Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | ANA RITA LOJA | ||
| Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/19/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | Sumário: I-O subsistema previdencial da segurança social é um sistema de proteção que resulta de um normativo constitucional inscrito no artigo 63º da Constituição da República Portuguesa e assenta em contribuições sobre salários e devidas pelos trabalhadores por conta de outrem ou independentes e entidades empregadores. II-A entidade empregadora está obrigada a proceder à declaração dos tempos de trabalho e das remunerações dos trabalhadores ao seu serviço e a aplicar a respetiva taxa, ou seja, a efetuar o apuramento aritmético do valor das contribuições declarando aqueles elementos em documento por si elaborado (declarações de remunerações) tornando certa e líquida a obrigação de efetuar o respetivo pagamento, mensalmente e nos prazos previstos na lei. III- De tais declarações de remunerações decorrem dois efeitos essenciais: um crédito a favor da instituição de segurança social (pois que o declaração elaborada pela entidade empregadora representa o montante das contribuições devidas por esta através da aplicação das taxas legalmente estabelecidas ao valor das remunerações que constituem a base de incidência) e um crédito a favor do trabalhador – o beneficiário (pois é com base nessa declaração que são registadas as remunerações em seu nome, os tempos de descontos que constituem condição para a atribuição das prestações, verificados os respetivos eventos e os valores de referência para o cálculo das mesmas prestações). IV-A entidade empregadora é um substituto tributário pois retém na fonte (na remuneração) para efeito de entrega à Segurança Social o montante devido pelo beneficiário e neste tipo de situação de substituição está em causa uma relação de confiança que é quebrada quando há a inversão do título da posse traduzida na mera não entrega de tal prestação tributária. V-Estamos, pois, na presença de um crime omissivo puro que se consuma com a mera não entrega por uma entidade empregadora aos cofres da competente instituição de segurança social das quantias legalmente devidas pelos seus trabalhadores e que tenham sido deduzidas das remunerações que lhes tiverem sido pagas. VI- Os recorrentes defendem que planos de pagamento a prestações deferidos pela Segurança Social e em cumprimento pontual pelos arguidos têm uma relevância obstativa da possibilidade de se proceder à notificação prevista no artigo 105°, n.°4, al. b) do Regime Geral das Infrações Tributárias. VII-O raciocínio expendido pelos recorrentes assenta no pressuposto, que se considera inadequado, da ausência de autonomia entre a responsabilidade criminal e a tributária e sobretudo esquece a natureza do crime em causa que se consuma no momento em que o agente não cumpre a obrigação tributária sendo, neste sentido, indiferente para a localização espacial e temporal do facto criminoso a designada condição objetiva de punibilidade. VIII- A relevância criminal a atribuir à existência de planos de pagamentos a prestações deferidos pela Segurança Social e em cumprimento pontual pelos arguidos antes da notificação prevista no artigo 105º n.°4 al. b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, aplicável por força do n.°2 do artigo 107º do mesmo diploma legal é apenas para ulterior determinação da natureza e medida da pena a aplicar àqueles em caso de condenação. IX- Não se vislumbra a violação os princípios da proteção da boa fé ou da confiança porquanto na celebração de planos de pagamento de dívida tributária a prestações não se inclui, consabidamente, qualquer isenção de responsabilidade criminal. A única esperança concedida pelos mesmos é a esperança da Administração Pública (em sentido lato) não os considerar incumpridos fora dos pressupostos a tanto necessários e que sendo cumpridos até à restituição integral das quantias devidas considere extinta a prestação tributária em dívida e nos termos em que o montante global da mesma fora calculado e era do conhecimento dos devedores (neste caso os recorrentes arguidos). X- Os recorrentes aludem à violação do princípio da igualdade que se assume ser enquanto refração do princípio geral consignado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, mas o mesmo refere-se quer à proibição de tratamentos preferenciais quer à obrigação da Administração Pública aplicar de modo consistente segundo os mesmos critérios, as mesmas medidas e as mesmas condições a todos os particulares que se encontrem em situação idêntica, esta obrigação enquanto reflexo do princípio de autovinculação da referida Administração associado ao princípio da imparcialidade. XI- Os recorrentes arguidos beneficiaram do acesso aos planos de pagamentos a prestações porque reuniam de acordo com a entidade, para tanto competente, as condições legais a tanto necessárias e os mesmos foram mantidos porque inexistiu incumprimento das condições subjacentes a tais planos. O que lhes foi concedido não se distingue do que é concedido a qualquer cidadão em idênticas situações sendo que a circunstância de tais planos vigorarem por vários anos é, tão somente, uma expressão da natureza avultada da prestação tributária devida e pelos mesmos omitida preteritamente. Omissão essa que consubstancia a prática de um ilícito criminal cuja consumação já ocorrera antes da celebração de tais planos de pagamento. XII- Administração Pública está também vinculada à realização da notificação prevista no aludido 105º nº4 al .b) do Regime Geral das Infrações Tributárias, sob pena de não o fazendo infringir os princípios de legalidade, igualdade e imparcialidade, pois, essa notificação é imposta por lei e tem de ser feita a todos os cidadãos que se encontrem em idêntica situação e, por isso, a todos os que se encontrem a proceder ao pagamento da prestação tributária em conformidade com os planos de pagamento a prestações deferidos. XIII-A concessão sucessiva de planos de pagamento a prestações aos recorrentes arguidos é, em si mesma, uma expressão da aplicação do princípio da proporcionalidade porque, no caso concreto, prosseguiu-se o interesse do Estado ao viabilizar a restituição da prestação tributária omitida e a Administração Pública fê-lo em detrimento da utilização de outros meios mais gravosos sendo que nestes não se inclui o exercício da ação penal posto que através de tal exercício pretende-se apenas punir a prática de factos que consubstanciam crime. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: 1-RELATÓRIO: Nos autos de processo comum com intervenção de Tribunal Singular nº109/22.0T9FNC que correm os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Local Criminal do Funchal, Juiz 2 foi, em 17 de junho de 2025, proferida sentença, ao que nos interessa para apreciação dos recursos, com o seguinte dispositivo: Por tudo o exposto, julga-se a acusação parcialmente procedente, condenando-se os arguidos AA e BB, pela autoria de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelos art°s 107°, n°s 1 e 2 e 105°, n°s 1 e 4 do RGIT, ela na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 6 (seis) euros, perfazendo um total de 1080 (mil e oitenta) euros e ele na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 6 (seis) euros, perfazendo um total de 540 (quinhentos e quarenta) euros, absolvendo-se a arguida CC da autoria deste mesmo crime. * Notificado da sentença dela recorreu o Ministério Público extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem: 1-O presente recurso vem interposto da sentença proferida nestes autos no dia 17-06-2024, na qual os arguidos AA E BB foram condenados, cada um, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 107.°, n.°1 e 2, 105.°, n.°1, 4 e 7, do Regime Gral das Infrações Tributárias (RGIT). 2-Neste recurso, a única questão jurídica que se coloca à consideração do Tribunal da Relação respeita ao valor que se deverá atribuir à existência de planos de pagamentos deferidos pela Segurança Social e em cumprimento pontual pelos arguidos antes da notificação prevista no artigo 105.°, n.°4 al. b), do RGIT, aplicável por força do n.°2 do artigo 107.° do mesmo diploma legal. 3-Com efeito, os arguidos AA (doravante AA) e BB foram notificados pessoalmente, respetivamente, nos dias 23 de fevereiro de 2022 e 14 de fevereiro de 2022, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.° n.°4, al. b) do RGIT. 4-Por outro lado, verifica-se que, com vista ao pagamento da dívida de quotizações e juros em causa nos autos, a sociedade AA celebrou com o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, 8 (oito) planos prestacionais, melhores descritos no ponto 10 dos factos provados. O último plano prestacional foi requerido pela AA no dia 03 de setembro de 2021 e autorizado no dia 11 de outubro de 2021. 5-Como tal, à data da verificação da condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105.°, n.°4, al. b) do RGIT, operada pela Segurança Social, o período em dívida em causa nos autos estava a ser regularizado pela sociedade AA através de planos prestacionais que se encontram a ser pontualmente cumpridos. 6-A nosso ver, a existência de planos prestacionais em vigor, pontualmente cumpridos, obsta a que a Segurança Social possa desencadear a condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105.°, n.°4, al. b) do RGIT. 7-Em primeiro lugar, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 189.°, 190.° e 208.° Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, temos que concluir que a dívida da AA, ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, deve considerar-se regularizada, na medida em que a dívida aqui em causa é objeto de acordos de pagamento em prestações que aquele instituto considera em vigor, ou seja, reputa de cumpridos. 8-Como tal, e desde logo, a dívida em que causa, no momento da notificação prevista no artigo 105.° n.°4, al. b) do RGIT, não era civil nem tributariamente exigível, pois que, como sabemos, o que torna exigível a obrigação é o facto do vencimento. Obrigação exigível é a que está vencida, podendo o credor pedir o cumprimento, o que não acontece no presente caso decorrente da celebração anterior de vários acordos de pagamento. 9-No fundo, independentemente de ocorrer no plano do Direito Penal, o que está em causa nos autos é o Estado exigir ao contribuinte o pagamento integral de uma dívida (que deverá ser certa líquida e exigível) como pressuposto para desencadear contra o mesmo o procedimento criminal. 10-Se assim o é, então qual o sentido de um contribuinte com a situação contributiva regularizada, se ver confrontado com uma notificação para pagamento total da dívida, cujo pagamento está a efetuar em prestações, no prazo de 30 dias, sob pena de ver desencadear o procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social? 11-É que, além do mais, se o plano de pagamento em prestações é autorizado desde que se verifique que o executado pela sua situação económica, não pode solver a dívida de uma só vez (cfr. artigo 196.° do DL n.°433/99, de 26 de Outubro - Código do Procedimento e Processo Tributário), que sentido tem a Segurança Social, que previamente reconheceu esta circunstância perante o contribuinte, lhe interpelar, de seguida, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 105°, n° 4, alínea b), do RGIT? 12-Fazendo apelo aos princípios basilares e estruturantes do nosso ordenamento jurídico fundamental, como sejam o da boa-fé, da confiança e da segurança a que todos os sujeitos de direito estão adstritos, a começar pelo Estado, considera-se que a vigência de um acordo de pagamentos, anterior ao momento da notificação do artigo 105.°, n.° 4, al. b), do RGIT, obsta a que o sujeito Estado, no exercício do jus puniendi, possa preencher uma condição legalmente imposta para esse exercício, enquanto o respectivo crédito não seja (tributariamente) exigível, notificando o devedor para o pagamento dum crédito que, afinal, não lhe é devido dentro do prazo contido em tal notificação, uma vez que o próprio Estado, numa outra veste, aceitou celebrar com o mesmo sujeito um acordo em prestações, permitindo-lhe o pagamento faseado da sua dívida. 13-Melhor explicando, permitir que o Estado, por um lado, permita ao devedor o pagamento em prestações, considerando, deste modo, a sua dívida tributariamente regularizada, e, por outro lado, exija o pagamento na sua totalidade, no prazo de 30 dias, sob pena de responsabilidade criminal do mesmo agente - conhecendo o acordo de pagamentos que anteriormente celebrou - torna a relação do Estado com o cidadão numa espécie de "esquizofrenia" jurídica, incompreensível a qualquer pessoa dotada de senso comum. 14-Na verdade, é uma opção do Instituto da Segurança Social instaurar procedimento executivo antes de desencadear a responsabilização criminal do agente. 15-Perante o não cumprimento de uma obrigação fiscal para com o Estado (Segurança Social), o Instituto da Segurança Social poderia ter aguardado o período de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação tributária e, após, proceder à notificação para pagamento, no prazo de 30 dias, nos termos do artigo 105.°, n.°4, al. b) do RGIT. 16-Em caso de não pagamento, poderia, por um lado, desencadear o procedimento criminal e, por outro lado, instaurar procedimento coercivo de cobrança da dívida. 17-Ora, no caso em apreço, o Instituto da Segurança Social fez exatamente o contrário. Perante o incumprimento do contribuinte, instaurou vários procedimentos coercivos de cobrança, a partir do ano de 2016, celebrou vários acordos de pagamento (entre os anos de 2016 e 2021), nos termos que considerou que eram do interesse do Estado, no que concerne ao número e valor de prestações, e só depois, já no ano de 2022, sem qualquer incumprimento dos acordos por parte do contribuinte, desencadeou o procedimento criminal e efetuou a notificação do artigo 105°, n° 4, al. b) do RGIT. 18-Há, e a nosso ver foi devidamente acautelado pelo legislador, uma diferença entre o contribuinte relapso que nada faz para pagar as dívidas e só depois com a notificação do artigo 105.°, n.°4, al. b) do RGIT reage, daquele contribuinte que, na mesma situação de incumprimento, que não tem possibilidade de liquidar integralmente a sua dívida, mas se compromete a fazê-lo pagando a mesma em prestações mesmo antes de qualquer interpelação admonitória por parte da Segurança Social. 19-Aceitando, conforme referido pelo Tribunal a quo, que o plano da responsabilidade criminal é distinto do plano do plano da responsabilidade civil e/ ou tributária, a verdade é que os diferentes ramos do Direito não são estanques, incomunicáveis, antes, pelo contrário, influenciam-se um ao outro, fazendo parte de um todo jurídico que se quer coerente e, acima de tudo, formal e materialmente justo, em que o Estado se apresenta perante o cidadão como respeitador dos princípios da legalidade, da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da boa administração, da proporcionalidade, da justiça e da razoabilidade, da imparcialidade, da boa-fé e da colaboração com os particulares. 20-A celebração de acordo para pagamento faseado da dívida global de contribuições e de quotizações em processo de cobrança coerciva (ao qual a lei atribui o efeito de situação contributiva regularizada, conforme adiante se verá) impede, a nosso ver, o desencadear do procedimento criminal por abuso de confiança à Segurança Social, mas não extingue a responsabilidade criminal, pois que, a qualquer momento, deixando de se verificar esta circunstância impeditiva (e.g. é revogado o acordo de pagamentos por incumprimento do devedor) nada obstará a que a Segurança Social, caso o procedimento criminal não se mostre prescrito, desencadeie as notificações a que respeita o artigo 105.°, n.°4, al. b) do RGIT. 21-Em suma, pelas razões acima expostas, não poderia o Instituto de Segurança Social da Madeira, ter encetado as notificações previstas no artigo 105.