Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4718/20.3T8ALM.L1-2
Relator: SUSANA MESQUITA GONÇALVES
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RESPONSABILIDADE DO CONDOMÍNIO
FALTA DE PAGAMENTO DAS QUOTAS DE CONDOMÍNIO
ABUSO DE DIREITO
SANÇÃO PECUNIÁRIA
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Sumário (elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I - As questões a que alude o art.º 615º, n.º 1, d), do CPC, são todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente se deva conhecer, não se confundido essas “questões” com as considerações, argumentos ou razões produzidas pelas partes tendo em vista as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito;
II - Em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o art.º 640º, n.ºs 1 e 2, do CPC, impõe ao Recorrente um triplo ónus: Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas;
III - Da conjugação do disposto nos art.ºs 639º, n.º 1 e 640º do CPC, resulta que para o cumprimento desse triplo ónus se exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao Tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto;
IV - O conteúdo do princípio da proibição do tu quoque, enquanto modalidade de abuso de direito, é o de que quem atua ilicitamente, em desconformidade com o direito, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas sancionatórias de uma atuação ilícita da contraparte;
V - Não se pode afirmar que a Autora, tendo deixado de pagar as quotas ao condomínio, atua em abuso de direito, na referida modalidade, ao exigir a realização de obras pelo Réu Condomínio, se não se apurar que o pagamento dessas quotas era necessário para a realização dessas obras;
VI - A sanção pecuniária compulsória prevista no art.º 829-A do CC não é aplicável à obrigação de proceder à realização de obras de reparação dos terraços de um edifício, porquanto essa obrigação não configura uma obrigação de prestação de facto infungível, nem exige especiais qualidades científicas ou artísticas por parte do Réu.
VII - Se o condomínio Réu pode exigir à Autora o pagamento das quotas de condomínio, ou seja, a sua comparticipação nas despesas do condomínio, também a Autora lhe pode exigir a realização das obras necessárias à eliminação das infiltrações que afetam as suas frações e a reparação dos danos nelas causados. Tais prestações são impostas por força da própria lei, numa situação análoga à proveniente do contrato bilateral, residindo o sinalagma funcional no facto da contribuição para as despesas do condomínio ter em vista a conservação das partes comuns. Nesse sentido, a Autora pode invocar a exceção de não cumprimento para recusar perante o Réu o pagamento das suas quotas de condomínio até à realização das obras.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados:
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I. Relatório:
C (…) veio intentar a presente ação declarativa de processo comum contra Condomínio (…), pedindo:
a) a condenação do Réu a proceder a reparações das partes comuns do edifício -terraços -, bem como das frações da Autora, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado;
b) cumulativamente, a condenação do Réu no pagamento, a título de indemnização, da quantia mensal de € 900,00 que se vier a vencer, desde a citação até efetiva conclusão das obras de reparação das partes comuns e das frações da Autora;
c) caso não proceda às reparações das partes comuns do edifício, deverá o Réu ser condenado a pagar uma sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso, no valor de € 100/dia (metade para a Autora e metade para o Estado), acrescida dos juros previstos no n.º 4 do art.º 829º-A do CC;
d) caso não proceda às reparações da fração da Autora, deverá o Réu ser condenado a pagar, a suas expensas, o valor dessas reparações, cuja extensão dos danos e valor serão apurados em sede de liquidação de sentença;
e) a dispensa, por parte da Autora, do pagamento de quotizações ordinárias e extraordinárias vencidas, desde março de 2014, até efetiva conclusão das obras de reparação;
f) a condenação do Réu a proceder à alteração da titularidade do contrato de fornecimento de eletricidade às partes comuns das garagens do prédio, no prazo de 5 dias após o trânsito em julgado; e,
g) a condenação do Réu a pagar à Autora a quantia de € 390,54 relativa às faturas da EDP por esta indevidamente pagas, bem como todas as que se vierem a vencer desde abril de 2020 até efetiva troca da titularidade do contrato.
