Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26588/19.4T8LSB.L1-6
Relator: CARLOS MARQUES
Descritores: MÉDICO
RESPONSABILIDADE CIVIL
LEGES ARTIS
ÓNUS DE PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (elaborado pelo relator):
I. A expressão «leges artis» designa o conjunto de regras técnicas e deontológicas que orientam a atuação de um profissional (por exemplo, médico, engenheiro, advogado), servindo como critério jurídico de aferição da conformidade dessa atuação com o padrão de diligência exigível, pelo que, quando o tribunal aprecia se uma conduta observou ou não as leges artis, está a realizar uma valoração jurídica dos factos, isto é, a subsumir os factos provados ao conceito jurídico de atuação conforme ou desconforme às regras da arte.
II. A expressão constante da factualidade provada «como ditam as leges artis», reportada a determinado ato médico, por encerrar uma conclusão e não um facto, deve considerar-se não escrita.
III. O tribunal de recurso não tem que efetuar um novo julgamento, mas apenas de reapreciar concretos pontos de facto alegadamente mal julgados, pelo que só com o cumprimento do ónus de impugnação especificado, levado às conclusões do recurso, se encontrará em condições de analisar e verificar se, efetivamente, o tribunal a quo, perante a prova produzida, incorreu em erro de julgamento (na apreciação/valoração das provas e na formação e fundamentação da convicção) relativamente aos pontos de facto impugnados.
IV. Não cumpre tal ónus o recorrente que pretende um escrutínio indiscriminado e global de 23 factos, sem que especifique, ainda que no corpo das alegações, por referência a cada um dos factos, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre cada um dos factos impugnados.
V. No domínio da responsabilidade civil médica, a qualificação da obrigação assumida pelo médico, como obrigação de meios ou de resultado, deve ser feita casuisticamente em face dos concretos factos provados, tendo em consideração a natureza e o objetivo do ato médico.
VI. Estando em causa uma obrigação de meios, o médico apenas se compromete a proporcionar os cuidados de saúde impostos pelas leges artis, respondendo pela omissão ou pela inadequação dos meios utilizados aos fins correspondentes à prestação devida em função do serviço que se propôs prestar.
VII. Tendo em vista a prova da atuação ilícita do médico, impende sobre paciente o ónus da prova, além do mais, do concreto ato médico praticado/omitido pelo médico e do concreto ato médico que era imposto pelas leges artis.
VIII. Não basta a prova da ocorrência de lesões no corpo ou na saúde do paciente (porquanto não integram o conceito de ofensa à integridade física as intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental), impondo-se, ainda, a prova da desconformidade entre a intervenção feita pelo médico e a imposta pelas leges artis (o erro médico).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DA 6ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I - Relatório.
1. AA instaurou no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, (Lisboa - JC Cível - Juiz 2) a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CVP- Sociedade de Gestão Hospitalar, S.A., BB, CC, DD e EE, pedindo ao tribunal: a) a condenação da a ré Cruz Vermelha Portuguesa, Sociedade de Gestão Hospitalar, S.A., ao pagamento à autora de uma indemnização no valor de 147.220,94€, a título de danos causados; ou, em alternativa, para a hipótese abstrata e meramente académica de se excluir a responsabilidade contratual desta ré, b) a condenação dos Réus BB, CC, DD e EE ao pagamento à autora de uma indemnização no valor de 147.220,94€, a título de danos causados.
Para tanto, alega que deu entrada no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa, no dia 27/11/2012, para ser submetida a uma cirurgia programada (uma colecistectomia, via laparoscópica), a efetuar na mesma data, cirurgia que não chegou a realizar-se devido a complicações surgidas na entubação orotraqueal.
Sustenta que existiu negligência (imperícia e imprudência) da médica anestesista (2ª ré), pois insistiu com entubação, causando-lhe lesões e complicações, com dificuldade em respirar e comer, não tendo seguido o procedimento a que estava adstrita no caso de entubação difícil, traduzindo um erro médico.
Alega que o hospital (1ª ré), no dia 03/12/2012, deu-lhe alta e recomendação de fazer uma vida normal, o que se traduziu numa falta de assistência, acabando por dar entrada de urgência no hospital (primeiro no Hospital S. Francisco Xavier, transferida depois para o Hospital de Santa Maria), onde foi assistida e esteve internada desde o dia 07/12/2012 até ao dia 09/01/2013.
Alega que todo o quadro clínico, sintomatologia, lesões e internamento, que envolveram a autora desde o dia 7 de dezembro de 2012 até ao dia 9 de janeiro de 2013, ocorreu em consequência da tentativa de intubação orotraqueal não sucedida realizada pela ré BB, no Hospital da Cruz Vermelha, e, depois, da falta de assistência prestada por todos os médicos demandados (que não detetaram a gravidade da complicação iatrogénica ocorrida, não identificaram a laceração ocorrida no brônquio nem a fístula esofágica).
Alega, finalmente, que tais lesões demandaram a que a autora estivesse três meses sem retomar o trabalho, perdesse massa muscular, tivesse mau estar, ansiedade, pesadelos e receio de hospitais, que reclamam a indemnização peticionada de 147.220,94€ [1.642,80€ de perda de rendimentos do trabalho; 2.378,14€ de despesas médicas e medicamentosas; 3.200,00€ de despesas em novo procedimento dentário; e 140.000,00€ de danos não patrimoniais].
2. Os réus contestaram e pugnaram pela improcedência da ação, alegando, em síntese, que todas as regras médicas foram cumpridas e que nada levava a crer que autora viesse a ter dificuldades de entubação, que ocorreram em virtude da própria condição anatómica da garganta da autora, facto evidenciado uma vez mais quando, 7 meses depois, voltou a ter que ser operada e teve novas queixas semelhantes decorrentes da entubação
Alegam, assim, que os procedimentos médicos foram seguidos de acordo com as leges artis, tendo o sucedido acontecido no âmbito do risco próprio do procedimento anestésico, aliado à condição anatómica da autora. E que alta médica foi dada por decisão conjunta da equipa médica e por melhoria progressiva dos sinais resultantes do traumatismo verificado aquando da entubação, sendo que a alta médica era o único procedimento a adotar.
Requereram, ainda, a intervenção das companhias de seguro Ageas Portugal – Companhia de Seguros Vida, S.A., e Generali – Companhia de Seguros, S.A., em consequência dos contratos de seguro de responsabilidade civil que celebraram com as mesmas, que abrangem danos decorrentes do exercício da atividade da 1ª ré e da responsabilidade civil profissional dos demais réus.
3. Admitida a intervenção principal e acessória provocada das referidas seguradoras, que apresentaram articulado de intervenção e pugnaram pela improcedência da ação, teve lugar audiência prévia, tendo sido tentada a conciliação das partes e proferido despacho saneador, que absolveu do pedido o réu CC. Definido o objeto do litígio e fixado os temas da prova, foram conduzidos os autos para instrução e a audiência final.
4. Foi realizada perícia pelo Conselho Regional do Sul da Ordem dos médicos (no âmbito do processo crime instaurado pela autora) e requeridos complementos à mesma, tendo sido realizada nova perícia nos presentes autos.
5. Realizou-se audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e absolveu os réus dos pedidos.
6. A autora, inconformada com tal decisão, interpôs recurso de apelação, apresentando as suas alegações, que terminam com as seguintes conclusões:
1. Os recorrentes consideram que OS DOCUMENTOS CONSTANTES DOS AUTOS e o DEPOIMENTO DAS TESTEMUNHAS ARROLADAS em sede de audiência de discussão e julgamento, após a produção de prova nos autos e no essencial, o facto dado como provados no n.º 20 não resultou provado nos exatos termos constantes da sentença, ficaram provados os Factos dados como Não Provados n.º 1 a 25 e resultaram Factos que deviam ter sido dados como Provados.
2. O conteúdo deste facto só pode ser dado como provado nos termos que resulta do relatório clínico elaborado pela própria 2ª Ré e nos termos definidos em todas as Perícias Médico Legais juntas aos autos.
3. O Tribunal a quo tinha que dar como provado quanto a este facto que: Foram realizadas pela 2.ª Ré BB várias tentativas de intubação orotraqueal com tubos de diferentes diâmetros, mas dado que a ventilação manual se realizava com alguma dificuldade a mesma optou por reverter a anestesia, acordar a doente e adiar a cirurgia programando-a para ser realizada posteriormente com intubação orotraqueal através do uso de fibroscópio.
4. Quanto aos factos dados como não provados 1 a 25, todos mereciam outro julgamento, porquanto o seu conteúdo está plasmado nos autos, nos relatórios médicos, nas diferentes perícias legais e até na decisão referente ao processo crime e ao processo disciplinar da 2.ª Ré.
5. O Facto Não Provado 1 resultou provado pois consta do Relatório da 1ª Ré HCVP, fls …. “ a doente foi encaminhada para consulta de otorrinolaringologia – Dr FF – cuja avaliação através de larigoscopia endoscópica não revelou aletrações assinaláveis de hipofaringe... vestíbulo larígeo...cordas vocais móveis e simétricas...seios piriformes livres. À palpação cervical, crepitação na região/fossa supraclavicular direita, compatível com enfisema cutâneo.
6. Também no relatório da Perícia Técnico Cientifica, fls 100 e ss, pág 1, último parágrafo e pág 2, 1.º parágrafo, se alude a esta consulta.
7. O Facto Não Provado 2 também tinha que ser dado como provado porque o mesmo coincide com a nota de alta dia 03/12/2012 (fls 97), dada como reproduzida no Facto Provado 5.
8. Nesta alta fala-se na boa evolução das queixas mostrando que as queixas existiram e persistiram, o que é corroborado pela Autora nas suas declarações, vide Gravação - Diligência_26588-19.4T8LSB_2025-04-03_10-40-20 - minutos 10:40 Horas a 12:03 Horas, por referência à Ata do dia 03 de Abril de 2025.
9. Acresce que, resulta da Declaração Médica, junta como documento n.º 2 da petição inicial cujo conteúdo também resulta reproduzido (Facto Provado 8), a persistência de sintomatologia com disfagia, dor no hemotórax sendo esse o motivo pelo qual recorreu à consulta.
10. A douta sentença afastou esta prova fundamentando-se nos relatórios de Perícia Cientifica, defendendo que todos eles confirmam o cumprimento das Leges Artis.
11. Todavia, com todo o respeito, parece-nos ter existido sobrevalorização daqueles relatórios que conduz a erro de julgamento já que de nenhum deles resulta de forma cabal e objectiva o cumprimento das leges artis.
12. O parecer médico-legal, fls 100 a 107, responde no seu Quesito C (…) com base nos registos não é possível concluir se todas as condições foram avaliadas e asseguradas, nem que tipo de material de via aérea difícil foi utilizado (...).
13. Em resposta ao Quesito I, onde se questiona diretamente se as leges artis foram cumpridas é dito (…) Não é possível responder de forma objectiva a este quesito porque não foi observado em tempo real o gesto (…).
14. Ao contrário do que pugna a douta sentença, também a ampliação da perícia junto aos autos, não afirma objectivamente que não houve imperícia e a imprudência: em resposta ao quesito 1 diz-se que (…) as complicações existentes não são necessariamente consequência de imprudência ou imperícia (…) em resposta ao Quesito 3 pronunciando-se quanto às complicações que resultaram para a Autora “É pouco provável que tenham sido essas as causas (…) mas não afasta a probabilidade.
15. De acordo com o percurso PARECE não haver violação das leges artis mas nenhum dos relatórios é objectivo e foi produzida prova que contraria esta objectividade, designadamente a Declaração Médica, o Relatório de Urgência e o Parecer Médico-legal junto pela Autora (doc 2, 3 e 5 da pi).
16. Além disso, resulta dos autos que inexistência de registos de anestesia (vide Acórdão Disciplinar junto com requerimento referência Citius n.º 37943943), o que impede a avaliação objectiva conforme se defende na Perícia Médico-legal utilizada no processo-crime.
17. A verdade é que o douto Tribunal não esteve aberto a analisar a restante prova médica que a Autora carreou para os autos e que explica a probabilidade de os danos terem ocorrido em virtude da entubação e posterior erro de diagnóstico face às lesões.
18. O depoimento das testemunhas Drª GG e Dr. HH não pode ser valorizado pelo Tribunal da forma como foi para excluir a imperícia e o erro de diagnóstico alegado, porquanto o depoimento destas testemunhas foi mutuamente influenciado, vide Gravação - Diligência_26588-19.4T8LSB_2025-02-21_09-56-38 - minutos 09:56 Horas a 11:00 Horas, por referência à Ata do dia 21 de Fevereiro de 2025.
19. Mesmo que existisse diferença de opinião ou de análise da situação, não se pode descurar que a inquirição em conjunto limitou a independência dos depoimentos e permitiu que ambos se influenciassem em claro prejuízo da isenção necessária ao depoimento testemunhal.
20. Tais depoimentos não podiam ter sido apreciados da forma que foram pela douta sentença, atento o conteúdo da declaração junta aos autos (doc. n.º 2 da petição inicial) e até pelas declarações da testemunha Dra. GG em sede da sentença do processo-crime (doc. n.º 2 contestação da 1ª e 2ª Rés, pág. 3, 4 e 14).
21. O Tribunal a quo tinha já claramente uma ideia pré-concebida dos autos em face do desfecho do processo-crime e desvalorizou completamente o Relatório de Perícia junto pela Autora como doc. n.º 5 da sua pi e o depoimento da testemunha II, de forma ultrajante referindo-se a ambos como encomendados, o que não acontece e é até incompreensível face à natureza científica do relatório.
22. A demonstração da existência de imperícia está documentada de forma séria e isenta, no Parecer Médico-legal junto como documento n.º 5 com a petição inicial, com o título Análise da Informação e Discussão.
23. Na verdade, e como se conclui neste Parecer Médico-legal o Hospital cometeu um erro de diagnóstico não identificando a laceração e a fístula na traqueia e no esófago causada pelo procedimento de entubação mal sucedido.
24. A isto acresce o facto de a testemunha Dr. II, enquanto perito médico e médico intensivista, ter explicado tudo aquilo que estava reproduzido no referido relatório, vide Gravação - Diligência_26588-19.4T8LSB_2025-04-03_09-28-18 - minutos 09:28 Horas a 10:25 Horas, por referência à Ata do dia 03 de Abril de 2025.
25. Contrariamente à fundamentação do Tribunal recorrido, esta testemunha estava tão informada quanto todos os peritos que produziram Parecer Médico-legal, pois todos se basearam na leitura das informações, registos e relatórios clínicos, tal como esta testemunha fez.
26. Aliás resulta da prova documental junta, designadamente o Acórdão apresentado com o requerimento da Autora, de referência Citius n.º 37943943, que no processo clínico da Autora junto da 1.ª Ré, não constam peças e documentos fundamentais ao processo clínico.
27. Um desses documentos, em falta, é precisamente o registo dos procedimentos observados no período pré-operatório, o consentimento informado e a ficha de procedimento anestésico, vide página 17 do documento, ponto 8, sub pontos 1, 2, 3, 4.
28. Tais factos deviam ter sido dados como provado bem como a condenação disciplinar da 2.ª Ré, e precisamente por isso é que os pareceres médico-legais que sustentam a sentença não são objectivamente conclusivos, como supra se mencionou.
29. E de resto, parece-nos que a responsabilidade vai além do cumprimento das leges artis, há todo um conjunto de factores que carecem de ser analisados face à concreta situação nomeadamente o consentimento informado, o cuidado e a comunicação que existiu com o paciente.
