Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
395/25.3T8MFR.L1-2
Relator: SUSANA MESQUITA GONÇALVES
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
DECLARAÇÃO DE VONTADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I - O uso de expressões como “estou farta disto” e “vou entregar a casa”, proferidas pela arrendatária perante o senhorio num contexto em que é confrontada com a deterioração do locado causada pelo subarrendatário, são, por si só, insuficientes para que se considere indiciado, com um mínimo de segurança, que a Requerida haja expresso, de forma inequívoca e cabal, uma vontade negocial de fazer cessar o contrato de arrendamento, em especial se a mesma continua, depois disso, a proceder ao pontual pagamento das rendas.
II – Nos termos do art.º 218º do CC, o silêncio apenas vale como declaração negocial quando esse valor lhe seja atribuído, por lei, uso ou convenção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados:
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I. Relatório:
J (…) e M (…) vieram intentar procedimento cautelar não especificado contra P (…), Lda., pedindo:
- A restituição provisória da posse do locado aos Requerentes, com a imediata desocupação e entrega das chaves pela representante legal da requerida;
- A fixação de sanção pecuniária compulsória, no valor diário de € 50,00, por cada dia de incumprimento da ordem de desocupação.
Para o efeito, em súmula, alegam ser proprietários e possuidores de bem imóvel que deram de arrendamento à Requerida para fins habitacionais e que esta sublocou a terceiro. Em visita realizada ao locado o Requerente inteirou-se de deteriorações tidas por anormais, tendo os Requerentes transmitido a situação à Requerida, comunicando-lhe que a mesma constituía causa de resolução e a sua pretensão de cessação do contrato de arrendamento. O subarrendamento cessou e o subarrendatário deixou o locado. Foi realizada nova visita pelo Requerente, no decurso da qual a Requerida denunciou verbalmente o arrendamento, o que foi aceite pelos Requerentes. Os efeitos materiais dessa denúncia não se consumaram na data, em virtude da vontade dos Requerentes em formalizar um auto de desocupação concomitante com a entrega das chaves. Desde então a Requerida adotou uma postura remissa, o que motivou o envio de missiva, expressando, entre o mais, a confirmação da denúncia.
Mais alegam que findo o arrendamento a Requerida não procedeu à entrega do locado, ocupando-o sem título que a legitime, o que causa prejuízos aos Requerentes, correspondentes às rendas que poderiam auferir com a colocação do prédio no mercado de arrendamento e à sua continuada deterioração.
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Citada, a Requerida deduziu oposição.
Em síntese, refuta a ocorrência da denúncia verbal invocada pelos Requerentes, bem como a sua ineficácia abstrata, por inobservância de forma legal, para a produção dos correspondentes efeitos. Conclui assim que o contrato de arrendamento se mantem em vigor e alega que continua a pagar as rendas.
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Foi realizada audiência com produção de prova, após a qual foi proferida sentença cujo segmento decisório se reproduz:
(…)
III – DECISÃO
Nos termos e com fundamento no exposto, julga-se o presente procedimento cautelar totalmente improcedente e, em consequência, decide-se absolver a requerida P (…), Lda. dos pedidos contra si formulados nos presentes autos.
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Custas pelos requerentes.
À falta de elementos no processo que permitam a fixação de valor diverso, fixa-se ao procedimento o valor processual de € 30.000,01 (artigo 297.º n.º 1 in fine, 305.º n.º 4 e 306.º n.º 2 in fine, todos do Código de Processo Civil).
Registe-se e notifique-se”.
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Não se conformando com essa decisão, os Requerentes dela vieram recorrer, formulando as seguintes conclusões que se reproduzem:
(…)
XI-CONCLUSÕES
A. O juízo de indiciação nas providências cautelares exige apenas verosimilhança do direito e perigo na demora, não exige prova plena.