Para o efeito e em súmula, alega:
- A Autora foi a responsável pela construção do prédio em causa, composto por 9 frações destinada a habitação e 12 frações destinadas a garagens, sendo que a entrada para as garagens é independente da entrada para o prédio;
- Mantem-se proprietária de 9 frações correspondentes a garagens;
- Desde pelo menos 2010 que se verificam infiltrações nas frações da Autora, provenientes das partes comuns do prédio (terraços que constituem os tetos das garagens), em razão das quais as garagens apresentando manchas, escorrências, bolores, fissuras, com odor, tornando insuportável a permanência no interior das mesmas, o que inviabiliza em absoluto a sua utilização e impede a sua venda ou arrendamento;
- Apesar de várias interpelações, o Réu não procedeu à reparação do foco das infiltrações e das frações da Autora;
- Em face da inércia do Réu a Autora deixou de proceder ao pagamento das quotas do condomínio, propondo restabelecer o pagamento após a realização das reparações;
- Após ter sido obtido o pagamento das quotas em atraso por via de ação executiva instaurada pelo Réu contra a Autora, ainda assim o Réu não procedeu ás reparações;
- O contrato de fornecimento de energia elétrica das partes comuns referentes ao acesso ás garagens manteve-se em nome da Autora, pelo que é a Autora quem tem procedido ao seu pagamento;
- Até outubro de 2010 vigorou um acordo, nos termos do qual a comparticipação mensal da Autora seria igual ao valor da faturação dessa eletricidade. Uma vez que a Autora só detinha garagens, e em maior número, havendo contadores autónomos para as garagens e para a parte habitacional do prédio, entenderam as partes que o valor daquelas faturas equivalia à quota devida pela Autora;
- Entretanto, a administração do Réu fixou quotas à Autora. A partir desse momento, o Réu deveria ter procedido á alteração da titularidade do contrato em causa ou, pelo menos, deveria ter procedido à compensação entre os valores da eletricidade pagos pela Autora e os valores devidos pela quotização, o que não fez;
- Apesar de interpelado, o Réu não regularizou a situação, ascendendo o crédito da Autora a tal título ao valor de € 390,54;
- Atenta a impossibilidade de arrendamento das frações, a Autora tem um prejuízo mensal de cerca de € 900,00/mês.
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Citado, o Réu apresentou contestação:
- Invoca a caducidade do direito da Autora à eliminação dos alegados defeitos, os quais impugna;
- Quanto aos valores que a Autora alega ter pago à EDP, e que também impugna, refere que por ser proprietária de 9 de um total de 12 garagens, tem que pagar 9/12 do valor mensal do fornecimento de eletricidade, sendo os restantes 3/12 da responsabilidade dos demais três proprietários;
- Refere que não pode a Autora dever valores de quotas e pretender a reparação de defeitos nas suas frações;
- Impugna os danos invocados pela Autora e o respetivo valor.
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A Autora respondeu às exceções invocadas na contestação, pugnando pela sua improcedência.
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Por requerimento de 15.04.2021, a Autora, com referência ao pedido identificado sob a al. e), veio requerer “a redução do pedido, de harmonia com o disposto no artigo 265.º, n.º 2 do CPC, devendo ser declarado que a Autora não tem obrigação de pagamento de quotizações ordinárias e extraordinárias vencidas desde julho de 2020 até efetiva conclusão das obras de reparação”, a qual foi admitida por despacho de 31.10.2022.
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Foi proferido despacho saneador, no qual se declarou a improcedência da exceção de caducidade invocada pelo Réu, após o que se procedeu à fixação do objeto do litígio e à indicação dos temas da prova.
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Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença cujo segmento decisório se reproduz:
(…)
6. DECISÃO
Pelo exposto, e nos termos de direito invocados, o Tribunal julga a ação parcialmente procedente nos termos supra aludidos e, em consequência, decide-se:
i) Absolver o Réu dos pedidos constantes das alíneas A, B, C, D e E do petitório.
ii) Condenar o Réu a alterar a titularidade do contrato de fornecimento de energia elétrica referente à zona comum de acesso ás garagens do edifício, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença.
iii) Condenar o Réu no pagamento do montante pago pela Autora referente ao consumo de energia elétrica na zona de acesso ás garagens, e que constitui parte comum, desde Abril de 2020 e até à data da efetiva alteração da titularidade do contrato, a liquidar em execução de sentença.
iv) Condenar as partes no pagamento de custas de acordo com o respetivo decaimento, fixando-se o mesmo em 90% para a Autora e 10% para o Réu –cfr. art.º 527.º, n.º 1 e 2 do Código do Processo Civil.
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Registe e notifique”.
