Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3389/20.1T8CSC.L1-2
Relator: TERESA BRAVO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Sumário:
1. Não constitui ação relativa à casa de morada de família a ação declarativa de condenação da Ré (ex-companheira do Autor em sede de união de facto) intentada junto de um juízo central cível em que o A peticiona a condenação da ex- companheira a entregar-lhe o imóvel que é da sua exclusiva propriedade e ao pagamento de uma indemnização pela privação do uso, quando a união de facto cessou há mais de treze anos e as razões que justificaram a presença daquela no imóvel já não se verificam.
2. A qualificação de uma ação como ação de reivindicação do direito de propriedade ou relativa à casa de morada de família faz-se em função o objeto do litígio, tal como resulta do pedido e da causa de pedir, devendo o Juiz a quo espelhar essa qualificação quando elabora o despacho a que se alude no art. 596º do C.P.C.
3. É de confirmar a sentença da primeira instância que condenou a Ré na entrega da casa e no pagamento de uma indemnização ao Autor, pelo uso indevido, quando se mostra provada a propriedade exclusiva do imóvel em favor deste, quando as filhas do ex-casal, unido de facto, já se mostram emancipadas, residindo noutro local e, o Autor por diversas vezes havia interpelado, sem sucesso, a Ré ,para efetuar aquela entrega.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. Relatório
AA intentou ação declarativa de condenação contra BB, pedindo que:
«A) [seja] declarado que o A é o proprietário do imóvel identificado no §1.º [fração autónoma de letra “CE”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º ....., correspondente ao 3 piso, rés-do-chão Direito, sito na Rua 1, do concelho de Cascais];
B) [seja] a R condenada a reconhecer o A [como] o legítimo proprietário do imóvel identificado no §1.º;
C) [seja] a R condenada a restituir o imóvel ao A; [e]
D) [seja] a R condenada, pela ocupação indevida[,] a pagar ao A a quantia mensal de 1.000€ (mil euros) desde a citação da presente ação até à efetiva desocupação do imóvel».
Alegou como causa de pedir, em síntese, que:
i) em 25/01/2000, adquiriu, por compra, o imóvel acima identificado, onde viveu com a R., em união de facto, e as duas filhas de ambos;
i) o relacionamento com a R. terminou em Junho de 2007, tendo nesta data deixado de residir nesse imóvel;
iii) para assegurar o bem-estar das filhas, à data menores, permitiu que a R. continuasse a residir na sua casa com as filhas até à maioridade e independência económica destas, continuando a suportar sozinho as prestações de amortização do empréstimo bancário contraído para aquisição do imóvel, as despesas de condomínio e com o consumo de água e luz;
iv) sucede que as filhas já são maiores e economicamente independentes e têm, cada uma, a sua residência;
v) por isso, vem interpelando a R. para que lhe restitua o referido imóvel, a fim de passar aí a residir com a sua atual mulher e os filhos menores de ambos ou afetá-lo a fins lucrativos;
vi) contudo, a R. recusa-se a fazê- lo, continuando a usufruir de um bem que não lhe pertence, sem qualquer custo – apesar de não ter qualquer título que lhe conceda esse direito – e privando o A. da possibilidade de usar e fruir esse mesmo bem, como é seu direito (artigo 1305.º do Código Civil), pelo que deve a R. ser condenada na restituição do imóvel e no pagamento de uma indemnização ao A., conforme peticionado.
A R. contestou, impugnando os factos invocados como causa de pedir.
Alegou, no essencial, que «com a separação de facto, por acordo entre Autor e Ré, tal imóvel manteve-se como a casa de morada de família da Ré e das suas filhas sem prejuízo da via pessoal e académica destas», sendo que o A. tem, desde então, livre acesso ao mesmo, tendo mesmo aí instalado em tempos um negócio de alojamento local, em conjunto com a R., a fim de assegurar a esta uma fonte própria de rendimento. Com efeito, quando começaram a viver juntos renunciou, a pedido do A., ao exercício da sua profissão para cuidar da casa e da família de ambos, não tendo, por isso, angariado meios que lhe permitissem assegurar o seu futuro, designadamente comprando uma casa para viver, ao passo que o A. Tem diferentemente diversos imóveis, sendo abusivo, nesse contexto, exigir-lhe a restituição da referida fração autónoma.
Após os articulados, foi o A. convidado a aperfeiçoar a petição inicial, no que respeita às razões da quantificação da indemnização pedida em €1000,00, nos termos do artigo 590.º, nºs. 2, alínea b), e 4, do CPC, e a responder à matéria da contestação, que se considerou comportar matéria excetiva, o que o mesmo fez pelo seu requerimento de 21/06/2021, reiterando tudo quanto alegara na PI.
Os autos prosseguiram os seus termos, dispensando-se a realização da audiência prévia com o acordo das partes, e proferindo-se por escrito quer o despacho saneador, quer o despacho a que alude o n.º 1 do artigo 596.º do CPC, que não mereceu reclamação das partes.
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Foi fixado o Objeto do litígio bem como os Temas da Prova nos seguintes moldes:
“OBJECTO DO LITÍGIO
1. Saber se a R. está obrigada a restituir ao A. o imóvel identificado no artigo 1.º da PI;
2. Em caso afirmativo, saber se a R. deve pagar ao A., desde a citação e até à efetiva entrega desse imóvel ao A., a quantia mensal de €1.000,00, a título de indemnização por privação do uso.
TEMAS DA PROVA
1. Apurar se A. e R., aquando da sua separação, acordaram que esta última ficaria a residir no imóvel acima referido, mesmo depois de as filhas de ambos atingirem a maioridade e independência económica e deixarem de aí residir.