B. A prova produzida demonstra indícios sérios de denúncia verbal e aceitação tácita da cessação do contrato.
C. Com efeito, na audiência final ficou demonstrado, pelo depoimento do filho dos apelantes (gravação 20250908094135_5037896_2871368: 00:08:40 a 00:09:21 e 00:09:54 a 00:12:40), que na reunião de janeiro de 2025 a representante da recorrida manifestou intenção de cessar o contrato e entregar o imóvel, afirmando:
a) estar “farta.
b) querer entregar o arrendado.
c) ter feito obras, salientando que não faria mais nenhuma;
D. Ainda por esse depoimento ficou demonstrado:
a) que um dos apelantes e o filho de ambos aceitaram a entrega do imóvel, mas fizeram questão de remeter a entrega das chaves numa outra reunião, com vista a ser lavrado auto sobre o estado daquele.
b) que na segunda visita (a de janeiro de 2025), a representante da recorrida afirmou que o contrato estava terminado e queria entregar a chave do imóvel nessa altura.
c) que, após ter recebido a carta de 11-02-2025, a representante da recorrida não disse nada, oralmente ou por escrito, apesar dos apelantes terem aproveitado tal missiva para, em regime de cautela, confirmar a denuncia verbal do contrato feita por aquela na segunda visita (a de janeiro de 2025).
d) Que este silêncio reforçou tal confirmação, até porque, depois da segunda visita (a de janeiro de 2025) um dos apelantes e o filho de ambos reuniram várias vezes com a representada da recorrida, com vista a tentar um acordo para o futuro que passaria inevitavelmente pela outorga de um novo instrumento, e a mesma nunca disse que o contrato se mantinha.
E. O silêncio da recorrida perante a carta de 11-02-2025 confirma a denúncia verbal.
F. As rendas transferidas foram devolvidas e a posterior consignação em depósito demonstra litígio e recusa dos apelantes.
G. Está verificado o periculum in mora, dada a privação ilegítima da posse e os prejuízos iminentes.
H. O Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento e violou o artigo 362º do CPC, bem como os artigos 217º a 236º e 762º do CC.
Nestes termos, os apelantes impetram a admissão do presente recurso e que o mesmo seja julgado procedente e por via desse juízo:
a) Ser reconhecida a existência de fumus boni iuris e periculum in mora;
b) Ser a decisão final revogada e substituída por outra que decrete a providência, reconhecendo os indícios suficientes de cessação do contrato e entrega da posse, ou subsidiariamente;
a) Ser anulado o julgamento da prova e ordenada a baixa dos autos para a sua renovação, com apreciação adequada do depoimento do filho dos apelantes e do silêncio da recorrida”.
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Notificada, a Requerida contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:
(…)
CONCLUSÕES
A. O recurso deve ser parcialmente rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por incumprimento do ónus do artigo 640.º do CPC, dado que os Recorrentes não indicaram com exatidão as passagens da prova gravada nem os concretos factos impugnados.
B. Não se verifica qualquer erro na apreciação do depoimento do filho dos Recorrentes. O Tribunal a quo analisou criticamente a prova e concluiu, com base em regras de experiência, que tal depoimento é insuficiente para indiciar denúncia tácita do contrato de arrendamento.
C. O Tribunal a quo concluiu corretamente que expressões vagas atribuídas à representante da Recorrida, como “estar farta”, não consubstanciam declaração negocial inequívoca de cessação contratual.
D. A continuidade do pagamento pontual das rendas é facto objetivo que afasta a existência de vontade de cessação. O juízo do Tribunal a quo é fundado na verosimilhança factual, não na exigência de certeza probatória.
E. A alegação de que o silêncio da Recorrida confirma denúncia verbal é juridicamente improcedente. O artigo 218.º do CC apenas atribui valor negocial ao silêncio por lei, uso ou convenção, o que não foi alegado nem demonstrado pelos Recorrentes.
F. A própria carta de 11-02-2025 enviada pelos Recorrentes, não contém qualquer advertência quanto a efeitos cominatórios da ausência de resposta, revelando incoerência na posição processual adotada.
G. O recurso invoca doutrina e jurisprudência gerais sobre procedimentos cautelares sem aplicação útil ao caso concreto, onde não se apuraram indícios sérios de existência do direito invocado.
H. A Sentença Recorrida cumpre, com as devidas adaptações à forma de tramitação e natureza do procedimento cautela, as exigências previstas no artigo 607.º do CPC, sendo a análise probatória livre, fundamentada e compatibilizada com regras de experiência, inexistindo qualquer erro de subsunção normativa.
I. Não se verifica o fumus boni iuris, nem a ponderação de interesses demonstra periculum in mora a favor dos Recorrentes. A restituição provisória da posse prejudicaria de forma desproporcional o direito ao gozo do imóvel pela Recorrida.