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Não se conformando com essa decisão, a Autora dela veio recorrer, formulando as seguintes conclusões recursivas:
(…)
CONCLUSÕES
a) Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo douto tribunal a quo, na parte em que a Autora decaiu, ou seja, quanto à decisão i) do dispositivo que absolveu o Réu dos pedidos constantes das alíneas A, B, C, D e E do petitório, indo aceite o julgado em ii) e iii) do aresto;
b) A Autora não se conforma com o decidido em i) por entender que a decisão em crise dá como não provados dois pontos que afrontam a prova produzida impondo a reapreciação da matéria de facto dada como provada e a sua alteração, até porque foram determinantes na sentença proferida e lesam de sobremaneira a aqui Recorrente;
c) Da mesma forma, a factualidade dada por provada está incompleta e omissa quanto a questões relevantes.
d) O tribunal incorreu em erro de julgamento e omissão de pronuncia ao não quantificar o valor do dano causado pela inércia do condomínio ao Autor e bem assim ao não considerar o valor de condomínio pago coercivamente por este.
e) O Tribunal incorreu em erro de julgamento também ao absolver o Réu dos pedidos, tendo por base figura do abuso de direito, não considerando a exceção de não cumprimento por parte da Autora, devidamente alegada, e bem assim, o facto de o Réu nunca, ao longo de 15 anos, ter procedido às reparações necessárias, alegando tao só que o valor em divida ainda assim não era suficiente para as referidas obras, como se as áreas comuns fossem da responsabilidade da Autora.
f) Houve ainda violação do dever de inquisitório – 411.º do CPC - por parte do douto tribunal, porquanto simplesmente dá por não provadas determinadas questões de extrema importância para a boa decisão da causa, quando tinha o dever de apurar a verdade material.
g) Da factualidade dada como não provada, ressalta desde logo a existência de fundamentação sobre uma alínea que não consta da matéria de facto dada como NÃO PROVADA, que é de extrema importância – alínea vii) – a realização de obras nos terraços por parte dos condóminos.
h) Donde, desde logo há uma omissão de uma alínea no texto da sentença, mas que é de extrema relevância, e cujo teor terá que se dar como PROVADO, pois tal resulta da prova produzida e tal é importante para aferir da conduta levada a cabo pelo Réu nos últimos 15 anos.
i) O facto de as reparações terem sido assumidas e custeadas pelos condóminos do R/C é reconhecido pelas testemunhas arroladas pelo Réu, sendo que em momento algum desmente tal facto.
j) Isto porque, o principal objeto da Acão interposta pela Autora era efetivamente a realização dessas obras, a necessidade das mesmas e os danos causados pela omissão do dever de as realizar por parte do Réu.
k) Dever esse que, apesar de ter cobrado coercivamente um valor superior a €7000,00, não cumpriu.
l) E como bem refere o douto tribunal na sentença de que ora se recorre, “Resulta que se considera como partes comuns os terraços ou pátios, ainda que de uso exclusivo de algum condómino.”
m) E que “Do que supra se analisou, inexiste qualquer dúvida no sentido de que os terraços em apreço constituem partes comuns do prédio em causa nos autos, pese embora o seu uso exclusivo por determinados condóminos. Mais se provou que as infiltrações nas garagens elencadas no ponto 4o dos factos provados, pertencentes á Autora, provêm desses terraços, confirmando-se a origem e/ou causa das infiltrações – em partes comuns do edifício.”
n) Decorre do disposto nos artºs 205, nº1, da Constituição, 154 e 607, nºs 3 e 4 do C.P.C., a imposição de um dever ao Magistrado Judicial de especificar os fundamentos de facto e de direito das decisões que profere, de forma a assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo (cfr. artº 20 da C.R.P.).
o) Em cumprimento deste dever de assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo, exige-se não só a indicação dos factos provados, como dos não provados e ainda, a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes (cfr. artº 607º, nº 4, do CPC.).
p) A omissão de indicação dos factos que o tribunal a quo considerou não provados e da respetiva fundamentação, determina os fundamentos de nulidade da sentença previstos no art. 615º, nº 1, al. b), do CPC.
q) Em relação a esta nulidade não opera a regra de substituição do tribunal recorrido, prevista no artº 665 do C.P.C., sob pena de violação do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
r) Quanto a este segmento, o tribunal até refere, embora mal a nosso ver, porque considera o facto não provado, mas o facto vii) da matéria de facto não provada não existe do elenco da matéria de facto dada por não provada.
s) Acresce ainda que, resulta da matéria de facto e da prova produzida o contrário, ou seja, que tiveram que ser os condóminos, a título particular que suportaram obras de manutenção dos referidos terraços e ao invés do que se faz crer, quem nunca logrou provar que alguma vez tenha colocado numa ordem de trabalhos a reparação dos ditos terraços foi o Réu.