30. Não podia o Tribunal descurar que existe um iter no processo de dano sofrido pela Autora, que não se basta no ato de entubação que provoca os danos, há toda uma sequência de atos que motivam a intervenção de emergência no Hospital São Francisco Xavier.
31. Não foram utilizados os meios técnicos necessários e indispensáveis à garantia efectiva de prestação dos cuidados médicos de que a Autora precisava ou viria a precisar, e daí foram desencadeados uma sucessão de actos e de decisões de emergência que poderiam ter sido evitados, se fosse outra a conduta dos Réus.
32. É completamente incompreensível que o Tribunal a quo, no seu julgamento não faça a comparação com a intervenção posterior anestésica de entubação a que mais tarde a Autora volta a ser sujeita e que dá como provado nos Factos Provados 7 e 34, na qual tendo surgido as mesmas dificuldades na intervenção de entubação, o cuidado médico foi outro, não se insistindo na manobra cega de entubação.
33. Por todo o exposto devia ter sido dado como provado porque resultou da prova documental e se trata de factos essenciais à boa decisão da causa, os seguintes factos:
◦ A 2.ª Ré foi sancionada em advertência disciplinar pela Ordem dos Médicos por existir omissão quanto a peças fundamentais no registo clínico da Autora.
◦ Do processo clínico no hospital da 1.ª Ré da Autora não consta o registo da consulta pré-anestésica, do pré-operatório bem como dos exames e meios complementares de diagnóstico realizados.
◦ A Autora não foi informada dos riscos de um procedimento de entubação.
34. Procedendo-se à alteração da matéria de facto conforme se entende ser de justiça face à prova produzida tinha que ser dada por procedente a presente acção pois houve erro médico e erro de diagnóstico nos procedimentos médicos levados a cabo pelas 1.ª e 2.ª Rés na pessoa da Autora.
35. Ainda que não se proceda à alteração da matéria de facto que determinará outra decisão de Direito, conforme entende a Autora que será devido, salvo o devido respeito, sempre se entenderá que o tribunal a quo não podia ter aplicado o direito da forma como fez.
36. Com todo o respeito, o douto Tribunal recorrido subsumiu a aplicação do Direito, tendo à verificação do cumprimento das leges artis no procedimento de entubação, resumindo este ato à única ilicitude passível de existir no ato médico, e sempre defendendo na sua fundamentação que os médicos só estão adstritos a uma obrigação de meios e não de resultado.
37. Sucede que, no caso em apreço, há que considerar que a intervenção a que a Autora se estava a sujeitar, Facto Provado 1, era uma cirurgia programada, cirurgia eletiva, colecistectomia, estando assim em causa um contrato de prestação de serviços médicos.
38. A justificação da sentença recorrida no que toca à não verificação da ilicitude, não se afigura adequada à obrigação concretamente assumida no caso dos autos, que não se pode analisar como se de uma obrigação de meios se tratasse.
39. Tendo resultado provado que em consequência da entubação a Autora veio a ter complicações, vide Facto Provado 24, todas consequência de uma laceração do brônquio e de uma fístula esofágica, cuja existência resulta de todos os Relatórios Médicos juntos aos autos.
40. A laceração e a fístula, ocorrem durante e por causa da execução do contrato destinado à realização de uma cirurgia, pelo que somos de entendimento, que ocorreu uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato, e assim sendo a ilicitude do ato médico está verificada.
41. A entubação foi uma intromissão na integridade física, natural e necessariamente consentida e pretendida pela autora mas a verdade é que não resultou dos autos que desse consentimento ou pretensão da autora fizesse parte a lesão em discussão neste processo.
42. Dever-se-ia sustentar que se não se tratará de um cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços médicos, mas da lesão do direito à integridade física da autora, ocorrido no âmbito e por causa da execução do contrato.
43. Pode assim entender-se que in casu se está perante um “dever imposto pela regra de que, no cumprimento dos contratos, cada contraente deve ter na devida conta os interesses da contraparte (nº 2 do artigo 762º do Código Civil); e que, sendo violado”, acarreta a responsabilidade do médico e do hospital, nos termos próprios da responsabilidade contratual (artigo 798º do Código Civil).
44. Neste sentido, vide Acórdãos do Supremo Tribunal de 1 de Julho de 2010, proc. nº 623/09.2YFLSB e de 22 de Maio de 2003, proc. nº 03P912, de 7 de Julho de 2010, proc. 1399/06.OTVPRT.P1.S.1, e de 4 de Março de 2008, proc. nº 08A183, todos in www.dgsi.pt.
45. Não resulta provado que os danos sofridos pela Autora resultem como risco da entubação, nem ficou provado que os procedimentos tenham sido (ou não) seguidos, nem que tenha ocorrido qualquer facto que justificasse, a laceração e a fístula do esófago.
46. Assim sendo, somos de entendimento, que se deve aplicar o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual, designadamente o nº 2 do artigo 799º do Código Civil, presumindo-se a culpa do réu.
47. Caberia assim aos Réus ilidir essa presunção nos termos do nº 1 do artigo 344º do Código Civil, demonstrando que procedimentos adoptaram, a adequação desses procedimentos e os actos que concretamente praticaram para evitar os danos, ilisão que não resulta dos factos provados.
48. Nada resultando como provado para que esta ilisão ocorresse, presume-se a culpa dos Réus; e, estando provados os demais pressupostos da responsabilidade civil, como estão, o pedido de indemnização da Autora pelos danos tidos como provados, Factos Provados 1 a 8, 24 a 33, tem de proceder nos termos da causalidade adequada, definida no artigo 563º do Código Civil.
49. Não se levanta, no caso, nenhuma dúvida de que estão provados danos com gravidade suficiente para serem indemnizáveis, nº 2 do artigo 496º do Código Civil.
50. Pelo exposto, encontra-se a decisão de Direito da douta sentença a violar os artigos 344.º, 483.º, 496.º, 562.º, 563.º 798.º, 799.º, 800.º todos do Código Civil.
7. Os réus CVP- Sociedade de Gestão Hospitalar, S.A., BB, DD e EE, contra-alegaram, com a adesão da seguradora Generali, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado, sustentando, para além do mais, no que concerne à impugnação da matéria de facto, que a autora, no que concerne ao facto provado 20º, não cumpre o ónus imposto pelo artigo 640º/1-b) do Código de Processo Civil e, no que concerne aos factos não provados 1 a 25, não cumpre o ónus impostos pelas als. a) e b) do mesmo preceito, limitando-se a impugnar de forma genérica e por atacado, devendo o recurso nessa parte ser rejeitado e sempre julgado improcedente; e, no que concerne à matéria de direito, que é manifesta a improcedência da alegação, por não ter sido feita prova da violação das leges artis.
8. Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II - Fundamentação.
A. Delimitação do objeto do recurso e questões a decidir.
O objeto do recurso, nos termos previstos nos artigos 635º/4, 637º/2, 639º, 640º, 641º/1-b), 652º/1-a) e 663º/2 e 608º/2 do Código de Processo Civil, encontra-se delimitado pelas conclusões das alegações do(a)(s) recorrente(s), não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas1.
Por outro lado, devemos ter em consideração que os recursos estão legalmente configurados como um meio processual que visa a reapreciação de uma decisão judicial, não podendo ter por objeto “questões novas” não suscitadas e não conhecidas pelo tribunal a quo - a não ser, também, que se tratem de questões de conhecimento oficioso. Neste sentido, o tribunal superior não efetua um reexame ou novo julgamento da causa, limitando-se a controlar a correção da decisão recorrida, em função das conclusões apresentadas, reapreciando-a perante os elementos probatórios averiguados até ao momento da prolação da decisão recorrida2.
Assim, analisadas as conclusões das alegações da apelação, cumpre apreciar e decidir: a) se é de alterar a matéria de facto provada (facto 20º) e não provada (factos 1º a 25º); b) se se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil e da consequente obrigação de indemnização pelos réus.
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B. Da impugnação/alteração da matéria de facto.
Os recursos, nos termos previstos no artigo 637º do Código de Processo Civil, são interpostos por meio de requerimento (dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida), que deve conter obrigatoriamente a alegação do recorrente e as conclusões, nas quais deve indicar o fundamento específico da recorribilidade.
Em consonância, o artigo 639º/1 do Código de Processo Civil impõe para o recorrente o «ónus de alegar e formular conclusões» no recurso interposto, dispondo que «o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão».
Versando o recurso sobre a matéria de facto, o artigo 640º do Código de Processo Civil consagra um outro «ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto», dispondo o n.º 1 que: «Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
A propósito dos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, dispõe o n.º 2 do artigo 640º que «no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes».
Daqui resulta que o tribunal de recurso só deve entrar na análise dos fundamentos do recurso sobre a matéria de facto impugnada se o recorrente, tendo cumprido o ónus de alegar e formular conclusões, tiver dado cumprimento ao ónus [tripartido] de especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com indicação dos concretos meios de prova que impõem uma decisão diversa da recorrida sobre tal matéria e com indicação da concreta decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Ainda que se admita, na senda do AUJ n.º 12/2023 (DR, Iª Série, de 14/11/2023, com a retificação publicada no DR, Iª Série, de 28/11/2023), que «nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações», é ponto assente que o recorrente que impugna a matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, sob pena de rejeição do recurso especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, podendo indicação dos meios de prova e da decisão alternativa, não sintetizados nas conclusões, ser feita, de forma inequívoca, nas alegações apresentadas3.
Se a falta das alegações e/ou das respetivas conclusões (o incumprimento do ónus de alegar e formular conclusões) determina, sem mais, a rejeição do recurso (cfr. artigo 641º/2-b) e 5 e 652º/1-b) do Código de Processo Civil), o incumprimento do ónus de especificação dos concretos pontos de facto incorretamente julgados e os concretos meios de prova que impõem uma decisão diversa da recorrida, nos termos previstos no artigo 640º/1 e 652º/1-a) a contrário, determina também a rejeição do recurso, nessa parte, sem possibilidade de despacho de convite ao aperfeiçoamento4 e 5.
Assim, pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, o artigo 640º impõe-lhe um [tripartido] ónus processual cujo incumprimento determina, sem mais, a rejeição do recurso. Tal ónus apenas se mostrará cumprido, em conformidade com a interpretação resultante do AUJ n.º 12/2023, se o recorrente, nas conclusões do recurso, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e, não o fazendo nas conclusões do recurso, indicar nas alegações, de forma inequívoca, os concretos meios de prova que impõem uma decisão diversa da recorrida sobre tal matéria e também nas alegações indicar, de forma inequívoca, a concreta decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas6.
Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, como decidiu o mesmo aresto, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.
O recorrente que impugne a matéria de facto, para além do ónus da especificação dos concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados, deve, por outro lado, nos termos previstos no artigo 640º/1-b) e 2-a) do Código de Processo Civil, especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo de gravação nele realizada que imponham decisão diversa da recorrida sobre os concretos pontos da matéria de facto impugnada (ónus primário), devendo, neste caso e sob pena de rejeição do recurso nessa parte, na eventualidade de os meios probatórios invocados com fundamento do erro na apreciação das provas terem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (ónus secundário)7.
Tudo isto porque a faculdade de interposição de recurso não se destina a requerer ao tribunal de recurso que profira uma nova e segunda decisão sobre o objeto do processo, apreciando de novo a pretensão formulada pelo autor ou as questões levantadas por qualquer das partes, mas a apreciar da bondade da decisão a tal respeito proferida pelo tribunal a quo. Na verdade, o recurso, nesta parte, é um meio de impugnação de decisões judiciais com fundamento em ilegalidade ou em incorreção do julgamento de facto (o erro de facto que, em regra, diz respeito à livre apreciação da prova e à fixação dos factos materiais), constituindo um meio processual destinado a obter uma nova apreciação jurisdicional de certas decisões proferidas pelos tribunais. O objeto do recurso não é a questão julgada pela primeira vez em primeira instância, mas a decisão impugnada (que o recorrente pretende ver revogada e substituída por outra), não cabendo ao tribunal de recurso levar a cabo o reexame da controvérsia, mas antes e tão só, a reponderação da decisão recorrida8.
Por tal razão, deve o recorrente, ao impugnar concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo de gravação nele realizada que imponham decisão diversa da recorrida sobre os concretos pontos da matéria de facto impugnada, indicando com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, numa análise crítica que evidencie, de acordo com a livre apreciação da prova, o erro de facto em que incorreu o tribunal a quo9.
Neste sentido, como decidiu o AcSTJ de 30-11-2023 (rel. Cons. Manuel Capelo)10: «I - O cumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto prevenidos no art. 640 do CPC não dispensa a alegação das razões de discordância não bastando que o impugnante sustente que determinados factos provados deverão ser julgados provados ou vice versa, limitando-se a apontar para documentos ou para segmentos transcritos de depoimentos. II - A possibilidade de impugnação da matéria de facto por blocos de factos e blocos de meios de prova apenas deverá ser admitida quando o recorrente alegue ou seja manifesto que esse conjunto de factos (v.g. pelo seu número e natureza) e de meios de prova correspondem a uma mesma realidade factual que deverá ser julgada com os mesmos meios de prova (os mesmos segmentos sinalizados dos depoimentos das várias testemunhas e os mesmos documentos). III - A possibilidade de o julgador sem indicação das razões de discordância poder apreciar a impugnação da matéria de facto apenas é admissível quando, tendo sido concretizado o facto impugnado, o concreto meio de prova oferecido e identificado e a decisão diversa que se propõe, seja evidente, por configurar um erro, que do concreto segmento da prova em questão (testemunhal ou documental) no confronto com o julgamento que foi feito desse facto, outra deveria ser a decisão».
Devendo a impugnação ser precisa, clara e completa, devendo indicar quanto a cada facto impugnado os concretos meios de prova em que baseia a sua discordância, a indicação do “concreto meio de prova”, no que se refere às testemunhas, não é a transcrição de todo o depoimento, mas apenas o segmento decisivo e relevante quanto ao facto singular impugnado, do mesmo modo que, no que se refere aos documentos, não é apenas a identificação do mesmo, mas a indicação/transcrição do segmento do documento que releva para prova do facto impugnado. Deste modo, no seguimento do referido aresto, em contrapartida da obrigação de o tribunal ter que fazer a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), impende sobre o recorrente aquela outra de ter que enunciar sobre cada concreto facto impugnado os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa [não esquecendo a necessidade de o julgador perceber das alegações a análise (necessariamente crítica) que o recorrente faz, não bastando reproduzir um ou outro segmento dos depoimentos].
Explicitando o recorrente a sua discordância fundada nos concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados e nos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, as discrepâncias, insuficiências ou deficiências da prova produzida têm de resultar da forma e do conteúdo das alegações e das conclusões que fundamentam o recurso, no confronto com o resultado declarado pelo Tribunal a quo. Neste sentido, como decidido no referido acórdão, afirmar-se simplesmente que, com base nos mesmos elementos probatórios de que o tribunal se serviu, a decisão sobre o facto impugnado deveria ser diversa, poderá por vezes permitir ao Tribunal da Relação que se pronuncie sobre esse facto por ser evidente e manifesto pelo próprio meio de prova a discrepância. Porém, na maior parte das vezes, a indagação do desacordo sem enunciação das respetivas razões dificilmente permitirá ao julgador conhecer da impugnação. A impugnação não é uma possibilidade de o recorrente obter uma segunda convicção sobre o mesmo facto, identificando-o a ele e ao meio de prova, obrigando o juiz a ir à procura de eventuais razões de discordância que o recorrente não alegou. É pelo contrário a invocação de um erro sobre a matéria de facto com a indicação de qual é o facto, qual é o meio de prova, quais as razões de discordância e como deveria ser julgado11.