2. Apurar se e em que termos o A., à data da instauração da ação, estava privado de utilizar o referido imóvel.
3. Apurar o valor locatício do mesmo imóvel.”
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Após, pelo Tribunal a quo foi proferida sentença na qual ficou decidido o seguinte:
“6. Decisão
Pelo exposto, julgo a ação totalmente procedente, por provada, e, em consequência:
a) declaro que o A. é proprietário da fração autónoma designada pela letra “CE” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º ....., correspondente ao 3.º piso, rés-do-chão Direito, sito em Rua 1, concelho de Cascais;
b) condeno a R. a restituir ao A. a fração autónoma acima identificada;
c) condeno a R. a pagar ao A., a título de indemnização pela privação do uso da referida fração autónoma, a quantia de €1000,00 (mil euros), desde a citação até à efetiva entrega do imóvel.”
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A Ré recorreu desta decisão, tendo o recurso sido admitido como apelação com efeito suspensivo.
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Em sede de recurso, a Apelante /Ré na ação principal, invocou os seguintes argumentos:
1. Existe um facto que deveria ter sido dado como provado e não o foi, que é o imóvel em causa ter sido casa de morada de família do Recorrido, Recorrente e filhas de ambos, desde a sua aquisição, pelo que, o número 3. dos Factos Provados foi erradamente julgado.
2. Resulta provado por confissão de ambas as partes, do teor dos articulados e, bem assim, dos depoimentos das testemunhas e das declarações de parte prestadas pelo Autor, aqui Recorrido que, o imóvel sempre foi casa de morada de família.
3. Pelo que a redação do facto 3 deverá ser a seguinte: “O A. e R. viveram nesse imóvel, desde a sua aquisição, como se fossem marido e mulher, juntamente com as duas filhas de ambos, CC e DD, constituindo essa casa de morada de família.”
4. Ora, não se tendo a sentença pronunciado sobre a existência de casa de família, que foi invocada pela Recorrente e, por isso, questão que devia conhecer, fere a mesma de nulidade, nos termos da alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC e, mesmo que assim não fosse, sempre a decisão sobre a matéria de facto teria de ser colocada em crise, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c) do CPC, determinando-se a anulação da decisão.
5. Também o ponto 4 dos Factos Provados, foi erradamente julgado, pois foi nele consignado que o Recorrido deixou a casa em Julho de 2007.
6. Perante a prova produzida, impunha-se decisão diversa, passando o número 4. dos Factos Provados a ter, somente, a seguinte redação:
“Em Julho de 2007, o A. e a R. separaram-se.”
7. E, deve ser acrescentado um número 13. com o seguinte teor:
“O A. após a separação continuou a usar o imóvel, tendo usado o mesmo até como sede da sociedade Mar de Nuvens, SA, desde a data da sua constituição, 5 de Fevereiro de 2010 até 27 de Maio de 2021 e como alojamento local.”
8. O número 5. dos Factos Provados foi erradamente julgado uma vez que, se se atender à motivação da matéria de facto provada fixou-se apenas em convicções. Convicções essas que não resulta de quaisquer regras de experiência comum.
9. Não ficou provado que tenha sido celebrado um acordo escrito quanto ao destino da casa de morada de família, talqualmente, também não ficou provado que não tivesse sido celebrado esse mesmo acordo verbal, quanto à casa de morada de família. Ou seja, inexiste segurança jurídica suficiente em para dar por provado que existiu, nem que não existiu esse acordo entre as partes.
10. A sentença ao se ter pronunciado sobre a intenção de o Recorrido ter somente pretendido proteger as filhas menores, conheceu questão que não podia conhecer, ferindo-a de nulidade, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC e mesmo que a decisão sobre a matéria de facto não fosse nula, sempre seria anulável, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c) do CPC.
11. Face à prova invocada e aos depoimentos acima já transcritos, o 5. Dos Factos Provados deve ser eliminado.
12. Não resulta de qualquer prova produzida ao longo do processo que se possa aceitar como bom que as filhas da Recorrente e do Recorrido sejam independentes, aliás, as duas filhas mantêm a residência na casa de morada de família.
13. Perante o depoimento acima transcrito e a aceitação do ponto que antecede pelo Recorrido, o 6. dos Factos Provados deve ser eliminado.
14. Não existindo qualquer prova documental quanto à residência da filha CC e estando provado que a residência fiscal daquela é a do imóvel dos autos, não se entende como se poderá ter dado por provado que a mesma tem residência própria e na morada indicada.
15. Posto isto, também o ponto 7. da decisão colocada em crise deve ser eliminado.
16. Também o número 8. dos Factos Provados foi erradamente julgado, pois não foi produzida qualquer prova de que o Recorrido tivesse pedido a entrega do imóvel desde que as filhas deixaram de habitar com a Recorrente. A única prova produzida foi a carta remetida em 26/11/2020, pelo que se impunha decisão diversa sobre esse facto, a de que este tivesse a seguinte redação:
“Em 26/11/2020, o A. enviou à R. carta registada com o seguinte teor: (…)
17. Também o número 10. dos Factos Provados foi incorretamente julgado uma vez que, a) a sentença recorrida ignorou a transação alcançada e homologada por despacho judicial, na audiência realizada no âmbito da providência cautelar a 13/09/2024 que correu termos por apenso aos presentes autos, no âmbito da qual a Recorrente reconheceu ser devedora ao Recorrido da quantia de € 3.257,31, relativa às faturas de água, eletricidade e gás, assumindo o pagamento de tal quantia em prestações mensais, o que tem cumprido integralmente.
18. O número 10. dos Factos Provados, deve ser eliminado.
19. É assim nula a sentença recorrida, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por ter decidido sobre a suposta existência de um facto ilícito que não podia conhecer, como resulta do objeto do litígio e, concomitantemente, por não se ter pronunciado sobre a verificação dos requisitos legais enumerados no n.º 1, do artigo 483.º do Código Civil, que tinha responsabilidade de apreciar.
19. Também se coloca em crise a decisão proferida por não ter sido produzida qualquer prova, documental ou testemunhal, que fundamente a existência de quaisquer danos/prejuízos.
