia uma atuação com intenção lucrativa de fomentar, favorecer e facilitar o exercício, por mulheres contratadas, de prostituição sendo tal atuação livre, voluntária e conscientemente dirigida e concretizada a tal propósito e com pleno conhecimento que a exploração da prostituição é proibida e legalmente punida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1-RELATÓRIO:
Nos autos de processo comum com intervenção de Tribunal Singular nº61/21.9NJLSB que correm os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Oeiras, Juiz 3 foi, em 18 de junho de 2025, proferida sentença que, ao que nos interessa para apreciação do recurso, condenou a arguida AA pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de lenocínio na pena de dois anos e seis meses de prisão que suspendeu na sua execução pelo período de três anos sujeita a regime de prova a fiscalizar pela DGRSP e subordinada ao pagamento, da quantia de €1000,00 (mil euros) a uma instituição de solidariedade social à sua escolha, no prazo de um ano e seis meses a contar do trânsito em julgado da sentença, disso fazendo prova nos autos.
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Inconformada dela recorreu a arguida AA extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
1) O presente recurso visa a matéria de facto e de direito.
2) O presente recurso tem por fundamento os n.°s 1, n.°2, alínea a) todos do artigo 410.° do CPP.
3) Refere a sentença de que se recorre, no seu ponto 3 dos factos provados, que a recorrente, entre meados de 2015 a .../.../2022, possuía um estabelecimento denominado ..., onde se desenvolvia atividade de prostituição, por mulheres que a arguida contratou, e no ponto 7 que os homens contactam os anúncios para a prática de atos sexuais.
4) Porém, em momento algum descreve qualquer cliente ou mulher que trabalhasse para a recorrente.
5) A matéria de facto dá como provado apenas atos posteriores ao trespasse da recorrente, sendo o crime de lenocínio de resultado, encontrando-se dependente da consumação.
6) Não existindo facto provado, nem elementos de prova que comprovem ter existido um ato sexual enquanto a recorrente explorou o estabelecimento, não pode esta ser condenada.
7) Sendo a matéria de facto provada manifestamente insuficiente para que se dê como provado o crime de lenocínio pela recorrente.
8) O crime de lenocínio insere-se no capítulo V do CP, dos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual.
9) A prática de atos sexuais consentidos, por pessoas que nada se provou acerca de se ter explorado as suas necessidades, vulnerabilidades ou se tenha limitado sequer a sua autonomia de decisão, não pode ser considerado crime de lenocínio.
10) Para que o crime de lenocínio se consuma, terá de existir o elemento subjetivo da intenção por parte do agente em explorar vulnerabilidades, diminuir a autonomia das vítimas, subjuga-las à sua vontade, obtendo proveitos económicos.
11) Entendemos pois que, da conjugação dos Acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional, não se pode considerar nos presentes autos, com os factos dados como provados, sem demonstrar a exploração de vulnerabilidades ou limitação da autonomia das mulheres, que a recorrente tenha praticado o crime de lenocínio.
12) Sendo inconstitucional o crime de lenocínio sem que se prove o elemento subjetivo da exploração da vulnerabilidade da vítima ou da diminuição da autonomia da mesma.
13) Por cautela de patrocínio, sem prescindir do acima exposto, entende-se que, não se podendo dar como provado um período tão grande como o provado nos autos, por total ausência de prova, a pena da recorrente deve ser reduzida ao mínimo legal de 6 meses.
14) Igualmente não se entende a razão de ser da doação a instituição de solidariedade, não se encontrando na sentença qualquer explicação para que se tenha aplicado a mesma, deve a recorrente ser absolvida desta.
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Admitido o recurso no tribunal recorrido o Ministério Público apresentou resposta a cada uma das questões suscitadas e pugnando pela improcedência do recurso e manutenção na íntegra da decisão recorrida.
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Remetido o recurso a este Tribunal da Relação, foi emitido parecer em que com relevo se refere:
Adere-se na íntegra à resposta do MP na 1ª instância.
Com efeito, ao invés do que o arguido indica nas conclusões do seu recurso, flui do texto da douta sentença recorrida que
. esta não contém vício de insuficiência dos factos provados para a decisão, pois, como se diz na resposta, os factos provados 1, 3, 7, 9, 16, 17, 18, 19 e 20 perfetibilizam o tipo de crime do artigo 169.°/1 do CP,
. cuja inconstitucionalidade foi suscitada anteriormente no processo, o que levou a que o douto Tribunal desaplicasse a norma, o que redundou em recurso obrigatório para o TC do MP, sendo que o Colendo TC não declarou a inconstitucionalidade da norma incriminadora nos termos peticionados pela arguida, pelo que a questão relativa à constitucionalidade do artigo 169.°/1 do CP fez caso julgado formal no processo, não podendo ser recolocada,
. a sentença não contém erro notório na apreciação da prova, nem erro na apreciação da prova, de julgamento ou interpretação, sendo que neste segmento recursivo o arguido limita-se a um exercício de mera negação dos factos provados quanto ao período de duração da infração,
. a escolha e medida da pena encontra-se objetiva e compreensivelmente fundamentada na douta sentença, que fez uma adequada aplicação dos critérios legais aos factos provados,
. a doação a uma instituição configura uma condição da suspensão da execução da pena de prisão com respaldo legal nos artigos 50.°/2 e 51.°/1/c do CP.
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Observado o disposto no artigo 417º nº2 do Código de Processo Penal nada foi aduzido.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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Nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso cumprindo, assim, apreciar e decidir.
2-FUNDAMENTAÇÃO:
2.1- DO OBJETO DO RECURSO:
É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.1
Destarte e com a ressalva das de conhecimento oficioso são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar2.
A este respeito e no mesmo sentido ensina Germano Marques da Silva3:“Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Esclarecem os artigos 368º e 369º do Código de Processo Penal aplicáveis por via do disposto do artigo 424º nº2, do mesmo diploma legal a prevalência processual das questões a conhecer iniciando-se a apreciação pelas obstativas do conhecimento do mérito e caso o conhecimento das demais não fique prejudicado de seguida as respeitantes à matéria de facto, mormente a impugnação alargada e os vícios do artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal e finalmente as questões relativas à matéria de direito.