J. O Tribunal a quo aplicou corretamente os artigos 1079.º e seguintes do CC e o disposto no n.º 1 do artigo 9.º do NRAU, concluindo que não houve denúncia válida nem qualquer forma legal de cessação contratual imputável à Recorrida”.
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O recurso foi corretamente admitido, com o efeito e modo de subida adequados.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as seguintes:
- Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- Da verificação dos pressupostos de que depende a procedência do presente procedimento cautelar inominado.
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III. Fundamentação de Facto:
Na sentença recorrida foram considerados indiciariamente provados os seguintes factos:
(…)
1. Através da Ap. 14 de 21-10-1993, com causa em compra, encontra-se registada a aquisição pelos requerentes do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de (…).
2. Por instrumento particular intitulado “CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO DE DURAÇÃO DETERMINADA”, outorgado a 11-03-2013 entre os requerentes e a requerida, os primeiros deram à segunda, que aceitou, “de arrendamento […], para habitação, […], o primeiro andar do imóvel identificado [indicado em 1. supra], composto por quatro assoalhadas, cozinha corredor e duas instalações sanitárias”.
3. Nos termos da “Cláusula Quinta” do instrumento indicado no número anterior “[o] contrato, com início em 1 de Abril de 2013, é celebrado pelo prazo de 3 (três) anos, renovando-se por iguais períodos se não for denunciado por qualquer das partes”.
4. Nos termos da “Cláusula Sexta” do instrumento indicado em 2. “[a] SEGUNDA OUTORGANTE [a requerida] pagará à PRIMEIRA OUTORGANTE [os requerentes], até ao dia 8 (oito) do mês a que disser respeito, e por depósito na conta […], a renda mensal de €500,00 (quinhentos euros)”.
5. Nos termos da “Cláusula Décima Segunda” do instrumento indicado em 2. “[a] SEGUNDA OUTORGANTE [a requerida] fica autorizada a sublocar, no todo ou em parte, o primeiro andar agora arrendado”.
6. A requerida conferiu o gozo da parte do prédio objeto do acordo indicado em 2., mediante retribuição, a AA (…), a 01-02-2018, por 3 anos, automaticamente renováveis.
7. Na sequência de visita realizada pelos requerentes na parte do prédio objeto do acordo indicado em 2., ocorrida a 20-01-2024, o acordo indicado em 6. cessou os seus efeitos.
8. Por missiva datada de 05-02-2024, remetida em representação dos requerentes à requerida, com o assunto “Cessação de Contrato de Arrendamento”, os primeiros comunicaram à segunda que:
- “no decurso de visita levada a cabo a esta fração, em 2024/01/20, verificaram que a mesma apresentava um elevado estado de degradação, muito para além de um uso normal […]”;
- “[d]egradação essa que vos foi transmitida tendo V. Exªs assumido que iriam repor todos os estragos ao ponto de se terem comprometido a debelá-la o mais depressa possível, pois já tinham comunicado aos usufrutuários da casa para saírem”;
- “[o]s meus clientes [os requerentes] registaram tal compromisso, mas informaram que, ainda assim, deixaram de estar reunidas as condições para a manutenção do arrendamento em causa”;
- “[n]o entanto, apesar dessa degradação constituir causa de resolução, […], os meus clientes [os requerentes] em nome das boas relações com V. Exªs, […], pretendem a cessação do mesmo pela via suasória”;
- “[a]ssim, sirvo-me desta missiva para, em nome dos meus clientes [os requerentes], declarar a cessação do arrendamento em causa, com efeitos imediatos, e solicitar a V. Exªs a desocupação da fração, de pessoas e bens, até 2024/04/30”.
9. A 20-01-2025, foi realizada visita à parte do prédio objeto do acordo indicado em 2., em que tomaram parte a representante legal da requerida, BB (…), a requerente e o seu filho, CC (…), em ordem a verificar se o prédio estava nas condições em que havia sido entregue pelos requerentes à requerida.