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Em sede de contra-alegações, pelo Recorrido/ Autor na ação principal, foi invocado que:
1. Inexiste qualquer elemento de prova que sustente que o Recorrido tenha continuado a residir no imóvel objeto dos presentes autos porquanto, ainda que lá tivesse a sede de uma empresa isso não significa que lá residisse.
2. O facto n.º 4 da douta decisão recorrida manter-se nos seus precisos termos porquanto o negócio do alojamento local não foi avante em virtude da recorrente se recusar a receber os hóspedes.
3. Os factos n.ºs 5, 6 e 7, considera a Recorrente que os mesmos deveriam “ser eliminados”, ora, da prova produzida e das regras da normalidade e da experiência comum, foram tais factos corretamente julgados, tendo o douto Tribunal a quo de forma cabal explicitado como formou a sua convicção, o que fez com manifesta objetividade, isenção e clarividência.
4. Resultou provado que ambas as filhas saíram de casa em 2017, tendo cada uma delas o seu trabalho e a sua residência, residindo a filha CC na Nova Zelândia e a filha DD em Mem-Martins.
5. No que à suscitada nulidade da decisão recorrida diz respeito, a mesma não se verifica, pois o Tribunal a quo decidiu – e bem - tal questão, isto é, saber se assiste ao Recorrido o direito a ser indemnizado pelos danos decorrentes da privação do uso do imóvel objeto dos presentes autos causada pela Recorrente, nos termos peticionados.
6. Com efeito, a douta decisão recorrida não julgou nem mais nem menos, na medida em que se debruçou sobre questão suscitada pelo Recorrido, decidindo-a. Concluindo, a douta decisão não está ferida de nulidade, nos termos da alínea d) do n.º 1, do artigo 615.º do CPC.
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2. Factos provados
Da Sentença recorrida, constam os seguintes factos dados como provados:
1. Encontra-se inscrita a favor do A. a fração autónoma designada pela letra “CE” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º ....., correspondente ao 3 piso, rés-do-chão Direito, sito em Rua 1, concelho de Cascais.
2. O A. adquiriu o referido imóvel, por escritura pública de compra e venda celebrada em 25 de Janeiro de 2000.
3. O A e a R viveram nesse imóvel, como se fossem marido e mulher, juntamente com as duas filhas de ambos, CC e DD, até Junho de 2007.
4. Em Julho de 2007, o A. e a R. separaram-se, tendo o primeiro, com o fim desse relacionamento, deixado, desde então, de aí residir.
5. Para assegurar o bem-estar das filhas, que à data eram menores, o A. aceitou que a R. continuasse a residir nesse imóvel com as filhas, até à maioridade e independência destas.
6. As filhas CC e DD são hoje maiores e economicamente independentes dos pais, tendo, à data da instauração da ação, 24 e 20 anos de idade, respetivamente.
7. Saíram de casa em 2017, tendo cada uma delas, desde então, a sua própria residência, residindo a filha CC na Nova Zelândia e a filha DD na Rua 2.
8. O A., desde que as filhas deixaram de aí residir, vem pedindo à R., sem sucesso, a restituição do imóvel, tendo inclusive dirigido a esta, em 26/11/2020, carta registada, que a mesma recebeu, com o seguinte teor:
«(…)
Na qualidade de proprietário do imóvel para habitação sito na Rua 3, venho pela presente notificar, e interpelar pela derradeira vez, a V. Exa. de que deverá restituir o imóvel com a máxima brevidade mediante a entrega das chaves.
Conforme é do V. conhecimento V. Ex.ª não é detentora de nenhum título legítimo para continuar a fruir do gozo do imóvel para habitação, pelo que a não restituição do imóvel por V. Ex.ª apresenta-se como conduta ilícita por ofensa ao meu direito de propriedade.
(…)».
9. O A. paga uma prestação mensal de €700,00, para amortização do empréstimo bancário contraído para a aquisição do referido imóvel, e uma prestação trimestral de €666,00 de condomínio.
10. O A. paga ainda as despesas com o consumo de água e eletricidade, estando os respetivos contratos de fornecimento em nome dele.
11. O imóvel identificado em 1. supra tem, atualmente, um valor locatício mensal não inferior a €2.000,00.
Factos não provados
Nada mais se provou, com relevância para o julgamento da causa.
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Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Nos termos do disposto no artigo 640.º, n.º 1, do CPC, sendo impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o RECORRENTE obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Decorre ainda do disposto no art.640º, nº1 e nº2 al. b) que deve o recorrente, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exatidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respetiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
No mesmo sentido, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que, do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
O Supremo Tribunal de Justiça tem adotado uma jurisprudência flexível que tem pretendido evitar uma “exponenciação rigorista” dos ónus previstos no art. 640º do C.P.C, de molde a que, numa lógica de razoabilidade e proporcionalidade o recorrente não veja ser-lhe negada a reapreciação da matéria de facto, vide Abrantes Geraldes et. All in O Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2025, 3ª Ed. Coimbra, pág. 831.
Face ao exposto e ainda que as conclusões do recurso não constituam propriamente uma síntese das alegações, é possível identificar as questões a serem apreciadas nesta sede.
São as seguintes as questões a decidir:
a) Das nulidades da sentença;
b) Da impugnação dos factos dados como provados nos pontos 3,4, 5,6,7,8,10 e do aditamento do facto 13.
c) Se a Ré deve entregar a casa ao Autor e pagar-lhe uma indemnização pela privação do uso;
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3. Enquadramento Jurídico:
a) Das nulidades da sentença:
Em sede de recurso a recorrente sustenta que a sentença proferida padece das seguintes nulidades;
i. A sentença não se pronunciou sobre a existência de casa de família, que foi invocada pela Recorrente e, por isso, tratando-se de questão que devia conhecer, tal omissão fere a mesma de nulidade, nos termos da alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;
ii. A sentença ao ter-se pronunciado sobre a intenção de o Recorrido ter somente pretendido proteger as filhas menores, conheceu questão que não podia conhecer, ferindo-a de nulidade, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC e mesmo que a decisão sobre a matéria de facto não fosse nula, sempre seria anulável, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, al. c) do CPC.
iii. É assim nula a sentença recorrida, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por ter decidido sobre a suposta existência de um facto ilícito que não podia conhecer, como resulta do objeto do litígio e, concomitantemente, por não se ter pronunciado sobre a verificação dos requisitos legais enumerados no n.º 1, do artigo 483.º do Código Civil, que tinha responsabilidade de apreciar.