t) Pois ficou provado que tal lhe era solicitado há cerca de 15 anos, que recebeu o valor das quotizações ainda que por via coerciva, e portanto, com juros e custas de parte por parte da Autora, e que nada fez quanto às reparações necessárias.
u) Também é de extrema importância que se altere o ponto 38. Da matéria de facto dada por provada pois, não refere qual o valor cobrado coercivamente no âmbito dessa ação judicial e bem assim quais as quotizações pagas pela Autora no âmbito dessa ação executiva.
v) O processo tem por objetivo o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, devendo o Tribunal efetuar e ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências com vista a atingir esse fim - cfr. arts.5º, 6º e 411º, todos do C.P.C.
w) Acresce que, como decorre do citado art. 411º “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”, donde resulta que a lei concede ao juiz a possibilidade (ampla) de averiguar factos, com vista à busca da verdade material.
x) Quer isto dizer que o juiz, perante esta norma - que consagra o princípio do inquisitório - não deve limitar-se a exercer a figura de mero espectador ou árbitro do litígio, devendo antes intervir no sentido de remover os obstáculos à realização da justiça, que passa, evidentemente, pela procura da verdade material.
y) Por isso, todas as dúvidas, contradições ou divergências que necessitem de esclarecimentos e respostas cristalinas, com vista ao cabal apuramento da verdade e da justa composição do litígio - nos termos do disposto no referido art.411º do C.P.C. - poderão ser dadas no tribunal “a quo”, com a realização de diligencias nesse sentido, e não, como fez, simplesmente dar os factos como não provados.
z) Donde, necessariamente terá que se dar como provado que:
38. A Autora pagou coercivamente as quotizações, juros de mora, juros compulsórios, despesas e honorários do Agente de Execução e custas de parte relativamente ao período compreendido entre Abril de 2014 e Dezembro de 2018 no valor de €7.405,00 (sete mil quatrocentos e cinco euros).
39. O recebimento por parte do Réu dos valores referentes às quotizações de condomínio não era essencial para que o mesmo tivesse recursos financeiros para poder realizar as obras referentes aos terraços, até porque as mesmas foram levadas a cabo e suportadas pelos condóminos das frações do R/C, apesar de serem áreas comuns;
40. Durante 2010 e 2025 a Ré nunca levou a Assembleia de Condomínio a deliberação sobre a execução das obras de reparação solicitadas pela Autora;
41. Com a não reparação dos terraços e dos danos causados nas suas frações, a Autora teve um prejuízo que ascende a cerca de €150.000,00 a título de lucros cessantes;
aa) Quanto à questão central que levou à absolvição do Réu dos pedidos – o abuso de direito – sempre se diga que, ao contrário do que decidiu o Tribunal recorrido, não há qualquer abuso de direito e tem sido entendido pela jurisprudência que a invocação da exceção de não cumprimento pode ser invocada por condóminos nas relações com o condomínio, no que concerne ao pagamento das contribuições devidas ao condomínio tal como no caso em apreço, não existindo qualquer abuso de direito.
bb) Note-se que da redação do art. 334º do C.Civil, sobretudo da expressão manifestamente, infere-se que o exercício de um direito só poderá taxar-se de abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito.
cc) Para que haja abuso é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.
dd) O que não houve nos presentes autos, até porque está provado que a Autora quis realizar as referidas obras e o Réu não aceitou!
ee) Não há qualquer abuso de direito. Há uma exceção de não cumprimento, por falta da reparação necessária para que a Autora pudesse fruir das suas frações e estancar os danos causados pelas áreas comuns, sendo que ainda assim, até Dezembro de 2018 está tudo pago.
ff) Ora, esta posição, que admite a invocação, por parte do condómino, da exceptio como justificação atendível para a sua recusa (temporária) no cumprimento de certas prestações devidas ao Condomínio, mostra-se, a nosso ver, mais defensável, ainda que por via da aplicação analógica do referido art. 428.º do CC, uma vez que a exceção de não cumprimento constitui fundamentalmente um afloramento do princípio geral da boa-fé, por força do qual não podemos deixar de reconhecer.
gg) Conforme acima referimos, a procedência da exceptio não conduz à extinção da obrigação, apenas impedindo ou paralisando temporariamente o direito a exigir o seu cumprimento.