No caso vertente e à luz das conclusões do recurso da arguida AA as questões a dirimir são:
- a inconstitucionalidade da norma incriminatória do artigo 169º nº1 do Código Penal.
- se a decisão recorrida padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada nos termos do artigo 410º nº2 al. a) do Código de Processo Penal.
- se a pena aplicada à recorrente é desproporcionada por excesso devendo ser reduzida ao mínimo legal de seis meses.
-se a suspensão da execução da pena não devia ter sido subordinada ao pagamento de €1000,00 a instituição de solidariedade social à escolha da recorrente.
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2.2- DA APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO:
Exara a sentença recorrida, na parte que releva para a apreciação do recurso interposto, o que a seguir se transcreve:
III.DOS FACTOS
Provaram-se os seguintes factos:
1) A arguida, AA, explorou desde 2015 um negócio de prostituição, com a designação "...', em dois apartamentos sitos na ....
2) Em ... de ... de 2022 a arguida AA acordou com a arguida BB trespassar a esta última a exploração do estabelecimento pelo preço de 70.000C.
3)Assim, entre meados de 2015 e ... de ... de 2022, a arguida AA, explorou sozinha o referido "..." onde é desenvolvida a actividade de prostituição por mulheres, que a arguida contratou para esse efeito, nos dois apartamentos na ...
4) Depois disso, entre ... de ... de 2022 e ... de ... de 2023, a arguida BB explora o "..." onde é desenvolvida a actividade de prostituição por mulheres, que a arguida contratou para esse efeito, nos dois referidos apartamentos em ....
5) O apartamento do ...é composto por três quartos, um hall e um wc, em cada quarto existe uma cama.
6) O apartamento do … naquela morada é composto por dois quartos, uma cozinha, um wc e uma sala, em cada quarto existe uma cama.
7) Os clientes contactam esse estabelecimento de prostituição através dos números de telemóvel ... e ..., ou para o email ...', email e nss de telefone indicados no site do estabelecimento "... e dessa forma agendam encontros com as mulheres que trabalham nesse "...', as quais a troco de dinheiro que os clientes lhes entregam em mãos, despem-se, massajam-lhes o corpo e têm com eles relações de cópula completa e de sexo oral, de acordo com o que previamente combinam entre si.
8) Os valores cobrados aos clientes do "... pelas mulheres que lá trabalham, oscila ente 40 € e 120 €, conforme está tabelado no site, ou também varia de €100,00 por uma hora e €60,00 por meia hora de prestação do serviço.
9) Foi previamente acordado com as arguidas que cada mulher ficaria com uma percentagem do dinheiro para si, e entrega uma percentagem que vai de €10,00 a €20,00, consoante se tratasse de um serviço, respectivamente, de meia hora ou de uma hora, mas podia ascender a 50% do valor cobrado aos clientes se o cliente fosse encaminhado pelo site, valores que eram depositados num cofre para serem entregues às arguidas que exploravam o referido estabelecimento.
10) No dia ... de ... de 2023, CC contactou o estabelecimento "..." por telemóvel e agendou uma massagem erótica por um valor não concretamente apurado e, pelas 16:30 deslocou-se ao ...do referido estabelecimento, na ...
11) Nesse mesmo dia, DD, amigo de CC, também se deslocou ao ... do referido estabelecimento.
12)Nesse dia, EE contactou o "..." por telemóvel e agendou um encontro no referido estabelecimento, pelo valor de 100 € e deslocou-se ao ... da mesma morada, foi encaminhado para um quarto, onde uma pessoa do sexo feminino, não identificada, efectuava uma descompressão manual do órgão genital masculino, com ejaculação, quando foi interrompido pela busca domiciliária que a PSP realizou ao referido apartamento nesse dia.
13) Além de CC, DD e EE estavam, no local, cerca de seis a oito mulheres.
14) Nos quartos desse estabelecimento foram encontrados e apreendidos mais de duzentos preservativos, alguns usados, pacotes de lubrificante e um vibrador.
15) Foi também encontrado e apreendido um molho de folhas com as marcações de cada mulher naquele mês de ... no "..." com anotação do valor monetário recebido de cada cliente, e 2.690,38 € (dois mil, seiscentos e noventa euros, e trinta e oito cêntimos) em notas e moedas, oriundo do pagamento dos clientes.
16)Nessa mesma data, foi realizada também busca domiciliária à casa da arguida AA, na ..., onde a mesma guardava o contrato de arrendamento do referido estabelecimento, na ..., e o contrato de promessa de trespasse desse estabelecimento "..." à arguida BB e a quantia de 340 € em notas.
17) Dentro da viatura da arguida AA, também alvo de busca, um ... de matrícula ..-SD-.. estacionado na ..., essa arguida detinha as chaves do referido "...", sito na ....
18) Com o negócio de prostituição que as arguidas vêm explorando entre, pelo menos, 2018 e 2023, no referido estabelecimento "...", as arguidas AA e BB, obtêm lucros.
19) Ao actuar do modo descrito, explorando um negócio de prostituição na morada descrita em ..., as arguidas, AA e BB, agiram com o propósito concretizado de fomentar, favorecer e facilitar o exercício de prostituição pelas mulheres que as mesmas contratam para esse efeito, obtendo com essa actividade ilícita proventos económicos.
20) Em todo o circunstancialismo descrito, AA e BB agiram de forma livre, voluntária e consciente, apesar de saberem que a sua conduta, de exploração do negócio de prostituição, é proibida e punida por lei.
21) A arguida AA encontra-se no estado civil de divorciada e reside com um filho de 17 anos.
22 A arguida AA reside em casa arrendada, pela qual paga mensalmente a quantia de €550,00.
23) A arguida AA é ..., em fase inicial e sem retirar proventos dessa actividade.
24) A arguida AA tem rendimentos prediais no valor mensal de €1.000,00.