Preceitua o citado artº. 615º, nº. 1 al. d), do CPC que “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento”.
Decorre de tal norma que o vício que afeta a decisão pode advir de uma omissão (1º. segmento da norma) ou de um excesso de pronúncia (2º. segmento da norma).
Preceito legal esse que deve ser articulado com o nº. 2 no artº. 608º do CPC, onde se dispõe que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo não se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Importa, antes de mais, distinguir o que se podem denominar de “questões” e diferenciá-las dos argumentos ou das valorações das partes, considerando o objeto do litígio e os temas de prova.
Assim, o conceito de “questões” deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, não incluindo os argumentos ou os motivos de fundamentação jurídica elencados pelas partes.
A este propósito, considerando a anterior redação do atual 615º do NCPC, já se pronunciava Antunes Varela, nos seguintes moldes:
“Não pode confundir-se de modo nenhum, na boa interpretação da alínea d) do artº 668º do CPC, as questões que são colocadas que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto e de direito), os argumentos e pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão» ( A. Varela, Rev. Leg. Jur., ano 122º, pg. 112).”
Se bem atentarmos no pedido e na causa de pedir, em lado algum, o Autor se refere ao imóvel que reivindica, como a casa de morada de família. Esta alusão apenas nos é trazida pela Ré, na sua contestação, e sob a forma de “exceção” quando alega que o objeto da presente ação é, nada menos que a atribuição e/ou extinção do direito sobre a casa de morada de família de um dos ex-cônjuges/unidos de facto.
Todavia, importa a este propósito, salientar que, a união de facto entre as partes terminou em Julho de 2007 com a saída do Autor de casa e, por isso, ao tempo da propositura desta ação (02.12.2020), ou seja, volvidos cerca de 13 anos desde a cessação da coabitação e da união de facto, lícito é concluir que já não se pode falar em casa de morada de família.
Mais, se analisarmos, quer a petição inicial, quer o despacho que fixou os temas da prova e o objeto do litígio, dos mesmos resulta que este enquadramento do litígio foi afastado desde logo pelo Tribunal a quo quando, não só não elege tal como um dos temas de prova ou objeto do litígio mas, ao invés, declara desde logo improcedentes, quer a exceção de erro na forma do processo, quer a implícita alegação de incompetência material dos juízos centrais cíveis para apreciar e decidir tal matéria.
É que, a ação relativa à casa de morada de família, prevista no Código de Processo Civil (CPC), é um processo de jurisdição voluntária, que visa a atribuição do uso da habitação a um dos ex-cônjuges após a separação. A decisão baseia-se em critérios de equidade e conveniência, ponderando as circunstâncias de cada caso, como as necessidades dos filhos, a situação económica e o bem-estar dos cônjuges, conforme estipulado no artigo 1793.º do Código Civil (CC)
No caso em apreço, estamos antes perante uma ação de reivindicação do direito de propriedade e não de um litígio sobre a atribuição da casa de morada de família.
Nesta medida, não vislumbramos qualquer fundamento na alegada nulidade invocada em i).
Mas o mesmo também se poderá dizer em relação ás outras duas nulidades, invocadas em ii) e iii), embora por razões distintas.
Relativamente à alegação de que o Tribunal não podia conhecer da intenção do Réu e espelhá-la na matéria de facto porquanto, tratar-se-ia de questão que não lhe cumpre conhecer afigura-se-nos que, a recorrente confunde a livre convicção do julgador espelhada na matéria de facto, com as questões legais que lhe cabe apreciar.
Aquele segmento cabe nos poderes cognitivos do Tribunal em sede de apreciação da matéria de facto, se a mesma resultou da prova produzida em julgamento e se reproduz a convicção do julgador a partir da prova produzida em audiência.
Afigura-se-nos, que aquela convicção do julgador, espelhada nos factos provados, mostra-se devidamente justificada e não constitui propriamente uma questão autónoma que ao tribunal competisse apreciar ou decidir.
No tocante à terceira putativa nulidade- a de que o tribunal não se pronunciou sobre a verificação dos requisitos legais enumerados no n.º 1, do artigo 483.º do Código Civil, que tinha responsabilidade de apreciar, parece-nos, salvo melhor entendimento, que a Recorrente também confunde matéria de direito, com nulidades da sentença.
O Tribunal a quo não está adstrito à qualificação jurídica do litígio tal como as partes ou a parte o concebem, por isso, goza de liberdade interpretativa e de aplicação do direito aos factos.
É, no entanto, entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que, só a falta absoluta de fundamentação que torne de todo incompreensível a decisão é que releva para efeitos da sobredita nulidade. Assim, esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão.
Pelo que, apenas nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (art. 208º, n.º 1, CRP e art. 158º, n.º 1 do C.P.C).
No caso vertente, o Tribunal fundamentou a sua decisão sustentando a sua posição na mais recente orientação jurisprudencial, a saber;
“De todo o modo, reclamando o A. uma indemnização pela privação do uso e nada tendo sido alegado/provado sobre as concretas vantagens e utilidades de que o mesmo se viu privado (não vale como tal a alegação genérica de que eventualmente se pretendia habitar o imóvel ou arrendá-lo), justifica-se uma tomada de posição.