hh) Portanto, provado está que o condomínio ao longo de 15 anos, apesar de várias vezes instado para o efeito, nunca agendou assembleia para deliberar a realização das obras pedidas pelo Autor, bem sabendo que tal lhe causava dano e impedia o uso das suas frações;
ii) Provado também está que os terraços são áreas comuns e, portanto, era da responsabilidade do Réu proceder as necessárias reparações, o que não fez.
jj) E também provado está que as únicas reparações feitas foram executadas e pagas pelos próprios condóminos e que a não realização dessas obras causou danos à Autora, danos esses que perduram até aos dias de hoje desde pelo menos 2010 e que impede a mesma de fruir das suas frações;
kk) O erro de julgamento é um erro de carater substancial e ocorre quando na decisão proferida a lei é mal aplicada ou há um erro quanto à questão de facto ou de direito apreciada, afeta o fundo ou o efeito da decisão, e dita a sua revogação por estar desconforme ao caso ou ao direito.
ll) Outra questão que foi totalmente desconsiderada pelo douto tribunal foi a extensão dos danos causados à Autora versus valor das quotizações não pagas, desconsiderando o valor pago coercivamente, que nem o tribunal cuidou de apurar como deveria ou pelo menos de considerar na sentença proferida.
mm) A prova produzida foi uníssona no sentido que estes danos existem, e que pelo menos desde 2010 a Autora não pode usar as suas frações, representando um prejuízo a título de lucros cessantes de cerca de €900,00 (novecentos euros) mensais, o que, se considerarmos apenas 14 anos, estamos perante um lucro cessante de cerca de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
nn) É tão chocante a injustiça desta decisão, que se por hipótese o Réu quisesse fazer as referidas obras de reparação, podia simplesmente deliberar a quota extra para o efeito e executar a mesma caso a Autora não pagasse, tal como fez por duas vezes, com sucesso.
oo) O douto Tribunal a quo conclui ao contrário da prova produzida, no sentido de as quotizações não pagas voluntariamente pela Autora eram cruciais para a realização dessas obras e tendo por referência apenas o que foi vertido pelo Administrador de Condomínio, quando não justificou de que forma é que esse valor teria qualquer papel crucial nas reparações que este não fez e que foram as pessoas proprietárias do R/C que custearam.
pp) Ou seja, os proprietários do R/C custeiam as reparações das áreas comuns e a Autora que custeasse as reparações causadas pelos danos advindos da não realização de obras necessárias da responsabilidade do condomínio.
qq) Como já supra aludimos estes factos não resultam de qualquer prova produzida nos autos, não está fundamentada, sendo uma conclusão sem qualquer suporte e que condena ao insucesso o peticionado pela Autora.
rr) O Réu confessou que nunca procedeu às obras pedidas e bem assim nunca agendou assembleia onde tal constasse sequer da ordem de trabalhos.
ss) Que as reparações efetuadas foram feitas e custeadas pelos proprietários do R/C.
tt) Que os valores das quotizações devidas até dezembro de 2018 foram coercivamente pagas.
uu) Que tentou por diversas vezes negociar a realização de tais obras, custeando o custo das mesmas, o que o Réu não aceitou.
vv) Que em virtude disso resultam danos avultados para a Autora.
ww) Não tendo o Réu demonstrado de modo algum que o pagamento, diga-se, – voluntário – das quotas importasse essa impossibilidade.
xx) Pelo que jamais o tribunal poderá concluir desta forma, para concluir pelo abuso de direito absolvendo o Réu dos pedidos formulados,
yy) Decisão essa totalmente injusta e desfasada da realidade, pelo que se impõe a sua revogação e alteração por uma que faça a tão costumada JUSTIÇA!”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi corretamente admitido, com o efeito e modo de subida adequados.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as seguintes:
- Da nulidade da sentença por omissão e excesso de pronúncia;
- Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- Do direito de indemnização da Autora e da ilegitimidade do seu exercício por abuso de direito;
- Da sanção pecuniária compulsória;
- Da exceção de não pagamento.
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III. Fundamentação de Facto:
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos:
(…)
1. No âmbito da sua atividade comercial, a Autora foi a empresa responsável pela construção do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua (…), descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de (…).
2. O referido prédio é composto por 9 (nove) frações de habitação e 12 (doze) frações destinadas a garagem, sendo a entrada para as garagens autónoma e independente da entrada para o prédio.
3. A Autora é dona e legítima proprietária das frações autónomas designadas pelas letras “A”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G”, “H”, “J” e “L”, correspondentes às garagens A, C, D, E, F, G, H, J e L, do aludido prédio.