10. Por missiva datada de 11-02-2025, remetida pelos requerentes à requerida, que a recebeu a 12-02-2025, com o assunto “Cessação de Contrato de Arrendamento”, os primeiros comunicaram à segunda que:
- “[n]o decurso de visita levada a cabo ao interior da fração, verificámos que a mesma apresentava um elevado estado de degradação, muito para além de um uso normal, […]” e que a “degradação constitui causa de resolução, […]”;
- “[n]o entanto, V. Exª, nessa visita, deu o arrendamento em causa por cessado, inclusive por a fração já estar livre de pessoas e bens, uma vez que o subarrendatário já tinha saído em definitivo”;
- “[n]o entanto, solicitamos marcação de nova visita para registo de auto de entrega do imóvel, o que não se veio a verificar da sua parte”;
- “[a]ssim, confirmamos e declaramos a cessação do arrendamento em causa, com efeitos a partir da data dessa a definir por vossa excelência, pelo que solicitamos V. Exª nos informe data e hora para a entrega das chaves do locado à porta do mesmo”.
11. A requerida tem procedido ao pagamento dos montantes previstos no acordo indicado em 2., o que faz, desde 15-05-2025, através de depósito junto da Caixa Geral de Depósitos e em benefício dos requerentes, em função da devolução pelos requerentes dos montantes para o efeito transferidos pela requerida”.
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Na mesma sentença foram considerados como não indiciados os seguintes factos:
(…)
A. Em visita ocorrida na parte do prédio objeto do acordo indicado em 2., ocorrida a 20-01-2025, a representante legal da requerida, BB (…), informou a requerente e o seu filho, CC (…), que fazia cessar por denúncia o referido acordo, com efeitos imediatos.
B. Em tal ocasião, a representante legal da requerida acordou na realização de nova visita ao imóvel com vista a ser lavrado auto de desocupação do mesmo e proceder à entrega das correspondentes chaves.
C. Os requerentes propuseram à requerida a celebração de novo acordo, com o mesmo objeto que aquele referido em 2., com uma remuneração mensal equivalente a € 1.500,00”.
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IV. Mérito do Recurso:
- Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Para a impugnação da matéria de facto deve a parte observar os requisitos legais previstos no artigo 640º do CPC, incluindo a formulação de conclusões, pois são estas que delimitam o objeto do recurso.
Preceitua o citado artigo 640º, do CPC:
1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 – O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636º.
Sobre essa norma pronunciou-se, entre outros, o Acórdão do STJ de 30.11.2023, processo 556/21.4T8PNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, referindo que “Como tem sido enunciado pela jurisprudência deste STJ – ver por todos o ac. de 29.10.2015 no processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1 in dgsi.pt – este regime consagra um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. O ónus primário é integrado pela exigência de concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. A), b) e c) do nº1 do citado art.640º, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. O ónus secundário traduz-se na exigência de indicação das exatas passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do nº 2 do mesmo art. 640 tendo por finalidade facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência.
De acordo com esta delimitação entende-se que, não sendo consentida a formulação ao recorrente de um convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, deverá ter-se atenção se as eventuais irregularidades se situam no cumprimento de um ou outro ónus uma vez que a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1 do referido art. 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, enquanto a falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, al. a) terá como sanção a rejeição apenas quando essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo do tribunal de recurso – vd. Abrantes Geraldes in “ Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed. , págs. 169 a 175.”
Por seu lado, a respeito do ónus de alegar e formular conclusões, o art.º 639º, n.º 1, do CPC, determina que “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
É conhecida a divergência jurisprudencial existente a respeito da aplicação do art.º 640º do CPC e da sua conjugação com o art.º 639º, n.º 1, do mesmo diploma.
Face a essa divergência, o STJ, por Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2023 (publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I, de 14.11.2023, com Declaração de Retificação n.º 25/2023), proferido a 17.10.2023, no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, uniformizou a jurisprudência no sentido de que “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.
Nesse Acórdão, a propósito dessa temática, é afirmado, designadamente, o seguinte:
Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso.
Quando aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso, conforme o n.º1, alínea c) do art.º 640, (…).
Em sínteses, decorre do art.º 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.”
Em face do exposto, conclui-se que da conjugação do disposto nos artigos 639º, n.º 1 e 640º do CPC, resulta que o ónus primário a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao Tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto.