25) A arguida AA tem o 9.º ano de escolaridade.
26) A arguida AA não tem antecedentes criminais.
27) A arguida BB encontra-se no estado civil de casada, vive com o marido, a mãe e um filho de três anos.
28) A arguida BB vive em casa arrendada, pela qual paga mensalmente a quantia de €1.100,00.
29) A arguida BB é empresária da "...", auferindo mensalmente a quantia de €2.000,00.
30) A arguida BB encontra-se em ... há seis anos.
31) A arguida BB não tem antecedentes criminais.
Não se provou que:
a) Que o valor do trespasse valor ainda não foi integralmente pago, pelo que, enquanto o valor do trespasse não for totalmente pago, ambas as arguidas exploram o referido negócio de prostituição em conjunto, desde ... de ... de 2022 a ... de ... de 2023, dividindo tarefas e lucros nos termos combinados entre si.
b) Que CC foi encaminhado para um dos quartos por uma funcionária do "..." de nome FF, onde o esperavam duas jovens, de nome GG e HH, que se despiram e começaram a massajar o corpo nu desse cliente, encostando os seus corpos desnudos ao corpo de CC, conforme previamente combinado, altura em que a relação sexual foi interrompida pela busca domiciliária que a PSP realizou ao referido apartamento nesse dia.
c) Que DD foi encaminhado pela mesma funcionária, FF, para outro quarto desse apartamento, onde manteve relações sexuais com outra jovem, pelo preço de 60 €, conforme previamente combinado, altura em que a relação sexual foi interrompida pela busca domiciliária que a PSP realizou ao referido apartamento nesse dia.
d) Que no dia ... de ... de 2023, II contactou o "..." para o um dos números de telemóvel anunciados no site, descritos no ponto ns 6, e agendou um encontro sexual com uma das mulheres que trabalham no referido estabelecimento, pelo valor de 100 €.
e) Que nesse dia, pelas 16:30, II deslocou-se ao ...da mesma morada, foi encaminhado por FF para um quarto e manteve relações sexuais com uma das mulheres que trabalhavam naquele estabelecimento, JJ, altura em que a relação foi interrompida pela busca domiciliária que a PSP realizou ao referido apartamento nesse dia.
f) Que CC, DD e II estavam todos eles despidos, completamente nus nos quartos do apartamento, e estavam várias mulheres que trabalham como prostitutas naquele estabelecimento, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, FF e PP, algumas delas também nuas, preparadas para a relação sexual com os referidos clientes.
g) O dinheiro apreendido na habitação de AA era oriundo da exploração da actividade de prostituição lá desenvolvida.
h) Que as arguidas vivem uma vida faustosa muito acima das suas possibilidades económicas.
Para dar como provados ou não provados os factos, o Tribunal pesou toda a prova produzida e examinada em julgamento, da forma, que, abaixo, se demonstra.
A prova não é necessariamente controversa a respeito do local, dos materiais apreendidos, das pessoas que aí trabalhavam e nem sequer que as massagens aí realizadas teriam, o vulgarmente conhecido, "final feliz". Houve clientes que o confirmaram, e também as mulheres que aí prestavam serviços, admitiram que terminariam as massagens com uma descompressão manual do órgão genital masculino do cliente com ejaculação.
O que é, na verdade, controverso, é saber se as arguidas geriam um estabelecimento onde se praticavam actos que se qualificam de prostituição, obtendo lucros financeiros com a actividade destas mulheres, ou se se limitavam a arrendar quartos, desconhecendo o que aí se fazia ou, no limite, deixando à autonomia das mulheres a prática dos serviços que entendessem praticar nesse espaço.
Como nenhuma das arguidas quis esclarecer a situação, devemos socorrer-nos da demais prova documental e testemunhal.
Sabemos que a arguida AA arrendou um apartamento na ... em ... de ... de 2015, arrendando um segundo apartamento em ... de ... de 2018 (fls. 74 a 97 - apenso 1). Nesses apartamentos instalou o estabelecimento "..." e criou um site na internet que o publicita (fls. 33 a 40), e onde se fala do segundo apartamento "no mesmo prédio mas em casas separadas, este espaço abriu em ... de 2018, conta com as novas massagens, gabinetes muito recentes, neste espaço só fazemos massagem com final feliz" (fls. 35). É mantida uma conversa por ... entre as arguidas de ... de ... de 2022 a ... de ... de 2023 (fls. 114 a 122 - apenso 1) onde, entre outros assuntos, conversam sobre a gestão deste site. Assim, dúvidas não existem que este site está associado à actividade ocorrida nestes dois apartamentos. Também se extrai da prova documental que em ... de ... de 2022 foi outorgado contrato-promessa de trespasse do estabelecimento "...", passando o seu controlo e gerência, nessa data, para a arguida BB (fls. 70 - apenso 1). Da prova testemunhal, designadamente das mulheres que aí prestavam serviços, como KK, NN, OO, FF e PP, confirmam que até a um determinado momento o espaço era gerido pela arguida AA e depois passou a ser gerido pela arguida BB. Aliás, OO refere nem conhecer a arguida AA.
Algumas destas testemunhas foram muito claras ao referir que as arguidas se limitavam a arrendar-lhes um quarto, com total liberdade e autonomia de utilização. Prova de que assim não seria é a forma como chegam ao estabelecimento, tendo todas sido abordadas pelas arguidas e não ao contrário para aí prestarem os seus serviços.