4. Desde, pelo menos, o ano de 2010, que se têm vindo a registar infiltrações nas frações da Autora – concretamente as identificadas sob as letras A, C, D, E, F e G, as quais têm proveniência nas partes comuns do edifício, em concreto, nos terraços do prédio que constituem os tetos das garagens, de utilização de duas frações habitacionais situadas do R/C.
5. Tal tem origem no sistema de impermeabilização da cobertura das garagens o qual já não está a responder às solicitações para que foi construído, deixando passar água para o interior das garagens.
6. Em razão dessas infiltrações, as garagens da Autora identificadas em 4) encontram-se com humidades, manchas, escorrências, bolores, fissuras e odores.
7. Verifica-se corrosão de armaduras já expostas, corrosão interior de armaduras com descasques e betão a ser cuspido, portões enferrujados.
8. Para efeitos de reparação das garagens identificadas em 4) é necessário: efetuar o levantamento de todo o revestimento cerâmico do pavimento dos terraços; efetuar o levantamento do sistema de impermeabilização (se existir); aplicar novo sistema de impermeabilização; aplicar novo revestimento cerâmico no pavimento dos terraços.
9. Para a reparação das garagens identificadas em 4), serão necessários trabalhos variados, plasmados no relatório pericial, de fls. 148 e ss, concretamente nos pontos 9), 10), 12), 13), 15), 16), 18), 19)21), 22), cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
10. O valor estimado para a reparação identificada em 9) referente ás garagens identificadas em 4) ascendem a quantia não inferior a € 11.713,00, acrescido de IVA á taxa legal.
11. O estado das garagens identificadas em 4) acarreta a inutilização das mesmas, e que as mesmas não tenham condições para venda ou para arrendamento das mesmas.
12. Desde data não apurada mas por volta do ano de 2010/2011 que a Autora informou o Réu da necessidade de reparação destes problemas junto do Réu.
13. A Autora, em conversações com o Réu, em 02 de Fevereiro de 2012, apresentou um orçamento para o efeito, sendo que a reparação do terraço, àquela data, ascendia a € 5.600,00 (cinco mil e seiscentos euros), acrescido de IVA a 23%.
14. Tal orçamento não veio a ser aceite pelo Réu.
15. A Autora está impedida de vender ou arrendar as garagens, tendo deixado de promover qualquer dos dois negócios por volta dos anos de 2010/2011.
16. A Autora deixou de pagar voluntariamente as quotas mensais de condomínio desde Novembro de 2010.
17. No ano de 2014, o ora Réu instaurou contra a Autora uma ação executiva para pagamento de quantia certa, com vista à cobrança de quotas de condomínio, a qual deu origem ao processo n.º (…) que correu seus termos junto do Juiz 1 do Juízo de Execução de (…), onde reclamava o valor exequendo de 4.327,12, por reporte a prestações de condomínio e quotas extraordinárias de Novembro de 2010 a Março de 2014.
18. A Autora apresentou embargos de executado, tendo sido realizada prova pericial – fls. 55 e ss.
19. Tal ação executiva foi extinta na sequência de penhora de saldos bancários da Autora, o que ocorreu no ano de 2020, datando a conta discriminativa de 10.12.2019.
20. O Réu recebeu no ano de 2020 por conta da referida execução, a quantia total de € 5412,37.
21. Desde a passagem da administração pela Autora ao Réu, até Outubro de 2010, vigorou um acordo (não escrito) nos termos do qual a Autora não pagaria comparticipação mensal mas procederia ao pagamento dos valores da faturação da eletricidade das partes comuns das garagens, por haver contador autónomo para as garagens e parte habitacional do prédio.
22. O Réu passou a cobrar as quotas do condomínio á Autora a partir do ano de 2010.
23. A Autora remeteu ao Réu a carta de 3.01.2012 na qual concede o prazo de “15 dias (…) para alterarem a titularidade do contrato de fornecimento de eletricidade às partes comuns da garagem”.
24. Na mesma missiva solicitou a emissão de avisos de cobrança de quotizações corrigidos, mediante a pretensão de compensação entre valores referentes a eletricidade e outros gastos, conforme documento de fls. 74 a 75 e cujo teor se dá por integralmente reproduzidos.
25. A Administração do Réu nunca procedeu à alteração da titularidade do contrato de eletricidade com a EDP, sendo a Autora quem continua a suportar o pagamento da luz das partes comuns das garagens.