Já quanto à alínea a), do n.º 2, do art.º 640º do CPC, a mesma consagra, como vimos, um ónus secundário, cujo cumprimento deverá igualmente ser observado sob pena de rejeição do recurso na parte respetiva, mas que não tem de estar refletido nas conclusões recursivas.
Nesse sentido, entre outros, veja-se o Acórdão do STJ de 12.04.2024, proferido no processo n.º 823/20.4T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se escreveu: “IV- O ónus do artigo 640.º do CPC não exige que todas as especificações referidas no seu n.º 1 constem das conclusões do recurso, sendo de admitir que as exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 deste artigo, em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.
Na presente situação, os Apelantes, nas respetivas conclusões recursivas, referem que “A prova produzida demonstra indícios sérios de denúncia verbal e aceitação tácita da cessação do contrato” (ponto B.) e que “(…) ficou demonstrado (…) que na reunião de janeiro de 2025 a representante da recorrida manifestou intenção de cessar o contrato e entregar o imóvel”. Da referida alegação é possível concluir, com segurança, que os Apelantes impugnam o ponto A. do elenco de factos dados como não indiciados. Já do alegado no corpo das alegações decorre que os Apelantes pretendem que esse facto passe a integrar o elenco de factos indiciariamente provados. Por fim, no que se refere aos meios de prova nos quais os Apelantes alicerçam o seu entendimento, os mesmos encontram-se identificados nas conclusões recursivas, com indicação, no que concerne à prova gravada, das respetivas passagens da gravação.
Atento o exposto, porque se verificam os pressupostos legalmente exigidos para o efeito, iremos conhecer da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Como vimos, os Apelantes impugnam o ponto A. do elenco de factos não indiciados.
É o seguinte seu o teor:
A. Em visita ocorrida na parte do prédio objeto do acordo indicado em 2., ocorrida a 20-01-2025, a representante legal da requerida, BB (…), informou a requerente e o seu filho, CC (…), que fazia cessar por denúncia o referido acordo, com efeitos imediatos.
Pretendem os Apelantes que esse facto passe a integrar o elenco de factos indiciariamente provados.
Invocam para o efeito o depoimento da testemunha CC (…), bem como o silêncio da Requerida perante a carta datada 11.02.2025, o qual defendem confirmar a denúncia verbal.
Ouvimos o depoimento da testemunha CC (…), filho dos Requerentes.
Declarou ter feito uma visita ao imóvel no qual constatou que a casa estava “bastante insalubre”. A D. BB (…) (mais à frente identificada como a legal representante da requerida) não esteve presente nessa visita mas contactaram-na depois, comunicando-lhe que a casa estava insalubre. Ela disse que “estava farta desta situação”, que “ia pedir ao inquilino para sair”, “ia vagar a casa, para nos entregar a casa”. No dia em que estava combinada a entrega das chaves com a D. BB (…) ocorreu outra visita, decorrendo do seu depoimento que esteve presente na mesma. Nessa visita constatou que tinham sido realizadas algumas reparações pela Requerida, pese embora mal feitas, tendo a D. BB (…) dito que “estava farta de tudo isto”, “que queria nos entregar a casa”. Face ao estado da casa disseram-lhe que “aceitamos a entrega do apartamento mas vamos escrever uma série de incorreções para combinarmos um dia seguinte ou outro dia para recebermos a chave”. A partir daí a D. BB (…) foi adiando a entrega das chaves até que chegou a data limite em que tinham que comunicar a “rescisão” do contrato e ela disse que não entregava a chaves. Esclareceu mais à frente que nessa data não ficaram com as chaves.
Concordamos com a análise que desse depoimento foi feita pelo Tribunal a quo.
Ainda que o relato da testemunha acima assinalado se tenha revelado espontâneo e convicto, a verdade é que se mostra de todo insuficiente para que se considere indiciado, com um mínimo de segurança, que a Requerida haja expresso, de forma inequívoca e cabal, uma vontade negocial de fazer cessar o contrato de arrendamento. Como se refere em sede de “Motivação” na sentença recorrida, “ainda que se conceda quanto à plausibilidade da vontade de elaboração de um auto listando as deteriorações do prédio pelos requerentes, pouco credível é – sob qualquer critério de verosimilhança ou consentaneidade com as regras da experiência – que os requerentes hajam refutado a entrega imediata das chaves do locado, no momento em que a requerida expressou a vontade de fazer cessar o contrato vigente, também no imediato. Foi enviada uma comunicação que os requerentes entendem ou entenderam apta a fazer cessar o contrato um ano antes da visita em apreço (facto 8.), não se tendo por crível que, ante essa vontade e o conflito de interesses pretérito, não aceitassem a chave (a disponibilidade do prédio, leia-se) de imediato, independentemente da intenção de realizar um auto – sendo que poderiam sempre fazer fotogramas do locado concomitantemente com a entrega das chaves –.