Trata-se de entendimento avalizado pelo Tribunal Constitucional, que, no Acórdão n.º 148/2025 (de 18-02-2025), decidiu que não é «inconstitucional o artigo 640.°, n.º 1, do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido de que ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto se impõe o ónus suplementar de, no tocante à especificação dos pontos de facto que considera mal julgados, referenciar cada um com o correspondente meio de prova que se indica para o evidenciar», porquanto, acordo com a jurisprudência pacífica do tribunal constitucional, «(…) a existência de ónus processuais civis, em especial os relativos à impugnação especificada da matéria de facto em recurso civil, não são desnecessários, excessivos ou desproporcionados, e visam antes “princípios de eficiência e celeridade que devem pautar o processo em causa”,(…) este ónus [de especificação dos pontos de facto e dos correspondentes meios de prova] diz respeito diretamente à dimensão material e essencial deste tipo de recursos (e não a qualquer obrigação secundária e formal a cargo das partes), permitindo que o tribunal superior possa aferir muito mais facilmente se se justifica (ou não) a modificação da matéria de facto constante da decisão recorrida, fazendo logo o confronto entre cada ponto da matéria de facto impugnada e os específicos meios de prova que justificam a sua alteração, sem o que se o tribunal recorrido se veria obrigado a debruçar-se sobre todos os meios de prova e aferir se deveriam – e em que medida – servir para reverter a decisão recorrida quanto à fundamentação da matéria de facto, propiciando, assim e ao restringirem e concretizarem o próprio objeto da cognição do tribunal ad quem, uma muito maior economia e celeridade processuais. Finalmente, e como já mencionado, não se trata de uma qualquer exigência formal ou secundária, nem se vendo que seja de difícil cumprimento pelos diversos sujeitos processuais (antes correspondendo à «responsabilidade que necessariamente cabe à parte recorrente»), dado que só se lhe impõe que, relativamente a cada ponto individualmente considerado da matéria de facto, indique os específicos meios de prova que impõem a sua modificação (impedindo que se possa, por exemplo, fazer uma impugnação em bloco ou que se limite a remeter para a totalidade desses meios de prova) (…)»12.
Não tendo o tribunal de recurso de efetuar um novo julgamento, mas apenas de reapreciar concretos pontos de facto alegadamente mal julgados, só com o cumprimento do referido ónus, levado às conclusões do recurso, se encontrará o tribunal de recurso em condições de analisar e verificar se efetivamente o tribunal a quo, perante a prova produzida, incorreu em erro de julgamento (na apreciação/valoração das provas e na formação e fundamentação da convicção) relativamente aos pontos de facto impugnados.
Delimitando as conclusões o âmbito do recurso, delas deve constar o respetivo objeto, também em matéria de impugnação da decisão de facto, seja quanto ao âmbito fáctico da impugnação recursória (concretos pontos de facto impugnados, por incorretamente julgados), seja quanto ao objetivo pretendido (indicação clara da decisão que, em concreto, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, os factos concretos que deverão, finalmente, ser julgados provados, não provados ou alterados/reformulados no seu conteúdo), de modo a que, ainda que em articulação entre alegação e conclusões, se reflita a análise crítica e contextualizada das provas, no seu confronto com a materialidade fáctica, deixando claro o caminho lógico/racional que tem de trilhar-se para chegar à diversa decisão pretendida13.
O recorrente tem que mostrar claramente em que consistiu o erro de julgamento e em que medida a leitura correta das provas impunha decisão diversa quanto aos factos impugnados, para o que não basta uma impugnação e análise genérica, antes se impondo uma apreciação critica dos meios de prova produzidos14, tendo em vista o objetivo pretendido com a impugnação do ponto de facto que se pretende ver alterado, sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto.
Com este enquadramento, analisando as conclusões do recurso, vejamos se a recorrente cumpriu com os ónus processualmente impostos e, na afirmativa, se os factos impugnados devem ser alterados nos termos propostos pela recorrente, analisando, para tornar mais clara a exposição, as conclusões apresentadas relativamente a cada facto impugnado.
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O tribunal julgou provado no facto 20º que: «Apresentando dificuldade e impossibilidade de entubação, apesar do recurso a tubos de diferentes diâmetros e do pedido de auxílio a outra colega, procedeu a 2R. Drª BB à reversão da técnica anestésica, despertando a paciente e optando pela não realização da intervenção cirúrgica programada, tal como ditam as leges artis».
A recorrente impugna tal facto alegando que o Tribunal a quo tinha que dar como provado quanto a este facto que: Foram realizadas pela 2.ª Ré BB várias tentativas de intubação orotraqueal com tubos de diferentes diâmetros, mas dado que a ventilação manual se realizava com alguma dificuldade a mesma optou por reverter a anestesia, acordar a doente e adiar a cirurgia programando-a para ser realizada posteriormente com intubação orotraqueal através do uso de fibroscópio.
Apreciando, o facto em causa corresponde ao facto 51º da contestação, em que os réus alegaram que «Apresentando dificuldade e impossibilidade de entubação, apesar do recurso a tubos de diferentes diâmetros e do pedido de auxílio a outra colega, procedeu a R. Dra. BB à reversão da técnica anestésica, despertando a paciente e optando pela não realização da intervenção cirúrgica programada, tal como ditam as “leges artis”».
Assim, a questão passa por saber se tal facto resultou ou não provado, devendo começar por dizer-se que a expressão «tal como ditam as “leges artis”», por consubstanciar uma conclusão (uma questão de direito), que só pode ser extraída em sede de direito, perante os factos provados não podia ter sido julgada provada.
Na verdade, em sede factual apenas pode ser dado como provado o procedimento médico efetuado nas circunstâncias concretas, ou seja, a concreta conduta do agente. Se a mesma viola ou não as leges artis da atividade de um médico (exercício da medicina) é uma conclusão a extrair na conjugação dos factos provados e das normas legais aplicáveis ao caso.
A expressão «leges artis» designa o conjunto de regras técnicas e deontológicas que orientam a atuação de um profissional (por exemplo, médico, engenheiro, advogado), servindo como critério jurídico de aferição da conformidade dessa atuação com o padrão de diligência exigível, pelo que, quando o tribunal aprecia se uma conduta observou ou não as leges artis, está a realizar uma valoração jurídica dos factos, isto é, a subsumir os factos provados ao conceito jurídico de atuação conforme ou desconforme às regras da arte.
Na matéria de facto devem constar apenas os elementos descritivos da conduta do agente (vg. os atos praticados, com que meios, em que circunstâncias e com que resultados). Já a conclusão de que esses atos violaram ou respeitaram as leges artis é uma qualificação jurídica desses factos, pertencente, portanto, à matéria de direito.
Em suma, a violação ou observância das leges artis não deve constar da matéria de facto de uma sentença, mas antes ser tratada na fundamentação jurídica, enquanto juízo normativo do tribunal sobre a conduta em análise.
Neste sentido, decidiu o AcSTJ de 01-10-2015 (rel. Cons. Maria dos Prazeres Beleza) que «I - Em acção de responsabilidade civil por acto médico, é insusceptível de servir de base à prova um quesito em que indagava se o exame tinha sido efectuado com respeito pelas leges artis, posto que não se identificam os concretos procedimentos e regras que teriam sido observados e dado que a resposta positiva ao mesmo implicaria o julgamento de uma questão de direito, sendo, por isso, acertada que se tenha por não escrita a resposta negativa que a ele foi dada, tanto mais que esta não implica que se tenha por demonstrada a inobservância dessas regras e procedimentos. (…)». E, no mesmo sentido, o AcRP de 24-02-2011 (rel. Des. Filipe Caroço): «I - Deve considerar-se não escrito o quesito formulado sobre a violação da leges artis própria do exercício da medicina, por constituir um conceito a preencher pela conduta do agente mediante a qualificação a efectuar em sede de apreciação dos correspondentes factos.(…)».
Assim, encerrando o facto em causa uma conclusão que não pode conter, independentemente do demais impugnado, deve considerar-se não escrito o inciso factual «tal como ditam as leges artis».
Relativamente ao demais, o tribunal fundamentou tal facto provado nos seguintes termos: «(…) A matéria objeto de produção de prova encontra-se delimitada e era, em traços largos, a questão de apurar se existiu alguma imperícia, negligência ou violação das regras médicas, por parte da 2R., e ainda se a alta médica concedida pela 1R à A. foi incorretamente concedida, e objeto de censura. Importava ainda apurar os danos sofridos pela A. em virtude do sucedido. E digamos que a prova foi clara, inequívoca sem qualquer margem para dúvidas. A primeira questão a ter presente é que não se pode concluir que pelo facto de a entubação não ter sido possível, e ter causado danos na A., tenha só por esse motivo existido negligência ou violação das regras médicas. O raciocínio da A. consiste, cremos, em afirmar que dado que a entubação foi tentada algumas vezes (que nunca se apura) e parada sem sucesso, e que essas tentativas lhe causaram danos sérios então tal significa necessariamente que a médica que tentou a entubação agiu de modo negligente e com incúria a ponto de causar essas lesões. Porém não é o resultado final que pode permitir a conclusão da conduta ter sido incorreta. É que nesta “equação” entra o facto de a A. ter uma anatomia que se veio a revelar tornar impossível a entubação o que nunca era previsível suceder. Parece a A. querer sustentar a negligência no facto de as tentativas de entubação deverem ter parado antes de as lesões surgirem. Porém, à posteriori, depois de tudo sucedido, tal raciocínio é “fácil” de fazer. O que importa era apurar se no momento da execução do procedimento era previsível que a lesão tivesse a dimensão que veio a ter, pois só aí a médica, 2Rª deveria ter parado. Em suma: não é pelo resultado final que se pode concluir, sem mais, que existiu negligência médica. Era preciso apurar se algum procedimento médico foi incorretamente realizado, ou se a médica deveria ter agido de outro modo por forma a evitar a lesão sofrida. E claramente TODAS as respostas probatórias foram negativas quanto a tal. Ficou inequívoco de toda a prova dos autos que não existiu negligência médica durante a entubação, e as leges artis foram observadas. Vejamos então. Existiu um processo crime intentado pela A., decorrente dos mesmos factos, e no âmbito do mesmo foi efetuada uma perícia médica. Existiu ainda uma queixa na Ordem dos médicos contra a 2R. (cujo relatório do conselho disciplinar regional do Sul consta de fls. 31 a 47) e o mesmo foi antecedido de parecer do colégio da especialidade de anestesiologia, e dos mesmos resulta claramente que não existiu violação das regras médicas durante a entubação, mas apenas não foi preenchida a ficha/registo do acto anestésico realizado e o acto de consentimento informado. O procedimento em si, porém, foi por unanimidade considerado que foi corretamente efetuado. A consulta técnico-científica responde com pormenor e de forma muito clara ao sucedido. De fls. 105 a 107 dos autos é respondido que “não parece haver violação das “leges artis” por parte da 2R. (quesito l). A A. sustentava ainda a responsabilidade civil dos demais médicos, e do 1R hospital em ter concedido incorretamente a alta médica, quando a sua situação não era a de ser concedida alta mas sim de continuar internada. E a tal o quesito h) (fls. 107) refere que foi correta a decisão de atribuir a alta por existir estabilidade hemodinâmica e respiratória, e teve alta com TAC de controlo programado para o fim dessa semana e consulta de revisão para sete dias depois. Mais se refere no quesito J) que nenhum clínico omitiu os procedimentos a adotar nem deveria ter adotado outros. Em 2021 foi efetuado o relatório final do conselho disciplinar regional do sul, a fls. 386 a 396, assinado por 17 médicos, e que nas suas conclusões (conclusão 2) refere: “considera-se correta e dentro das leges artis a conduta profissional da Drªa BB no período perioperatório, nomeadamente na decisão e gestos técnicos da reversão da técnica anestésica, garantindo a segurança da paciente”. A fls. 395 o relator afirma no ponto 8 e 9 que lendo de fio a pavio todos os registos clínicos, declarações e alegações e pareceres médicos e não se vislumbra indício de erro censurável, negligência ou má pratica médica. Por fim, e dado que a A. pretendeu o alargamento da perícia, o Conselho médico legal em 2024 voltou a responder a esta temática de forma clara e inequívoca (a fls. 403 a 405 dos autos), e sustentam que as complicações sofridas pela A. “não são necessariamente consequência de imprudência ou imperícia”, ponto 1., e no ponto 3., que é pouco provável que a causa da entubação mal sucedida tenha sido má técnica ou mau posicionamento, e finalmente no ponto 5 que nada levava a crer que tal se pudesse verificar porque não existia clinica sugestiva de complicações a nível brônquico, esofágico ou de outra natureza. Numa palavra, diversos médicos, conselhos de especialidade, regional e conselho médico legal, todos compostos por múltiplos médicos, afirmam que não existem elementos que permitam concluir ter havido negligência ou má pratica médica por parte da 2ªR. dos demais médicos, nem que a alta tenha sido incorretamente dada. A prova pericial com força suprema (até porque efetuada por várias dezenas de médicos) responde a tal de forma inequívoca, não abrindo margem para qualquer dúvida (e considerando que não assistiu ao procedimento naturalmente pelo que apenas podem supor o que sucedeu da análise dos elementos clínicos). Porém ainda assim a A. tenta a prova testemunhal para tentar infirmar estes pareceres médicos. Mas nem assim consegue que algum médico pudesse afirmar ter havido negligência médica. Todos os médicos ouvidos em julgamento foram trazidos aos autos pela A.. As testemunhas são do processo, é certo, mas a A. fez questão de tentar infirmar a prova pericial com a inquirição de médicos. Porém nenhum pode afirmar a existência de negligência ou de violação de regras médicas. HH, que assistiu depois à A. no Hospital de Santa Maria afirma de modo claro que não viu indícios de entubação negligente, nem foi mal dada a alta com os elementos que existiam na altura. Mais refere que as dores de garganta, dificuldade em engolir são normais após o procedimento de entubação, e o recomendado é, confirma, tratamento conservador e deixar o organismo recuperar (o que se deu por provado em 36 e 37 dos factos provados). GG, médica dos SAMS, não viu a nota de alta, e vê apenas a A. uns dias depois da alta, e pede logo uma tomatologia encaminhando depois para o Hospital São Francisco Xavier. O único médico que prestou depoimento tentando imputar responsabilidades médicas à 2R. e ao hospital pela alta efetua afirmações que são de todo incompreensíveis. II tem um depoimento “a pedido” e sem dúvida “sob encomenda”, mas nada informado e facilmente desmontável. Vejamos. Desde logo importa ter presente que este médico NUNCA analisou a A. ao longo dos anos, nem sequer os exames médicos da A.. O que faz é ler o relatório que o colega efetuou e tentar reproduzir ou adivinhar o que o mesmo pretendeu dizer. Faz, porém, afirmações que revelam que tudo desconhecia e por isso mesmo referimos que não está informado. Desde logo afirma que não existiu consulta pré anestésica e que se a mesma tivesse existido não teria havido a lesão. Porém, cremos que aqui leu mal o que o colega escreveu. A fls. 23 dos autos, escreveu que da análise do relatório clínico do Hospital da Cruz Vermelha, “a doente não apresentava antecedentes nem alteração anatómica que se enquadrasse no tero “via aérea difícil”. O mesmo afirma a consulta técnico científica (fls. 105 dos atos) onde existe um registo de enfermagem e o registo dos antecedentes pessoais pelo que tal foi avaliado. Depois este médico afirma que a tentativa de entubação devia ter tentado à terceira tentativa. Questionado sobre quantas terão sido tentadas este afirma que mais de três. E como sabe isso?! Afirma que supõe, pois no relatório afirma-se “múltiplas” tentativas, e múltiplas foram mais de três seguramente. Por fim afirma que a alta foi incorretamente dada por não existir um estudo dos motivos do pneumotórax. (porém o relatório refere a fls. 20v ds autos que o fez, mas não identificou a laceração, o que sabemos ter sucedido por não ser visível à data a sua dimensão). Na verdade nunca viu sequer a nota de alta. Não sabia o que da mesma constava, e, mais grave, não sabia a situação clínica da A. aquando da sua concessão. Numa palavra, tudo no depoimento desta testemunha raia o desconhecimento mas que ainda assim faz questão de afirmar responsabilidades sem ter qualquer elemento clinico a sustentar o que afirma. Uma nota final para referir que o colega que efetuou esse “parecer” – JJ – sustentava na altura em que o fez, a fls. 23., que “não é razoável aceitar que o doente simplesmente tem uma via aérea difícil apenas porque a entubação foi mal sucedida”. Porém, é de notar que uns meses depois quando a A. pretendia ser operada no hospital de Santa Maria novamente existiram novamente dificuldades de entubação e a mesma não foi realizada. E tal já depois de a A. saber que tinha essa dificuldade, mas ainda assim foi novamente tentada sem sucesso. Tal foi a prova inequívoca que a A. tem uma via aérea difícil, o que à data da intervenção em apreço era totalmente desconhecido por todos. Finamente KK, médica anestesista, foi chamada pela 2R. durante o procedimento, para que a ajudasse a intubar, e tentou, mas também não conseguiu, pois não se via bem, pelo que chegaram à conclusão que não ia ser possível. E foi por via do seu depoimento e da conjugação com a prova pericial que se deu por provado o facto assente em 20. E o seu depoimento confirmou a prova que a 2R teve o cuidado de pedir auxílio, e que medicamente tudo foi feito para tentar realizar o procedimento e cessado o mesmo quando se viu que a sua realização não era viável.» - sublinhados nossos.