26. O Réu respondeu á Autora através do email datado de 12.07.2012 (fls. 82 dos autos) e cujo teor se dá por reproduzido.
27. De Novembro de 2010 a Abril de 2012, a Autora pagou de eletricidade das partes comuns das garagens a quantia de € 318,96.
28. Em Março de 2012, a EDP fez leitura do contador e por via disso apurou um crédito a favor da Autora de € 775,48, relativo aos anos de 2002 a 2012.
29. Após, a Autora continuou a suportar o pagamento do fornecimento de eletricidade às partes comuns da garagem.
30. Há alguns anos, a Autora tomou a decisão de desligar o contador da eletricidade porquanto das infiltrações registadas pingava água no local onde está instalado o contador, assim permanecendo até à presente data.
31. Não obstante, continuaram a ser cobrados consumos, calculados por estimativa.
32. Em Abril de 2018, a EDP fez novamente a leitura dos contadores e emitiu uma nota de crédito no valor de € 1.304,81.
33. No período compreendido entre Dezembro de 2010 e Abril de 2020, e tendo já em conta as notas de crédito emitidas, a Autora pagou à EDP um total de € 390,54 (trezentos e noventa euros).
34. Desde Maio de 2018 a Abril de 2020 não foi realizada qualquer leitura do contador.
35. O valor de mercado atual para arrendamento das garagens na área territorial do prédio em causa nos autos ascende a cerca de € 150,00/mensal.
36. Apenas no ano de 2020 o Réu recebeu por conta da ação executiva identificada supra –os valores de quotizações do condomínio devidas pela Autora desde Novembro de 2010 e até Março de 2014.
37. A Autora não pagou qualquer outro valor ao Réu, voluntariamente, por conta das quotizações e despesas devidas.
38. O Réu intentou outra ação executiva contra a Autora por falta de pagamento de quotizações e que deu origem ao processo n.º (…), no qual a Autora deduziu embargos de executado, que deu origem ao apenso A, e no âmbito do qual, em 24.01.2021 foi proferida a decisão referente a tais embargos (improcedência).
39. O recebimento por parte do Réu dos valores referentes ás quotizações de condomínio era essencial para que o mesmo tivesse recursos financeiros para poder realizar as obras referentes aos terraços e infiltrações pretendidas pela Autora”.
*
Na sentença recorrida foram considerados como não provados os seguintes factos:
(…)
3. As anomalias identificadas supra, verificam-se também nas garagens identificadas sob as letras H, I, J, K e L.
ii) A Autora por via telefónica e ainda em Assembleias de Condóminos anuais, reiterava a necessidade de reparação.
iii) A Autora propôs ao Réu restabelecer o respetivo pagamento após execução dos trabalhos necessários.
iv) No âmbito da referida ação executiva, Autora e Réu tentaram alcançar um entendimento com vista à execução das obras em apreço, porém sem sucesso, tendo havido lugar à deserção da instância, em sede de embargos.
v) Para além da carta de 3.01.2012, a Autora procedeu a várias interpelações ao Réu para alterar o contrato de fornecimento de eletricidade nas partes comuns das garagens ou para proceder ao pagamento dos valores que iam sendo cobrados pela EDP por conta de tal contrato de fornecimento.
vi) O Réu nunca respondeu á missiva de 3.01.2012.
Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa (…)”.
*
IV. Mérito do Recurso:
- Da nulidade da sentença por omissão e excesso de pronúncia.
Defende o Apelante que “O tribunal incorreu em (…) omissão de pronuncia ao não quantificar o valor do dano causado pela inércia do condomínio ao Autor e bem assim ao não considerar o valor de condomínio pago coercivamente por este” – al. d) das conclusões recursivas.
Defende igualmente que “A omissão de indicação dos factos que o tribunal a quo considerou não provados e da respetiva fundamentação, determina os fundamentos de nulidade da sentença previstos no art. 615º, nº 1, al. b), do CPC” – alínea p) das conclusões recursivas –, reportando-se, se bem entendemos, à circunstância de na sentença, em sede de fundamentação da matéria de facto, se aludir à alínea vii) do elenco de factos não provados, quando desse elenco não consta tal alínea – alíneas g), h) e r) das referidas conclusões recursivas.
Vejamos.
Conforme se refere no Acórdão do STJ de 03.03.2021, processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, é, desde há muito, entendimento pacífico que as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento seja de facto ou de direito. As nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal. Trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
Como ensinava o Prof. José Alberto Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 1981, Vol. V, páginas 124 a 125, o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete um erro de atividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afetam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua atividade.