Acresce que a existência de um site que publicita massagens- não controlado por nenhuma das testemunhas - pelo que o arrendamento dos quartos, nunca seria para qualquer actividade que escolhessem, mas para a realização de massagens e, muito concretamente, de massagens com o dito final feliz. Se se tratasse de um simples arrendamento de quartos, dificilmente se compreende a conversa mantida pelas arguidas acerca dos direitos, passwords e pagamentos do site da internet ... (fls. 114 a 122-apenso 1).Da lista de serviços aí disponíveis, não há sequer outra actividade oferecida. Também não podemos falar de arrendamento, pois que nenhuma referiu a celebração de contrato de arrendamento ou subarrendamento com as arguidas, nem apresentou documentação que o ateste. O que existe é um verdadeiro estabelecimento e o que foi trespassado de uma arguida para outra foi esse "estabelecimento comercial denominado ..., inserido nasfracções autónomas designadas, uma pela ... e outra pela ..." (fls. 70 - apenso 1). Assim, parece claro que nenhuma destas mulheres praticava a actividade que bem entendia e que todas faziam exactamente o mesmo: o serviço amplamente publicitado no site da internet - massagens com final feliz -, apenas com a autonomia e liberdade de praticar cópula vaginal e oral. Se houvesse a liberdade e autonomia de que falam, não se compreende a necessidade de existir um quadro branco com as marcações de todas as mulheres que aí trabalhavam (fls. 54 -apenso 1), o que também demonstra uma organização concertada.
Estabelecido que a arguida AA explorou o estabelecimento "..." de ... de 2015 a ... de 2022 e a arguida BB de ... até à data da busca em ... de ... de 2023, a pergunta que urge responder é se aí ocorriam actos de prostituição. Os clientes do estabelecimento inquiridos, CC e DD, declaram que procuravam massagens eróticas e encontraram o sítio da internet já referido, estabeleceram contacto telefónico, deslocaram-se ao local, mas não efectuaram qualquer massagem, porquanto a busca das autoridades policiais interrompeu os seus intentos. Já o cliente EE confirma que, à chegada da polícia, estava uma mulher a fazer-lhe uma massagem ao seu órgão genital, que iria culminar com ejaculação. Ainda que refira ter um problema de saúde que justifica a necessidade deste acto, parece claro que o que foi praticado foi um acto de masturbação. Também as mulheres que aí prestavam serviços, KK, NN, OO, FF e PP, referem que tanto durante a gerência de AA como durante a gerência de BB faziam massagens aos genitais dos clientes, com ejaculação, havendo a possibilidade, caso o cliente assim o entendesse, acordassem ambos e o com pagamento acrescido, de se realizarem actos de cópula vaginal e oral. Da simples leitura no site dos serviços prestados no estabelecimento constata-se que todas as massagens se compõem deste acto de manipulação do órgão genital masculino do cliente com ejaculação, sendo que, numa em particular, é possível "explorar o corpo da massagista'. Tudo isto permite concluir que não estamos perante massagens, ditas, normais, ou até mesmo, de massagens com um teor mais intimista, pois que o acto de masturbação do órgão genital do cliente ocorre em todas as situações, existindo a opção de actos de cópula, o que não permite concluir por outra actividade que não a da realização de actos sexuais.
Mas se não são indícios suficientes, mais existem. Desde logo a ausência de letreiro à entrada a identificar o espaço. A defesa entende desnecessária a sinalização do local, porque o cliente faria uma prévia marcação. Parece evidente que qualquer negócio floresce com a publicidade que se faz do mesmo, pelo que se a excepção é a não publicidade, ela tem de ser explicada e não presumida, e não foi apresentado nenhum motivo para esta fuga à norma. Note-se que muitos restaurantes também funcionam apenas por marcação e é absolutamente impensável que não tenham um letreiro. Assim, a única explicação plausível para a ausência de letreiro é a ocultação foi trazido qualquer motivo para tal. Também não foi apresentado qualquer registo comercial ou licenciamento dessa actividade ou estabelecimento, o que acrescenta carácter oculto à empresa. Além dos indícios de ocultação do negócio, que bem demonstram uma prática frequente na exploração de prostituição, também há indícios de que se gere um negócio de prostituição. Desde logo, os três clientes confirmam a possibilidade de selecionar a massagista, que se encontrar com roupas diminutas e evidenciadoras do corpo, antes de ser prestado o serviço, o que não ocorre em espaços tradicionais de massagem, o que é mais um ponto de equiparação a actividade de prostituição: a escolha prévia da prostituta que, utilizando o seu corpo na actividade, é conveniente que tenha pouca roupa antes de ser escolhida e durante o acto. No site, inclusive é publicitado o corpo das massagistas, com muito pouca roupa, o que seria desnecessário se apenas fossem contratadas para uma massagem (fls. 39).Também os objectos apreendidos com único e exclusivo propósito sexual como cerca de duzentos preservativos (fls. 39 e seguintes do apenso 1), alguns usados (fls. 18, apenso 1), vibradores e uma "milking table" que, de acordo com o site, serve para uma "massagem feita com 2 massagistas numa marquesa com orifícios nas zonas genitais, onde uma massaja por cima e outra massaja por baixo com final feliz". Não se provou que foram as arguidas a colocar aí esses objectos, mas assente que gerem um estabelecimento onde se fazem massagens que culminam em masturbação e ejaculação, algo que as arguidas bem sabiam, dificilmente se pode argumentar que ignoravam a sua existência, não se vendo como possível ocultar das arguidas mais de cem preservativos. Os demais objectos habituais de massagem apreendidos explicam, naturalmente, as massagens que aí se faziam, mas para esses não é necessária explicação adicional, tanto que parece incontornável que os actos sexuais se iniciavam com uma massagem. Mas para os demais apreendidos, o Tribunal não vislumbra outro propósito que não a actividade sexual.
Acresce que, e adiantaremos melhor esta questão em sede de direito, o crime de lenocínio apresenta-se como crime de resultado, dependendo a sua consumação do exercício da prostituição. Não só todas as mulheres inquiridas admitiram que eram praticados actos de cópula vaginal e oral no espaço, algumas até, como NN, a admitir que os faziam. Mas há que ter presente que EE admitiu que iria pagar €100,00 pelo acto de manipulação do seu órgão genital, com ejaculação, o que configura acto sexual a troco de contrapartida monetária.