De todo em todo, no sentido da não indiciação do facto invocado, é concludente o pagamento continuado pela requerida do montante ajustado pelo gozo do imóvel. Caso a requerida pretendesse, como invocam os requerentes, fazer cessar o contrato no imediato, que interesse teria a mesma no pagamento pontual das quantias devidas pelo seu gozo? É mais consentâneo com padrões de normalidade que a requerida não haja tentado fazer cessar o contrato verbalmente do que um suposto arrependimento da manifestação de tal vontade (ultrapassando o reputado agastamento com a relação contratual) a escassos dias de satisfazer nova renda, como fez”. Note-se que o que aqui releva é a vontade da Requerida de proceder ao pagamento das rendas e esse efetivo pagamento, independentemente da sua aceitação ou rejeição por parte dos Requerentes, pois essa vontade e esse pagamento contrariam a intenção, que os Requerentes lhe apontam, de fazer cessar o contrato de arrendamento.
Já no que se refere ao silêncio da Requerida na sequência da receção, em 12.02.2025, da carta identificada no ponto 10. do elenco de factos indiciariamente provados, temos por seguro que da ausência de resposta a essa carta não se pode retirar qualquer “confirmação tácita”, por parte da Requerida, da cessação do contrato de arrendamento. E tanto assim é que depois dessa data a Requerida continuou a proceder ao pagamento das rendas. Acresce que na presente situação inexiste lei, uso ou convenção que permita atribuir ao silêncio da Requerida valor negocial (cfr. art.º 218º do CC).
Atento o exposto, conclui-se pela improcedência da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
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- Da verificação dos pressupostos de que depende a procedência do presente procedimento cautelar inominado.
Os Requerentes intentaram o presente procedimento cautelar visando a restituição provisória da posse do imóvel locado à Requerida, invocando para o efeito a cessação do contrato de arrendamento e a ocupação ilegítima do mesmo por parte da Requerida, ocupação essa da qual referem decorrer danos para os Requerentes.
Como se refere na sentença recorrida, de acordo com o art.º 368º, n.º 1, do CPC, os pressupostos gerais das providências cautelares são a probabilidade séria de existência do direito do requerente (fumus boni juris) e o perigo ou a lesão atual de tal direito (periculum in mora).
Considerou o Tribunal a quo que o contrato de arrendamento celebrado entre os Requerentes e a Requerida se mantém em vigor, já que não resultou indiciada a sua cessação, concluindo assim que os Requerentes não foram perturbados na sua posse do prédio locado e, consequentemente, que não se verifica o pressuposto de decretamento da providência atinente à probabilidade séria de existência do direito invocado (fumus boni juris).
Os Apelantes discordam, porquanto consideram que o contrato de arrendamento se extinguiu por efeito da “denúncia verbal e aceitação tácita da cessação do contrato” por parte da Requerida.
Ora, face à improcedência do recurso no que à impugnação da decisão relativa à matéria de facto se refere, o que significa que se mantém como não indiciada a cessação do contrato de arrendamento, dúvidas não se suscitam de que a sentença recorrida, no segmento em causa, terá de se manter.
E, mantendo-se esse segmento da decisão recorrida, o que significa que se tem por assente a não verificação do pressuposto de decretamento da providência atinente à probabilidade séria de existência do direito invocado (fumus boni juris), é de todo inútil analisar se se verifica ou não o pressuposto da existência de perigo de lesão de tal direito (periculum in mora).
Atento o exposto, conclui-se pela total improcedência do presente recurso.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízes que compõem o coletivo desta 2.ª Secção Cível abaixo identificadas em julgar totalmente improcedente o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos Apelantes - art.º 527º, n.º 1, do CPC.
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 20.11.2025
Susana Gonçalves
Laurinda Gemas
Rute Sobral