Tendo em consideração que o facto em causa foi alegado pelos réus, a análise feita pelo tribunal cingiu-se ao alegado pelos réus, sendo manifesta a correspondência entre o alegado e o provado, pelo que, sem prejuízo de resposta restritiva ou explicativa, o tribunal não podia julgar factos não alegados naquele facto, como sejam os não incluídos e pretendidos pela autora. Por outro lado, a análise da prova produzida a este respeito, como refere a sentença recorrida, na conjugação da prova pericial produzida com o depoimento prestado pela testemunha KK, que presenciou os factos (estava perto e foi chamada para prestar auxílio à colega) e, de forma coerente, pormenorizada e equidistante, os confirmou, impõem confirmação da decisão.
Neste sentido, a testemunha em causa referiu, no que releva, que «fui chamada à sala (…) já estava anestesiada (…) eu estava em presença, próxima do bloco operatório e a Dr. BB pediu para me chamar, para lhe dar uma ajuda, porque estava com dificuldade em entubar a doente; E eu fui, como era hábito entre nós anestesistas, somos solidários, e quando um colega nos chama vamos; ela inteirou-me rapidamente o que é que é que se passava, imprevisível, uma entubação difícil, mas que se verificou (…) era imprevisível uma entubação difícil, era uma pessoa com uma anatomia nada de especial, ela tinha feito uma ou duas tentativas e não conseguiu; estava com dificuldade, eu estava próxima e pediu-me ajuda e fiz a minha tentativa (uma vez); verifiquei que não havia maneira fácil como a entubar e acabei por sair; a decisão dela deve ter sido adiar, protelar a intervenção cirúrgica, a doente acabou por sair da sala». Esclareceu que o procedimento é visual; que há situações em que é impossível fazer uma entubação sem o fibroscópio; que para este caso não havia nenhum traço anatómico que fizesse prever uma entubação difícil; a consulta de anestesia (em que se vê a doente e se faz o exame visual da boca e garganta) dava uma doente em que não era previsível a entubação difícil que veio a verificar-se; que não são feitos exames prévios, que o procedimento é de análise visual; que no local a depoente não viu nada, porque a doente já estava anestesiada, mas que não viu nenhuma anatomia especial e que nada fazia prever a entubação difícil; esclareceu finalmente que não sabe quantas tentativas de entubação a colega tinha feito; que quando chegou a doente estava aparentemente bem; que fez a sua tentativa; a colega terá feito uma ou duas tentativas antes de ela chegar; esclareceu que ela e a colega chegaram à conclusão que não era possível entubá-la e que, por isso, saiu da sala; que o procedimento cirúrgico não se chegou a começar; que não sabe se a colega fez mais tentativas depois de ela sair; e que o adiamento do procedimento cirúrgico é uma decisão da anestesista.
Tudo isto se encontra em consonância com as referidas perícias e documentação clínica/médica, com particular realce para as perícias médico-legais efetuadas pelo Instituto Nacional de Medicina Legal (as duas consultas técnico-científicas – no processo crime e nos presentes autos), onde se pode ler, além do mais, o seguinte:








Deste modo, respeitando o facto provado a alegação feita pelos réus na sua contestação e encontrando-se em consonância com a prova produzida, deve a impugnação, nesta parte, improceder, sem prejuízo de se considerar não escrita o inciso final nos termos suprarreferidos.
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Pretende a recorrente ver julgados provados os factos não provados n.ºs 1 a 25 e que são os seguintes:
1. Por insistência da Autora, foi marcada uma consulta de otorrinolaringologia, que ocorreu a 29 de Novembro de 2012, cuja avaliação não revelou alterações assinaláveis de hipofaringe, cordas vocais livres e simétricas, indicando a presença de inflamação nos tecidos, a dificuldade em abrir a boca e em engolir, por causa de hematomas nas paredes internas, e língua dormente;
2. Apesar de se continuar a queixar da persistência dos sintomas, dor de garganta, dificuldade em engolir e da fadiga extrema, a Autora teve alta hospitalar a 03 de Dezembro de 2012, com indicação que deveria fazer a sua vida normal;
3. Perante os danos resultantes da entubação mal sucedida a Autora não podia ter alta hospitalar e muito menos com a recomendação de fazer vida normal, designadamente quanto a esforços e a alimentação;
4. Discutido o caso com o Dr HH do Serviço de Cirurgia II a doente fez endoscopia digestiva alta que mostrou orifício de fístula com 4mm no EES, e abcesso sendo colocada sonda entérica até dia 3 de Janeiro de 2013;
5. Durante este internamento, a Autora iniciou quadro febril no dia 29 de Dezembro de 2012, com bicitopenia e com PCR 2.3, sendo transferida para isolamento e feita interrupção do tratamento por possível infecção viral em estudo;
6. Houve imperícia e imprudência nos procedimentos de entubação orotraqueal adoptados por aquela Ré BB que conduziram a uma complicação iatrogénica pneumotórax e derrame pleural à direita, enfisema subcutâneo e pneumomediastino e até à fratura de um dente anterior;
7. Durante sete dias, entre o dia 7 de dezembro de 2012 e o dia 14 a Autora esteva apenas a soro e do dia 14 de Dezembro até 2 de Janeiro de 2013 apenas podia ser alimentada por sonda;
8. Durante o internamento no hospital 1ªR, os 2º, 4º e 5 RR que assistiram medicamente a Autora, não detetaram a gravidade da complicação iatrogénica ocorrida, não identificaram a laceração ocorrida no brônquio nem a fístula esofágica e tinham elementos para a detetar;
9. Existiu uma falha de seguimento hospital no Hospital da Cruz Vermelha e na equipa médica que intervencionou a A.;
10. Logo após a alta médica do hospital da 1Rª, a A. teve muitos receios temeu pela sua própria vida e sobretudo não conseguia acreditar como é que, perante as suas queixas, tinha tido alta do Hospital da Cruz Vermelha;
11. O internamento no Hospital de Santa Maria foi muito doloroso, a Autora perdeu 10kg e ficou a pesar apenas 45kg, muito abaixo do índice de massa corporal desejado para a sua estatura;
12. A Autora ficou com limitações físicas pois até hoje nunca mais recuperou a sua massa muscular e todas as atividades são feitas com esforço e rapidamente provocam fadiga, o que lhe traz bastante desgosto;
13. Ainda hoje a Autora tem pesadelos com tudo o que passou;
14. A baixa médica da A., decorrente do sucedido, motivou perda de retribuição, no valor de 1642,80€, como implicou um retrocesso na sua carreira;
15. Durante este tempo a Autora esteve impedida de cumprir objetivos, tão importantes para o progresso na carreira de um bancário, o que determinou uma estagnação na carreira que muito dificilmente conseguirá recuperar;
16. A Autora foi confrontada com despesas médicas e medicamentosas que se cifram em 2378,14€;
17. A Autora teve ainda despesas a nível dentário, além do dente facturado durante a entubação mal sucedida, foi confrontada com uma alteração significativa do alinhamento do posicionamento dentário, isto porque devido ao período de internamento que ocorreu em consequência da alta indevida, a Autora não pode colocar as goteiras de contenção ao nível do maxilar superior nem a prótese removível ao nível do inferior.
18. Tal circunstância motivou novo procedimento dentário que lhe custou 3200,00€;
19. A entubação sob visão direta, por via endoscópica, deveria ter sido adotada pelo Hospital da Cruz Vermelha pela Ré BB perante as circunstâncias que verificou de entubação difícil;
20. A intubação mal sucedida só pode ter ocorrido por má técnica ou por mal posicionamento do laringoscópio, até porque consta do relatório do Hospital da Cruz Vermelha que as cordas vocais não foram visualizadas o que remete para uma manobra de intubação cega e por isso mal sucedida;
21. Ao perceber que não conseguia visualizar as cordas vocais, deveria ter solicitado a ajuda de outro profissional mais experiente, não sendo caso disso, ter à disposição fibroscópio;
22. Houve imperícia e imprudência ao insistir cegamente várias vezes na intubação o que provocou complicação iatrogénica pneumotórax e derrame pleural à direita, enfisema subcutâneo e pneumomediastino e ainda lascou um dente incisivo à Autora;
23. Acresce que, perante as diversas complicações que podem resultar de uma intubação mal sucedida, exigia-se que os Réus tivessem avaliado a existência ou não de todas as possíveis complicações, o que não ocorreu;
24. Não foram realizados todos os procedimentos necessários, os Réus não avaliaram a existência de lesões nem nos brônquios nem no esófago, o que era compatível com as queixas e sintomas que a Autora exibia;
25. Pelo contrário, cometeram erro de diagnóstico nas lesões provocadas pela intubação mal sucedida e enviaram a Autora para casa com um tratamento conservador que poderia ter colocado a sua vida em risco, se ela só voltasse à consulta com o 3.º Réu no dia 10/12/2012 como indicado.
O tribunal que proferiu a decisão recorrida fundamentou a condução de tais factos para os não provados nos seguintes termos: «Não se prova que a consulta de otorrinolaringologia que a própria A. assinala como não tendo revelado alterações assinaláveis, tenha sido marcada por insistência da A.. E não se prova não apenas porque nenhuma prova foi feita nesse sentido, como ainda raia o absurdo serem marcados exames e consultas médicas apenas porque os doentes insistem. O que se deu por não provado em 1 dos factos não provados. Porém também não se prova que tenha sido por indicação do R. Dr. EE, embora se saiba que foi pedido um RX ao tórax na manhã do dia 29/12/2012, tendo sido a A. avaliada em contexto de consulta de Otorrinolaringologia, pelo Dr. FF. Os registos clínicos do hospital de Santa Maria de dezembro de 2012 não foram juntos aos autos (só os do hospital são francisco) e a A. sustenta uma série de atos médicos e relatórios com base no “parecer” junto por um médico a seu pedido, mas sem nunca serem juntos os ditos atos médicos. Do depoimento de HH concluiu-se que a TAC realizada revelou lesão, e isso mesmo se dá por provado em 21 dos factos provados, sendo tudo o mais que carecia de suporte clínico dado por não provado, exceto o que se consegue retirar dos pareceres médicos. Também destes se comprova as lesões médicas sofridas que se deram por provadas em 24 e 25 dos factos provados. Não se apura qual o valor de baixa médica que a A. recebeu durante a mesma apenas se sabendo o valor de subsídio de almoço que deixou de receber. Porém o subsídio de almoço só é devido para ajuda de custo a quem trabalha, e não é encarado como retribuição. Assim se deu tal por não provado assim como que a carreira da A. tenha sido prejudicada por tal pois como se viu a sua notação já era de “adequada” antes da operação e manteve-se inalterada. As faturas das despesas médicas não ascendem ao valor alegado, e da sua análise nem se percebe qual o valor que a A. despendeu com as mesmas. Por seu turno, a fatura do aparelho dentário não aparenta qualquer ligação com os dentes lascados, pois como se lê do mesmo (fls. 29v) já o tinha colocado, já tinha feito o tratamento e cumpria alterar o alinhamento. Donde se deu tal por não provado. Em 2014 a A. voltou a ser operada e deu-se por provado exatamente o que consta da declaração do pneumologista, de fls. 47v.».
Alega a recorrente que o facto não provado 1 resultou provado «pois consta do Relatório da 1ª Ré HCVP, fls …. “ a doente foi encaminhada para consulta de otorrinolaringologia – Dr FF – cuja avaliação através de larigoscopia endoscópica não revelou aletrações assinaláveis de hipofaringe... vestíbulo larígeo...cordas vocais móveis e simétricas...seios piriformes livres. À palpação cervical, crepitação na região/fossa supraclavicular direita, compatível com enfisema cutâneo»; e que «Também no relatório da Perícia Técnico Cientifica, fls 100 e ss, pág 1, último parágrafo e pág 2, 1.º parágrafo, se alude a esta consulta».
A matéria de facto causa, tendo correspondência com o alegado no artigo 9º da petição inicial, resulta não provada por não ter sido feita prova de que tal consulta tenha sido feita a insistências da autora. No entanto, os referidos elementos de prova (documental e pericial) permitem julgar provado que «Foi marcada uma consulta de otorrinolaringologia, que ocorreu a 29 de novembro de 2012, cuja avaliação através de laringoscopia endoscópica não revelou alterações assinaláveis de hipofaringe e cordas vocais livres e simétricas», mas não permitem julgar provado que «indicando a presença de inflamação nos tecidos, a dificuldade em abrir a boca e em engolir, por causa de hematomas nas paredes internas, e língua dormente».
Assim, deve manter-se o julgamento de não provado que:
«Foi marcada uma consulta de otorrinolaringologia por insistência da autora (…) indicando a presença de inflamação nos tecidos, a dificuldade em abrir a boca e em engolir, por causa de hematomas nas paredes internas, e língua dormente»;
E deve julgar-se provado que: « Foi marcada uma consulta de otorrinolaringologia, que ocorreu a 29 de novembro de 2012, cuja avaliação através de laringoscopia endoscópica não revelou alterações assinaláveis de hipofaringe e cordas vocais livres e simétricas».
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Relativamente ao facto não provado 2 [«Apesar de se continuar a queixar da persistência dos sintomas, dor de garganta, dificuldade em engolir e da fadiga extrema, a Autora teve alta hospitalar a 03 de Dezembro de 2012, com indicação que deveria fazer a sua vida normal»], alega a recorrente que o mesmo tinha que ser dado como provado porque o mesmo coincide com a nota de alta dia 03/12/2012 (fls 97), dada como reproduzida no Facto Provado 5.