°, n.°4, alínea b), do RGIT, ex vi artigo 107.°, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma, pelo que as mesmas, a terem acontecido, não podem deixar de haver-se como inoperantes e, nessa medida, não se tendo por verificada a aludida condição objetiva de punibilidade deverão os arguidos ser absolvidos. Termina pugnando pela revogação da decisão recorrida e consequente absolvição dos arguidos AA e BB da prática, cada um, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelo artigo 107.°, n.°s 1 e 2, por referência ao artigo 105.°, n.°s 1 e 4, do RGIT. * Também os arguidos AA e BB interpuseram recurso da decisão recorrida extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem: A) O presente Recurso tem como objecto a Sentença proferida nos presentes autos, a 17 de Junho de 2024, na qual os AA e BB, foram condenados, cada um, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.°, n.°1 e 2, e 105.° n.ºs 1,4 e 7 do Regime das Infracções Tributárias (RGIT). B) Para além da questão jurídica colocada pelo Ministério Público nas suas alegações de recurso, o presente recurso diz respeito à constitucionalidade da norma do artigo 105.°, n.°4, alínea b) do RGIT, aplicável por força do n.°2 do artigo 107.° do mesmo diploma, quando interpretada no sentido em que tal notificação é eficaz, ainda que seja promovida na pendência de um acordo de pagamento válido e em vigor. C) Resulta como provado nos presentes autos que os Arguidos, ora Recorrentes, foram notificados, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 105.° n.°4, alínea b) do RGIT, no dia 14 de Fevereiro de 2022, para proceder ao pagamento das quantias de quotizações mensais e globais retidas e não entregues ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, D) Das normas e princípios processuais relevantes decorre que o crime de abuso de confiança à Segurança Social consuma-se com a não entrega aos cofres da competente instituição de segurança, das quotizações legalmente devidas pelos seus gerentes/administradores e trabalhadores e que tenham sido deduzidas das remunerações que lhes tiverem sido pagas. E) Adicionalmente, é exigida a verificação das condições de punibilidade previstas no artigo 105.°, n.°4 alínea b) do RGIT, nomeadamente, que tenham decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo para pagamento, e que tenha decorrido mais de trinta dias sobre a notificação para o pagamento, sem que o mesmo tenha sido efectuado. F) Sucede que, no momento em que ocorreu a notificação prevista no artigo 105.°, n.° 4 alínea b) do RGIT, a situação contributiva da AA” encontrava-se integralmente regularizada, em virtude dos planos de pagamento em prestações celebrados com o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM. G) A notificação e a putativa obrigação de pagamento imediato e integral das quantias abrangidas por planos de pagamentos, constituí uma violação da harmonia de sistema e princípios de boa-fé e da confiança, da segurança jurídica e da protecção da confiança, conjugados com os da proporcionalidade e adequação. H) A alínea b) do n.°4 do art.° 105.° do RGIT, se interpretada e aplicada no sentido que existindo um plano de pagamentos válido e em vigor, a notificação prevista no mesmo pode ser efectuada e, não sendo cumprida pelos respectivos destinatários, é apta a justificar/fundamentar a punibilidade destes, é manifestamente inconstitucional. I) Face ao exposto, a notificação promovida pelo Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, nos termos e para efeitos da alínea b) n.°4 do artigo 105º do RGIT, é ineficaz, não se podendo considerar verificada a condição de punibilidade ali prevista, devendo os Arguidos ser absolvidos. Terminam pugnando pela revogação da decisão recorrida e sua absolvição da prática, cada um, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelo artigo 107º n.°s 1 e 2, por referência ao artigo 105º n.°s 1 e 4, do RGIT. * Admitido os recursos não foram apresentadas respostas. * Remetido o recurso a este Tribunal da Relação foi emitiu parecer em que com maior relevo se refere: Examinados os fundamentos do recurso, aderimos ao recurso interposto pela Exm.ª Colega, pela correção jurídica, clareza e rigor da argumentação aduzida, à qual nada temos a aditar. * Cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do Código de Processo Penal nada foi aduzido. * Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência. * Nada obsta ao conhecimento do mérito dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelos arguidos cumprindo, assim, apreciar e decidir. 2-FUNDAMENTAÇÃO: 2.1- DO OBJETO DOS RECURSOS: É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.1 Destarte e com a ressalva das de conhecimento oficioso são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar2. A este respeito e no mesmo sentido ensina Germano Marques da Silva3:«Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões». Esclarecem os artigos 368º e 369º do Código de Processo Penal aplicáveis por via do disposto do artigo 424º nº2, do mesmo diploma legal a prevalência processual das questões a conhecer iniciando-se a apreciação pelas obstativas do conhecimento do mérito e caso o conhecimento das demais não fique prejudicado de seguida as respeitantes à matéria de facto, mormente a impugnação alargada e os vícios do artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal e finalmente as questões relativas à matéria de direito. Assim à luz do que o recorrente Ministério Público invoca no seu recurso delimitado pelas conclusões a questão a dirimir: é da relevância a atribuir à existência de planos de pagamentos deferidos pela Segurança Social e em cumprimento pontual pelos arguidos antes da notificação prevista no artigo 105.°, n.°4 al. b), do RGIT, aplicável por força do n.°2 do artigo 107.° do mesmo diploma legal. No que respeita aos arguidos as questões a dirimir são: - relevância a atribuir à existência de planos de pagamentos deferidos pela Segurança Social e em cumprimento pontual pelos arguidos antes da notificação prevista no artigo 105º n.°4 al. b), do RGIT, aplicável por força do n.°2 do artigo 107º do mesmo diploma legal. - a constitucionalidade da norma do artigo 105º n.°4, alínea b) do RGIT, aplicável por força do n.°2 do artigo 107.° do mesmo diploma, quando interpretada no sentido em que tal notificação é eficaz, ainda que seja promovida na pendência de um acordo de pagamento válido e em vigor. * 2.2- DA APRECIAÇÃO DO MÉRITO DOS RECURSOS: Exara a decisão recorrida, na parte que releva para a apreciação dos recursos interpostos, o que a seguir se transcreve: (…) FACTOS PROVADOS RELEVANTES 1- A arguida AA tem por objecto social, designadamente, a administração, gestão e exploração de empreendimentos turísticos, estabelecimentos hoteleiros, meios complementares de alojamento e conjuntos turísticos de equipamentos de animação e desportivos, e tem o capital social de €75.000,00. 2- Nos períodos mencionados no subsequente ponto 3, o arguido BB era administrador dessa sociedade, exercendo o cargo de presidente do Conselho de Administração, o que fazia de forma efectiva, tomando todas as decisões de gestão/administração da sociedade e definindo o rumo dos negócios, bem como representando a sociedade junto de quaisquer entidades, designadamente junto da Administração Fiscal e da Segurança Social. 3- Nos meses de julho a dezembro de 2016, janeiro a abril de 2017, março a agosto de 2018, novembro e dezembro de 2018, janeiro a julho de 2019, outubro a dezembro de 2019, janeiro a dezembro de 2020 e janeiro a junho de 2021, a sociedade arguida teve ao seu serviço diversos trabalhadores, a quem pagou salários e fez nos mesmos a dedução de 11%, destinada ao pagamento da contribuição devida pelos trabalhadores para o sistema contributivo da Segurança Social. 4- Desde, pelo menos julho de 2016, o arguido BB decidiu, enquanto administrador e em representação e no interesse da sociedade arguida, em virtude de graves constrangimentos financeiros e de tesouraria que a sociedade atravessava - relacionados com vicissitudes do financiamento necessário para erguer um estabelecimento hoteleiro que decidiu construir na ... - dali em diante, apenas entregar à Segurança Social os valores das quotizações mensalmente retidos nos salários dos trabalhadores da sociedade quando as capacidades de tesouraria permitissem a satisfação dessa obrigação e das demais da sociedade, designadamente o pagamento de salários e aos fornecedores, pagando apenas, em caso contrário, estas últimas. 5- Assim, não obstante ter procedido às deduções mencionadas em 3 e ter enviado mensalmente à Segurança Social as folhas de remunerações onde constavam declarados os salários processados no mês anterior e os respectivos descontos para a Segurança Social, a sociedade AA, representada pelo administrador BB, não entregou à Segurança Social as quantias a esse título deduzidas mensalmente, nos períodos que se passam a discriminar: MÊS DE REFERÊNCIA DÍVIDA DE QUOTIZAÇÕES 2016/07 489,23 € 2016/08 2.800,63 € 2016/09 3.109,93 € 2016/10 3.146,24 € 2016/11 2.796,36 € 2016/ 12 4.088,61 € 2017/01 2.564,39 € 2017/02 2.794,18 € 2017/03 2.741,43 € 2017/04 2.753,06 € 2018/03 3.423,31 € 2018/04 2.975,70 € 2018/05 3.090,56 € 2018/06 2.936,40 € 2018/07 3.114,81 € 2018/08 3.505,72 € 2018/11 1.364,63 € 2018/12 4.231,49 € 2019/01 2 810,81 € 2019/02 942,60 € 2019/03 2.916,54 € 2019/04 2.683,39 € 2019/05 2.580,06 € 2019/06 3.104,32 € 2019/07 3.051,59 € 2019/10 2.810,70 € 2019/11 2.458,68 € 2019/12 4.131,20€ 2020/01 3.103,00 € 2020/02 2.862,65 € 2020/03 5,43 € 2020/05 1.538,68 € 2020/06 1.886,16 € 2020/07 2.204,86 € 2020/08 1.911,41 € 2020/09 2.034,95 € 2020/10 1.980,57 € 2020/11 1.219,42 € 2020/12 2.719,14 € 2021/01 683,98 € 2021/02 824,62 € 2021/04 534,82 € 2021/05 506,72 € 2021/06 31,706 6-O arguido BB, apesar de, enquanto representante legal da sociedade AA, saber que esta estava legalmente obrigada a entregar mensalmente à Segurança Social, até ao dia 20 de cada mês, os valores das cotizações deduzidas nos salários dos trabalhadores processados no mês anterior, e que a sociedade era mera depositária daquelas quantias, determinou que esta não entregasse tais quantias à Segurança Social nos mencionados prazos legais, nem decorridos 90 dias sobre o termo dos referidos prazos. 7- Os arguidos BB, CC e AA foram notificados pessoalmente, respectivamente, no dia 14 de fevereiro de 2022 e 23 de fevereiro de 2022, para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento integral das quotizações em divida, da coima porventura aplicável e dos juros de mora devidos, mas não efectuaram, nesse indicado prazo, tal pagamento. 8- O arguido BB sabia que o produto das mencionadas deduções nos salários mensais dos trabalhadores da sociedade AA respeitava à quotização devida pelos trabalhadores à Segurança Social e que, por esse motivo, os valores retidos a esse título não pertenciam à sociedade, mas à Segurança Social e, apesar disso, não se absteve de utilizar os referidos montantes em proveito da sociedade. 9-O arguido BB agiu do referido modo, em representação e no interesse da sociedade AA de modo voluntário, livre e consciente, sabendo que tal conduta era proibida por lei e que os fazia incorrer em responsabilidade criminal. 10- A ora assistente e demandante concedeu à demandada AA, no âmbito das execuções movidas para cobrança dos valores mencionados em 5, oito acordos de pagamento em prestações das quantias aí mencionadas, nomeadamente: ■ Acordo n.°199/2016, requerido a 19 de fevereiro de 2016 e autorizado a 28 de abril de 2016; ■ Acordo n.°853/2017, requerido a 14 de junho de 2017 e autorizado a 29 de junho de 2017; ■ Acordo n.°662/2018, requerido a 18 de setembro de 2018 e autorizado a 25 de outubro de 2018; ■ Acordo n.°244/2019, requerido a 29 de março de 2019 e autorizado a 14 de agosto de 2019 ■ Acordo n.°676/2019, requerido a 22 de agosto de 2020 e autorizado a 09 de setembro de 2020; ■ Acordo n.°578/2020, requerido a 16 de abril de 2020 e autorizado a 17 de abril de 2020; ■ Acordo n.°1442/2021, requerido a 07 de julho de 2020 e autorizado a 13 de julho de 2020; e, ■ Acordo n.°525/2021, requerido a 03 de setembro de 2021 e autorizado a 11 de outubro de 2021, planos esses que foram acompanhados de garantia real aceita pela demandante e que estão em situação de cumprimento pela ora demandada AA 11- A 19/04/2024 (data mais recente que foi possível apurar) o valor total ainda em dívida de quotizações dos períodos mencionados em 3 e 5 era, em virtude de pagamentos entretanto ocorridos, designadamente no âmbito dos mencionados planos prestacionais, de 60.255,18 euros. 12- A arguida AA teve, no ano de 2022, matéria colectável no valor de 36.860,25 euros, de que resultou uma colecta de IRC de 3.068,02 euros. 13-O arguido BB aufere uma pensão de reforma de cerca de 2.200 euros mensais, dos quais um terço está penhorado. Não tem encargos com habitação. Não sustenta ninguém. 14- A arguida CC aufere uma pensão de reforma de cerca de 900 euros mensais. Não tem encargos com habitação. Não sustenta ninguém. 15- Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais. FACTOS NÃO PROVADOS RELEVANTES 1- A arguida CC, nos períodos em causa nos factos provados 3 e 5, exerceu efectivamente as funções de administradora, designadamente de vogal do conselho de administração da sociedade arguida, sendo também ela quem, em representação da sociedade, tomava todas as decisões de gestão da sociedade e definia o rumo dos negócios, contratava com fornecedores e clientes, pagava aos primeiros, recebia dos segundos, dava ordens a funcionários relacionadas com as obrigações financeiras da sociedade e representava a sociedade junto das repartições públicas, nomeadamente a Administração Fiscal e a Segurança Social. 2- No exercício dos seus poderes de administração, a arguida CC, decidiu que a sociedade arguida procedesse conforme descrito nos factos provados 4 a 6, o que fez de forma livre, voluntária e consciente, sabedora de que incorria em responsabilidade criminal. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO O facto provado 1 teve como fundamento o documento de fls. 34 e ss. O facto provado 2 foi confessado pelo arguido BB. Este mesmo arguido admitiu, tacitamente, a factualidade provada nos factos 3 a 6 e 8 a 9, ao confirmar o facto provado 10. Ou seja, este arguido admitiu que, precisamente por a empresa que administrava não ter procedido ao pagamento das quotizações em causa nos autos, nas datas em que se venceram, requereu e viu concedida a possibilidade, pela Segurança Social, de pagar os montantes nelas em causa em planos prestacionais. A própria Segurança Social informa os autos (documentalmente, a fls. 103 a 142) da existência e conteúdo desses planos prestacionais. Também a testemunha DD, técnica da Segurança Social, confirmou a existência desses planos, outorgados no âmbito das acções executivas movidas pela Segurança Social contra a devedora ora arguida pessoa colectiva, bem como confirmou que tais planos estão em situação de cumprimento. Esta testemunha confirmou também a omissão de pagamento tempestivo dos valores relativos aos períodos referidos na acusação (factos provados 3 e 5), ocorridos na sequência do envio, pela arguida pessoa colectiva, das declarações de remunerações dos seus trabalhadores (cfr. também, a este propósito, os documentos de fls. 291 a 515) As notificações dadas como provadas no facto 7 constam dos documentos de fls. 71, 90 e 97. A prova das dificuldades financeiras que a arguida empresa atravessava por ocasião dos factos provados teve como fundamento as declarações do arguido BB, bastante detalhadas e consideradas plausíveis pelo Tribunal. A situação social dos arguidos dada como provada teve, igualmente, como fundamento, as declarações prestadas pelo mencionado arguido. Anote-se que a arguida CC se prevaleceu do seu direito a não prestar declarações. O facto provado 11 teve como fundamento a consulta do documento de fls. 903 O facto provado 12 teve como fundamento a consulta dos documentos de fls. 908 e 908 v°. A situação dos arguidos quanto a antecedentes criminais foi comprovada pela consulta dos seus certificados de registo criminal, juntos aos autos. Tudo ponderado, apenas os factos não provados resultaram minimamente controvertidos entre os arguidos e a assistente, ou seja, a questão de a arguida CC ter efectivamente administrado a sociedade nos períodos em causa na acusação e se participou da decisão de omissão dos pagamentos tempestivos devidos à Segurança Social. Começa por se salientar que o arguido BB, tendo-se pronunciado sobre esta questão, alegou ter sido o único administrador da sociedade e o único a tomar a mencionada decisão, sem intervenção da arguida. Por um lado, não descura o Tribunal que, não obstante estarmos perante uma sociedade anónima, não deixa de ser uma sociedade de estrutura familiar, como este arguido detalhou na audiência, sendo os arguidos casados entre si. É, precisamente, nas sociedades em que os cônjuges aparecem como gerentes de direito que, amiúde, ocorre este fenómeno de um deles não o ser de facto. Ainda assim, não se desconsiderou que a imparcialidade do depoimento do arguido poderia estar condicionada por estar em causa, como coarguido, o seu cônjuge. Não obstante este óbice, deve salientar-se que o depoimento do arguido pareceu, neste ponto, prestado com assertividade suficiente para impressionar favoravelmente o Tribunal quanto à sua credibilidade. É certo que algumas das testemunhas ouvidas, designadamente a EE, o FF e o GG, todos funcionários do hotel de que a arguida sociedade é proprietária nos ..., depuseram sentido de a arguida CC acompanhava o marido nas poucas visitas que ele fazia ao Hotel e que, por vezes, dava orientações aos funcionários sobre pequenas obras de reparação em curso no hotel ou sobre o correcto funcionamento do restaurante ou sobre a organização dos quartos. No entanto, tais instruções, relacionadas com aspectos pontuais do funcionamento desse estabelecimento comercial, dadas circunstancialmente, quando acompanhava o marido ao hotel, não constituem prova decisiva de que administrava a sociedade dona do hotel, pois as ordens e instruções aqui em causa são de natureza diferente. A este propósito, pareceu ao Tribunal muito mais importante do que o das anteriores testemunhas, o depoimento da testemunha HH - funcionária profissionalmente ligada às vertentes de secretariado e administrativo- burocráticos da sociedade arguida, como, por exemplo, o processamento dos salários dos trabalhadores da empresa arguida - que declarou que era o arguido e o director financeiro da sociedade que decidiam o que pagar, quando não havia dinheiro suficiente em caixa e que o arguido, quando não havia dinheiro suficiente, optava por pagar apenas os salários, em detrimento das quotizações à Segurança Social, concluindo que a arguida CC não decidia nenhum desses aspectos e que essa arguida nunca lhe deu ordem nenhuma dessa natureza. A testemunha II (genro, é certo, da arguida CC - o que não se desconsiderou) confirmou, ponto por ponto, estas declarações da anterior testemunha mencionada. Por fim, a testemunha JJ fez um depoimento em sentido semelhante, afirmando que a arguida CC não dá ordens financeiras na empresa. Do depoimento da testemunha KK nada de relevante resultou para a prova dos factos. Importa, por fim, salientar o documento oferecido pela assistente, de fls. 927 a 944, máxime de fls. 939 v° e ss., que é um contrato subscrito pela arguida CC, em representação da arguida sociedade, mas que apresenta a limitação probatória de ser um contrato firmado cerca de oito anos antes do período inicial de incumprimento em causa nestes autos. Tudo ponderado, considera o Tribunal que, em face, sobretudo, da persuasão resultante dos depoimentos do coarguido e da mencionada testemunha HH, ficaram dúvidas sobre os factos dados como não provados que, por via da aplicação do princípio dubio pro reo, se colocaram nessa categoria. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS O art° 105°, n°s 1, 2 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, publicado em anexo à Lei n° 15/2001, de 5 de junho, dispõe que: 1- Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2- Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. 4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. Por sua vez, no art° 107°, n° 1 deste mesmo diploma se estipulou que “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de Segurança Social, serão punidas com as penas previstas nos n°s 1 e 5 do art° 105º” e, no n° 2 deste artigo consta que “é aplicável o disposto nos n°s 4 e 7 do art° 105º”. Compulsando também o disposto no art° 5º, n°s 1 a 3, do D. L. n° 103/80, de 9 de Maio (regime jurídico das contribuições para a previdência), 3o, n° 2 do D. L. 199/99, de 8/06 (taxas contributivas para a Segurança Social) e, entretanto, os art°s 24°, n°1, 43° e 53° da Lei n° 110/99, de 16 de Setembro (Código dos regimes contributivos do sistema previdencial de Segurança Social) que, com a sua entrada em vigor (a partir de 1 de Janeiro de 2011, em virtude do n° 1 do D. L, n° 119/09, de 30/12, que prorrogou a data de entrada em vigor inicialmente fixada naquele diploma), revogou aqueles dois diplomas inicialmente citados, deles resulta que as pessoas singulares ou colectivas que tenham ao seu serviço trabalhadores deverão efectuar uma retenção, no valor de 11%, dos respectivos salários, e entregar tal quantia nos serviços da Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte a que a contribuição respeita (ou a partir da entrada em vigor da Lei n° 110/09, de 16/09, até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que contribuição respeita). No caso das sociedades comerciais, a incumbência de entrega destes valores compete aos gerentes ou administradores das mesmas ou pessoas por si mandatadas, mas as sociedades não deixam de ser criminalmente responsáveis - nos termos do art° 7º, n° 1 do RGIT - pela omissão de entrega de tais valores, desde que o seu responsável legal tenha agido em nome e no interesse social, ou seja, que não tenha agido em seu exclusivo interesse e contra o interesse societário, v. g., em situações em que ele pretenda apropriar- se do dinheiro para o seu património pessoal, caso em que se não justificaria punir a sociedade, pois seria duplamente punida, na medida em que já teria sido prejudicada no seu interesse societário pelo gerente infiel. O que está em causa no crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social é apenas a parcela percentual retida aos vencimentos dos trabalhadores da empresa (ou dos órgãos sociais da empresa) e não o valor correspondente à taxa igualmente devida pelo empregador, pois apenas em relação àquela existiu uma inversão do animus da posse, ou seja, uma situação em que a empresa se apropriou de montantes de terceiros que não lhe pertenciam. Esta retenção indevida dos valores deduzidos dos vencimentos dos trabalhadores apenas adquire relevância criminal se a omissão de entrega perdurar para além de noventa dias sobre o prazo legal de entrega e também para além de uma última interpelação admonitória de cumprimento, no prazo adicional de 30 dias, prevista no art° 105°, n° 4, al. b) do RGIT. Compulsados os factos provados, resulta claro que o arguido BB tomou a decisão, em representação e no interesse da empresa arguida, que administrava, num quadro de persistentes dificuldades financeiras que a mesma atravessava, de que apenas entregaria à Segurança Social as deduções feitas nos vencimentos dos respectivos funcionários nos meses em que a sociedade tivesse liquidez suficiente para proceder ao pagamento de todos as suas obrigações, privilegiando o pagamento de outras obrigações societárias, como os salários, nos demais períodos contributivos. Em face dos factos provados e perante o enquadramento legal mencionado, tudo aponta para que, de facto, os arguidos BB e AA tenham cometido o crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social de que vêm pronunciados - ainda assim, não na forma continuada, mas de um único crime, já que, tendo existido uma única resolução criminosa, com um dolo ou intenção inicial que se manteve ao longo dos diversos períodos em causa nos factos provados, existirá um único crime (neste sentido, o Ac. RE de 12/07/18, relatado pelo Desembargador António João Latas, in www.dgsi.pt). A mesma conclusão já não se retira para a coarguida CC, por não se ter provado que exercesse a administração de facto da sociedade arguida. De facto, não ficou provado que ela tivesse o domínio volitivo sobre o facto, ou seja, que tenha sido ela a decidir ou a ter a oportunidade de decidir sobre a omissão de pagamento ou que, conhecendo-a, se tenha conformado com ela, aderindo a tal opção. Esta arguida era aquilo que se pode considerar como gerente meramente “de direito”, por ter esse estatuto legal, em face do pacto social registado. Nesta medida, ela não pode ser responsabilizada pelo ilícito penal que lhe foi imputado. Esta conclusão é partilhada pela jurisprudência, largamente maioritária, dos Tribunais superiores, da qual se cita agora, a título meramente exemplificativo, o Ac. da Relação de Guimarães, do dia 11/05/15, relatado pelo Desembargador Lee Ferreira, publicado em www.dgsi.pt, cujo sumário se transcreve seguidamente: “O preenchimento do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal pressupõe a conduta de quem tem o domínio e a capacidade efectiva de administração da sociedade comercial e só pode ser responsabilizado criminalmente quem, na ocasião em que não foi entregue a prestação tributária retida ou deduzida, reunia os poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento da obrigação tributária. Daí que a qualidade de "gerente” no sentido formal, mesmo que com um conhecimento da situação de incumprimento, seja insuficiente para a imputação do referido tipo de crime e se tome necessário demonstrar que esse gerente ou administrador de direito tinha o domínio funcional dos factos referentes ao exercício das obrigações fiscais da empresa”. Assim, em face dos factos não provados deste processo e no seguimento daquela jurisprudência, com a qual se concorda, temos que a mencionada arguida deverá ser absolvida do crime de que vem pronunciada. Retomando à responsabilidade criminal dos demais arguidos, entramos agora no pomo essencial de discórdia entre eles e a assistente. A questão jurídica colocada é a da influência, sobre o crime previsto pelo art° 107°, n° 1 do RGIT, da existência de planos prestacionais de pagamento deferidos pela Segurança Social à contribuinte, antes da notificação prevista no art° 105°, n° 4, al. b) do RGIT, aplicável por força do n° 2 do mencionado art° 107°. As posições antagónicas sobre esta questão estão bem patentes nestes autos. De um lado, temos o Ministério Público, a Juiz de Instrução da Comarca da Madeira e os arguidos, que sustentam, em síntese, grosso modo, que a outorga desses planos opera a regularização das dívidas de quotizações neles incluída, o que toma inexigível o seu cumprimento fora dos termos e condições de tais planos, o que conflituará com o regular cumprimento do disposto no art° 105°, n° 4, al. b) do RGIT - na medida em que, nessa notificação, estará em causa um comando de pagamento integral das quantias em divida, contraditório com àqueles planos - pelo que esta notificação, ocorrida nestes autos, seria irregular e não teria consequências legais. A ideia de fundo que subjaz a este entendimento é a de que, deferidos que estejam os planos prestacionais de pagamento, está a Segurança Social legalmente impedida de cumprir a notificação prevista naquela norma, pois que tal cumprimento, conflituando com a outorga dos planos prestacionais em vigor, violará, designadamente, o princípio da boa fé. Em sentido contrário, temos a assistente e o colectivo de Desembargadores que determinou que os arguidos fossem pronunciados por este crime, que consideram, em síntese, que o plano legal da responsabilidade tributária e o plano legal da responsabilidade criminal são diversos e independentes, pelo que, estando o plano prestacional integrado no plano da efectivação da responsabilidade tributária, em nada bule com a efectivação da responsabilidade criminal, até, porque, se assim fosse, ou seja, se a efectivação dos planos de pagamento fosse uma causa de extinção da responsabilidade criminal, o legislador tê-lo-ia expressamente consagrado como tal, o que não fez. Esta última opção valorativa tem obtido, deve salientar-se, os favores da jurisprudência amplamente dominante dos Tribunais da Relação, de que são exemplos, além do já mencionado e constante destes autos, os acórdãos mencionados e citados pelo assistente no recurso interposto da primeira decisão instrutória proferida nestes autos, a saber, da R. de Guimarães de 07/06/17, da R. do Porto de 02/03/16 e da R. de Lisboa de 04/07/18 e de 26/04/22, todos consultáveis em www.dgsi.pt. Este Tribunal considera que a resposta a esta questão impõe a averiguação da natureza jurídica da notificação prevista no art° 105°, n° 4, al. b) do RGIT. Foi a Lei n.°53-A/2006, de 29/12 que aditou esta alínea b) ao n° 4 do art° 105° do RGIT, actualmente com a seguinte redacção: “4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: (...) b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. Firmou-se na jurisprudência a perspectiva de que, na estrutura do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, esta (obrigação de) notificação corresponde a uma condição objectiva de punibilidade (neste sentido o Ac. Uniformizador de Jurisprudência n° 6/08, de 9/04/2008, in DR, Ia Série, n° 94, 15-05-2008, P.2672-2680). O que são as condições objetivas de punibilidade? Para Eduardo Correia, são elementos adicionais requeridos para a punibilidade da conduta que não prejudicam - por absolutamente independentes - a qualidade ilícita e culposa de tal conduta. Estão excluídos da necessidade de representação como elemento intelectual do dolo (cfr. "Direito Criminal" I, pág. 370, Ed. Almedina). Na doutrina estrangeira, impressiona-nos favoravelmente a definição de Ferrando Mantovani, que ensina que este tipo de condições expressam apenas questões de oportunidade e conveniência punitiva que o legislador entende aplicar quando o crime está já consumado, por já estar expresso no seu completo desvalor; as condições objetivas de punibilidade são, afirma este autor, ocorrências estranhas à esfera da ofensa causada com o crime, mas que tomam oportuna a punição de um facto, já de si ofensivo (in "Diritto Penale", 4a ed., págs. 839 a 841, Ed. Cedam). Note- se bem que este autor não coloca as condições objectivas de punibilidade na estrutura do crime, mas desloca-a para a questão da punibilidade do mesmo. O mencionado acórdão de Uniformização de Jurisprudência acompanha esta ideia, ao estatuir que “na verdade, o crime de abuso de confiança fiscal consuma-se com a não entrega dolosa no tempo devido das quantias deduzidas pelo agente. De facto, o número 2 do artigo 5° do RGIT estabelece que as infracções tributárias omissivas se consideram praticadas na data em que termine o prazo para cumprimento dos respectivos deveres tributários. Ou seja, é importante firmar a conclusão de que, quando falamos da realização desta notificação do art° 105°, n° 4, al. b) do RGIT, estamos a falar de um crime já consumado - não estamos a falar de uma situação que careça desta notificação para poder ser considerada um crime, mas que apenas dela carece para que tal crime seja punido. Esta conclusão resulta da própria lei, quando estatui, nesse n° 4 do art° 105° do RGIT que “Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se...”