Estabelecida a actividade de prostituição nos dois apartamentos, podemos concluir que as arguidas a fomentavam e facilitavam? KK, NN, OO, FF e PP referem que os clientes podiam chegar pelos anúncios que as próprias, de forma autónoma colocavam na internet, ou pelo site do estabelecimento. As mulheres que prestavam o serviço durante a gerência de AA, NN e FF, referem que os valores estavam tabelados no site e entregavam metade do valor cobrado ao cliente à primeira. Já no período de BB recebiam dos clientes €60,00 por meia hora de massagem com final feliz, € e €100,00 por uma hora de massagem com final feliz, entregando à arguida, respectivamente, €10,00 e €20,00, se o cliente aí chegasse por iniciativa da testemunha. Caso o cliente proviesse do site, a massagista ficava com 50% do valor, entregando o restante a BB. Em ambas as gerências, descrevem que o dinheiro devido às arguidas era guardado num cofre (fls. 57 e 63 - apenso 1), pelo que é, também, evidente, que o dinheiro apreendido nesses apartamentos corresponde aos proventos desta actvidade e que as arguidas obtinham proventos da actividade de prostituição de terceiros e que o faziam com intenção lucrativa; já quanto aos dinheiro na posse das arguidas e fora do estabelecimento, não podemos chegar a essa conclusão. Mas mesmo que não se provasse a existência do estabelecimento "...", mas tão somente o muito falado arrendamento de quartos, já havia favorecimento da actividade de prostituição, pois que sempre seria a cedência de quartos recebendo a contrapartida de uma parte do serviço prestado e não de uma renda fixa. Mas não é esse o caso. Sabemos que arguida AA explorou o estabelecimento "..." de ... a ... e a arguida BB de ... até à data da busca em ... de ... de 2023. Aliás, não se apurou que tivessem qualquer actividade além desta, pelo que só podemos falar de uma actuação profissional e com intenção lucrativa. Por outro lado, um trespasse é a transferência da titularidade de um negócio, incluindo todos os seus elementos (instalações, equipamentos, clientela, etc.), de um proprietário para outro. Foi o que a arguida AA transferiu para a arguida BB. A esse negócio a arguida AA atribuiu o valor de €70.000,00, valor aceite por BB, que deve corresponder, pelo menos, ao valor dos bens e direitos que compõem o estabelecimento, como, por exemplo, imóveis, maquinaria, stock, marca, sítios da Internet, clientes e, até, a reputação do negócio. Este contrato-promessa de trespasse sustenta, por si só, que existe um estabelecimento, que nele se fomenta a actividade de prostituição, e que dele recebem proventos monetários suficiente para atribuírem um valor objectivo ao negócio, pelo que ambas obtiveram proventos económicos desta exploração.
Os factos dados como não provados resultam da ausência de prova quanto aos mesmos, ou em contradição com os provados, designadamente os actos dos clientes interceptados, só se apurando que um, EE estava despido e em acto sexual naquele momento. Também não se provou que JJ, KK, LL, MM, NN, OO, FF e PP, estivessem nuas e preparadas para a relação sexual com os referidos clientes, pois que os agentes policiais que participaram na busca apenas confirmaram a existência de mulheres no local, entre seis a oito, mas nenhuma nestas condições.
Ainda que provados os proventos económicos das arguidas por força desta actividade, não é possível concluir que viviam uma vida fautosa. É certo que ambas protelaram a realização de relatório às suas condições sócio-económicas, desconhecendo-se os seus rendimentos à data da prática dos factos, mas do que atestaram ambas a este respeito e na ausência de prova adicional, não se pode concluir, sem mais, como pretende a acusação pública.
Quanto às condições sócio-económicas das arguidas, atendeu-se às declarações das próprias; no que respeita aos antecedentes criminais das arguidas, atendeu-se ao seu Certificado de Registo Criminal.
IV. ENQUADRAMENTO JURÍDICO - LEGAL
Vêm as arguidas acusadas, cada uma, da prática de um crime de lenocínio, nos termos do artigo 169º nº1 do Código Penal que pune quem favoreça, todo o profissional ou com simples intenção lucrativa, a prostituição de terceiro. O legislador quis proteger a liberdade e autodeterminação sexual da pessoa que se prostitui: a prostituição, não sendo crime, poderá ser exercida livremente, mas quem se aproveita desta, facilitando-a e, em consequência, obtenha lucros, viola a liberdade de determinação sexual da pessoa que se prostitui.
Este Tribunal teve já oportunidade de se pronunciar acerca da inconstitucionalidade da norma que apreciamos, o que foi alvo de análise do Tribunal Constitucional, pelo que, apesar das alegações finais da defesa, é questão que não tornaremos a conhecer, impondo-se, em obediência ao superiormente decidido, aplicar a norma em conformidade.
Antes de avançar para o tipo de crime, é necessário balizar o que se entende por prostituição. Ainda que seja uma actividade que, cremos, deixa pouca margem para interpretações ou dúvidas, julgamos adequado estabelecer, para o caso concreto, que prostituição é a conduta de uma pessoa do sexo masculino ou feminino que pratica actos sexuais mediante o pagamento de contrapartida monetária. Não se exige que a pessoa que se prostitui faça disso actividade regular, ou esteja numa situação de carência económica e social.
Para que o crime se verifique, e já adiantámos esta questão, exige-se que o agente colabore, estimule ou auxilie por qualquer meio a prática da prostituição, e que esta seja o seu modo de vida, regular, esporádica, em exclusividade ou nem sequer a única que pratique ou o faça profissionalmente, contando que tenha a intenção e obtenha rendimentos. Subjectivamente, deverá o agente, naturalmente, estar ciente de que auxilia e contribui para a prostituição de terceiro e que obtém rendimentos dessa actividade, ou seja, só se admite a actuação com dolo.