Verifica-se que o tribunal julgou provado em 5. que «à autora foi dada alta a 03/12/2012 nos termos que consta na nota de alta de fls. 97, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido». No entanto, analisando o referido documento15, verifica-se que a autora teve alta apesar de continuar a queixar-se das dores de garganta e da dificuldade em engolir, sem que se prove o demais alegado pela autora.
Assim, impõe-se julgar parcialmente procedente a impugnação nesta parte, devendo o facto provado n.º 5 passar a ter a seguinte redação:
«Apesar de continuar a queixar-se de dor de garganta e dificuldade em engolir, perante a boa evolução das queixas, foi dada alta à autora no dia 03/12/2012, com as seguintes indicações: - Tem consulta maraca do o Dr. CC no dia 10 de dezembro; - Deve realizar TAC de controlo no final da semana; - Tem os contactos do Dr. CC caso necessite ou haja alguma degradação do seu estado clínico; - Deve apresentar-se no Hospital da Cruz Vermelha se houver agravamento da situação clínica»;
Passando o facto não provado 2 a ter a seguinte redação: «Apesar de se continuar a queixar de fadiga extrema (…) com indicação que deveria fazer a sua vida normal».
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Conclui, também, a recorrente que o tribunal devia ter julgado provado que: i. A 2.ª Ré foi sancionada em advertência disciplinar pela Ordem dos Médicos por existir omissão quanto a peças fundamentais no registo clínico da Autora; ii. Do processo clínico no hospital da 1.ª Ré da Autora não consta o registo da consulta pré-anestésica, do pré-operatório bem como dos exames e meios complementares de diagnóstico realizados; iii. A Autora não foi informada dos riscos de um procedimento de entubação.
No entanto, tendo em consideração os factos não provados pelo tribunal a quo, verifica-se que tal factualidade não consta entre os factos não provados, mas também, analisando a petição inicial, que a autora nem sequer alegou tais factos (como factos integrantes da causa de pedir).
Deste modo, estando em causa factos que não foram alegados pela autora, não tinha o tribunal que proferiu a decisão recorrida como julgá-los provados (ou não provados). Consigna-se, a este respeito, que a materialidade referida em iii., não tendo sido alegada, traduzindo uma ampliação da materialidade fundamentadora da causa de pedir (violação do dever de informação – consentimento informado), nunca poderia ser julgada pelo tribunal sem a prévia alegação da parte interessada (cfr. artigo 5º/1 do Código de Processo Civil). E, por outro lado, que a materialidade referida em i. e ii., podendo consubstanciar factos instrumentais (cfr. artigo 5º/2 do Código de Processo Civil), também só deveria ter sido julgada provada se o juiz do processo os considerasse relevantes para a decisão da causa, não tendo o tribunal recorrido considerado os mesmos relevantes para a decisão da causa e não tendo também a recorrente fundamentado a relevância de tais factos para a decisão final.
Deve dizer-se, em todo o caso, que os factos alegados pela autora, nos termos em que pretende vê-los julgados provados, nunca poderiam ser julgados provados. Na verdade, relativamente ao referido em i., estando documentado que a 2ª ré foi condenada no processo disciplinar, resulta também demonstrado desse processo disciplinar que a sanção aplicada não teve como fundamento a violação das leges artis, mas apenas a violação do dever de documentação/registo dos atos médicos e do dever de registo do consentimento informado. E, por outro lado, relativamente ao referido em ii., estando em causa um facto negativo, os meios de prova referenciados pela autora não permitem sustentar tal facto (apesar do que refere o processo disciplinar, a autora não diligenciou pela junção aos presentes autos de todo o processo clínico).
Assim, não podem tais factos ser considerados pelo tribunal.
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Entramos, depois, num campo das alegações/conclusões em que a autora não cumpre o ónus de impugnação e de especificação dos concretos factos (não provados), com indicação do facto que deverá ser julgado provado, em consonância com determinados meios de prova, que também não indica.
Tal como resulta das conclusões apresentadas, a autora impugna por atacado os factos não provados 3 a 25, de uma forma genérica e conclusiva, sem observância mínima do ónus de impugnação imposto, mesmo com recurso ao conteúdo das alegações [desde logo, tendo por referência a afirmação da autora de que «Nunca podia a douta sentença dar como não provados os Factos Não Provados com os números 3, 6, 8, 9, 19, 20 21, 22, 23, 24 e 25 porquanto de toda a análise da situação da Autora os mesmos resultam demonstrados, quer por documentos quer por prova testemunhal» - acabando na alegação subsequente por atacar de uma forma genérica e conclusiva a fundamentação e convicção do tribunal a quo] – ficando por perceber, facto a facto, qual o facto que deveria ter sido julgado provado e em que meios de prova se funda (a impugnação de cada um dos factos).
Na verdade, como acima referimos, o ónus de impugnação previsto no artigo 640º do Código de Processo Civil, não se considera cumprido se o recorrente não especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, não sendo possível alcançar a decisão a proferir relativamente a cada um dos mais de 20 factos, nem dos meios de prova que imponham tal decisão, mesmo com a análise das alegações apresentadas, pelo que, sob pena de violação dos princípios do dispositivo e do contraditório, se impõe a rejeição do recurso nessa parte.
Como acima referimos, no seguimento do referido acórdão do STJ, afirmar-se simplesmente que, com base nos mesmos elementos probatórios de que o tribunal se serviu, a decisão sobre o facto impugnado deveria ser diversa, poderá por vezes permitir ao Tribunal da Relação que se pronuncie sobre esse facto por ser evidente e manifesto pelo próprio meio de prova a discrepância. Porém, na maior parte das vezes, a indagação do desacordo sem enunciação das respetivas razões dificilmente permitirá ao julgador conhecer da impugnação. A impugnação não é uma possibilidade de o recorrente obter uma segunda convicção sobre o mesmo facto, identificando-o a ele e ao meio de prova, obrigando o juiz a ir à procura de eventuais razões de discordância que o recorrente não alegou. É pelo contrário a invocação de um erro sobre a matéria de facto com a indicação de qual é o facto, qual é o meio de prova, quais as razões de discordância e como deveria ser julgado.
Dizer [nas alegações/conclusões do recurso] que uns factos provados deveriam ser julgados como provados ou vice versa não é, como vimos, enunciação das razões do erro, mas sim o resultado que se pretende [o recorrente não alegou as razões da sua discordância]. (…) O legislador indicou que o impugnante não deve limitar-se a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda ou parte da prova produzida em primeira instância e daí que há muito o STJ se pronuncie no sentido de não estar cumprido o ónus se o apelante, nas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.
Uma vez que a impugnação, nesta parte, não foi feita facto a facto, mas sim em bloco, estando em causa um conjunto de factos impugnados que têm subjacentes realidades diversas, sujeitas a meios de prova diversos, não estão reunidas as condições para este tribunal fazer um reexame dos concretos factos impugnados. Como se decidiu no mencionado aresto, a imposição da indicação precisa dos meios de prova que devem conduzir à pretendida modificação dos factos concretamente impugnados deve estar presente quer a impugnação se realize facto a facto, quer seja aportada a conjunto de factos com a mesma natureza temática e servida pelos mesmos meios probatórios. O que não pode é, como no caso em presença, pretender-se o um novo escrutínio indiscriminado e global da factualidade subjacente à causa.
Na verdade, o tribunal de recurso não tem que efetuar um novo julgamento, mas apenas de reapreciar concretos pontos de facto alegadamente mal julgados, pelo que só com o cumprimento do referido ónus, levado às conclusões do recurso, se encontrará em condições de analisar e verificar se efetivamente o tribunal que proferiu a decisão recorrida, perante a prova produzida, incorreu em erro de julgamento (na apreciação/valoração das provas e na formação e fundamentação da convicção) relativamente aos pontos de facto impugnados.
A lei comina a inobservância destes requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, sem possibilidade de suprimento, na parte afetada, nos termos do artigo 640º/1 Código de Processo Civil, motivo pelo qual se rejeita o recurso nesta parte.
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C. Factos provados.
Alterada a redação dos factos não provados 1 e 2 nos termos supra expostos [1. «Foi marcada uma consulta de otorrinolaringologia por insistência da autora (…) indicando a presença de inflamação nos tecidos, a dificuldade em abrir a boca e em engolir, por causa de hematomas nas paredes internas, e língua dormente»; 2. «Apesar de se continuar a queixar de fadiga extrema (…) com indicação que deveria fazer a sua vida normal».] e rejeitada e improcedente a impugnação relativamente ao demais, são os seguintes os factos provados:
1. A Autora deu entrada no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa (HCVP), explorado pela 1.ª Ré, no dia 27 de novembro de 2012, para ali ser submetida a intervenção cirúrgica programada, concretamente cirurgia electiva, colecistectomia via laparoscópica, a realizar ainda naquele dia 27 de novembro;
2. A dita operação não foi efetuada na medida em que surgiram complicações na entubação orotraqueal;
3. Após a mesma a A. queixou-se e a resposta que obteve resumia-se a que os sintomas se iriam normalizar, e que tudo se devia às dificuldades surgidas durante a entubação mas numa questão de dias os sintomas começariam a diminuir;
4. Foi marcada uma consulta de otorrinolaringologia, que ocorreu a 29 de novembro de 2012, cuja avaliação através de laringoscopia endoscópica não revelou alterações assinaláveis de hipofaringe e cordas vocais livres e simétricas»;
5. A Autora persistiu nas suas queixas, sobretudo porque sentia um aumento gradual da dor, foi realizado, no dia 30 de novembro de 2019, TAC do pescoço e TAC torácico, cujo relatório revelou edema/hematoma do pescoço que se estendia para a cúpula pulmonar direita com algum ar, sem serem visíveis soluções de continuidade do esófago ou traqueia;
6. Apesar de continuar a queixar-se de dor de garganta e dificuldade em engolir, perante a boa evolução das queixas, foi dada alta à autora no dia 03/12/2012, com as seguintes indicações: - Tem consulta maraca do o Dr. CC no dia 10 de dezembro; - Deve realizar TAC de controlo no final da semana; - Tem os contactos do Dr. CC caso necessite ou haja alguma degradação do seu estado clínico; - Deve apresentar-se no Hospital da Cruz Vermelha se houver agravamento da situação clínica;
7. A autora dirigiu-se ao hospital São Francisco Xavier no dia 07/12/2012 tendo ficado internada nos termos que consta do relatório de urgência de fls. 13 a 15 dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
8. Em julho de 2013 no Hospital de Santa Maria durante os procedimentos de preparação para a intervenção a que a autora ia ser sujeita voltou a existir dificuldades técnicas na entubação pela que a mesma não foi operada, tudo em termos e condições que consta de fls. 15 vrs, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
9. No dia 6/12/2012, por alegada persistência da sintomatologia a A. recorreu a consulta de medicina interna com a Drª GG, tendo realizado, no dia seguinte, nova TAC torácica no hospital SAMS que revelou uma diminuição do pneumotórax e manutenção do pneumomediastino, nos termos que resulta da declaração médica dos SAMS de fls. 12 e 13 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
10. No dia 13/07/2016 foi efetuada consulta técnico científica relativa à situação em apreço, embora no âmbito do processo-crime que a aqui a autora intentou contra os réus, o qual consta de fls. 105 a 107 dos autos, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
11. Entre a 1ª interveniente Ageas e os RR existem contratos de seguro cobrindo a responsabilidade civil profissional dos 2º a 4º RR;
12. Quanto à 2ª Ré, Drª BB, trata-se do contrato de seguro com o número .............. de que é tomadora a 2ª Ré, sendo o respetivo capital seguro de €300.000 por sinistro, a que é aplicável uma franquia – parte da responsabilidade sempre a cargo do Tomador - de tipo 30, correspondente a 10%, dos danos correspondente a lesões materiais, com o mínimo de €125;
13. Ao contrato é aplicável a Condição Especial 21;
14. Entre a 1ª Interveniente e o 4R, foi celebrado um contrato de seguro com o número 0084.25966018 de que é tomador 4º Réu, e sendo o respetivo capital seguro de €300.000 por sinistro, a que é aplicável uma franquia – parte da responsabilidade sempre a cargo do Tomador - de tipo 30, correspondente a 10% dos danos correspondente a lesões materiais, com o mínimo de €125;
15. Ao contrato é aplicável a Condição Especial 21;
16. Aos contratos de seguro são aplicáveis as Condições Gerais juntas aos autos;
17. Entre a 2ª Interveniente Generali e a 1ªR., CVP – Sociedade de Gestão Hospitalar, S.A.., foi celebrado o contrato de seguro do Ramo Responsabilidade Civil Exploração, por via da apólice n.º ..., o qual se rege pelas respetivas Condições Particulares e Gerais juntas aos autos;
18. As garantias concedidas pelo contrato de seguro celebrado preveem então, como já se disse, a responsabilidade civil de exploração da segurada, com o “valor limite de responsabilidade da Seguradora o montante de Eur 498.797,90 por cada sinistro e por anuidade deste seguro”;
19. Mas “sem prejuízo dos seguintes sub-limites: - Eur 125.000 por sinistro com danos corporais; - Eur 10.000 por sinistros com danos materiais; - Eur 2.500 por danos causados a veículos estacionados no parque privativo do hospital”;
20. Mediante uma franquia contratual, sempre a cargo do tomador, no valor de “10% do valor do sinistro com um mínimo de Eur 249,40 em todo e qualquer sinistro causador de danos materiais”;
21. Apresentando dificuldade e impossibilidade de entubação, apesar do recurso a tubos de diferentes diâmetros e do pedido de auxílio a outra colega, procedeu a 2R. BB à reversão da técnica anestésica, despertando a paciente e optando pela não realização da intervenção cirúrgica programada;
22. No dia 8 de dezembro de 2012 a A. transita do Hospital são Francisco Xavier para o Hospital de Santa Maria cirurgia torácica do Hospital de Santa Maria;
23. Já neste hospital fez broncofibroscopia que mostrou lesão cicatrizada da parede posterior do brônquio principal direito a nível justa-cardinal e fez TC- Tórax;
24. Tem alta para domicílio, no dia 9 de janeiro de 2013, clinicamente estável, com indicação para re-observação em consulta externa com o Dr HH no dia 9 de Janeiro de 2013;
25. Em consequência da tentativa de entubação a Autora veio a ter uma complicação iatrogénica pneumotórax e derrame pleural à direita, enfisema subcutâneo e pneumomediastino e ainda lascou um dente incisivo à Autora;
26. Devido a estas lesões a Autora sofreu fortes dores após a intervenção e padeceu de uma recuperação dolorosa;
27. Em casa, após a alta do hospital 1ªR, a Autora não conseguia ter uma recuperação normal, não conseguia comer por ter muitas dores a engolir, tinha muita dificuldade em respirar, não dormia e sentia-se sempre cansada, sem capacidade para tratar de si;
28. A Autora sentiu-se de tal maneira perturbada pelo que achou ser uma falha de seguimento do Hospital da Cruz Vermelha e pela equipa médica que a intervencionou que teve mesmo medo de recorrer aquele hospital;
29. Quer física, quer emocionalmente, a Autora só sentia confiança de recorrer à sua médica particular, o que fez;
30. Durante o internamento no Hospital de Santa Maria a A. perdeu muito peso;
31. O sucedido conduziu a que a A. sentisse angústia e impotência, um stress emocional que ainda hoje está bem patente no seu dia-a-dia;
32. A A. sofreu de depressão grave de 2007 a 2009, tendo melhorado, e tendo depois vindo a piorar o quadro depressivo com o sucedido e voltado a aumentar a dose de medicação ansiolítica e antidepressiva;
33. Ainda hoje a A. receia entrar em hospitais e sente sempre desconfiança dos profissionais de saúde em virtude de tudo o que lhe aconteceu no Hospital da Cruz Vermelha;
34. A A. a Autora é bancária na instituição Caixa Geral de Depósitos, e esteve de baixa médica três meses após o sucedido;
35. No ano de 2014, a Autora foi submetida à intervenção cirúrgica que não se realizou no Hospital da Cruz Vermelha devido ao incidente, tendo sido declarado pelo médico pneumologista que foi entubada por via orotraqueal, com dificuldade técnica acrescida, tendo sofrido grave complicação com leak traqueal e medistinite e foi recomendada a entubação sob visão direta, por via endoscópica, e assim recomendada para a necessidade de futuras entubações;
36. A causa para a difícil entubação da A., é a própria garganta da A./condição anatómica pré-existente;
37. A dor de garganta após a entubação, é uma consequência normal decorrente da entubação;
38. Isto porque, os procedimentos de entubação traqueal difícil geram dor a deglutir e dor na garganta, optando-se por um tratamento conservador, deixando o organismo recuperar normalmente;
39. Foi pedido um RX ao tórax na manhã do dia 29/12/2012, tendo sido a A. avaliada em contexto de consulta de Otorrinolaringologia, pelo Dr. FF;
40. Tratamento conservador em termos clínicos significa, medicação e controle sem qualquer intervenção cirúrgica, e foi isso que foi prescrito à A;
41. No dia 30/11/2012 a A. realizou uma TAC cervical e torácica, sendo a A. também observada pelo R. Dr. DD que registou no Diário Clínico, o seguinte: “TAC revela edema/hematoma do pescoço que se estende para a cúpula pulmonar direita, com algum ar, sem serem visíveis soluções de continuidade do esófago ou traqueia. Para tratamento conservador e repetição de TAC dentro de uma semana para controle;
42. A A. iniciou terapêutica antibiótica, tendo realizado novo RX do tórax e análises laboratoriais no dia 1 de dezembro de 2012;
43. Nos dias 1 e 2 de dezembro de 2012, ainda internada a A. apresentou-se estável hemodinamicamente, sem dispneia e com saturações normais, sem necessidade de suplemento de oxigénio. Com edema cervical residual e estável. Mantinha queixas de odinofagia e dor hemitorax direito, omoplata e pirose (prescrito…). Realizado Rx tórax de controlo no dia 2 de Dezembro, com relatório “ (…)sem alterações, exceto manter pequeno derrame pleural”.