. Nunca houve, aliás, grandes divergências sobre este ponto, que possam considerar-se fundadas na lei positiva. De facto, já o art° 24°, n° 5 da primeira codificação de infracções fiscais não aduaneiras, o RJIFNA, aprovado pelo D. L. n° 20-A/90, de 15/01, estatuía que “Para instauração do procedimento criminal pelos factos previstos nos números anteriores é necessário que tenham decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.” Esta norma, que transitou quase incólume para o RGIT, concede ao infractor fiscal um período de graça de 90 dias sobre a data do cometimento do crime antes que o mesmo seja punido. É um período em que o agente do crime, não o podendo apagar, pode, no entanto, evitar ser punido pelo mesmo. Em 2006, o legislador entendeu conceder ao agente do crime de abuso de confiança fiscal e contra a Segurança Social uma segunda oportunidade de evitar a punição da sua conduta criminal previamente consumada. Esta nova oportunidade, consistente na concessão de um novo prazo para pagamento, não deve ser entendida como algo de negativo para o devedor. De facto, não é a notificação da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT que o transforma no agente de um crime que, até aí, ele não fosse. Dá-lhe, isso sim, a possibilidade de, já o tendo cometido, não ser por ele punido. O Ac. Uniformizador de Jurisprudência n° 2/15, publicado no Diário da República, l.a série, n° 35 de 19 de fevereiro de 2015, dispõe, a dada altura da sua fundamentação: “De onde que, consumando-se com a conduta omissiva do agente o crime de abuso de confiança, este existe a partir de então, e não apenas depois de ter decorrido o prazo a que se refere a mencionada alínea a) do número 4 do artigo 105° do RGIT, que, por razões de política criminal, a lei concede para, ainda que que para além do prazo estabelecido para o efeito, cumprir a obrigação que deixou de realizar na oportunidade devida”. Após a consumação do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, competirá a esta entidade instaurar inquérito, que decorrerá sob orientação do Ministério Público, nos termos previstos nos artigos 40° e 41 do RGIT. A instauração não deve ser imediatamente após a consumação, mas apenas decorridos 91 dias sobre ela (al. a) do n° 4 do art° 105° do RGIT) e decorridos 31 dias sobre a admonição suplementar (al. b). São apenas estes dois os requisitos que a lei expressamente prevê para a punibilidade do crime, já anteriormente consumado. Sendo perante a Segurança Social que é instruído o inquérito criminal, é a esta entidade que compete, ordinariamente, proceder à notificação da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT. Estando em causa um crime de natureza pública, não dispõe a Segurança Social de qualquer prerrogativa de oportunidade de prossecução criminal, sendo, por isso, obrigada a instaurar inquérito, quando adquirir conhecimento do cometimento do crime. Sem prejuízo do prazo de prescrição do procedimento criminal, a lei não prevê nenhum prazo para o cumprimento da notificação prevista na al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT, assumindo, porventura, que uma administração diligente não tardará com a efectivação dessa notificação após o decurso do prazo da al. a) do n° 4 do art° 105° do RGIT. É inescapável, por isso, a conclusão de que a instauração do procedimento criminal fica sempre dependente da determinação, pela Segurança Social, da realização desta notificação. Em bom rigor, essa notificação, além de ser condição de punibilidade, deve também ser considerada condição de procedibilidade, ou seja, o início do inquérito deverá secundar esta notificação, se a mesma não obtiver resultado favorável. O RGIT, secundado pelo CPP, dispõe, portanto, nos termos expostos, sobre a responsabilidade criminal tributária, em que a Segurança Social aparece nas vestes de instrutora de um processo criminal fundado no incumprimento de obrigações contributivas. Há, no entanto, outros níveis de responsabilidade jurídica. O incumpridor de tributos incorre, igualmente, em responsabilidade tributária, nos termos previstos no Código de Procedimento e Processo Tributário. Esta responsabilidade é efectivada pela execução fiscal nele regulada, obedecendo às suas específicas regras e princípios. Deles se destaca que a certidão da dívida tributária, emanada do próprio órgão credor do tributo incumprido é título executivo para um processo, também de natureza coerciva, destinado à recuperação financeira dos montantes cuja entrega foi omitida. Ou seja, paralelamente ao seu dever de instruir a perseguição criminal, à Segurança Social incumbe, também, o dever de tentar obter o pagamento dos seus créditos em dívida, pelo recurso ao processo executivo. A Segurança Social aparece, aqui, numa segunda veste ou papel, fundada no mesmo facto jurídico, mas para desempenhar funções e com propósitos que em nada se confundem com o mencionado no parágrafo anterior. Apesar de estas responsabilidades do agente devedor serem paralelas e decorrerem em planos distintos, existem alguns pontos de intersecção, que resultam do facto de terem a mesma fonte constitutiva. Um desses pontos de intersecção é o cumprimento da obrigação tributária, que tende a extinguir ambos os tipos de responsabilidade. Essa extinção pelo pagamento é, no entanto, apenas tendencial, pois, se a responsabilidade tributária é extinta pelo cumprimento, voluntário ou coercivo, a responsabilidade criminal apenas é extinta, quando se verifica esse cumprimento, mas em condições mais restritas, que são, precisamente, as expostas nas duas alíneas do n° 4 do art° 105° do RGIT. Fora do âmbito dessas duas condições de extinção de responsabilidade criminal, o legislador parece bem claro na sua opção de que o cumprimento integral das obrigações tributárias não ser condição suficiente para extinguir a responsabilidade criminal pelos crimes tributários, o que avulta, com total clareza, do disposto no art° 22° do RGIT. Importa, por isso, desmistificar a ideia, errada, que o mero cumprimento das responsabilidades tributárias extinguirá, necessariamente, a responsabilidade criminal pelas infracções tributárias. De facto, o cumprimento, a destempo, das obrigações tributárias, não apaga o mal do crime - embora não seja indiferente à questão da sua punibilidade, abstracta e concreta. Ora, se até o cumprimento integral, quando intempestivo, das obrigações tributárias, não isenta o agente da infracção de responsabilização criminal, importa questionar a razoabilidade da interpretação que isentará de responsabilidade criminal o devedor que, no decurso de acções executivas, vê deferidos e cumpre planos prestacionais para cumprimento de obrigações tributárias vencidas. A interpretação proposta pelo Ministério Público nestes autos redunda - é necessário afirmá-lo com clareza - na concessão de uma isenção de responsabilidade criminal fora dos parâmetros em que o legislador a concedeu, no n° 4 do art° 105° do RGIT. De facto, se aceitarmos que a outorga de planos prestacionais impede a notificação prevista na al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT, por maioria de razão a impedirá quando esses planos já estiverem integralmente cumpridos. Na prática, para esta interpretação, tudo se passará como se existisse uma al. c) nesse n° 4, com a seguinte redacção “A existência de planos prestacionais de pagamento e o seu cumprimento pelo devedor obsta ao cumprimento da notificação prevista na alínea anterior”. Ora, não existindo tal alínea no ordenamento jurídico positivo, importa perscrutar se seria essa a vontade do legislador. Importa questionar se a interpretação em causa ainda é consentida pelo sistema jurídico ou se cria, ela própria, uma norma jurídica, cuja criação está, excepto em casos omissos, constitucionalmente, reservada ao legislador. Já avançámos a ideia de que parece existir uma forte incongruência sistemática entre a não extinção da responsabilidade criminal de quem liquida integralmente a dívida tributária, fazendo-o, por exemplo, no 31º dia após a notificação prevista na al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT, e a extinção da mesma para quem paga a dívida em cento e cinquenta meses (ou prestações) após o início de um plano prestacional. É certo que o legislador, ao criar a al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT vinca fortemente a ideia de que subordina o interesse da recuperação dos activos em falta ao da perseguição criminal dos agentes do crime. Mas essa subordinação não é total, como o comprova o mencionado art° 22° do RGIT, de onde resulta claro que, para o legislador, a recuperação dos activos é importante e condiciona a perseguição criminal, mas com os limites que ele próprio impõe, sendo errada a ideia de que a perseguição criminal por este tipo de crimes está totalmente subordinada aos interesses patrimoniais do Estado, à ideia de que a punição criminal só assombrará o agente do crime “até que dinheiro devido apareça”, seja como for ou quando for. Importa aflorar a questão do princípio da boa fé e da protecção da confiança dos particulares que deve nortear as instituições públicas, pois que aventado na contestação. Esta questão tem como pressuposto uma ideia, que perpassa subliminarmente, que é a de a Segurança Social tem “duas caras” perante o devedor: num dia “acena-lhe” com a possibilidade de pagar as dívidas em atraso em prestações e, no dia seguinte, “dando o dito por não dito”, já vem exigir o pagamento integral daquilo que, ontem, permitiu pagar em prestações. Posta a questão nestes termos, pode causar perplexidade um serviço público que assim se conduz perante um particular. No entanto, se analisarmos a questão com maior pormenor, vemos que ambas as proposições desta equação, de resultado supostamente malsão, não estão correctamente formuladas. Por um lado, a concessão da possibilidade de pagamento a prestações não é uma opção discricionária da Segurança Social, mas uma obrigação que a lei lhe impõe. Cumprindo-se os pressupostos legais, a Segurança Social é obrigada a conceder planos prestacionais de pagamento aos devedores, quer queira quer não queira. A Segurança Social, ao deferir planos prestacionais ao contribuinte, não lhe demonstra qualquer tipo de intenção, propósito ou comprometimento, limitando-se a cumprir a lei que a vincula. Por outro lado, ao cumprir a notificação prevista na al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT não está, de igual modo, a demonstrar qualquer tipo de intenção, particular propósito ou comprometimento, desta feita de sentido contrário àquele em que foi deferido o pagamento a prestações. Limita- se, aqui também, a cumprir um dispositivo legal de que está incumbida. Importa salientar, a propósito desta notificação, feita após o deferimento dos planos prestacionais, que a mesma não implica uma restrição ou extinção desses planos. Se assim fosse, não estariam tais planos, nestes autos, ainda em vigor e a serem cumpridos, como estão. Se, como instilam os arguidos, a notificação da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT significasse uma posição de venire contra factum proprium em relação ao prévio deferimento desses planos, tal implicaria que essa notificação condicionaria ou revogaria os planos prestacionais, o que não acontece. O facto de a notificação da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT não bulir com a vigência dos planos é sintomático de que essas duas realidades não interferem entre si, que não têm, utilizando uma linguagem chã, nada a ver uma coisa com a outra. É por isso, errada, na nossa perspectiva, a afirmação de que essa notificação da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT se apresenta como sendo um comando de sinal contrário à possibilidade previamente deferida de pagamento em prestações. Essa notificação não representa - nunca e sob nenhuma perspectiva, inclusivamente sob a perspectiva da existência dos planos prestacionais de pagamento - um tratamento desfavorável ao devedor nem o legislador a criou com tal desiderato; Antes pelo contrário, como já exposto supra. Essa notificação não vem impor o pagamento integral, obrigar ao pagamento integral, ou bulir com as facilidades de pagamento anteriormente concedidas, vindo conceder, isso sim, uma oportunidade e um benefício para o devedor se poder exonerar, in limine do plano legal da sua responsabilidade criminal em que, como vimos supra, já incorreu. Ver esta notificação como um atentado aos direitos do devedor é ignorar a perspectiva de que o legislador a criou, precisamente, com a expectativa oposta, a de lhe conceder mais uma oportunidade, um benefício. Apenas se vislumbrará uma incoerência, se não aceitarmos, como o vem fazendo a jurisprudência dominante, que estão em causa planos diferentes, obedecendo a regras também diferentes. Num plano, está a responsabilidade criminal, definida pelo art° 107°, n° 1 do RGIT e balizada pelo n° 4 do art° 105° e, noutro, a responsabilidade tributária, processada, sobretudo pelo CPPT, onde constam as regras do procedimento executivo, planos prestacionais incluídos. A ideia do legislador sempre foi que ambas trilhassem caminhos diferentes, não obstante a sua fonte comum. O deferimento dos planos prestacionais suspende o processo executivo, o que representa, por si só, um enorme benefício para o devedor, mas não tem qualquer influência no decurso do processo criminal. E, se acaso tivesse, seguramente que o legislador não teria deixado de o afirmar. Apenas se fizermos convergir os dois regimes, da responsabilidade tributária e da responsabilidade criminal, assumindo que ambos se teriam de compatibilizar totalmente, é que encontraremos incongruência no deferimento de pagamento em prestações num momento e na notificação para pagamento integral, ao abrigo da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT, no momento seguinte. Mas, se víssemos esta realidade nessa perspectiva, também teríamos de admitir, coerentemente, que não faria sentido que a Segurança Social deferisse planos prestacionais de pagamento após cumprir a notificação da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT. De facto, a existir relação de exclusão recíproca entre esses dois procedimentos, também seria contraditório que a Segurança Social exigisse o pagamento integral das quantias em dívida, no prazo de 30 dias e, no dia seguinte, deferisse o pagamento em prestações dessa mesma dívida. No entanto, nunca constatámos, pelos defensores da tese de que o deferimento dos planos prestacionais impede o cumprimento da notificação prevista no art° 105°, n° 4, al. b) do RGIT, a tese de que a efectivação desta notificação impediria o deferimento de planos prestacionais. No entanto, por identidade de razão, para os defensores dessa tese, assim deveria ser. E, na realidade, não é! O que nos leva a questionar, a latere, que diferença materialmente relevante existirá entre um devedor que vê deferidos planos prestacionais antes ou depois da notificação da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT. Não poderá o agente do crime ser perseguido criminalmente no primeiro caso, como defendido pelos arguidos, mas já o poderá ser no segundo? Não parece materialmente fundada esta eventual discriminação. E, claro, tal tese vem levantar uma miríade de outras questões laterais, como, por exemplo, a seguinte: seria lícito o cumprimento da notificação da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT entre o requerimento dos planos prestacionais feito pelo contribuinte e o seu deferimento pela Segurança Social? Se, de acordo com esta tese, apenas a vigência dos planos prestacionais tomará a dívida regularizada e, por isso, inexigível para os efeitos da al. b) do n° 4 do arf 105° do RGIT, nada impedirá a Segurança Social de, ao ver requerido o pagamento prestacional, antes de o deferir, apressar-se a cumprir essa notificação. Como vimos, se a Segurança Social não cumprir o múnus de que o legislador a incumbiu e não notificar nenhum contribuinte nos termos previstos na al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT, é manifesto que ninguém será perseguido criminalmente pela autoria do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social. Sendo