Vertendo o exposto ao caso concreto está provada a existência de um estabelecimento de massagens eróticas, explorado primeiro pela arguida AA e, mais tarde, pela arguida BB, onde se efectuavam massagens aos órgãos genitais masculinos e que terminavam em ejaculação e, além disso, ainda havia a possibilidade de se realizarem, a pedido do cliente, actos de cópula vaginal e oral, tudo através de contrapartida monetária. No dia da busca foi encontrada uma mulher a efectuar um acto de massagem ao órgão genital de um cliente, a troco da quantia de €100,00. Além dos actos sexuais que se provaram praticar-se no estabelecimento, confirmados por todas quantas aí trabalharam, verificou-se um acto sexual a ser praticado nesse dia. Ora, a doutrina e a jurisprudência já se pronunciaram abundantemente sobre o que se qualifica como acto sexual de relevo, sendo que o acto praticado e verificado nesse dia, um acto de masturbação, de toque prolongado numa zona genital, erógena e particularmente sensível, é um acto sexual. "O Supremo Tribunal de Justiça considerou tratarem-se de atos sexuais de relevo "os atos de masturbação, os beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo... também se deve incluir no conceito de ato sexual de relevo a desnudaçõo de uma mulher e o constrangimento a manter-se despida para satisfação dos apetites sexuais do agente." [Também os] "preliminares da cópula" e, por isso, são atos de natureza sexual ou, se se preferir, "atos com fim sexual", pelo que e, sintetizando, "o ato sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (...) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas" (cfr. Ac. TRE de 22 de Outubro de 2014, Proc. 1077/22.3T9ABT.E1, in dgsi.pt). A defesa refere, e bem, que o crime de lenocínio é um crime de resultado, dependendo a sua consumação do exercício da prostituição, devendo considerar-se, quanto a esse exercício, que o tipo legal se preencherá logo que se pratique um só acto sexual de relevo a troco de uma contrapartida: cremos que se mostra comprovado este acto de natureza sexual e que foi recebida contrapartida monetária. Além disso, e basta reverter à fundamentação da matéria de facto, resulta abundante a prova de que todas as massagens culminavam com um acto de masturbação do cliente e podiam, ocasionalmente, terminar com um acto de cópula vaginal ou oral.
Também se provou que as arguidas fomentaram ou facilitaram esta actividade, mesmo que ficássemos apenas com a versão, não comprovada, que se limitavam a arrendar quartos. Aliás, o Supremo Tribunal de Justiça, já em acórdão de 17 de Maio de 1995 (cfr. in CJ acs. do STJ de 1995, 3, 257), referia que é punível como proxeneta quem explora o ganho das prostitutas que vão ao seu apartamento praticar actos sexuais remunerados, recebendo de cada uma delas parte do preço cobrado. A actuação das arguidas é, em tudo, semelhante. Exploravam o estabelecimento
"..." como estabelecimento de massagens e prostituição, onde mulheres mantinham relações sexuais comclientes, a troco de contrapartida monetária, revertendo para as arguidas uma percentagem dos lucros dessa actividade, actuando, se não de forma profissional, pelo menos com intenção lucrativa. Por fim, ao dirigirem e coordenarem esta actividade não podiam deixar de estar cientes de que fomentavam a prostituição, agindo com o propósito de aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de terceiros.
Assim, cometeu a arguida AA um crime de lenocínio de meados de 2015 e ... de ... de 2022 e, mercê do trespasse, entre ... de ... de 2022 e ... de ... de 2023, a arguida BB.
E cometeu, cada uma, apenas um crime de lenocínio, pois que estamos perante um único plano previamente delineado, ainda que com uma execução plúrima de actos. Uma vez que é realizada sempre a mesma conduta, há continuidade de acção, uma unidade criminosa e uma compreensão global do ilícito num único crime.
Preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime e não tendo agido, as arguidas, ao abrigo de qualquer norma que o justifique ou que exclua a sua culpa, deverão ser condenadas.
V. DA PENA
O direito penal visa a protecção dos bens jurídicos violados e já referidos e é a aplicação de uma pena que o garante. Já o fundamento da aplicação de uma pena é a prevenção, numa dimensão geral e especial: geral, alertando para a importância do bem jurídico protegido e reforçando a confiança e segurança na consciência comunitária; especial, reintegrando o agente na sociedade, demovendo-o da prática de crimes futuros. Por fim, a aplicação de uma pena nunca deve ultrapassar a medida da culpa (artigos 40.º e 70.º do Código Penal).
Quanto ao crime que analisamos, as exigências de prevenção geral são elevadas na medida em se impõe garantir a liberdade de autodeterminação sexual de terceiros, assegurando que este campo da esfera íntima e privada de cada indivíduo não é instrumentalizado para outros propósitos e, muito menos monetários. Já às exigências de prevenção especial são baixas, como o comprova a ausência de antecedentes criminais e a sua inserção profissional, familiar e social.
O crime de lenocínio é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.
Há que apurar a sua medida concreta, de acordo com os artigos 71º n.º 1 e 2 do Código Penal. Dissemos que estamos perante a prática de um só crime, mas não nos podemos esquecer que a sua ilicitude é mais elevada no que toca à arguida AA que o explorou de 2016 a ... do que na arguida BB que o explorou de ... de 2022 a ... de 2023. Ainda assim, há que ter presente que este estabelecimento de prostituição, no seu todo, prolongou a sua actividade criminosa durante sete anos, aos quais podemos contar, pelo menos das pessoas inquiridas e que praticavam actos de prostituição, pelo menos cinco vítimas. Acresce que a actividade era desenvolvida por meio de um estabelecimento comercial, à sombra do qual exerciam uma actividade, criaram um sítio da internet e obtinham proventos económicos, não havendo como não concluir que as arguidas actuaram com dolo directo, cientes da operação que estava montada. A actividade que as arguidas praticavam não se distingue em qualidade, mas apenas em duração no tempo, pelo que não existe qualquer atenuação ou acção menos significativa de BB pelo facto de ter sido detectada tão pouco tempo após tomar as rédeas do negócio. Não abona nem agrava a pena das arguidas a ausência de violência ou coação detectada, pois que se isso ocorresse, estaríamos perante o crime na sua modalidade agravada e não simples. Regista-se, no entanto, a ausência de consequências graves da sua actuação. Já os fins que determinaram a prática dos factos, são patentes: a obtenção de ganhos económicos, que é sempre, e também, uma forma mais gravosa de actuação, quando se comete um crime apenas para obtenção de vantagens patrimoniais, recusando-se os arguidos a obter os seus proventos de modo lícito, ao que acresce a exploração de um terceiro. As exigências de prevenção geral são significativas, conforme já se referiu, mas as exigências de prevenção especial são diminutas, sobretudo se atendermos à inserção profissional, familiar e social das arguidas e à ausência de antecedentes criminais.