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D. Do direito.
A autora fundamenta a presente ação na responsabilidade civil de estabelecimento hospitalar e dos médicos réus e na consequente obrigação de indemnizar, enquadrando a responsabilidade de todos os réus na responsabilidade civil contratual, por estarem em causa atos médicos praticados no âmbito de uma intervenção programada e acordada com a autora16.
A responsabilidade contratual, nos termos dos artigos 798º e 799º do Código Civil, acaba por ter os mesmos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, prevista no artigo 483º/1 do Código Civil, tendo, assim, como pressupostos: a) a existência de um facto (ação/omissão) voluntário do devedor (que na responsabilidade contratual é o facto objetivo do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso do contrato; e que na responsabilidade extracontratual é o facto voluntário praticado/omitido pelo agente); b) a ilicitude do facto (ilicitude que, em sede contratual, corresponde ao “incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação”, ou seja, à relação de desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado; e que na responsabilidade extracontratual corresponde à violação de um direito ou interesse alheio); c) a culpa do devedor (a atuação pessoalmente censurável ou reprovável17, que em sede contratual, nos termos do artigo 799º, se presume, fazendo impender sobre o devedor o ónus da prova de que a falta de cumprimento da obrigação não procede de culpa sua – sendo a culpa apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso; e que na responsabilidade extracontratual, a não ser nos casos em que a lei expressamente consagra uma presunção de culpa, não se presume); d) a existência de danos; e) a existência de nexo de causalidade (adequada) entre o facto (e o dever violado) e dos danos ocorridos.
No domínio da responsabilidade contratual, o incumprimento do contrato (incluindo o cumprimento defeituoso) torna o devedor em responsável pelos danos decorrentes, em termos de causalidade adequada, a sua conduta.
Neste sentido, dispõe o artigo 798º do Código Civil, «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor», impendendo sobre o devedor, nos termos do artigo 799º/1 do Código Civil, ónus de provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua – sendo a culpa apreciada, de acordo com o n.º 2 do artigo 799º, nos termos aplicáveis à responsabilidade civil, ou seja, nos termos do artigo 487º/2 do Código Civil, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
Por outro lado, nos termos do artigo 800º/1 do Código Civil, «o devedor é responsável perante o credor pelos atos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor», de onde resulta que a ré HCV será sempre responsável (objetivamente, isto é, independentemente de culpa sua) perante a autora pelos atos/omissões (ilícitos e culposos) praticados (por ação ou omissão) pelos demais réus (médicos de profissão), no exercício das suas funções, ao serviço daquela, como se tais atos tivessem sido praticados por si (que figura como devedora na relação jurídica contratual)18.
O contrato subjacente à atuação dos réus é configurado pela lei como um contrato de prestação de serviços (de atos médicos), previsto nos artigos 1154º a 1156º do Código Civil, a que são extensíveis, para uns, as regras do contrato de empreitada ou, para outros, as regras do contrato de mandato - sendo que as regras do contrato de empreitada só devem ser convocadas quando o ato médico contratado pressupuser um determinado resultado (vg. no âmbito da medicina estética ou dentária), devendo, como regra, ser convocadas as regras do mandato19.
Relativamente à natureza da obrigação assumida, a nossa jurisprudência vem alertando para a necessidade de, em sede de qualificação da obrigação assumida pelo médico como de meios ou de resultado, se adotar uma aproximação casuística, que entre em linha de conta com a natureza e o objetivo do ato médico - se bem que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem sedimentando o entendimento de que, na generalidade dos casos, a execução de um contrato de prestação de serviço médico implica para o médico a assunção de uma obrigação de meios, ou seja, de que, em regra, o médico a só isto se obriga, apenas se compromete a proporcionar cuidados conforme as leges artis e os seus conhecimentos pessoais, vinculando-se somente a prestar assistência mediante uma série de cuidados ou tratamentos normalmente exigíveis com o intuito de curar20.
Tendo em vista a qualificação da obrigação assumida pelo médico, tal como se decidiu no citado AcSTJ de 18-01-2022, «se estivermos perante uma obrigação de meios, o médico responderá pela omissão ou pela inadequação dos meios utilizados aos fins correspondentes à prestação devida em função do serviço que se propôs prestar. Neste caso, caberá ao paciente «provar “a desconformidade (objectiva) entre os actos praticados e as leges artes, bem como o nexo de causalidade entre defeito e dano” (…). Feita essa prova, então sim, funciona a presunção de culpa, a impor ao R. [médico], como condição de libertação da responsabilidade, que prove que a desconformidade (com os meios que deveriam ter sido usados) não se deveu a culpa sua (por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados), mas já não, por exemplo, que o evento danoso se produziu por causa estranha à sua actuação e/ou qual tenha sido essa causa. Ao invés, se em causa estiver a prestação de um resultado (em que apenas se verifica o cumprimento integral da obrigação quando ocorre o resultado projetado pelas partes), recai sobre paciente o ónus da prova do vínculo contratual com o médico, dos factos demonstrativos do insucesso da terapêutica seguida, dos danos e da sua extensão, bem como do nexo causal entre a intervenção médico-cirúrgica e aqueles danos, recaindo sobre o médico-devedor, ante a presunção de culpa que decorre do artigo 799.º do Código Civil, o ónus da prova de que não decorre de culpa sua o insucesso da intervenção levada a cabo»21.
Descendo ao caso em análise, arrumando os factos por ordem cronológica, com relevo para a decisão, verifica-se que:
1. A Autora deu entrada no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa (HCVP), explorado pela 1.ª Ré, no dia 27 de novembro de 2012, para ali ser submetida a intervenção cirúrgica programada, concretamente cirurgia electiva, colecistectomia via laparoscópica, a realizar ainda naquele dia 27 de novembro;
2. Apresentando dificuldade e impossibilidade de entubação, apesar do recurso a tubos de diferentes diâmetros e do pedido de auxílio a outra colega, procedeu a 2R. BB à reversão da técnica anestésica, despertando a paciente e optando pela não realização da intervenção cirúrgica programada;
3. A dita operação não foi efetuada na medida em que surgiram complicações na entubação orotraqueal;
4. A causa para a difícil entubação da A., é a própria garganta da A./condição anatómica pré-existente;
5. Em consequência da tentativa de entubação a Autora veio a ter uma complicação iatrogénica pneumotórax e derrame pleural à direita, enfisema subcutâneo e pneumomediastino e ainda lascou um dente incisivo à Autora;
6. Após a mesma a A. queixou-se e a resposta que obteve resumia-se a que os sintomas se iriam normalizar, e que tudo se devia às dificuldades surgidas durante a entubação mas numa questão de dias os sintomas começariam a diminuir;
7. A dor de garganta após a entubação, é uma consequência normal decorrente da entubação;
8. Isto porque, os procedimentos de entubação traqueal difícil geram dor a deglutir e dor na garganta, optando-se por um tratamento conservador, deixando o organismo recuperar normalmente;
9. Devido a estas lesões a Autora sofreu fortes dores após a intervenção e padeceu de uma recuperação dolorosa;
10. Foi marcada uma consulta de otorrinolaringologia, que ocorreu a 29 de novembro de 2012, cuja avaliação através de laringoscopia endoscópica não revelou alterações assinaláveis de hipofaringe e cordas vocais livres e simétricas»;
11. Foi pedido um RX ao tórax na manhã do dia 29/12/2012, tendo sido a A. avaliada em contexto de consulta de Otorrinolaringologia, pelo Dr. FF;
12. A Autora persistiu nas suas queixas, sobretudo porque sentia um aumento gradual da dor, foi realizado, no dia 30 de novembro de 2019, TAC do pescoço e TAC torácico, cujo relatório revelou edema/hematoma do pescoço que se estendia para a cúpula pulmonar direita com algum ar, sem serem visíveis soluções de continuidade do esófago ou traqueia;
13. No dia 30/11/2012 a A. realizou uma TAC cervical e torácica, sendo a A. também observada pelo R. Dr. DD que registou no Diário Clínico, o seguinte: “TAC revela edema/hematoma do pescoço que se estende para a cúpula pulmonar direita, com algum ar, sem serem visíveis soluções de continuidade do esófago ou traqueia. Para tratamento conservador e repetição de TAC dentro de uma semana para controle;
14. Tratamento conservador em termos clínicos significa, medicação e controle sem qualquer intervenção cirúrgica, e foi isso que foi prescrito à A;
15. A A. iniciou terapêutica antibiótica, tendo realizado novo RX do tórax e análises laboratoriais no dia 1 de dezembro de 2012;
16. Nos dias 1 e 2 de dezembro de 2012, ainda internada a A. apresentou-se estável hemodinamicamente, sem dispneia e com saturações normais, sem necessidade de suplemento de oxigénio. Com edema cervical residual e estável. Mantinha queixas de odinofagia e dor hemitorax direito, omoplata e pirose (prescrito…). Realizado Rx tórax de controlo no dia 2 de Dezembro, com relatório “ (…)sem alterações, exceto manter pequeno derrame pleural”;
17. Apesar de continuar a queixar-se de dor de garganta e dificuldade em engolir, perante a boa evolução das queixas, foi dada alta à autora no dia 03/12/2012, com as seguintes indicações: - Tem consulta maraca do o Dr. CC no dia 10 de dezembro; - Deve realizar TAC de controlo no final da semana; - Tem os contactos do Dr. CC caso necessite ou haja alguma degradação do seu estado clínico; - Deve apresentar-se no Hospital da Cruz Vermelha se houver agravamento da situação clínica;
18. Em casa, após a alta do hospital 1ªR, a Autora não conseguia ter uma recuperação normal, não conseguia comer por ter muitas dores a engolir, tinha muita dificuldade em respirar, não dormia e sentia-se sempre cansada, sem capacidade para tratar de si;
19. A Autora sentiu-se de tal maneira perturbada pelo que achou ser uma falha de seguimento do Hospital da Cruz Vermelha e pela equipa médica que a intervencionou que teve mesmo medo de recorrer aquele hospital;
20. Quer física, quer emocionalmente, a Autora só sentia confiança de recorrer à sua médica particular, o que fez;
21. No dia 6/12/2012, por alegada persistência da sintomatologia a A. recorreu a consulta de medicina interna com a Drª GG, tendo realizado, no dia seguinte, nova TAC torácica no hospital SAMS que revelou uma diminuição do pneumotórax e manutenção do pneumomediastino, nos termos que resulta da declaração médica dos SAMS de fls. 12 e 13 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
22. A autora dirigiu-se ao hospital São Francisco Xavier no dia 07/12/2012 tendo ficado internada nos termos que consta do relatório de urgência de fls. 13 a 15 dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
23. No dia 8 de dezembro de 2012 a A. transita do Hospital são Francisco Xavier para o Hospital de Santa Maria cirurgia torácica do Hospital de Santa Maria;
24. Já neste hospital fez broncofibroscopia que mostrou lesão cicatrizada da parede posterior do brônquio principal direito a nível justa-cardinal e fez TC- Tórax;
25. Tem alta para domicílio, no dia 9 de janeiro de 2013, clinicamente estável, com indicação para re-observação em consulta externa com o Dr HH no dia 9 de Janeiro de 2013;
26. Em julho de 2013 no Hospital de Santa Maria durante os procedimentos de preparação para a intervenção a que a autora ia ser sujeita voltou a existir dificuldades técnicas na entubação pela que a mesma não foi operada, tudo em termos e condições que consta de fls. 15 vrs, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
27. No dia 13/07/2016 foi efetuada consulta técnico científica relativa à situação em apreço, embora no âmbito do processo-crime que a aqui a autora intentou contra os réus, o qual consta de fls. 105 a 107 dos autos, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
28. Durante o internamento no Hospital de Santa Maria a A. perdeu muito peso;
29. O sucedido conduziu a que a A. sentisse angústia e impotência, um stress emocional que ainda hoje está bem patente no seu dia-a-dia;
30. A A. sofreu de depressão grave de 2007 a 2009, tendo melhorado, e tendo depois vindo a piorar o quadro depressivo com o sucedido e voltado a aumentar a dose de medicação ansiolítica e antidepressiva;
31. Ainda hoje a A. receia entrar em hospitais e sente sempre desconfiança dos profissionais de saúde em virtude de tudo o que lhe aconteceu no Hospital da Cruz Vermelha;
32. No ano de 2014, a Autora foi submetida à intervenção cirúrgica que não se realizou no Hospital da Cruz Vermelha devido ao incidente, tendo sido declarado pelo médico pneumologista que foi entubada por via orotraqueal, com dificuldade técnica acrescida, tendo sofrido grave complicação com leak traqueal e medistinite e foi recomendada a entubação sob visão direta, por via endoscópica, e assim recomendada para a necessidade de futuras entubações.