este um crime de natureza pública e não existindo nenhuma regra escrita ou orientação de serviço (que se conheça) de que, uma vez concedido um plano prestacional, não deverá ser cumprida a notificação da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT, não parece razoável esperar que os responsáveis pela Segurança Social assumam esse entendimento. Será ao Ministério Público, como titular da acção penal, que, se assim o entender, competirá assumir genericamente aquilo que nestes autos assumiu concretamente e emitir, então, nesse seu papel de titular da acção penal, uma norma destinada à Segurança Social para que não faça a notificação prevista na al. b) do n° 4 do art° 105° se e enquanto estiver em cumprimento um plano prestacional. Ficará, então, o problema resolvido a montante, pois que, sem essa notificação efectuada, nenhum crime desta natureza será punido. Do exposto se retira o entendimento de que não é criticável, ao abrigo do princípio da boa fé e da preservação da confiança, a conduta da Segurança Social de notificar os devedores no âmbito de planos prestacionais nos termos do art° 105°, n° 4, al. b) do RGIT, pois que se limita a cumprir o que a lei lhe determina que cumpra. Na perspectiva deste Tribunal, não é ter feito a notificação da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT, após ter deferido planos prestacionais que incluíam as quotizações nelas em causa que é criticável, mas mais o tempo, absurdamente longo, que demorou a fazê-la. Não existe, pelo exposto, irregularidade na notificação efectuada aos arguidos, nos termos do art° 105°, n° 4, al. b) do RGIT, pelo facto de, à data da mesma, a situação contributiva da arguida pessoa colectiva estar “regularizada”, ao abrigo do cumprimento de planos de pagamento prestacionais deferidos pela Segurança Social. Não existe qualquer expectativa juridicamente tutelada, por parte dos arguidos, que a outorga dos planos prestacionais os eximisse de responsabilidade criminal, sendo indiferente (pelo menos para os efeitos deste processo) que, nessa instituição, os tenham, eventualmente, informado do contrário. Quem decide o que é crime e quando ele punível é o legislador e não os funcionários da Segurança Social. Quando os planos prestacionais foram deferidos, a conduta criminalmente relevante para os períodos neles em causa já estava, ao nível do tipo de ilícito, consumada. Por isso, é irrelevante a alegação, na contestação, de exclusão da ilicitude e da culpa do comportamento, pelo facto de a celebração desses planos prestacionais com a Segurança Social ter gerado o convencimento nos arguidos de que estariam a agir conforme ao direito, existindo, no limite, um erro dos arguidos excludente da ilicitude e da culpa. Ao alegar assim, os arguidos integram a celebração desses acordos e a notificação que lhes foi subsequente no tipo de ilícito, quando elas rigorosamente nada têm a ver com a sua consumação. Não releva o convencimento que eles tenham tido nessa altura, pois o crime não se consumou aí. O que importa é o convencimento que tiveram quando não pagaram tempestivamente o que era devido à Segurança Social pela sociedade arguida e não o convencimento que tiveram sobre a sua responsabilidade criminal quando foram outorgados os planos prestacionais. Do que se pode falar, com eventual propriedade, é da influência que esse convencimento poderá ter tido na sua decisão de outorga dos planos prestacionais e não na influência da outorga destes sobre a sua responsabilidade criminal. Outra perspectiva a considerar é o facto de a dívida em causa não ser, supostamente, exigível, porque estará “regularizada” pelo deferimento dos planos prestacionais. Esta “regularidade” representa, na situação dos autos, uma mera ficção legal, sendo um conceito subsidiário de regularidade. É uma ficção que apenas serve para acobertar determinados contextos e necessidades da vida empresarial, como, designadamente, os previstos no art° 177°-B do CPPT. O art° 208°, n° 1 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, Lei n° 110/09, de 16/09 define a noção matriz de “situação contributiva regularizada” nos seguintes termos: “Para efeitos do presente Código, considera-se situação contributiva regularizada a inexistência de dívidas de contribuições, quotizações, juros de mora e de outros valores do contribuinte”. Essa é que é, prima facie, a verdadeira situação contributiva regularizada. Depois, no n° 2 desse artigo, estende a aplicabilidade deste conceito a outras realidades aí elencadas. Mas, a separação, feita pelo legislador, em dois diferentes números desse artigo, demonstra bem que a “situação contributiva regularizada” quando inexistem dívidas não é rigorosamente a mesma coisa de quando elas existem, mas estão enquadradas em regimes especiais legalmente previstos, entre os quais o regime prestacional. O argumento da suposta “regularidade” da dívida pela existência dos planos prestacionais afigura-se-nos, por isso, um argumento frustre, enquanto pressuposto da conclusão de que essa regularização da dívida a tomará inexigível pelo mecanismo do art° 105°, n° 4, al. b) do RG1T. O que está em causa, de qualquer modo, como já exposto na notificação do da al. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT não é nenhuma exigência ou imposição de pagamento, é a oferta de uma possibilidade derradeira de pagamento, necessariamente integral, para evitar males maiores, que nada têm a ver com o processo executivo, esse suspenso pelos planos, mas com a responsabilização criminal, prevista a outro nível e noutro diploma. Não se concebe, pela nossa parte, onde o legislador estatuiu que, após os 90 dias do vencimento da obrigação não paga, apenas o seu cumprimento integral, em 30 dias, releva para a extinção do procedimento, venha o intérprete admitir que, pelo contrário, também o cumprimento integral, mas prestacional e ao longo de muitos anos, tem esse exacto efeito. Pelo exposto, considera este Tribunal que os arguidos BB e AA cometeram o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social de que vêm pronunciados. (…) Apreciemos em concreto a pretensão dos recorrentes lembrando que quer o Ministério Público quer os arguidos pretendem é que este Tribunal de Recurso se pronuncie sobre a relevância a atribuir à existência de planos de pagamentos deferidos pela Segurança Social e em cumprimento pontual pelos arguidos antes da notificação prevista no artigo 105.°, n.°4 al. b), do RGIT, aplicável por força do n.°2 do artigo 107.° do mesmo diploma legal sendo que os últimos, ainda, pretendem que se aprecie da constitucionalidade da norma do artigo 105.° n.°4, alínea b) do RGIT, aplicável por força do n.°2 do artigo 107.° do mesmo diploma, quando interpretada no sentido em que tal notificação é eficaz, ainda que seja promovida na pendência de um acordo de pagamento válido e em vigor. Na decisão recorrida quer a sociedade arguida AA quer o arguido BB, ambos recorrentes, foram condenados pela autoria de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelos art°s 107°, n°s 1 e 2 e 105°, n°s 1 e 4 do RGIT, respetivamente, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 6 (seis) euros, perfazendo um total de 1080 (mil e oitenta) euros e na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 6 (seis) euros, perfazendo um total de 540 (quinhentos e quarenta) euros. O subsistema previdencial da segurança social é um sistema de proteção que visa compensar a perda ou redução dos rendimentos da atividade profissional quando ocorram as eventualidades (doença, desemprego, maternidade, velhice, invalidez ou outras) previstas na lei. Esta proteção social resulta de um normativo constitucional inscrito no artigo 63º da Constituição da República Portuguesa sendo certo que este subsistema é obrigatório e tem por base a obrigação legal de contribuir (artigos 27º a 30º da Lei nº32/2002 de 20 de dezembro), pelo que se trata de um sistema contributivo ou auto financiado baseado na técnica das quotizações sociais, incidindo sobre salários e devidas pelos trabalhadores por conta de outrem ou independentes e entidades empregadores. As remunerações representam neste sistema a base de incidência contributiva resultando da lei as taxas das contribuições devidas. Saliente-se que embora comummente se refiram contribuições na verdade existem duas componentes distintas: a parte das contribuições da entidade empregadora (que corresponde a 23,75%) dos salários pagos e a parte respeitante aos trabalhadores (quotizações) correspondente a 11% dos salários. Não obstante a lei é expressa no sentido de responsabilizar exclusivamente as entidades empregadoras pelo pagamento quer das contribuições por si devidas quer das correspondentes aos trabalhadores e gerentes ou membros de órgãos sociais ao seu serviço devendo descontar nas remunerações pagas o valor daquelas (artigo 47º da Lei nº32/2002 de 20 de dezembro). O subsistema previdencial da segurança social tem, pois, por base a obrigação de contribuir sendo determinada por lei o momento e as condições em que se concretiza. Essa relação jurídica contributiva é complexa abrangendo ainda a obrigação de declaração por parte da entidade empregadora. Assim, a entidade empregadora está obrigada a proceder à declaração dos tempos de trabalho e das remunerações dos trabalhadores ao seu serviço e a aplicar a respetiva taxa, ou seja, a efetuar o apuramento aritmético do valor das contribuições declarando aqueles elementos em documento por si elaborado (declarações de remunerações) tornando certa e líquida a obrigação de efetuar o respetivo pagamento, mensalmente e nos prazos previstos na lei. De tais declarações de remunerações decorrem dois efeitos essenciais: um crédito a favor da instituição de segurança social (pois que o declaração elaborada pela entidade empregadora representa o montante das contribuições devidas por esta através da aplicação das taxas legalmente estabelecidas ao valor das remunerações que constituem a base de incidência) e um crédito a favor do trabalhador – o beneficiário (pois é com base nessa declaração que são registadas as remunerações em seu nome, os tempos de descontos que constituem condição para a atribuição das prestações, verificados os respetivos eventos e os valores de referência para o cálculo das mesmas prestações). As contribuições visam, não só a satisfação das necessidades financeiras das instituições competentes para o pagamento das referidas prestações substitutivas de rendimentos ou compensatórias de encargos, mas também a promoção da justiça social e a correção das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento. A entidade empregadora é no caso das quotizações um substituto tributário pois retém na fonte (na remuneração) para efeito de entrega à Segurança Social o montante devido pelo beneficiário. Dispõe o artigo107º nº1 do Regime Geral das Infrações Tributárias (doravante RGIT) consagrado na Lei nº15/2001 de 15 de junho e cuja redação mais recente foi introduzida pela Lei n.º 81/2023, de 28/12 que as entidades empregadoras que tendo deduzido o valor das remunerações devidas a trabalhadores (incluindo-se aqui os pensionistas) e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105º. Aduz o nº2 do referido artigo que é aplicável o disposto nos nºs 4, 6 e 7 do artigo 105º. Constituem elementos do tipo: a) a dedução pelas entidades empregadoras, no valor das remunerações devidas aos trabalhadores (em sentido lato por isso aqui se incluindo os trabalhadores por conta de outrem e membros de órgãos estatutários) das quantias legalmente devidas à Segurança Social; b) a não entrega, total ou parcial à segurança social das mesmas no prazo legal; c) o conhecimento da existência legal de tal dedução e da sua entrega à Segurança Social e a vontade de não proceder à mesma. As contribuições (no sentido comum do termo) do regime da segurança social devem ser descontadas ou retidas nas remunerações e entregues pela respetiva entidade empregadora à Segurança Social no prazo legalmente previsto. Considerando a natureza específica do bem jurídico protegido e a estrutura do crime de abuso de confiança à segurança social, o conceito de “apropriação” não tem o mesmo alcance que o do crime de abuso de confiança comum, pois, que naquele a “apropriação” apenas significa que o agente não cumpriu a obrigação no prazo que a lei lhe fixou ou que as quantias devidas não entraram no património da Segurança Social. Com efeito, o bem jurídico tutelado por este normativo não é diretamente o património da segurança social, mas sim a relação de confiança, o especial dever de colaboração das entidades empregadoras para com a segurança social. Neste tipo de situação de substituição a relação de confiança reside no facto da prestação deduzida ou retida ter sido legalmente confiada à entidade substituta para que ela a devolva posteriormente. Essa relação de confiança é quebrada quando há a inversão do título da posse traduzida na mera não entrega de tal prestação tributária. Assim a ilicitude consiste na violação do dever de entregar as quotizações deduzidas, nisto se traduz o desvalor da ação. Estamos, pois, na presença de um crime omissivo puro que se consuma com a mera não entrega por uma entidade empregadora aos cofres da competente instituição de segurança social das quotizações legalmente devidas pelos seus trabalhadores e que tenham sido deduzidas das remunerações que lhes tiverem sido pagas4 A punibilidade do crime depende da verificação cumulativa e sucessiva das condições estabelecidas nas alíneas a) e b) do nº4 do artigo 105º do RGIT ex vi do artigo 107º nº2 do mesmo diploma, ou seja, por um lado que a entidade empregadora não entregue à competente instituição de segurança social as quotizações devidas nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legal para a respetiva entrega e, por outro lado, que a entidade empregadora não entregue à competente instituição de segurança social o montante das quotizações devidas, acrescido dos juros e da coima aplicável nos 30 (trinta) dias subsequentes a notificação para efeito. É entendimento consolidado que estão em causa condições de punibilidade na medida em que a repressão penal só pode ocorrer se verificadas tais condições. No caso vertente os recorrentes Ministério Público e arguidos pretendem que este Tribunal se pronuncie sobre a relevância a atribuir à existência de planos de pagamentos deferidos pela Segurança Social e em cumprimento pontual pelos arguidos antes da notificação prevista no artigo 105.°, n.°4 al. b), do RGIT, aplicável por força do n.°2 do artigo 107.