Assim, o Tribunal aplica à arguida AA a pena de dois anos e seis meses de prisão e à arguida BB a pena de dois anos e três meses de prisão.
Decidida a pena de prisão, há que ponderar a sua substituição por pena não privativa da liberdade, pois que a pena de prisão é fortemente restritiva de um direito constitucionalmente tutelado-a liberdade individual, de acordo com o artigo 279º da Constituição da República Portuguesa - devendo funcionar como último recurso.
Começaremos por considerar a possibilidade de suspensão da pena de prisão na sua execução, que poderá ser aplicada a penas não superiores a cinco anos, devendo o Tribunal, reportando-se ao momento da decisão, ponderar a personalidade do agente, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste (artigo 50.º nº 1 do Código Penal). Trata-se de medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, na qual se pretende apurar uma previsão favorável do comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça de pena de prisão é adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.
Ora, o Tribunal considera que, na ausência de anteriores condenações, que as arguidas serão capazes de conduzir a sua vida de modo lícito e adequado pela via da suspensão da execução da pena de prisão, acreditando-se que a simples censura do facto e a ameaça de cumprimento de pena de prisão que advém da sentença as afastará da criminalidade, não se duvidando da capacidade de compreensão da oportunidade de ressocialização e confiança que lhes é oferecida, e que se regerão conforme o direito. Assim, decide o tribunal suspender a execução da pena de prisão por três anos, a cumprir em liberdade.
Entende-se ainda que a suspensão da execução da pena de prisão deverá ficar sujeita a regime de prova, porquanto se considera conveniente e adequada a promover a reintegração do arguido em sociedade que, acima, mencionámos.
Deverá, assim, ser traçado um plano de reinserção social, nos termos dos artigos 52.º e 53.º do Código Penal, para o arguido e pela Direcção Geral de Reinserção Social, a ser aplicado durante o período de suspensão da execução de pena, nos termos do artigo 494.9 do Código de Processo Penal, elaborado de acordo com a personalidade, condições familiares e sociais das arguidas, que deverá obrigatoriamente conter, entre outras, condições que se julguem necessárias à sua reinserção social, como prevenir o cometimento de factos de idêntica ou outra natureza, permitir o confronto do arguido com as suas acções e tomada de consciência das suas condicionantes e consequências, procurar o confronto do arguido com os problemas de que padece, procurando alcançar formas de os eliminar/minorar, promover a consciência e assunção da responsabilidade do comportamento violento e a utilização de estratégias alternativas ao mesmo e alcançar o conhecimento de alternativas de comportamentos mais integrados sobre o ponto de vista social e a tomada de consciência das vantagens de adopção de tais comportamentos.
Uma vez que a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada à entrega a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, de uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente, de acordo com o artigo 51.º al. c) do Código Penal.
No geral, a jurisprudência tem aceite esta condição como adequada, contando que obedeça a um princípio de razoabilidade, não devendo ser fixada uma obrigação que ao condenado seja, previsivelmente, impossível cumprir. Há ainda que referir que havendo uma vítima do crime, o tribunal deve dar sempre preferência à reparação do mal causado à vítima, em vez da entrega de quantias a instituições ou ao Estado. Porém, tratando-se o ofendido uma empresa de tamanho considerável, que viu a devolução na quase totalidade dos bens subtraídos, consideramos adequada uma contribuição pecuniária ou prestação de valor equivalente a favor de instituições de solidariedade social ou do Estado, entendendo-se adequada a compensação da própria sociedade pelo mal que a esta é causado pelo crime, dando os arguidos um contributo para uma melhor satisfação do interesse público.
Impõe-se atender, assim, às condições sócio-económicas das arguidas ou de um cidadão médio por forma a garantir o cumprimento deste princípio de razoabilidade. Ora, a idade das arguidas permitirá mantê-las no mundo laboral nos próximos anos, pelo menos, a auferir rendimentos semelhantes ao salário mínimo nacional, estando ambas empregadas e possuindo rendimentos superiores a esse limiar mínimo, pese embora a tendência da evolução social e económica no sentido de uma sensível redução dos postos de trabalho que não exigem especiais qualificações. Perante os dados disponíveis, e atendendo à justeza da condição como forma final e última de tentativa de reparação do mal do crime, somos de entender que a quantia que poderá estar em condições de pagar, por conta contribuição pecuniária ou prestação de valor equivalente a favor de instituições de solidariedade social ou do Estado, durante o período de suspensão da execução da pena de prisão, sem colocar em causa a sua subsistência e do seu agregado, Assim sendo, entende o Tribunal subordinar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelas arguidas da quantia de €1.000,00, cada uma, a uma instituição de solidariedade social à sua escolha, no prazo de um ano e seis meses a contar do trânsito em julgado da presente sentença.
(…)
Delineado o conteúdo relevante da sentença recorrida apreciemos, pois, as questões concretamente suscitadas no recurso pela arguida AA lembrando que esta suscita, uma vez mais, a inconstitucionalidade da norma incriminatória do artigo 169º nº1 do Código Penal.
Com efeito, resulta da análise dos autos e do teor da sentença recorrida que a recorrente suscitou, nestes autos e previamente, tal questão a qual veio a ser resolvida através da Decisão Sumária nº33/2025 do Tribunal Constitucional, de que é Relator Afonso Patrão, que invocando o teor do Acórdão do mesmo Tribunal nº881/20244, decidiu não julgar inconstitucional a norma incriminatória do artigo 169º nº1 do Código Penal não fazendo qualquer distinção nem tão-pouco condicionando tal juízo à demonstração da existência, no caso concreto, da exploração de uma vulnerabilidade da vítima ou da diminuição da sua autonomia tal como perfilha a recorrente.