Impendendo sobre a autora o dever de provar a atuação ilícita dos médicos que a assistiram e, assim, por via do preceituado no artigo 800º/1 do Código Civil, do hospital demandado22, e assentando a causa de pedir (apenas) no erro médico, impendia sobre a autora o dever de provar os concretos atos praticados/omitidos pelos médicos que a assistiriam e aqueles que, nas concretas circunstâncias, deveriam ter sido praticados pelos mesmos profissionais, em consonância com as regras da boa prática médica (as leges artis), de modo a concluir-se pela desconformidade entre a atuação dos médicos demandados e a atuação que se esperava, ou seja, o alegado erro médico (cuja culpa se presumiria) causador dos alegados danos.
Ora, analisando a factualidade provada, verifica-se que a autora provou os concretos atos médicos praticados naquelas circunstâncias, mas não provou quais eram os concretos atos médicos alternativos de acordo com as regras da boa prática médica.
Na verdade, provou-se que, estando em causa uma intervenção cirúrgica programada (cirurgia electiva, colecistectomia via laparoscópica), a médica anestesista que assistiu a autora nos trabalhos preparatórios da cirurgia se deparou com a dificuldade/impossibilidade inesperada de entubação orotraqueal da autora (apesar do recurso a tubos de diferentes diâmetros e do pedido de auxílio a outra colega), em virtude de uma condição anatómica pré-existente na garganta da autora, tendo sido em consequência dos atos médicos de entubação que a autora sofreu as lesões que alegou e se vieram a provar.
No entanto, não se provou (factualidade que, em bom rigor, nem sequer foi alegada) que concretos atos médicos, de acordo com as boas práticas médicas, foram omitidos e que se não tivessem sido omitidos permitiriam à médica anestesista ré percecionar a condição anatómica pré-existente na garganta da autora que iria dificultar/impossibilitar a entubação (e, assim, evitar as lesões causadas), ou seja, não se provou a desconformidade entre os atos praticados e os atos que eram impostos pelas leges artis.
Não basta, a este respeito, a prova de lesões no corpo ou na saúde da autora, porquanto, nos termos previstos no artigo 150º/1 do Código Penal, não se consideram ofensa à integridade física (aqui se incluindo as ofensas corporais e as ofensas na saúde) «as intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental». Importava a prova da desconformidade entre a intervenção feita pela médica anestesista e a imposta pelas leges artis (vg. uma lesão na integridade física que não decorra da intervenção indicada23 e levada a cabo de acordo com as boas práticas médicas, ou seja, decorrente do erro médico), prova que não foi feita.
A este respeito, indiciadores das boas práticas médicas seguidas pela médica anestesista são o facto de em julho de 2013 no Hospital de Santa Maria durante os procedimentos de preparação para a intervenção a que a autora ia ser sujeita voltaram a existir dificuldades técnicas na entubação pelo que a mesma não foi operada (tudo em termos e condições que consta de fls. 15 v.); e o facto de no ano de 2014 a Autora foi submetida à intervenção cirúrgica que não se realizou no Hospital da Cruz Vermelha devido ao incidente, tendo sido declarado pelo médico pneumologista que foi entubada por via orotraqueal, com dificuldade técnica acrescida, tendo sofrido grave complicação com leak traqueal e medistinite e foi recomendada a entubação sob visão direta, por via endoscópica, e assim recomendada para a necessidade de futuras entubações – factos estes ocorridos posteriormente à intervenção em causa nos presentes autos, com conhecimento das dificuldades de entubação orotraqueal devido à condição anatómica pré-existente da autora, e que, ainda assim, refletiram dificuldades semelhantes na entubação.
Ainda relativamente à assistência médica subsequente até à alta, também não se provou nenhuma desconformidade com as regras da boa prática médica. A este respeito, sendo inquestionável que o adiamento da cirurgia, depois daquela ocorrência inesperada, corresponde a uma boa prática médica, os factos provados descrevem pormenorizadamente os atos médicos praticados posteriormente até à alta da autora, ocorrida no dia 03/12/2012, não tendo a autora provado a desconformidade entre qualquer ato médico praticado/omitido e os atos médicos impostos de acordo com as leges artis.
Resulta ao invés provado que, cancelada a cirurgia, as dores de garganta e dores a deglutir eram uma consequência normal decorrente a entubação, mas que tais sintomas iriam diminuir e normalizar, tendo a equipa médica optado por tratamento conservador (medicação e controle sem qualquer intervenção cirúrgica), deixando o organismo recuperar normalmente; e que apesar de continuar a queixar-se de dor de garganta e dificuldade em engolir, perante a boa evolução das queixas, no dia 03/12/2012 foi dada alta à autora, com as seguintes indicações: - Tem consulta maraca do o Dr. CC no dia 10 de dezembro; - Deve realizar TAC de controlo no final da semana; - Tem os contactos do Dr. CC caso necessite ou haja alguma degradação do seu estado clínico; - Deve apresentar-se no Hospital da Cruz Vermelha se houver agravamento da situação clínica.
No entanto, nos dias que se seguiram à alta, a Autora não conseguia ter uma recuperação normal, não conseguia comer por ter muitas dores a engolir, tinha muita dificuldade em respirar, não dormia e sentia-se sempre cansada, sem capacidade para tratar de si; A Autora sentiu-se de tal maneira perturbada pelo que achou ser uma falha de seguimento do Hospital da Cruz Vermelha e pela equipa médica que a intervencionou que teve mesmo medo de recorrer aquele hospital; e, contrariando as indicações dadas no momento da alta, não contactou o médico assistente (Dr. CC), não se apresentou imediatamente no HCV e não compareceu na consulta agendada para dia 10 de dezembro, tendo ao invés procurado outros profissionais de saúde, sem que daqui resulte que os médicos que assistiram a autora no HCV, até ao momento da alta, tivessem praticado/omitido qualquer ato médico contrário às leges artis.
A respeito (do ónus) da prova da atuação ilícita, se bem que no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, decidiu o AUJ n.º 5/2025 do STA (DR, Iª Série, de 03/06/2025)24 que: «Em ação de responsabilidade civil por atos médicos praticados em unidade do SNS, sob a vigência da Lei n.º 67/2007, incumbe ao autor alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo causal. A ilicitude, nos termos do art.º 9.º, n.º 1 do RRCEE, abrange não só a violação de normas legais, mas também o incumprimento de regras técnicas ou deveres objetivos de cuidado. Em sede de erro médico, tal ilicitude resulta da inobservância das leges artis, aferidas segundo o estado da ciência médica ao tempo dos atos praticados, sendo a obrigação do médico de meios e não de resultado. A culpa é aferida pelo padrão de diligência exigível a um profissional zeloso, nos termos do art.º 10.º do RRCEE. (…) A mera ocorrência de lesão não implica, por si só, atuação ilícita, se não se provar violação das regras técnicas ou do dever de cuidado (…)».
Neste sentido, decidiu, também, o AcRL de 12-09-2024 (rel. Des. Adeodato Brotas): «1- A teoria da ilicitude da conduta enfatiza, ao contrário da orientação clássica, que a mera produção causal de um resultado proibido não chega para se afirmar a ilicitude, antes sendo imprescindível que esse evento se deva à violação da regra de conduta aplicáveis ao caso. 2- A jurisprudência vem entendendo que o médico, enquanto prestador de serviços que apelam à sua diligência e conhecimentos profissionais, assume uma obrigação de meios. Neste tipo de obrigações, o médico não responde pelo resultado, mas pela omissão ou pela inadequação dos meios utilizados aos fins correspondentes à prestação devida em função do serviço que se propôs prestar. 3- No que toca ao ónus de prova da ilicitude – diferentemente do que sucede com a culpa - vem sendo entendido que cabe ao paciente provar o incumprimento, pelo médico, das regras profissionais que sobre ele incidem. Isto é não basta ao lesado provar que não ficou em melhor estado de saúde ou que, por ventura esse estado se agravou; terá de provar que o médico não cumpriu os seus deveres de actuação técnica, não respeitou as leges artis».
Deste modo, impendendo sobre a autora o ónus da prova da prática de um facto ilícito pelos réus, não tendo feito tal prova, não podendo qualificar-se como ofensa à integridade física (no corpo ou na saúde) a intervenção e os tratamentos subsequentes indicados (segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina) e levados a cabo de acordo com as leges artis (por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental), improcede a sua pretensão - devendo a recorrente, atento o decaimento, ser condenada nas custas do recurso (cfr. artigo 527º/1 e 2 do Código de Processo Civil).
*
III – Decisão.
Em face do supra exposto, acordam os Juízes da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 6 de novembro de 2025.
Carlos Miguel Santos Marques
Cláudia Barata
Adeodato Brotas
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1. Em consonância com o preceituado nos artigos 608º e 609º, ex vi do 663º/2 do Código de Processo Civil, que veda ao juiz a possibilidade de condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir, apreciando todas as questões suscitadas pelas partes, mas também só as questões suscitadas pelas partes – excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não transitadas em julgado. De onde resulta, também, que as questões de mérito decididas pela 1ª instância e que não foram levadas às conclusões do recurso se devem considerar decididas, com esgotamento do poder jurisdicional quanto a elas, estando vedado o seu conhecimento ao tribunal de recurso.
2. Cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 8ª ed. Atualizada (2024), pgs. 163 a 166; Rui Pinto, in Manual do Recurso Civil, Volume I, 2025, pgs. 348 a 366; e Luís Filipe Espírito Santo, in Recursos Civis: O Sistema Recursório Português. Fundamentos, Regime e Actividade Judiciária, 2020, pgs. 7 a 13.
3. É este o entendimento sustentado de forma dominante na nossa doutrina e jurisprudência e que Abrantes Geraldes [in Recursos em Processo Civil, 8ª ed. Atualizada, 2024, pgs. 228 e ss.], depois de explicitar o sistema legal em vigor sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sintetiza nos seguintes termos: «a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões ; b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que no seu entender determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente aos pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; [...] e) O recorrente deixará expressa na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzida, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação por forma a obviar à interpretação de recursos de pendor genérico ou inconsequente.[...]».
4. Cfr. AcSTJ de 06-02-2024 (rel. Cons. Nelson Borges Carneiro), AcSTJ de 27-04-2023 (rel. Cons. João Cura Mariano), AcSTJ de 16-05-2018 (rel. Cons. Ribeiro Cardoso), AcSTJ de 11-03-2025 (rel. Cons. Henrique Antunes), António dos Santos Abrantes Geraldes (in Recursos em Processo Civil, 8ª ed. Atualizada, 2024, pg. 231). Cfr., ainda, Rui Pinto [in Manual do Recurso Civil, 2025, pgs. 292 e ss.], que adverte que o ónus de formulação de conclusões pode não se mostrar preenchido com a reprodução nas “conclusões” do corpo das alegações, podendo haver “conclusões” que não são conclusões (tendo que haver uma correspondência direta entre o conteúdo das alegações e as conclusões formuladas, sendo estas uma decorrência lógica e natural daquelas) e podendo até acontecer que falte a designação de “conclusões” ou estarmos perante uma repetição (de parte) das alegações e estarmos perante verdadeiras conclusões. Clarificando, «o que a lei pede – novamente apelando aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade – é que um juiz médio (mas também um recorrido médio) retire da leitura do recurso os fundamentos e a individualização do objeto recorrido. Não apenas fundamentos sem conclusões, ainda que repetidos à laia de conclusões (primeiro vício de falta absoluta); não apenas conclusões, sem fundamentos (segundo vício de falta absoluta). No primeiro vício, a reprodução integral e ipsis verbis das alegações não cumpre o ónus de formular conclusões – a menos que elas mesmas já contenham (antecipadamente) essas mesmas conclusões, sofrendo, então, do vício sanável da complexidade ou prolixidade (cfr. artigo 639º n.º 3); no segundo vício, se as conclusões do recurso versam ‘matéria não tratada nas alegações são totalmente irrelevantes` (…), pelo que o requerimento não contém conclusões». Consigna-se, ainda, que toda a jurisprudência citada na presente decisão, se outras referências, pode ser consultada no sítio www.dgsi.pt.
5. Na verdade, o despacho de convite ao aperfeiçoamento previsto no artigo 652º/1-a) do Código de Processo Civil tem em vista (apenas) o aperfeiçoamento das conclusões das alegações nos termos do n.º 3 do artigo 639º, ou seja, nos casos em que: a) as conclusões (de facto ou de direito) sejam deficientes, obscuras ou complexas; b) as conclusões (de direito) não tenham as especificações previstas no n.º 2 do artigo 639, ou seja: i. não indiquem as normas jurídicas violadas; ii. não indiquem o sentido com que, no entender do recorrente, deviam ter sido interpretadas e aplicadas; iii. não indiquem, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma que devia ser aplicada.
6. Nos termos fundamentados no mencionado acórdão uniformizador, «da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso. Quando aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso (…)».
7. Já o recorrido, por seu turno, nos termos previstos no artigo 640º/2-b) do Código de Processo Civil, independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, deve indicar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
8. Cfr. AcRC de 28-09-2022 (rel. Des. Maria João Areias).
9. O ónus de especificação dos concretos meios probatórios, de acordo com a jurisprudência pacífica dos nossos tribunais superiores, não se considera cumprido com a remissão para os meios de prova produzidos no processo, nomeadamente de determinado(s) depoimento(s), exigindo-se, ao invés, em consonância com os princípios estruturantes do processo (nomeadamente do dispositivo, da autorresponsabilidade probatória das partes e da cooperação processual) que o recorrente, tendo por referência determinado ponto de facto que teria sido julgado provado erroneamente, especifique quais os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa, indicando com exatidão as passagens da gravação dos depoimentos invocados que fundamentam o recurso. As passagens da gravação e não a referência genérica a determinado depoimento ou as referências ao início e termo de determinado depoimento. Cfr. AcSTJ de 03-10-2019 (rel. Cons. Rosa Tching): «I. Para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas alíneas a), b) e c) do nº1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. II. Na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. III. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso. IV. Tendo os recorrentes indicado, nas suas alegações de recurso, apenas o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas e das declarações de parte, sem acompanhar essa indicação de qualquer transcrição dos excertos das declarações e depoimentos tidos pelos recorrentes como relevantes para o julgamento do objeto do recurso, impõe-se concluir que os recorrentes não cumpriram o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos nº art. 640º, nº 2, al. a) do CPC, na medida em que, nestas circunstâncias, a falta de indicação das passagens concretas de tais excertos torna extramente difícil, quer a respetiva localização por parte do Tribunal da Relação, quer o exercício do contraditório pelos recorridos. V. Relativamente ao recurso da decisão da matéria de facto, está vedada ao relator a possibilidade de proferir despacho de aperfeiçoamento, na medida em que, em matéria de recursos, o artigo 652º, nº1, al. a), do Código de Processo Civil, limita essa possibilidade às «conclusões das alegações, nos termos do nº 3 do artigo 639º»; AcSTJ de 17-09-2024 (rel. Cons. Graça Amaral): «I - A exigência legal imposta ao recorrente de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação”, indicando “com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, traduz-se na necessidade de se assinalar as passagens relevantes do depoimento, pelo que não se satisfaz com o consignar o início e o termo de cada depoimento considerado relevante para a alteração da matéria de facto visada. IV – Não cumpre o ónus de especificação previsto na alínea b) do n.º1 do artigo 640.º do CPC, o recorrente que se limita a consignar a hora do início e do termo de cada depoimento, indicando uma súmula de excertos do teor de tais depoimentos»; AcSTJ de 16-01-2025 (rel. Cons. Emídio Santos): «I– Quando o meio de prova que o recorrente diz ter sido incorrectamente apreciado for uma prova gravada, não basta ao recorrente, para cumprir o ónus previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, alegar que esse meio de prova não tem o sentido e o alcance probatório que lhe foi dado pelo julgador. II - Cabe-lhe indicar as passagens em que se funda o seu recurso ou transcrever os excertos que considere relevantes». Cfr., ainda, o AcRC de 12-11-2014 (rel. Des. Luís Cravo). No entanto, como se decidiu no AcSTJ de 21-03-2019 (rel. Cons. Rosa Tching), «III. (…) enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso. IV. Tendo o recorrente, indicado, nas conclusões das alegações de recurso, o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas indicações com a transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso, tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos no artigo 640º, nº 2, al. a) do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto»; e o AcSTJ de 15-10-2024 (rel. Cons. António Magalhães): «I. Tendo o recorrente procedido a um resumo dos três depoimentos gravados (dois de parte, o maior de 49 minutos e o outro testemunhal, de 12 minutos de duração), em que funda o seu recurso, a falta de indicação exacta das passagens da gravação (apenas foi indicado o início e o termo) e a falta da transcrição directa dos depoimentos (ou dos excertos considerados relevantes) não são susceptíveis de inviabilizar a apreciação do recurso de impugnação, uma vez que não impedem o exercício do contraditório pela contraparte nem o exame do recurso pelo Tribunal da Relação. II. Como assim, e segundo um critério de proporcionalidade e de razoabilidade, não deve o recurso de impugnação da decisão de facto, fundado nesses depoimentos, ser rejeitado»