Ora, pelas razões enunciadas nesse aresto e na maioria da jurisprudência mais recente sobre o tema, afigura-se que «a simples privação do uso, só por si, constitui um dano indemnizável, mesmo que nada se prove sobre a respeito da utilização ou destino que seria dado ao bem» (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05/03/2024, proferido no processo n.º 3106/20.6T8VIS.C2).
É que, na normalidade das situações, o proprietário de um bem pretende dele extrair – e extrai – utilidades concretas. É, aliás, por referência a essa ideia utilitária que o artigo 1305.º do CC define as faculdades típicas do direito de propriedade (uso, fruição e disposição). Por isso, nada se provando que saia da normalidade das coisas, no que respeita à vontade ou à possibilidade de exercício de tais faculdades, que são intrínsecas ao direito de propriedade, é de conceder ao proprietário de um bem que dele se vê privado, pela ingerência ilícita de um terceiro, o direito a uma indemnização pela simples privação desse uso. Na impossibilidade de reconstituição natural (artigo 562.º do CC) e de determinação do valor exacto do dano, deve recorrer-se à equidade na fixação do valor da indemnização devida pela privação do uso, conforme permitido pelo n.º 3 do artigo 566.º do CC. Ora, ponderando-se os factos provados, designadamente o valor locatício do imóvel, e o tempo que o A. se viu privado dele contra a sua vontade (pelo menos, desde 20/11/2020; cfr. ponto 8. dos factos provados), afigura-se ser de fixar o valor da indemnização em €1000,00 mensais desde a data da citação até à efectiva entrega do imóvel, conforme peticionado.”
Concorde-se ou não com essa opção, a mesma é legítima e não constitui qualquer nulidade da sentença. Por este conjunto de razões, são inatendíveis as nulidades invocadas pela recorrida.
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Passemos agora à questão da impugnação da matéria de facto.
b) Da impugnação dos factos dados como provados nos pontos 3,4,5,6,7,8,10 e do aditamento do facto 13.
Factos 3 e 4
A recorrente insurge-se contra a redação dada pelo Tribunal a quo relativamente ao facto provado nº3 invocando que, o imóvel em causa foi casa de morada de família do Recorrido, Recorrente e filhas de ambos, desde a sua aquisição, pelo que, propõe uma nova redação, a saber:
O A. e R. viveram nesse imóvel, desde a sua aquisição, como se fossem marido e mulher, juntamente com as duas filhas de ambos, CC e DD, constituindo essa casa de morada de família.”
Também quanto ao ponto 4 dos Factos Provados, aquela considera que foi erradamente julgado, pois foi nele consignado que o Recorrido deixou a casa em Julho de 2007 e que, perante a prova produzida, impunha-se decisão diversa, passando o número 4. dos Factos Provados a ter, somente, a seguinte redação: “Em Julho de 2007, o A. e a R. separaram-se.”
A propósito daqueles factos foi a seguinte a fundamentação da decisão do tribunal:
“Os factos constantes dos pontos 1. a 4. e 6. a 10. estão provados por documentos (certidão do registo predial, cópia da certidão da escritura pública de compra e venda e carta datada de 20/11/2020) e/ou admitidos por acordo.”
Sublinhe-se, antes do mais, que os factos dados como provados nos pontos 3 e 4 resultam do que foi pelo Autor alegado na petição inicial e que, em sede de contestação, tal foi expressamente aceite pela Autora. Daí que, na fundamentação da matéria de facto o Juiz a quo tenha explicitado que tal resultou em primeira linha do acordo das partes.
Acresce também que, a redação pretendida pela Autora, pelo menos, em relação ao ponto 3 dos factos dados como provados constitui um juízo conclusivo que não deverá ser incluído na matéria de facto dada como provado.
Mais, analisado a argumentação que sustenta esta pretensão, a mesma não nos convence porquanto, afigura-se-nos que a recorrente pretende substituir a redação dada àquele facto tribunal por uma outra, resultante da sua convicção subjetiva e que vá ao encontro da sua pretensão.
É que importa relembrar, a propósito do ónus que recai sobre o impugnante da matéria de facto que não basta uma mera discordância, antes terá que ser uma discordância fundamentada, que ponha a lume as deficiências da prova produzida e da respetiva análise formulada pelo Tribunal a quo.
Veja-se assim o AC. STJ de 30.11.2023, relatado por Manuel Capelo e que pode ser consultado em https://juris.stj.pt;
“Porém, a maior parte das vezes, a indagação do desacordo sem enunciação das respetivas razões dificilmente permitirá ao julgador conhecer da impugnação. A impugnação não é uma possibilidade de o recorrente obter uma segunda convicção sobre o mesmo facto identificando-o a ele e ao meio de prova, obrigando o juiz a ir à procura de eventuais razões de discordância que o recorrente não alegou. É pelo contrário a invocação de um erro sobre a matéria de facto com a indicação de qual é o facto, qual é o meio de prova, quais as razões de discordância e como deveria ser julgado.”
(…)
O legislador indicou que o impugnante não deve limitar-se a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda ou parte da prova produzida em primeira instância e daí que há muito o STJ se pronuncie no sentido de não estar cumprido o ónus se o apelante, nas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna – vd. acs. de 19-12-2018, no proc. n.º 271/14.5TTMTS.P1. S1 e de 05-09-2018 no proc. n.º 15787/15.8T8PRT.P1. S2. E igual jurisprudência recomenda que esta problemática seja presidida pelo princípio da proporcionalidade com a preocupação de efetuar uma análise rigorosa em face de cada caso concreto no sentido de se poder aproveitar das alegações/conclusões o que, sem esforço ou excesso de interpretação do art. 640 do CPC, seja inteligível da impugnação e da possibilidade de a conhecer.
Improcede, nesta medida, a referida pretensão.
Complementarmente à alteração daqueles pontos da matéria de facto a recorrente pretende ainda um aditamento aos factos provados (o facto 13) o qual, deveria ter, na sua ótica, a seguinte redação:
Aditamento do facto 13:
“O A. após a separação continuou a usar o imóvel, tendo usado o mesmo até como sede da sociedade Mar de Nuvens, SA, desde a data da sua constituição, 5 de Fevereiro de 2010 até 27 de Maio de 2021 e como alojamento local.”