° A relevância é, naturalmente, uma relevância para efeitos de processo criminal e não está em causa questão que nunca tenha sido suscitada perante os Tribunais de 2ª Instância e, nem sequer, questão que não tenha sido já apreciada por este Tribunal da Relação e no âmbito destes autos. Na verdade, sobre tal questão versaram já e a título meramente exemplificativo os seguintes acórdãos todos acedidos em www.dgsi.pt: Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo 480/15 0T9PTL.G1 de 05-06-2017 de que é Relatora Ausenda Gonçalves cujo sumário na parte relevante a seguir se transcreve: «II - Para o preenchimento do crime de abuso de confiança fiscal, no que concerne ao tipo subjectivo, exige- se o dolo - que pode abarcar qualquer das formas previstas no artigo 14° do C. Penal (directo, necessário e eventual) -, ou seja, o agente tem de representar os elementos do tipo. que se dirige à quebra da confiança depositada legalmente no detentor temporário da prestação tributária e imposta pelo dever de cooperação com a administração, mas, actualmente, para a violação da aludida fidúcia, já não é necessário que o contribuinte se aproprie - inverta o titulo da posse - da quantia retida ou deduzida, bastando que o mesmo, conhecendo o dever de entregar aquela quantia (efectivamente recebida ou retida) dentro de determinado prazo, não o cumpra. III- Os requisitos aludidos no n° 4 do art. 105° do RGIT, aplicável por remissão aos crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social (art. 107°, n° 2), configuram condições objectivas de punibilidade dos factos ilícitos típicos descritos em tal normativo, pelo que só após o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação tributária e, ainda, do não pagamento, no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito, da prestação comunicada à administração tributária, através da correspondente declaração, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, é que estão verificados todos os pressupostos indispensáveis para que a punição do crime possa desencadear-se. IV- No caso dos autos, verifica-se que a notificação aludida foi efectuada depois de celebrado um acordo entre dois sujeitos de direito, o Estado em sentido amplo (a Segurança Social), na veste de credor, e o arguido, privado devedor, o qual importou a não exigibilidade (imediata) do crédito tributário daquele, pois conferiu a este a possibilidade de regularizar a sua situação tributária mediante o pagamento da respectiva divida em prestações. Por isso, em situações como esta, no plano dos princípios, talvez fosse defensável uma diferente opção do legislador que considerasse que a vigência dum tal acordo obstaria a que o sujeito Estado, agora no pretendido exercício do respectivo jus puniendi, pudesse preencher a condição legalmente imposta para esse exercício, enquanto o respectivo crédito não fosse tributariamente exigível, porquanto o preenchimento da aludida condição, com tais pressupostos, poderá, em certos casos e no limite, violar os princípios da boa-fé e da confiança a que todos os sujeitos de direito estão adstritos, a começar pelo Estado, por serem insitos ao estado de direito e, por isso, estruturantes do nosso ordenamento jurídico fundamental. V- Todavia, não se evidenciando nestes autos uma tal violação, não se pode olvidar a reconhecida autonomia da responsabilidade tributária (pelo imposto devido) face á responsabilidade penal tributária - daí o reconhecimento de que o accionamento desta última está objectivamente condicionada à notificação para pagamento dos créditos tributários -, pelo que, sendo o crime em causa um crime omissivo puro - que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida - não é defensável, à face da lei actual, a não verificação de tal exigibilidade, por força do referido acordo, não impedindo o mesmo a responsabilidade criminal do recorrente, autónoma da responsabilidade tributária, ainda que entre ambas possa existir conexão.» -Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-01-2022 proferido no processo 574/18.0IDLSB.L1-5 de que é Relatora Anabela Cardoso com o seguinte sumário: «Os acordos de pagamento em prestações, celebrados no âmbito dos processos de execução fiscal, relativos à não entrega nos prazos legalmente estabelecidos das quantias devidas, em nada contendem com a verificação do crime de abuso de confiança fiscal e a sua punibilidade, porquanto, aquando da notificação prevista na alínea b), do nº 4, do artigo 105º, do RGIT, não tinha ocorrido, com esse plano, o pagamento integral dos impostos em dívida, condição para a não punibilidade. Como tal, o acordo de pagamento, entre o devedor da prestação tributária e a administração tributária, não obsta à verificação e funcionamento da condição de punibilidade da conduta, consagrado no artigo 105.º, n.º4 al. b) do RGIT, não produzindo qualquer descriminalização dos factos praticados pelo arguido.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-06-2025 proferido no processo 1490/17.8T9FNC.L2.9 de que é Relatora Ana Marisa Arnêdo com o seguinte sumário: «I. A controvérsia cinge-se a saber das putativas consequências a extrair da circunstância de a notificação, nos termos e para os efeitos do art. 105º, n.º 4, al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, ter sido efectuada quando já existia - estava em vigor e a ser cumprido - um acordo de pagamento das prestações em dívida. II. Tem vindo a ser entendido, de forma praticamente unânime naj urisprudência, que a não punição da conduta criminal só opera com o pagamento integral da dívida, nos exactos termos e prazo previstos no art. 105º, n.º 4, al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias e que a mera concessão de autorização de pagamento em prestações não equivale à extinção da obrigação contributiva. III. A perspectiva de que, por força do plano de pagamentos que foi autorizado a sociedade arguida tinha a sua situação tributária regularizada e, por assim ser, a notificação nos termos e para os efeitos do art. 105º, n.º 4, al. b) do R.G.I.T. não deveria ter ocorrido, constitui interpretação restritiva ou mesmo ab-rogante/revogatória que, no caso, nos surge como infundada. IV. Consabida e derradeiramente, a responsabilidade tributária e a responsabilidade penal tributária são autónomas. V. Tendo os arguidos sido regularmente notificados para pagamento dos montantes em dívida, acrescidos dos respectivos juros e coima, e não tendo procedido dentro do prazo legal a tal pagamento, ante a lei vigente, outra solução não resta senão a de se considerar verificada a condição de punibilidade ínsita no art. 105º,n.º 4, al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, sem prejuízo, naturalmente, de o acordo de pagamento efectuado e as quantias de permeio entregues e àquele imputáveis, serem devidamente ponderados na determinação das penas a aplicar.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-04-2022 de que é Relator Fernando Ventura com o seguinte sumário: « 1. A responsabilidade criminal é autónoma da responsabilidade tributária. 2. A noção de situação contributiva regularizada, contida no artigo208.º do Código Contributivo, não releva para efeitos penais. 3. A autorização concedida pela Segurança Social para o pagamento da dívida em prestação, ou mesmo os pagamentos parcelares efetuados no seu âmbito, não preenchem a norma contida na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º, aplicável por via do n.º2 do n.º artigo 107.º, ambos do RGIT, de modo a afastar a punibilidade da conduta. 4. O preenchimento dessa condição objetiva de punibilidade exige o pagamento integral da dívida contributiva, o que apenas sucede quando todas as quotizações em dívidas - retidas aos trabalhadores- sejam pagas, incluindo os respetivos juros moratórios, de modo a repor de imediato o desequilibro financeiro gerado. 5. O crime de abuso de confiança contra a segurança social não pune a mora, mas sim a conduta daquele que, perante a segurança social, assume uma posição fiduciária relativamente às quotizações retidas aos trabalhadores e omite culposamente o cumprimento dos seus deveres de entrega de tais quantias.» Todos os acórdãos em questão sustentam posição contrária à dos recorrentes afirmando, em suma, que tais planos de pagamento a prestações da quantia tributária em dívida não obstam à notificação e condição de punibilidade prevista no artigo 105 n.º 4, al. b) do Regime Geral das Infrações Tributárias nem à responsabilidade criminal e inerente aplicação de pena sendo, ainda, pacífico o entendimento jurisprudencial do relevo dos mesmos para efeitos de determinação da pena a aplicar. Mais relevante é a circunstância de nestes autos ter já sido proferido, em 7 de junho de 2023, como nos mesmos se evidencia, Acórdão sobre tal questão, Consta de tal Acórdão que apreciou nestes autos recurso interposto do despacho de não pronúncia e o revogou determinando a pronúncia dos arguidos incluindo os ora recorrentes o seguinte com relevo para este recurso: «Na decisão instrutória de não pronúncia, objeto deste recurso, entendeu-se que tendo os arguidos celebrado acordos de pagamento com a Administração Fiscal visando o pagamento das quotizações em dívida e "embora o crime se consume relativamente a todo o montante não entregue, a verificação da condição de punibilidade apenas pode operar mediante a omissão de pagamento da quantia devida à data da sua realização, acrescida dos respectivos juros e coima aplicável. No caso dos autos, as notificações foram efectuadas relativamente ao montante total e, consequentemente, teriam os arguidos de pagar pela segunda vez parte do montante devido, de juros sobre o mesmo e coima. Deste modo, para além de se entender que inexistia fundamento legal para que a Segurança Social notificasse os arguidos para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento das quantias de cotizações, da coima porventura aplicável e dos juros de mora devidos, a ser efectuada, nunca a notificação poderia incidir sobre quantias já pagas a até prescritas. Os princípios da boa-fé e da confiança que vinculam também - e principalmente - o Estado impunham que a notificação em causa fosse efectuada previamente à instauração do procedimento criminal, mesmo com risco de prescrição dos factos não podendo os arguidos serem responsabilizados pela omissão em tempo daquela, sendo a consequência lógica, a de que não podem ser retiradas quaisquer consequências legal da notificação efectuada para efeitos do disposto no art. 105°, n.°4, alínea b) do RGIT, quer por via da regularização precedente da situação contributiva, quer pela invalidade da mesma face aos pagamentos efectuados. Assim sendo, considero que os indícios recolhidos em sede de inquérito e de instrução não são suficientes para que os arguidos sejam submetidos a julgamento pela prática do crime de que vêm acusados." Não podemos deixar de discordar do entendimento da senhora Juíza de Instrução. De facto, julgamos que não obsta à verificação do crime a circunstância de o devedor da prestação tributária ter celebrado acordo prestacional com a Autoridade Tributária, mesmo que dentro do prazo de 90 dias previsto como condição objectiva de punibilidade, visto que a mesma só não opera caso o mesmo tivesse procedido ao pagamento integral dentro de tal prazo, o que indiciariamente não é o caso, tal como indiciariamente não o fizeram os arguidos após o prazo de 30 dias concedido nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.°4, do art.° 105.°, do RGIT. Para tal entendimento concorre a natureza do crime em causa - crime omissivo puro - que se consuma no momento em que o agente não cumpre a obrigação tributária sendo, neste sentido, indiferente para a localização espacial e temporal do facto criminoso as designadas condições objectivas de punibilidade (acórdão de uniformização de Jurisprudência n.° 6/2008, de 09 de abril, acima citado). O tribunal a quo, confunde, salvo o devido respeito, a responsabilidade tributária com a responsabilidade penal do agente, talvez pelo facto de ser gerada pela mesma omissão (sobre a autonomia das referidas responsabilidades, Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, 2.a edição, UCE, 2018, p. 118 a 119). A jurisprudência, de forma massiva, tem considerado irrelevantes a existência de um acordo de pagamento anterior ou contemporânea ao termo do prazos estabelecidos como condição objectiva de punibilidade e, até mesmo, o seu cumprimento parcial no âmbito dos referidos prazos (cfr. acórdãos do TRP, processo n.° 2607/13.7IDPRT.P1, TRG, processo n.° 480/15.0T9PTL.G1, do TRC, processo n.° 122/09.IDVIS.C1 e TRE, processo n.° 388/11.8IDFAR.E1, disponíveis em www.dgsi.pt). Uma coisa é a dívida fiscal e o procedimento tributário tendente à sua cobrança, inclusivamente na fase da cobrança coerciva, que naturalmente deverá suspender-se caso haja um acordo de pagamento a ser pontualmente cumprido pelo devedor. Outra coisa diferente é o procedimento criminal e suas regras, sendo certo que: (i) por um lado, nem o acordo em causa, nem o seu deferimento pelas finanças, fazem qualquer referência ao procedimento criminal nem à sua eventual instauração ou suspensão ou aos prazos necessários para o efeito; e (ii) por outro lado, há um princípio de legalidade ao qual também as finanças estão vinculadas quando constatam o cometimento de um crime de onde resulta a respectiva obrigatoriedade de ser efectuada a notificação a que alude o art.° 105.°, n.° 4, alínea b), do RGIT após o decurso do prazo da alínea a), do mesmo preceito legal sem que a quantia em dívida se mostre paga sob pena de, se assim não agirem, poderem ser as próprias finanças a prevaricar por acção consciente contra direito e a incorrer, por isso, em responsabilidade criminal. Como se pode ler no acórdão do TRC acima citado: "Certo sendo que o pagamento parcial não releva para efeitos da incriminação, porque se assim fosse ficava sem sentido da expressão "total ou parcialmente" referida no n°1, e "devam constar de cada declaração" referida no n° 7. Se o legislador quisesse que os contribuintes relapsos fossem sancionados não em face dos valores das prestações tributárias calculadas nos termos da lei, mas apenas em face das quantias que não entregaram nos prazos do n°4, não se teria referido à prestação tributária, mas sim ao valor em dívida da prestação tributária. Contra esta interpretação que tem por base, é certo, essencialmente, o elemento literal, não vemos outros elementos que nos possam levar a conclusão preconizada pelo recorrente, sendo certo que, o próprio também os não forneceu limitando-se a lançar a afirmação desacompanhada de quaisquer argumentos onde ela se pudesse apoiar. Mesmo que a letra da lei admitisse, e não admite, outra interpretação, vistas as coisas na perspectiva da unidade do sistema, a interpretação seguida é a que mais se harmoniza com as disposições penais relativas aos crimes de cariz patrimonial. Como qualquer crime contra o património o pagamento ou restituição parciais não descaracterizam o crime embora relevem em sede de medida concreta da pena, podendo, em casos contados, consagrados na lei, levar até à atenuação especial. Relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal, como bem nota o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, o pagamento parcial apenas tem relevância na determinação da medida concreta da pena, como, aliás, foi feito na sentença recorrida, que não merece qualquer reparo." Por fim, no que concerne à justiça da solução legal no plano dos princípios (no sentido de fazer corresponder a não verificação da condição objectiva de punibilidade nos casos de existência de acordo e seu cumprimento pontual) citaremos um segmento do referido acórdão proferido pelo TRP: "(...) essa "equivalência", podendo o legislador tê-la feito, o certo é que não afez, e não pode o juiz, a pretexto de interpretação, invadir a competência do legislador. As realidades são diferentes o que justifica materialmente a diversidade de tratamento jurídico: pagar a prestação acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (art.° 105°, n.°4 al. b) do RGIT), não é assimilável ao acordo de pagamento, do mesmo montante em 24 prestações mensais sucessivas. O pagamento imediato como modo de liquidação de uma prestação tributária é um facto que ocorreu numa data determinada; o acordo de pagamento, diferido no tempo, reportando-nos à mesma prestação tributária, só se transforma em pagamento total, que é o que releva no caso, com a liquidação da última prestação, facto que à data da acusação (...) ainda não tinha ocorrido e não se pode ficcionar. (...)". Subscrevemos, ainda, pela pertinência de razões, o que a recorrente/ assistente escreve na motivação do seu recurso: "19 - Face à letra da lei (art.° 107° e art.° 105° do RGIT), só o efectivo e integral pagamento/entrega à segurança social da totalidade do valor das quotizações deduzido remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito, pode obstar à instauração ou ao prosseguimento do procedimento criminal por abuso de confiança à segurança social; só o cumprimento, pela entidade empregadora/devedora, da condição de pagamento, no prazo de 30 dias após notificação para o feito, da totalidade do montante das quotizações em falta impede o accionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal. 20- A celebração de acordo de pagamento da dívida de contribuições e de quotizações em sede de execução fiscal, não descriminaliza a conduta da entidade empregadora, muito menos não impede/desobriga a segurança social de notificar o devedor, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.