Acresce que tal decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado no presente processo, como decorre do artigo 80º nº1 e nº3 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, pelo que não pode ser repristinada como pretende a recorrente.
Assim nada há a apreciar quanto a tal questão por este Tribunal.
Mais invoca a recorrente que a decisão recorrida padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos previstos no artigo 410º nº1 al. a) do Código de Processo Penal, por considerar que a matéria de facto dada como provada não permite sustentar a prática de um crime de lenocínio pela recorrente por não comprovar ter existido um ato sexual enquanto a recorrente explorou o estabelecimento.
É consabido que o vício invocado pela recorrente tem de resultar da decisão recorrida por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum não sendo assim, admissível apelar a elementos estranhos àquela para o sustentar.
Ademais tal vício verifica-se quer quando a matéria de facto provada seja exígua e, por isso, inidónea a fundamentar a decisão de direito quer quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para tal decisão5.
Contudo, este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para sustentar a matéria de facto provada uma vez que esta última respeita ao princípio da livre apreciação da prova.
Como se exara no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça6 «A insuficiência da matéria de facto para a decisão (art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP), implica a falta de factos provados que autorizam a ilação jurídica tirada; é uma lacuna de factos que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, mas não se confunde com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideraram provados».
Ora, no caso vertente e lida a decisão recorrente, mormente no que se reporta à matéria de facto provada, não se deteta a existência de tal vício porquanto a factualidade aí descrita é claramente reveladora de uma atuação por parte da recorrente integradora do crime em causa como evidenciam, com maior ênfase, os pontos 1, 3, 7, 9, 16, 17, 18,19 e 20.
Efetivamente o artigo 169º nº1 do Código Penal prevê que: «Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos»
São elementos constitutivos do tipo objetivo do crime de lenocínio que o agente fomente, favoreça ou facilite o exercício por outra pessoa de prostituição e que pratique tais condutas profissionalmente ou com intenção lucrativa, sendo elementos constitutivos do seu tipo subjetivo que a atuação seja com dolo genérico, consubstanciado no conhecimento e vontade de praticar o facto, abarcando todos os elementos do tipo objetivo e a factualidade dada como provada, com particular ênfase para a suprarreferida, evidencia uma atuação com intenção lucrativa de fomentar, favorecer e facilitar o exercício, por mulheres contratadas, de prostituição sendo tal atuação livre, voluntária e conscientemente dirigida e concretizada a tal propósito e com pleno conhecimento que a exploração da prostituição é proibida e legalmente punida.
Assim, não assiste razão à recorrente, improcedendo, neste segmento o seu recurso.
Mais invoca a recorrente que a pena que que lhe foi aplicada é desproporcionada por excesso devendo ser reduzida ao mínimo legal de seis meses.
E funda tal pretensão recursória no argumento «não se podendo dar como provado um período tão grande como o provado nos autos, por total ausência de prova, a pena da recorrente deve ser reduzida ao mínimo legal de 6 meses.»
A recorrente, apenas, impugnou a matéria de facto pela invocação do vício de insuficiência já analisado e cuja invocação não procedeu pelo que a matéria de facto permanece intocada.
Por outro lado, olvida a recorrente que a intervenção do Tribunal de recurso no que à determinação da pena respeita se limita à sindicância da proporcionalidade da sua fixação e correção dos critérios utilizados para tal determinação, em face das balizas da culpa e as circunstâncias concretas do caso, pelo que tal intervenção corretiva, apenas, deve ocorrer quando se deteta a violação das regras da experiência no processo de determinação da pena ou a quantificação se revelar desproporcionada.
Ora nada disso não só não foi concretamente invocado como também não se verifica porquanto na decisão recorrida foram observadas todas as regras legais previstas, desde logo, nos artigos 40º e 71º ambos do Código Penal referindo-se os elementos com relevo na determinação da medida concreta da pena e que não se considerem já valorados na tipificação do crime objeto da punição e o exercício valorativo aí expendido, não obstante a crítica do recorrente, é adequado e a pena concretamente aplicada é ajustada aos citados elementos apurados nos autos.
Assim não existe fundamento para qualquer correção impondo-se a improcedência do recurso, também, neste segmento.
Por último, contesta a recorrente a subordinação da suspensão da execução da pena ao pagamento de €1000,00 a instituição de solidariedade social à escolha daquela referindo que não se entende a razão de ser da doação a instituição de solidariedade porque a mesma não está explicada na sentença. Em face de tal afirmação afigura-se-nos que a recorrente procedeu a uma leitura menos atenta da decisão recorrida porquanto na mesma está amplamente esclarecida a razão de ser e que se traduz na reparação do mal do crime.
Assim, também, neste segmento improcede o recurso da arguida.
Destarte e apreciadas as questões suscitadas pela arguida AA no seu recurso conclui-se pela improcedência total da sua pretensão recursória.
3-DECISÓRIO:
Nestes termos e, em face do exposto, acordam as Juízas Desembargadoras desta 3ª Secção em não conceder provimento ao recurso da arguida AA, mantendo, consequentemente, na íntegra a sentença recorrida.
Custas da responsabilidade da arguida recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça (art. 513º do Cód. de Processo Penal e 8º nº9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último).
Notifique.
*
Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificadas supra.
*
Tribunal da Relação de Lisboa, 19 de novembro de 2025
Ana Rita Loja
Hermengarda do Valle-Frias
Sofia Rodrigues
_______________________________________________________
1. vide Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995.
2. Artigos 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 proferido no processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30/06/2016 proferido no processo 370/13.0PEVFX.L1. S1.
3. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335
4. Ac. nº881/2024 proferido no processo nº955/2022 de que é Relator Carlos Medeiros de Carvalho, acedido no site do Tribunal Constitucional.
5. Neste sentido Manuel Simas Santos e Manuel Leal Henriques, em Recursos em Processo Penal, 9.ª ed., pág. 73 e ss.
de 6/10/2011 proferido no proc. 88/09.9PESNT.L1. S1 e relatado por Souto de Moura