Ora, por requerimento datado de 21.06.2021 foram juntos aos autos três documentos que justificam, em nosso entender, o aditamento de dois novos factos à matéria dada como provada mas não exatamente nos mesmos moldes pretendidos pela Autora, atentas as “nuances” da prova produzida.
Efetivamente, trata-se da certidão do registo comercial da sociedade anónima Mar de Nuvens, da Declaração Comprovativa da Declaração de Alterações de Atividade do sujeito passivo aqui Autor (AA, NIF .........), e de um anúncio de um site de imobiliário, no qual, surge o imóvel dos autos identificado como “Alojamento Local”.
Estes documentos tem que ser devidamente conjugados com as declarações de parte do Autor (que ouvimos na íntegra e reputamos de sinceras) porquanto, detalhou com pormenor e de modo objectivo, os eventos posteriores à sua separação da Ré e às diversas tentativas que fez para encontrar uma solução para a casa do Estoril (atentas as despesas que tinha com esta e as dificuldades financeiras que enfrentou a determinada altura da sua vida).
No âmbito desse depoimento esclareceu que, para não prejudicar as filhas, manteve um escritório no imóvel onde ia com frequência e, no qual, a partir de 2018 tentou implementar um negócio de alojamento local, com a Ré, que iria tratar das “limpezas” e do atendimento aos hóspedes.
Não é por isso, totalmente rigorosa a versão da Ré vertida naquela proposta de aditamento, uma vez que, a exploração do alojamento local visava também atender ao facto daquela não ter rendimentos do trabalho que lhe permitissem maior autonomia.
Ou seja, a utilização do imóvel não seria feita exclusivamente para beneficiar o Autor mas também para benefício da própria Ré, que o habitava e não possuía quaisquer rendimentos.
Aditamos, por isso, dois novos factos, mas com a seguinte redação:
13. Através da AP 5/20100205, relativa à sociedade Mar de Nuvens, SA, constituída em 5 de Fevereiro de 2010, do qual o Autor era administrador, foi registada a respetiva sede no imóvel sito na Rua 3, local onde o Autor dispunha de um escritório.
14. Pela AP 79/20210527 foi registada a mudança de sede da mesma sociedade anónima para a Rua 4.
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Factos 5,6 e 7
Pretende ainda a recorrente que, os factos dados como provados em 5 6 e 7 sejam eliminados.
Alega que tais factos foram erradamente julgado(s) uma vez que, na motivação o Juiz a quo apenas atende a convicções, convicções essas que não resultam, no entender da recorrente, de quaisquer regras da experiência comum.
Invoca também que, não ficou provado que tenha sido celebrado um acordo escrito quanto ao destino da casa de morada de família, talqualmente, também não ficou provado que não tivesse sido celebrado esse mesmo acordo verbal, quanto à casa de morada de família. Ou seja, inexiste segurança jurídica suficiente para dar por provado que existiu, nem que não existiu esse acordo entre as partes.
Relativamente à utilização da expressão “acordo” importa esclarecer que a mesma deve ser entendida no contexto em que emerge, isto é, o tribunal a quo pretendeu referir-se ao entendimento (tácito) entre o ex-casal e no âmbito do qual se procurou atender ao bem estar das duas filhas, assegurando a sua continuidade na casa em que já viviam.
E é nesse sentido que deve tal expressão ser interpretada.
Acresce ainda que a recorrente se para o efeito no depoimento de DD (uma das filhas do casal) e na ausência de declarações de rendimento destas, para impugnar aquela matéria.
Releva, para este efeito, o segmento que transcreveu:
“Testemunha: “2017 fui para os Estados Unidos, estudei lá cerca de 2 anos”.
Mandatário do Recorrido: Sim.
Testemunha: “E depois regressei a Portugal. Quando regressei a Portugal.
Mandatário do Recorrido: “19, portanto 2019”.
Testemunha: “2019 sim, fui morar para casa do meu avô. A casa de São João era um alojamento local, portanto fui para casa do meu avô. Depois disso, fui morar para uma casa no Algueirão, que pertencia à companheira do meu pai e agora estou noutra casa”.
Se bem atentarmos na globalidade da prova produzia e na forma como o tribunal a quo explico o seu raciocínio logico dedutivo, afigura-se-nos que teve o cuidado de fundamentar exaustivamente a sua convicção relativamente aqueles factos nos seguintes moldes:
“Assim se compreende que, tendo as filhas do A. e da R. saído de casa no ano de 2017 (como atestado pelas testemunhas EE, amiga do A. de longa data e namorada do pai deste, e FF).”
E contrariamente ao alegado pela recorrente, da conjugação daquele excerto e sopesadas ainda as declarações do Autor constata-se que, à luz das regras da experiência comum, é perfeitamente legítimo concluir (como o fez a primeira instância) que as filhas do casal já não vivem com nenhum dos progenitores e uma delas vive, inclusive, no estrangeiro, sendo por isso, pessoas autónomas, para o que aqui interessa.