° 4 do art.° 105° do RGIT, e não dispensa a entidade empregadora por abuso de confiança à segurança social, de ter de proceder ao pagamento integral desse valor das quotizações, no prazo de 30 dias, que para o referido efeito lhe seja notificado pela segurança social, acrescido dos juros e da coima. 21- A instauração ou a pendência de processo executivo para cobrança coerciva de cobrança dos tributos de contribuições e de quotizações, ou a celebração de acordo de pagamento faseado desse mesmo tributo, no âmbito da execução fiscal, não constitui causa de exclusão da ilicitude ou da exclusão da punibilidade da conduta da dedução das quotizações nos salários e da não entrega à segurança social. 22- Se o legislador quisesse que dedução, pelos empregadores, das quotizações nos salários dos seus trabalhadores e a não entrega das mesmas à segurança social só seriam puníveis se, antes da notificação efectuada nos termos dos disposto na alínea b) do n.°4 do art.° 105° do RGIT, o devedor não tivesse celebrado acordo de pagamento da dívida em prestações em processo de execução fiscal; ou se quisesse que os acordos e pagamento de divida em processo de execução fiscal determinassem a impossibilidade de procedimento criminal por abuso de confiança fiscal relativamente à conduta do abuso de confiança à segurança social pela retenção e não entrega mensal à segurança social dos valores das quotizações retidos nos salários dos trabalhadores, tê-lo-ia dito na letra da lei - e não o diz. 23 — A celebração de acordo de pagamento em prestações de dívida à segurança social, nos termos previstos no código contributivo e nos termos do CPPT, não impede a instauração de procedimento criminal por abuso e confiança à segurança social, nem desobriga a Instituição de Segurança Social de notificar o devedor para proceder ao pagamento integral das quotizações, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 107° e 105°, n° 4 b) do RGIT, nem obsta ao prosseguimento de procedimento criminal pela prática do crime de abuso de confiança à segurança social, nem tão pouco faz desaparecer ou impede a prática do ilícito criminal."» Atento o indiciado circunstancialismo fáctico que se extrai dos autos, aliás não negado pelos arguidos quanto ao aspecto em causa, julgamos ser de proceder o recurso nesta parte, devendo o tribunal recorrido proferir uma decisão de pronúncia em ora devedora de cotizações, caso queira evitar a instauração do procedimento criminal conformidade com o acima exposto.» Destarte a questão ora repristinada neste recurso foi já objeto de apreciação por este Tribunal da Relação e reveste a autoridade de caso julgado com a imposição do pretérito Acórdão, porque incidente sobre a mesma questão, a este5. Ademais impõe-se sublinhar que tal entendimento independentemente de tal vinculação à decisão anterior é também o nosso entendimento sobre tal questão. Assim e quanto a tal questão soçobram os recursos do Ministério Público e dos arguidos. Pretendem, ainda, os recorrentes arguidos que este Tribunal se pronuncie sobre a constitucionalidade da norma do artigo 105.° n.°4, alínea b) do RGIT, aplicável por força do n.°2 do artigo 107.° do mesmo diploma, quando interpretada no sentido em que tal notificação é eficaz, ainda que seja promovida na pendência de um plano de pagamento a prestações válido e em vigor. Resultando das conclusões extraídas do recurso a invocação que «a notificação e a putativa obrigação de pagamento imediato e integral das quantias abrangidas por planos de pagamentos, constituí uma violação da harmonia de sistema e princípios de boa-fé e da confiança, da segurança jurídica e da protecção da confiança, conjugados com os da proporcionalidade e adequação.» E esclarecendo-se na motivação que: (…) a harmonia de sistema e princípio de boa-fé e da confiança, entre o Estado e os cidadãos, não se mostram assegurados com o entendimento do Douto Tribunal de 1.ª instância, ao defender que o contribuinte, após requerer e lhe serem deferidos pelo Assistente o pagamento das prestações, se veja, no decurso do período que lhe foi concedido para pagar, notificado para entregar a totalidade dos montantes em dívida, no prazo de 30 dias, sob pena de ser dado início ao procedimento criminal. Encontrando-se tal notificação em total desconformidade com o comportamento adoptado pelo Assistente, o qual admitiu o pagamento faseado da dívida, tendo conhecimento que o contribuinte faltoso não tem meios para proceder ao pagamento integral e imediato da mesma. Admitindo-se, no limite, a possibilidade de se proceder à notificação prevista no n.° 4 do art.° 105.° do RGIT, no caso de incumprimento do plano prestacional em vigor, E nunca ao contrário, como nos presentes autos, em que o Assistente instaurou cobranças coercivas, celebrou 8 acordos de pagamento, recebeu garantia para cumprimento desses acordos e, volvidos mais de 6 anos, sem que os acordos estivessem a ser incumpridos, procedeu à mencionada notificação com vista à instauração de procedimento criminal contra os Arguidos. Tentado transformar uma dívida regularizada e em regularização, numa dívida exigível e em mora! Pelo que, qualquer tese que admita a validade da mencionada notificação, encontra-se ferida de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da segurança e do princípio da protecção da confiança legítima, decorrentes do princípio de Estado de direito democrático, a que se refere os artigos 2.° e 266.° n.°2 da Constituição da República Portuguesa. Dito isto, O princípio da boa-fé e da confiança emite o valor segundo o qual a Administração deve exercer a sua função, através dos seus agentes e órgãos, mantendo um determinado comportamento ou praticando uma certa conduta, em observância a conteúdos que expressam lealdade, rectidão, honestidade e seriedade, os quais constituem, igualmente, em jeito de reciprocidade, um dever dos contribuintes nos vínculos com a Administração. Com efeito, resulta do ponto 10 dos factos provados que a Arguida celebrou com o Assistente 8 (oito) planos prestacionais, sendo o último plano prestacional requerido a 03 de Setembro de 2021 e autorizado a 11 de Outubro de 2021, o que representa uma clara expectativa quanto ao cumprimento dos planos prestacionais deferidos, ao ponto de nunca se conceber a possibilidade do Assistente adoptar e emitir notificações com vista à responsabilização criminal dos Arguidos, ora Recorrentes. Por outro lado, as expectativas dos Arguidos consideram-se legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, cuja convicção psicológica resulta do comportamento do Assistente, os qual promoveu a cobrança coerciva, através de processos de execução fiscal, celebrou acordos de pagamento e aceitou a garantia com vista ao cumprimento destes, Factos que, por si só, e associados ao hiato temporal de 6 anos que medeia o facto ilícito consumado e a notificação a que se refere o artigo 105.°, n.° 4 alínea b) do RGIT, resultando esta última na frustração das expectativas dos Arguidos, ora Recorrentes. Na mesma linha, e perante os planos de pagamento existente, a Arguida fez planos de vida e investimento tendo em conta a perspectiva do comportamento do Assistente, sendo inquestionável que a Arguida depositou toda a confiança na continuidade dos planos prestacionais, e respectivas obrigações que dos mesmos lhe advinham, Inexistindo razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento do Assistente que gerou a situação de expectativa. Face ao exposto, não pode a confiança depositada pela Arguida, assente na segurança jurídica, deixar de merecer tutela jurídica, não podendo o Direito globalmente considerado ficar absolutamente indiferente à eventual frustração dessa confiança, devendo ser tidos em consideração os princípios da boa-fé, da segurança jurídica e da protecção da confiança, conjugados com os da proporcionalidade e adequação. Sob pena de preterição do Estado de Direito ter-se-á de admitir que se vive sob a legitimação do princípio da confiança, exigindo-se do poder público a boa-fé nas relações com os particulares e o respeito pela confiança que os indivíduos depositam na estabilidade e continuidade do ordenamento jurídico. Como tal, ao contrário do que se mostra defendido pelo tribunal de 1ª instância, face à formulação do pedido de pagamento em prestações realizada pela Arguida ao Assistente, anterior à notificação ao abrigo do n.°4.° do art.° 105.° do RGIT, não pode esta última exigir o pagamento imediato, da totalidade da dívida, no prazo de 30 dias, Sendo certo que, encontrando-se o plano de pagamento em prestações em vigor e a ser cumprido, não pode ser dado início ao procedimento criminal, porquanto não se mostra reunida a condição objectiva de punibilidade, nem ser passível a notificação para tal fim. Sendo tal entendimento sufragado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, distinguindo as consequências diversas da falta de entrega de contribuições devidas à Segurança Social: “Em caso de falta de entrega de contribuições devidas á segurança social, o pagamento em prestações acarretará consequências diversas, para efeito de procedimento criminal, consoante as seguintes situações: A-Formulação de pedido de pagamento em prestações, dentro do prazo de 90 dias subsequente ao termo legal do pagamento da dívida: Se o pedido de pagamento em prestações dá entrada, a entidade credora passa a ter conhecimento de que o contribuinte relapso quer pagar e que não o pode fazer de imediato. Se assim é, até ao encerramento do processo prestacional, não pode a mesma entidade ignorar esse circunstancialismo e notificar o mesmo dito contribuinte para proceder ao imediato pagamento, no prazo de 30 dias, da totalidade do devido; isto é, se o pedido de pagamento em prestações dá entrada antes da notificação realizada ao abrigo do disposto no n°4 do art° 105 do RGIT, esta não pode ser efectuada antes de ocorrerem uma de duas situações -ou o indeferimento do pedido de pagamento em prestações ou, sendo deferido, o seu incumprimento. Até tais momentos temporais, não pode ser dado início ao procedimento criminal, por não se mostrar reunida a condição objectiva de punibilidade que a lei impõe, nem ser passível a notificação para tal fim. Apenas se e quando se verificarem as circunstâncias reportadas aos momentos temporais acima referidos, poderá ser dado cumprimento a tal normativo notificatório. B-Formulação de pedido de pagamento em prestações, após cumprimento da notificação prevista no n°4 do art° 105 do RGIT, dentro do prazo de 30 dias aí previsto: No caso de, quando dá entrada o pedido de pagamento em prestações, este ocorrer já no seguimento da notificação prevista no n°4 do art° 105, mas ainda dentro do prazo de 30 dias aí consignado, de igual modo o procedimento criminal não pode prosseguir, até ocorrerem as mesmas duas situações atrás mencionadas -ou o indeferimento do pedido de pagamento em prestações ou, sendo deferido, o seu incumprimento - pelas mesmas ordens de razões. A única diferença, neste caso, é que não se mostra necessária a repetição da notificação ao abrigo do n°4 do art° 105 do RGIT, se já validamente realizada, uma vez que, não existindo pagamento, quer prestacional, quer integral, a condição objectiva de punibilidade aqui já se mostrará reunida, caso o pedido venha a ser indeferido ou haja incumprimento, dado que quando tal notificação foi feita, não havia ainda sido formulado qualquer pedido de pagamento faseado. C-Formulação de pedido de pagamento em prestações, após esgotamento do prazo de 90 dias e do prazo de 30 dias (após interpelação admonitória): Neste caso, no momento em que é formulado tal pedido, a condição de punibilidade já se verificou e tal pagamento prestacional, a concluir-se, terá seguramente relevo em sede executiva mas, em sede criminal, não interrompe, suspende ou obstaculiza o procedimento criminal, que prosseguirá seus termos normais, relevando apenas tal pagamento para efeitos de eventual pedido cível deduzido e dosimetria da pena, na perspectiva da reparação." (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 21 de Fevereiro de 2024 no âmbito do processo n.°3868/22.6T9FNC.L1-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt) Bem como no Acórdão proferido, pelo mesmo Tribunal, a 05 de Março de 2024: “Para além do preenchimento do comportamento omissivo consagrado no tipo legal, a punibilidade do crime de abuso de confiança contra a segurança social depende ainda da verificação cumulativa e sucessiva das condições estabelecidas no art.° 105.°/4 ais. a) e b) do Regime Geral das Infrações Tributárias, atento o disposto no art.° 107.°/2 do mesmo diploma. Ou seja, sem a sua verificação, não existe responsabilidade criminal do agente, ainda que a sua conduta preencha os demais elementos do tipo.” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 05 de Março de 2024 no âmbito do processo n.°2897/22.4T9FNC.L1, disponível para consulta em https://www.pgdlisboa.Dt/iurel/iur mostra doc.php?nid=5721 &codarea=57) Por todo o exposto, será sempre de questionar se é justificável, quanto aos factos dados como provados nos presentes autos, a aplicação de sanção penal, e/ou se esta não se revela por demais excessiva e desproporcional, porquanto existem outros ramos do direito que acautelar os seus interesses, nomeadamente através dos processos de execução fiscal e dos acordos de pagamento em vigor, Sem esquecer ainda a natureza do próprio direito penal, com carácter subsidiário, e de ultima ratio, reservado aos casos em que a incriminação, para além de adequada, seja absolutamente necessária, Ora, No crime de abuso de confiança, o bem jurídico tutelado são as receitas contributivas do erário público, que é ofendido pela não satisfação de um direito de crédito. Pelo que, existindo um acordo de pagamento válido e em vigor, o ressarcimento das lesões decorrentes do acto ilícito encontra regulado e/ou assegurado, e tais lesões apenas se podem considerar consumadas (ou confirmadas) em caso de incumprimento definitivo (ou impossibilidade de cumprimento) desse mesmo acordo. Neste sentido, A alínea b) do n.°4 do art.° 105.° do RGIT, se interpretada e aplicada no sentido que existindo plano de pagamentos válido e vigor, a notificação prevista no mesmo pode ser efectuada e não sendo cumprida pelos respectivos destinatários, é apta a justificar/fundamentar a punibilidade destes, é manifestamente inconstitucional, nomeadamente, por violação dos referidos princípios da igualdade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, bem como do princípio da proporcionalidade, com a consequente violação dos arts. 13.° e 266.° da CRP, inconstitucionalidade que expressamente se invoca, nos termos e para os devidos efeitos legais e processuais.» Conforme decorre da alegação supra os recorrentes arguidos entendem que a interpretação da norma do 105º nº4 al. b) do Regime Geral das Infrações Tributárias empreendida pelo tribunal onde se inclui este Tribunal da Relação importa a violação de distintos princípios constitucionais, pese embora, apenas citem os artigos 2º, 13º e 266º nº2 da Constituição da República Portuguesa. Não se está, assim, perante uma suscitação processualmente adequada de tal questão de constitucionalidade, porquanto os recorrentes arguidos não indicam de um modo claro e concludente os concretos preceitos constitucionais que entendem estarem atingidos pela interpretação da norma do RGIT em apreço. Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº302/20226: «A suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade implica, no plano formal, que os recorrentes tenham cumprido o ónus de a colocar ao tribunal recorrido, enunciando-a de forma expressa, clara e percetível, envolvendo ainda uma fundamentação, em termos minimamente concludentes, na qual sejam indicadas as razões porque consideram ser inconstitucional a norma que pretendem submeter à apreciação do tribunal, deixando claro qual o preceito ou preceitos cuja legitimidade constitucional pretendem questionar, por forma a criar assim para o tribunal a quo um dever de pronúncia sobre a matéria a que tal questão se reporta.» Acresce que o raciocínio expendido pelos recorrentes assenta no pressuposto, que se considera inadequado, da ausência de autonomia entre a responsabilidade criminal e a tributária e sobretudo esquece a natureza do crime em causa que se consuma no momento em que o agente não cumpre a obrigação tributária sendo, neste sentido, indiferente para a localização espacial e temporal do facto criminoso as designadas condições objetivas de punibilidade (como decorre do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.°6/2008, de 09 de abril7). Com efeito, indica-nos o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias aplicável ao caso vertente ex vi do artigo 107º do mesmo diploma legal que comete o crime de abuso de confiança fiscal quem não entrega à Administração Tributária, total ou parcialmente, prestação tributária (com a extensão que a este conceito é dada nos subsequentes n.ºs 2 e 3) deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar. É consabido que na redação originária do n.º 4 deste preceito, os factos descritos nos números anteriores só eram puníveis se tivessem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação. Por força do artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2007), tal nº4 foi alterado na sua redação convertendo a condição que constava do corpo desse número em alínea a), e inserindo uma nova alínea b), nos termos da qual os referidos factos também só seriam puníveis se «a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.» É inegável que a introdução desta nova condição suscitou divergências doutrinais e jurisprudenciais, tendo, na sequência destas últimas, sido interposto recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, que veio a ser decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de abril de 2008 já supra indicado e que fixou a jurisprudência nos seguintes termos: «A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redação introduzida pela Lei n.º 53‑A/2006, configura uma nova condição objetiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respetiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT).» Esse acórdão de uniformização de jurisprudência começa por assinalar que, na sequência da apontada alteração de redação do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, surgiram fundamentalmente duas teses relativamente à sua interpretação: uma perfilhando o entendimento que tal inovação consistiu na criação de uma nova condição de punibilidade e outra defendendo que tal se consubstanciou numa despenalização. A primeira orientação uniformemente adotada, desde o início, pelo STJ considera que à anterior condição de punibilidade, agora plasmada na alínea a), foi aditada, na alínea b), uma nova condição, mas com a manutenção do recorte do tipo legal de crime: não obstante a alteração do regime punitivo, o crime de abuso de confiança fiscal consuma‑se com a omissão de entrega, no vencimento do prazo legal, da prestação tributária, nada tendo sido alterado em sede de tipicidade. No citado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência invoca-se o Relatório do Orçamento Geral de Estado para 2007, no qual o legislador justifica a introdução de distinção entre, por um lado, os casos em que a falta de entrega da prestação tributária está associada ao incumprimento da obrigação de apresentar a declaração de liquidação ou pagamento do imposto e, por outro lado, os casos de não entrega do imposto que foi tempestivamente declarado, entendendo o legislador que no primeiro grupo há uma maior gravidade decorrente da intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal, postura esta que já não se verificaria nas situações em que a dívida é participada à Administração Fiscal, isto é, nas situações em que há o reconhecimento da dívida tributária, ainda que não acompanhado do necessário pagamento. Estando em causa condutas diferentes, portadoras de distintos desvalores de ação e a projetar-se sobre o património do Fisco com assimétrica danosidade social, elas merecerão, de acordo com o citado Relatório «ser valoradas criminalmente de forma diferente». E acrescenta‑se: «neste sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando‑se a «proliferação» de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, atualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto.» Assentando em tais elementos teleológico e histórico no citado Acórdão concluiu-se que perante uma vontade do legislador que, claramente, assume o propósito de manutenção do recorte do ilícito típico, mas o conjuga com a possibilidade de o agente, nos casos em que tenha havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento, se eximir da punição pela efetivação do pagamento no novo prazo concedido nem a letra nem o espírito da lei permitiam a afirmação de que a conduta, que se traduz numa omissão pura, se encontrava descriminalizada bem como que a alteração produzida, repercutindo‑se na punibilidade da omissão, é, todavia, algo que é exógeno ao tipo de ilícito, devendo ser qualificada como condição objetiva de punibilidade. É inegável que a exigência resultante da referida disposição, na redação dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, foi determinada por razões de operacionalidade judiciária, tendo sobretudo o sentido de impedir que possa ser punido pelo crime de abuso de confiança quem entretanto se tenha disposto a reparar o dano infringido à Administração e, no caso vertente, a interpretação convocada pelos arguidos recorrentes parte do pressuposto que tal dano estava reparado porquanto existindo planos de pagamento a prestações há uma situação contributiva regularizada e há o conhecimento por parte, neste caso do Instituto de Segurança Social da Madeira, da impossibilidade de procederem ao seu pagamento no prazo previsto no artigo 105º nº4 do Regime Geral das Infrações Tributárias. Os recorrentes arguidos aludem à violação dos princípios da segurança, da proteção da confiança legítima, decorrentes do princípio de Estado de direito democrático, a que se refere os artigos 2.° e 266.° n.°2 da Constituição da República Portuguesa conjugados com os da proporcionalidade e adequação e, ainda, aos princípios da igualdade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, bem como do princípio da proporcionalidade mas citam, também, o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa que se refere, como de tal Lei Fundamental resulta, ao princípio da igualdade que os recorrentes não concretizam em que termos é violado pela interpretação em causa, embora a indicação ao artigo 266º sugira que será enquanto refração do normativo ínsito no referido artigo 13º Ademais e, para além de tal normativo, apenas aludem expressamente aos artigos 2º e 266º nº2 da citada Constituição da República Portuguesa. Ora o primeiro aludido preceito sob a epígrafe «Estado de Direito Democrático» prevê «A República Portuguesa é um Estado de direito democrático baseado na soberania popular; no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa» sendo que também não se alcança de modo claro e concludente do arrazoado em que termos é beliscado pela aludida interpretação da norma contida no artigo 105º nº4 al. b) do RGIT embora, uma vez mais por via da indicação conjugada com o artigo 266º nº2, se infira que se almeja a invocação da vinculação da Administração Pública aos ditames constitucionais. Com efeito, prevê-se no citado artigo 266º nº2 inserido no Título IX referente à Administração Pública e sob a epígrafe «Princípios fundamentais» que: «Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé». Como referem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira8: «No nº2 condensam-se vários princípios que, no seu conjunto, e articulados com os princípios individualizados no nº1 («princípio da prossecução do interesse público», «princípio pelo respeito dos direitos e interesses dos particulares») constituem aquilo que se costuma designar como medidas materiais da juridicidade administrativa.». É indiscutível que a Administração Pública (no seu sentido lato) está subordinada à Constituição da República Portuguesa e o princípio da constitucionalidade da administração «exige que a Administração: a) não viole autonomamente a Constituição; b) se paute pelos valores constitucionais no exercícios dos poderes discricionários que a lei lhe deixe; c) interprete e aplique as lei no sentido mais conforme à Constituição. Serão inválidos, podendo ser declarados nulos ou ser anulados consoante os casos os actos administrativos que violem directamente a Constituição. O Princípio da constitucionalidade é ainda relevante para efeitos de densificação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.»9 A Administração Pública (no seu sentido lato) encontra-se, necessariamente, vinculada pelo princípio da legalidade sendo que este assume expressiva latitude porquanto não está em causa apenas lei em sentido lato, mas também os próprios regulamentos administrativos vigentes em cada sector da referida Administração. Os recorrentes aludem à violação do princípio da igualdade que se assume ser enquanto refração do princípio geral consignado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, mas o mesmo refere-se quer à proibição de tratamentos preferenciais quer à obrigação da Administração aplicar de modo consistente segundo os mesmos critérios, as mesmas medidas e as mesmas condições a todos os particulares que se encontrem em situação idêntica, esta obrigação enquanto reflexo «do princípio de autovinculação da Administração associado ao princípio da imparcialidade10». Ora, não se vislumbra em que termos o tratamento concedido, no caso vertente, aos recorrentes arguidos infringiu tais princípios. Com efeito, quer a concessão de planos de pagamentos a prestações aos recorrentes arguidos quer a notificação a que alude o artigo 105º nº4 al.b) do RGIT fundam-se em normas legais cuja incompatibilidade os recorrentes suscitam, mas sem fundamento. Os recorrentes arguidos beneficiaram do acesso aos planos de pagamentos a prestações porque reuniam de acordo com a entidade, para tanto competente, as condições legais a tanto necessárias e os mesmos foram mantidos porque inexistiu incumprimento das condições subjacentes a tais planos de pagamento. O que lhes foi concedido não se distingue do que é concedido a qualquer cidadão em idênticas situações sendo que a circunstância de tais planos de pagamento vigorarem por vários anos é, tão somente, uma expressão da natureza avultada da prestação tributária devida e pelos mesmos omitida preteritamente. Omissão essa que consubstancia a prática de um ilícito criminal cuja consumação já ocorrera antes da celebração de tais planos de pagamento a prestações. Por outro lado, a Administração Pública (em sentido lato) está também vinculada à realização da notificação prevista no aludido 105º nº4 al.b) do Regime Geral das Infrações Tributárias, sob pena de não fazendo infringir os princípios de legalidade, igualdade e imparcialidade, pois, essa notificação é imposta por lei e tem de ser feita a todos os cidadãos que se encontrem em idêntica situação e, por isso, a todos os que se encontrem a proceder ao pagamento da prestação tributária a prestações e a cumprir os planos de pagamento deferidos. Diferente seria se tal notificação apenas tivesse ocorrido no caso particular dos recorrentes em detrimento de uma prática generalizada de não notificação em situações da existência de planos de pagamento a prestações, o que não corresponde à verdade nem os recorrentes arguidos o demonstram. Por outro lado e no que se reporta à proporcionalidade importa salientar que a concessão sucessiva de planos de pagamento a prestações aos recorrentes arguidos é, em si mesma, uma expressão da aplicação de tal princípio porque, no caso concreto, prosseguiu-se o interesse do Estado ao viabilizar a restituição da prestação tributária omitida e a Administração Pública (em sentido lato) fê-lo em detrimento da utilização de outros meios mais gravosos sendo que nestes não se inclui o exercício da ação penal posto que através de tal exercício pretende-se apenas punir a prática de factos que consubstanciam crime. Afigura-se-nos que apenas porque os recorrentes arguidos olvidam que responsabilidade tributária e responsabilidade penal são responsabilidades autónomas entendem que a interpretação empreendida e cuja constitucionalidade suscitam infringe os aludidos princípios. Ademais também não se descortina a violação os princípios da proteção da boa fé ou da confiança porquanto na celebração dos planos de pagamento em causa nos autos não se inclui, consabidamente, qualquer isenção de responsabilidade criminal. A única esperança concedida pelos mesmos é a esperança da Administração Pública (em sentido lato) não os considerar incumpridos fora dos pressupostos a tanto necessários e que sendo cumpridos até à restituição integral das quantias devidas considere extinta a prestação tributária em dívida e nos termos em que o montante global da mesma fora calculado e era do conhecimento dos devedores (neste caso os recorrentes arguidos). Destarte não se vislumbra qualquer violação de princípios constitucionais pela interpretação empreendida na decisão recorrida e perfilhada neste Acórdão e no preteritamente proferido nestes autos. Assim, entende-se não merecerem provimento os recursos interpostos pelo Ministério Público e arguidos AA e BB. 3- DECISÓRIO: Nestes termos e em face do exposto acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em não conceder provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e arguidos AA e BB. Uma vez que o Ministério Público está isento de custas condena-se apenas cada um dos recorrentes AA e BB em custas em fixando-se em 4 UC a taxa de justiça (art. 513º do Cód. de Processo Penal e 8º nº9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último). Notifique. * Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificadas supra. * Tribunal da Relação de Lisboa, 19 de novembro de 2025 Ana Rita Loja Sofia Rodrigues Mário Pedro M.A. Seixas Meireles _______________________________________________________ 1. vide Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995. 2. Artigos 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 proferido no processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30/06/2016 proferido no processo 370/13.0PEVFX.L1. S1. 3. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335 4. Neste sentido, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2015, de 8 de janeiro de 2015, proferido no processo n.º 398/09.5TAGLS.E1-A.S1 de que é Relatora Isabel São Marcos e publicado em Diário da República, I-Série, n.º 35, de 19 de fevereiro de 2015, pp. 967-982 5. Vide Miguel Teixeira de Sousa (in “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, págs. 49 e ss.”) quando escreve: “a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, já “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição da decisão antecedente”. 6. Proferido no processo nº420/2022 e de que é Relator José Eduardo Figueiredo Dias 7. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de Abril de 2008-Diário da República, I Série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, p. 2672. 8. Constituição da República Portuguesa Anotada Volume II, Coimbra Editora, 4ª Edição Revista, 2010, anotação VI, página 797. 9. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa Anotada Volume II, Coimbra Editora, 4ª Edição Revista, 2010, anotação VII, página 798. 10. Vide ob. Citada anotação XI página 801 |