10. Cfr.https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7c663ca52c1c3f4180258a78005e53fe?OpenDocument.
11. Assim, «dizer [nas alegações/conclusões do recurso] que uns factos provados deveriam ser julgados como não provados ou vice versa não é, como vimos, enunciação das razões do erro, mas sim o resultado que se pretende [o recorrente não alegou as razões da sua discordância]. (…) O legislador indicou que o impugnante não deve limitar-se a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda ou parte da prova produzida em primeira instância e daí que há muito o STJ se pronuncie no sentido de não estar cumprido o ónus se o apelante, nas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna (…). Da jurisprudência deste tribunal, obtemos que quando a impugnação não tenha sido facto a facto mas sim por blocos de factos deverá, com base nas indicações fornecidas pelo recorrente e não da responsabilidade ou critério do julgador, decidir-se se esse conjunto de factos impugnados se refere à mesma realidade (que deverá ser enunciada) e se os concretos meios de prova indicados pelo recorrente são comuns a esses factos. Quando tal aconteça (e seja indicado) a impugnação poderá ser admissível (…) se os factos individuais do bloco se inserem, digamos assim, num facto maior da mesma natureza, respeitando a aspetos da mesma realidade e se os meios de prova, quanto a toda essa realidade concreta e concretizada são os mesmos. Em verdade nestas situações estamos ainda no domínio da impugnação de um único facto/realidade desmultiplicado em vários e cuja prova é servida pelos mesmos meios, conforme expressa indicação do recorrente. Não é o que ocorre no caso porque a recorrente não referiu que todos os factos impugnados como provados e não provados correspondiam (e não correspondem) à mesma realidade ou que os meios probatórios (com a devida concretização) eram os mesmos, não podendo, obviamente, tomar-se a não indicação como uma forma implícita de uniformização, ou seja, que se nada se disse todos os factos eram a mesma realidade e todos os meios de prova na sua extensão eram os mesmos. A imposição da indicação precisa dos meios de prova que devem conduzir à pretendida modificação dos factos concretamente impugnados, deve estar presente quer a impugnação se realize facto a facto, quer seja aportada a conjunto de factos com a mesma natureza temática e servida pelos mesmos meios probatórios. O que não pode é, como no caso em presença, pretender-se o um novo escrutínio indiscriminado e global da factualidade subjacente à causa. A recorrente alegou que os factos dados como provados em 1, 5, 6, 9, 10, 11, 18, 19, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 28,29, 30, 32, devem ser dados como não provados. E os factos não provados sob as alíneas c), d), e), f), h) e i) devem ser considerados provados. A seguir e sem discriminar refere que relativamente aos concretos meios probatórios que impõem diversa decisão, atente-se às declarações seguintes testemunhas, transcrevendo da pág. 5 à pág. 34 das suas alegações partes dos depoimentos de 8 testemunhas que identifica sem referir qual a parte de cada depoimento que corresponde em seu entender a cada facto impugnado e sem mencionar as razões de discordância. Quanto aos documentos que seria de tomar em consideração, a recorrente não reporta nenhum deles a nenhum facto impugnado concreto referindo o conteúdo dos mesmos e a sua interceção com o depoimento de uma outra testemunha, mas em nenhuma situação concretiza qual o facto que deveria ser alterado por força desse documento e depoimento de testemunha (também não identificado no seu segmento) e o porquê. (…) Assim, como decidiu o acórdão recorrido, não é possível discriminar inteligivelmente as razões e os concretos meios de prova que, quanto a cada um dos 24 factos impugnados impunham diferente decisão e, por assim ser, na confirmação de não terem sido cumpridos os ónus de impugnação da matéria de facto, deve meter-se sem alteração a decisão recorrida». No mesmo sentido, decidiu o AcSTJ de 06-02-2024 (rel. Cons. Nelson Borges Carneiro - https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5d3a60cf113a623c80258abb005ae242?OpenDocument): «I – O recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa relativamente a esses factos e, enuncie a decisão alternativa que propõe. II – A exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. III – A especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no artigo 662.º/1 do CPCivil. IV – O recorrente terá de tomar posição especifica sobre os motivos da discordância, indicando e explicitando de forma pormenorizada, individualizada e minuciosa os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa e a decisão que entenda ser a correta, não sendo para o efeito suficiente uma genérica ou exemplificativa afirmação dessa discordância. V – A lei comina a inobservância destes requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, sem possibilidade de suprimento, na parte afetada, nos termos do artigo 640.º/1, do CPCivil».
12. Tudo isto porque, tal como decidiu o acórdão recorrido, «a aplicação destes princípios gerais basilares [proporcionalidade, adequação e razoabilidade] não significa, de modo algum, que a parte que decide impugnar a matéria de facto se possa sentir desobrigada ou dispensada de cumprir, com o zelo e rigor devidos, todas e cada uma das obrigações processuais fixadas no nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, que no fundo constituem a efetiva manifestação das razões da sua discordância relativamente ao veredicto de facto proferido pela 1ª instância», pois «a circunstância de não ser de rejeitar o conhecimento da impugnação de facto, nos termos do artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, por desproporcional e não razoável, quando as questões em análise se encontrarem devidamente focalizadas, sendo praticamente intuitiva a sua compreensibilidade, não obsta, por seu turno, à dita rejeição se o não cumprimento formal dos mesmos requisitos, exigidos na norma legal referida, se verificar num contexto em que os factos controvertidos são variados e relativamente complexos, importando dilucidá-los de forma organizada, metódica e especificada, como a lei obriga. Os princípios gerais enunciados da proporcionalidade e razoabilidade têm essencialmente uma função moderadora da rigidez e do exacerbado formalismo na análise do cumprimento do artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, funcionando como uma espécie de filtro de segurança do sistema, sem que, em circunstância alguma, devam servir como forma de desculpabilização, panaceia ou manto (ilimitado) de cobertura e salvaguarda de falhas ou omissões, quando é evidente e inegável o não acatamento de cada uma das obrigações processuais aí especificamente exigidas. (…) a alínea b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil impõe inequivocamente uma obrigação processual específica que consiste no dever da impugnante efetuar (ela e não o Tribunal da Relação) a correspondência direta e objetiva entre os meios probatórios por si indicados e a justificação (por eles representada) para a modificação dos pontos de facto considerados incorretamente julgados (revelada pelo segmento da norma onde se lê: “meios de prova (…) que impunham decisão diversa”). O que significa que não é suficiente, para se considerar cumprida a exigência da alínea b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, a mera reunião aglomerada dos diversos meios de prova entendidos por relevantes, feita genericamente e em estilo puramente descritivo, numa amálgama indiferenciada, sem nenhuma referência direta, concreta e objetiva aos pontos de facto em causa, individualmente considerados, tencionando desse modo o impugnante que o Tribunal da Relação realize afinal a tarefa que exclusivamente lhe competia: selecionar dos elementos probatórios os que se destinam à modificação dos pontos de facto (ou, excecionalmente, os grupos delimitados de factos intrinsecamente ligados entre si), estabelecendo a indispensável conexão concreta entre os meios de prova e o juízo de facto por eles imposto (segundo o seu entendimento). No fundo, os meios de prova apresentados têm de o ser por referenciação aos factos, ou eventualmente, em casos especiais, grupo temáticos de factos interligados unitariamente entre si, a que concretamente se reportam, só assim se tornando possível alcançar, com inteiro rigor e certeza, as razões para a discordância da impugnante que justificam, facto a facto, as modificações almejadas, o que evitará a apresentação de impugnações de facto genéricas, proibidas pela norma processual em apreço».
13. Cfr. AcRC de 11-05-2021 (rel. Des. Vítor Amaral).
14. Salientando-se, uma vez mais, que, ainda que a especificação dos meios de prova (e das passagens relevantes da gravação) e a indicação da decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas possa ser feita apenas no corpo da motivação do recurso, a especificação dos concretos ponto de facto impugnados tem sempre que ser levada às conclusões do recurso, sob pena de o recurso ter que ser rejeitado.
15.

16. Encontrando-se o processo civil subordinado aos princípios do dispositivo e do pedido, a responsabilidade civil dos réus poderia ter sido fundamentada na responsabilidade civil contratual (em consequência do incumprimento ou do incumprimento defeituoso de uma obrigação contratual) ou na extracontratual (em consequência da violação ilícita de um direito ou interesse de outrem, independentemente de contrato), tendo a autora optado pela via da responsabilidade contratual, que constitui a causa de pedir dos presentes autos e delimita a atividade decisória do tribunal. Não obstante a doutrina e jurisprudência se encontrarem divididos relativamente à possibilidade de cumulação de regimes, não sendo a cumulação de regimes uma questão objeto de recurso, ainda assim, como decorrência do principio iura novit curia, consagrado no artigo 5º/3 do Código de Processo Civil, o tribunal pode sempre fundamentar o enquadramento da ação em qualquer uma das responsabilidades. Neste sentido, vide Luís Filipe Pires de Sousa (in Ónus da prova na responsabilidade civil médica); António Pinto Monteiro (in Exclusões de responsabilidade na atividade médica - Responsabilidade civil em saúde, 2021, pgs. 47 a 55); AcSTJ de 09-12-2021 (rel. Cons. Fátima Gomes), que decidiu que «Dividindo-se a doutrina entre os partidários da cumulação de regimes e os partidários da não cumulação (ou consunção), e encontrando-se na jurisprudência uma tendência equivalente, não podendo o juiz deixar de decidir o caso concreto submetido a julgamento, a opção do tribunal recorrido - no caso concreto- foi a de afirmar a possibilidade de cumulação de regimes, mas sem que tenha havido necessidade de abordar as consequências de tal posição, por não se inserir no objecto do recurso e não poder o tribunal conhecer oficiosamente da questão»; e AcSTJ de 07-03-2017 (rel. Cons. Gabriel Catarino), que decidiu que «IV - A responsabilidade civil médica pode ter, simultaneamente, natureza extracontratual e contratual, pois o mesmo facto pode constituir, a um tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física. V - Em regra, a jurisprudência aplica o princípio da consunção, de acordo com o qual o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual, solução mais ajustada aos interesses do lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada».
17. Que mais não é que um juízo de censura ou de reprovação, perante o reconhecimento, nas circunstâncias do caso concreto, que o obrigado não só devia, como podia ter agido de outra maneira. A regra é, assim, a de que em sede de incumprimento contratual o devedor só responde civilmente se tiver agido culposamente, não respondendo quando não possa ser censurado ou reprovado pela falta de cumprimento. Esta atuação abarca o comportamento doloso (em que há uma adesão da vontade ao comportamento ilícito, que é a falta de cumprimento) e o comportamento negligente (em que a censura do devedor se funda apenas a omissão do dever de diligência, por não ter agido com a diligência e discernimento exigíveis para ter evitado a falta de cumprimento da obrigação ou para a ter previsto e evitado, quando porventura nem sequer dela se tenha apercebido).
18. Neste sentido, decidiu o AcSTJ de 23-03-2017 (rel. Cons. Tomé Gomes): «I. No âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos atos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC. II. Porém, o médico poderá também responder perante o paciente a título de responsabilidade civil extracontratual concomitante ou, eventualmente, no âmbito de alguma obrigação negocial que tenha assumido com aquele. III. A responsabilidade contratual da instituição prestadora dos cuidados de saúde perante o paciente, ao abrigo do artigo 800.º do CC, será aferida em função dos ditames que o médico “auxiliar” do cumprimento deva observar na execução da prestação ao serviço daquela instituição. IV. De um modo geral, tem-se entendido que o resultado correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não se reconduz a uma obrigação de resultado, no sentido de garantir a cura do paciente, mas a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis). V. Porém, casos há em que, tratando-se de ato médico com margem de risco ínfima, a obrigação pode assumir a natureza de obrigação de resultado. VI. Para efeitos dessa qualificação, não se mostra curial adotar critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas sim de forma casuística centrada no contexto e contornos de cada situação. VII. Em sede de obrigações de meios, incumbe ao credor lesado (paciente), provar a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente o requerido pelas leges artis, como pressuposto de ilicitude, recaindo, por seu turno, sobre o devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir a presunção da culpa, nos termos do artigo 799.º do CC. VIII. No âmbito da execução do ato médico correspondente ao cumprimento do dever de prestar, importa ainda atentar no dever de proteção na salvaguarda da integridade física do paciente, coberta pela tutela da personalidade, nos termos previstos no artigo 70.º, n.º 1, do CC, na medida em que se mostre estreitamente conexionado com esse cumprimento. IX. Nessa medida, o reforço daquele dever de prestar por virtude do referido dever de proteção permitirá configurar a ilicitude do ato médico violador da integridade física do paciente, ocorrido em sede da própria execução do cumprimento da obrigação contratual. X. Assim, num caso como o dos autos em que, no decurso de uma intervenção cirúrgica destinada a colher tecido necrosado na zona da cabeça femoral para permitir a sua revascularização, foi atingido o tronco externo do nervo ciático adjacente pelo manuseamento do instrumento de colheita, ante a emergência de dificuldade de acesso à zona a intervencionar, resultando daí a paralisia daquele nervo, é de considerar verificada a prática de um ato ilícito violador da integridade física do paciente. XI. Nessas circunstâncias, presumindo-se a culpa do médico operador, incumbirá ao devedor da prestação provar que tal ocorrência não lhe é imputável por falta de cuidado ou de imperícia, nos termos do artigo 799.º do CC». Se bem que, nos termos previstos no artigo 150º/1 do Código Penal, não se consideram ofensa à integridade física «as intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental».
19. Cfr. João Carlos Gralheiro (in O ato médico é uma empreitada?).
20. Cfr. AcSTJ de 18-01-2022 (rel. Cons. Pedro de Lima Gonçalves), AcSTJ de 23-03-2017 (rel. Cons. Tomé Gomes) e AcSTJ de 07-03-2017 (rel. Cons. Gabriel Catarino).
21. Vide, ainda, sobre esta temática, ebook A responsabilidade civil por ato médico na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça (Sumários de Acórdãos de 2016 a dezembro de 2021), in www.stj.pt.
22. Cfr. AcSTJ de 28-01-2016 (rel. Cons. Maria da Graça Trigo).
23. Cfr. AcSTJ de 31-03-2022 (rel. Cons. Ferreira Lopes).
24.Cfr. https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-administrativo/5-2025-920339819.