“ Apurou-se que a relação da A. e do R. terminou repentinamente em 2007, por iniciativa do primeiro e na sequência de uma nova relação afectiva por ele iniciada com uma terceira pessoa (neste sentido, as declarações de parte do A. e o depoimento da testemunha FF, sua irmã). Apurou-se também que, quando o ocorreu a separação e o A. saiu de casa, as duas filhas de ambos eram ainda menores (aproximadamente, com 7 e 11 anos de idade), sendo que, desde o nascimento da primeira filha, e por decisão conjunta de ambos, a A. deixou de ter um trabalho remunerado para se dedicar por inteiro à família, não tendo, pois, desde então, rendimentos provenientes do trabalho e, ao que tudo indica, doutra natureza (depoimentos das testemunhas FF e GG, empregada doméstica no imóvel entre 2007 e 2009). Neste contexto, é lógico e compreensível, à luz das regras da experiência comum, que a preocupação fundamental do A. fosse assegurar a estabilidade emocional das filhas, mantendo, quanto possível, as suas rotinas quotidianas, na casa onde sempre viveram, enquanto fossem menores e economicamente dependentes dos pais, ainda que isso implicasse custos financeiros para o A. (provou-se que o A., mesmo depois da separação, continuava a dar mensalmente dinheiro à R. para as suas despesas e a suportar sozinho todos os custos com a casa, incluindo a prestação mensal do empréstimo bancário contraído para a sua aquisição, condomínio, consumos de água e luz – declarações de parte do A. e depoimento da testemunha FF). Ora, isso mesmo resultou das declarações de parte do A., que foram confirmadas pela prova testemunhal produzida: a testemunha HH, amigo próximo e de longa data do A., referiu, com base em conversas que teve com este ao tempo dos acontecimentos, que, após a separação, a R. ficou em casa do A. com as filhas porque «o A. queria que as filhas continuassem a viver na casa delas»; a testemunha II, companheira do pai do A. à data da separação, afirmou ter o seu companheiro comentado consigo que, enquanto as meninas (netas) estivessem em casa, a R. ficaria na casa com elas, o que foi então transmitido pelo A. ao seu pai; a testemunha FF referiu ter estado presente num almoço com o pai e com o A., pouco depois da separação, tendo este assegurado a ambos que, apesar da separação, «a casa era dos dois e não iria faltar nada à BB e às meninas». Ora, esta afirmação, interpretada em contexto (ruptura de uma convivência afectiva de longa data, com as características acima destacadas, no seio de uma família alargada então muito unida, como resultou da globalidade da prova produzida), visava, sobretudo, garantir ao pai, avô das filhas, que as netas não iriam sofrer com a separação. Aliás, segundo esta última testemunha, a preocupação central do pai do A. era também a «estabilidade emocional das meninas». Assim, a permanência da R. na casa do A. e, mesmo, o apoio financeiro que este lhe continuou a prestar após a separação eram, na perspetiva do A. e dos familiares deste, apenas um meio de garantir essa mesma estabilidade, e não uma opção que tivesse por eixo central a preocupação de assegurar à R., e muito menos para sempre, a satisfação das necessidades desta, designadamente habitacionais. Por isso, deixando de se verificar, com a maioridade e independência económica das filhas, a necessidade de assegurar essa estabilidade, valor reconhecidamente essencial na fase da infância e da adolescência, deixou também de haver causa que justificasse a permanência da R. na referida casa. Assim se compreende que, tendo as filhas do A. e da R. saído de casa no ano de 2017 (como atestado pelas testemunhas EE, amiga do A. de longa data e namorada do pai deste, e FF), recusando-se a R. a restituir a casa ao A. E estando este a atravessar dificuldades financeiras, por graves litígios familiares relacionados com o negócio da família (cfr. depoimentos das testemunhas HH e FF), o mesmo A. se tivesse visto forçado, perante tais constrangimentos, a optar sucessivamente por arrendar a casa e com parte do produto da renda suportar o custo do arrendamento de uma casa mais pequena para a R. – que não trabalhava, nem tinha outra fonte de rendimentos – (cfr. depoimento da testemunha JJ), por colocar a casa no mercado de alojamento local, continuando a R. a residir nela e a gerir com o A. esse negócio (depoimento da testemunha KK), e, mesmo, por colocar a casa à venda e dar parte do preço à R. (depoimento da testemunha FF) todas, sublinhe-se, soluções de recurso impostas pela permanência da R. na casa do A. e condicionadas pela circunstância subjectivamente complexa de se tratar da sua ex-companheira e mãe das filhas; e não opções efectivamente demonstrativas de que o A. reconhecesse à R. qualquer direito de ocupação do imóvel, que ultrapassasse a mera tolerância que sobreveio à saída de casa das filhas.
Quanto ao facto referido no ponto 11., considerou-se, sobretudo, o depoimento da testemunha LL, dono da empresa que administra o condomínio do prédio onde se insere a fracção do A., que afirmou haver no condomínio fracções autónomas, com as características daquela (tipologia T3), arrendadas por valores que oscilam entre €1800,00 e €2500,00, os quais, considerando a localização (São João do Estoril) e os altos preços praticados no mercado imobiliário, no concelho de Cascais, permitem fazer uma avaliação aproximada, pelo mínimo, do valor locatício da fracção em discussão nos autos.”
Em conclusão, parece-nos mais uma vez que, a recorrente pretende substituir a redação do tribunal por uma outra, resultante da sua convicção pessoal, e que vá ao encontro da sua pretensão mas sem lograr apresentar argumentos verdadeiramente convincentes que nos permitam afastar a convicção do tribunal a quo.
Facto 8
Invoca a recorrente que, também o número 8. dos factos provados foi erradamente julgado, pois não foi produzida qualquer prova de que o Recorrido tivesse pedido a entrega do imóvel desde que as filhas deixaram de habitar com a Recorrente.
Alega que, a única prova produzida foi a carta remetida em 26/11/2020, pelo que se impunha decisão diversa sobre esse facto, que tivesse a seguinte redação:
“Em 26/11/2020, o A. enviou à R. carta registada com o seguinte teor: (…)
É esta a redação dada na sentença ao facto nº8:
8. O A., desde que as filhas deixaram de aí residir, vem pedindo à R., sem sucesso, a restituição do imóvel, tendo inclusive dirigido a esta, em 26/11/2020, carta registada, que a mesma recebeu, com o seguinte teor:
«(…)
Na qualidade de proprietário do imóvel para habitação sito na Rua 3, venho pela presente notificar, e interpelar pela derradeira vez, a V. Exa. de que deverá restituir o imóvel com a máxima brevidade mediante a entrega das chaves.
Conforme é do V. conhecimento V. Ex.ª não é detentora de nenhum título legítimo para continuar a fruir do gozo do imóvel para habitação, pelo que a não restituição do imóvel por V. Ex.ª apresenta-se como conduta ilícita por ofensa ao meu direito de propriedade.
(…)».
Improcede, em nosso entendimento a argumentação apresentada pela recorrente no tocante a este segmento da matéria de facto dada como provada porquanto, atenta a prova produzida em audiência ficou claro, para este tribunal ad quem, que o Autor fez, desde a separação em 2007 e até à data da propositura desta ação, várias tentativas para arranjar uma solução para a casa do Estoril (a dos autos) a fim de retirar daí algum proveito monetário e minimizar despesas, mas sem sucesso.
Após audição do depoimento prestado pelo Autor em audiência constata-se que, a determinada altura, a Ré recusou-se a sair do imóvel e a ir viver para outra casa. Mais resultou provado que o Autor não conseguia pagar os empréstimos pelo que tinha que arranjar uma solução, nomeadamente, vender a ca.a
Facto 10
Na ótica da recorrente, também o número 10. dos Factos Provados foi incorretamente julgado uma vez que, a sentença recorrida ignorou a transação alcançada e homologada por despacho judicial, na audiência realizada no âmbito da providência cautelar a 13/09/2024 que correu termos por apenso aos presentes autos, no âmbito da qual a Recorrente reconheceu ser devedora ao Recorrido da quantia de € 3.257,31, relativa às faturas de água, eletricidade e gás, assumindo o pagamento de tal quantia em prestações mensais, o que tem cumprido integralmente. Propugna assim pela eliminação do número 10. dos Factos Provados.
Relembremos a redação daquele ponto:
10. O A. paga ainda as despesas com o consumo de água e eletricidade, estando os respetivos contratos de fornecimento em nome dele.
Entendemos que não asiste qualquer razão à recorrente neste ponto por duas razões: em primeiro lugar, o tribunal a quo não está vinculado à prova produzida noutra ação nem à decisão que ali venha a ser proferida (ainda que seja o resultado de uma transação) e, muito menos, na providência cautelar como aliás resulta, expressamente, do disposto no art. 364º, nº 4 do C.P.C que estatui, a propósito da relação, entre procedimento cautelar e ação principal, o seguinte:
“4. Nem o julgamento, nem a decisão sobre a matéria de facto, nem a decisão final produzida no procedimento cautelar tem qualquer influencia no julgamento da ação principal.”
Em segundo lugar, tendo a prova produzida em julgamento sustentado o juízo do julgador (que aliás se mostra devida e suficientemente fundamentado) a quo, não vemos qualquer motivo para alterar essa convicção, especialmente, quando a impugnação se mostra vaga e genérica e, como tal, insuscetível de infirmar o juízo anteriormente formulado.
Improcede, como se viu, a impugnação da matéria de facto tal como pretendida pela recorrente, mantendo-se a mesma nos seus precisos termos com exceção dos factos que supra aditamos sob os números 13 e 14.
c) Se a Ré deve entregar a casa ao Autor e pagar-lhe uma indemnização pela privação do uso;
Como se viu supra, este tribunal de recurso entendeu que o recurso de apelação, com fundamento na impugnação da matéria de facto tal como gizado pela recorrente não poderia proceder, mantendo-se, por isso, a factualidade dada como provada na primeira instância qua tale, exceção feita aos aditamentos dos factos 13 e 14.
Não obstante, tais aditamentos não influenciam, em nosso entendimento, a solução jurídica do caso que, como vimos, constitui uma ação de reivindicação nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1311º do CC.
Considerando o exposto, o tribunal de recurso não vê fundamento para alterar a decisão recorrida em matéria de direito, a qual se mostra acertada.
Da reclamação quanto a custas:
Uma última questão que importa resolver e que o Juiz a quo (certamente por lapso, não decidiu), nos termos do disposto no art. 641º, nº1 do C.P.C e que diz respeito à reclamação da condenação em custas efetuada pelo Autor, tal como vertida na sentença.
A sentença recorrida condenou A e R a pagarem as custas na proporção do respetivo decaimento, sendo que a cargo do Autor seriam 2/3 e a cargo da Ré 1/ 3.
Ora, por requerimento de 24.02.2025, o reclamante (Autor) requereu que deverá a douta sentença ser reformada no que às custas diz respeito, devendo, assim, a Ré ser condenada ao pagamento da totalidade das custas, em virtude dos pedidos formulados pelo A. terem sido julgados totalmente procedentes.
Em face do que acima ficou (explicado e decidido), bem como, atenta a condenação da Ré na totalidade do pedido, afigura-se-nos que, o reclamante tem razão e a decisão da sentença sub judice, nesta parte, não se poderá manter.
Nesta medida, reforma-se a sentença da primeira instância determinando-se que será a Ré mulher a suportar as custas na totalidade atento o seu integral decaimento.
4. Decisão:
Acordam os juízes Desembargadores desta 2ª secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em considerar o recurso de apelação parcialmente procedente, nos seguintes termos:
a) no tocante à matéria de facto provada, aditam-se à matéria de facto dada como provada o números 13 e 14, com a seguinte redação;
13. Através da AP 5/20100205, relativa à sociedade Mar de Nuvens, SA, constituída em 5 de Fevereiro de 2010, do qual o Autor era administrador, foi registada a respetiva sede no imóvel sito na Rua 3, local onde o Autor dispunha de um escritório.
14. Pela AP 79/20210527 foi registada a mudança de sede da mesma sociedade anónima para a Rua 4.
b) No demais, confirmar a decisão recorrida nos seus precisos termos.
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Custas a cargo da recorrente, atento o seu decaimento.
Notifique.

Lisboa, 20 de novembro de 2025
Teresa Bravo
António Moreira (em substituição)
Pedro Martins