E, como salienta o Prof. Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 686, perante norma do Código de Processo Civil de 1961 idêntica à atual, o erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade com o direito aplicável, não se incluiu entre as nulidades da sentença.
As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico) – cfr. neste sentido o Acórdão do STJ de 17.10.2017, Processo nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1.
Feito este enquadramento prévio, analisemos então se a sentença enferma das nulidades que lhe são imputadas.
Nos termos do disposto no art.º 615º, n.º 1, d), do CPC, a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Esta nulidade está diretamente relacionada com o art.º 608º, n.º 2, do CPC, segundo o qual, “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Conforme se vem entendendo, as “questões” a que aludem os citados normativos são todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente se deva conhecer, não se confundido essas “questões” com as considerações, argumentos ou razões produzidas pelas partes tendo em vista as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito.
No sentido exposto, vejam-se, na doutrina, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, 2º vol., 2ª edição, pág. 704; Antunes Varela, in RLJ, 122º, pág. 112; e, Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, III vol., pág. 195.
Tem sido igualmente esse o entendimento seguido na jurisprudência, podendo citar-se, entre outros, o Ac. da RL de 22.06.2023, processo n.º 12225/21.0T8SNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, onde é afirmado que “O conceito de “questões” que o juiz deve resolver na sentença, nos termos conjugados dos artigos 615.º, n.º 1, al. d), e 608.º, n.º 2, ambos do CPC, relaciona-se com a definição do âmbito do caso julgado, devendo o juiz apreciar (sucessivamente) os pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte (a menos que a apreciação de um esteja prejudicada) e as várias causas de pedir invocadas, bem como as exceções perentórias que tenham sido deduzidas pelo réu ou pelo autor reconvindo (sem prejuízo da possível inutilidade)”.
Revertendo para a situação dos autos, conforme acima referimos, a Apelante começa por alegar que “O tribunal incorreu em (…) omissão de pronuncia ao não quantificar o valor do dano causado pela inércia do condomínio ao Autor (…)”.
A questão do dano sofrido pela Autora em consequência da inércia do Réu na realização das obras de eliminação das infiltrações existentes nas suas garagens, questão na qual se inclui a quantificação desse dano, atenta a solução jurídica pela qual a sentença recorrida enveredou – a do afastamento do exercício do direito de indemnização da Autora por via da aplicação da figura do abuso de direito -, resultou prejudicada. Assim sendo, a circunstância de na sentença recorrida não se ter procedido à quantificação desse dano não constitui, atento o raciocínio nela desenvolvido, omissão de pronúncia.
Alega igualmente a Apelante que “O tribunal incorreu em (…) omissão de pronuncia (…) ao não considerar o valor de condomínio pago coercivamente por este”.
O valor de condomínio coercivamente pago pelo Autor não constitui em si mesmo qualquer questão, no sentido acima assinalado, da qual o Tribunal a quo tivesse de conhecer. Esse valor, atenta a orientação seguida na decisão recorrida, relevaria apenas como um argumento a ponderar, no confronto com o valor total da obra destinada à eliminação da origem das infiltrações e dos danos por elas causados nas garagens da Autora, no recurso à figura do abuso de direito. No entanto, conforme referimos, o Tribunal apenas tem que se pronunciar sobre questões, já não sobre argumentos.
Por fim, o Apelante refere que “A omissão de indicação dos factos que o tribunal a quo considerou não provados e da respetiva fundamentação, determina os fundamentos de nulidade da sentença previstos no art. 615º, nº 1, al. b), do CPC”, não concretizando se se refere à omissão ou ao excesso de pronúncia ou a ambos.
O único facto não provado que se enquadrará nessa situação, de acordo com as conclusões recursivas da Apelante, será o facto vii) a que se alude na fundamentação da matéria de facto, o qual efetivamente não consta do elenco de factos não provados. Quanto à invocada omissão da “respetiva fundamentação”, lida a sentença recorrida, verifica-se que todos os factos dados como não provados se encontram fundamentados.
A propósito da referida alínea vii) do elenco de factos não provados, é dito o seguinte na sentença recorrida, em sede de fundamentação da matéria de facto: “Concretamente sobre o ínsito na alínea vii), cumpre referir que se tratou de factualidade que foi carreada em audiência (não plasmada em articulado superveniente) mas que as partes tiveram oportunidade de dirimir em audiência e por isso se refere. Não se olvida que foi referido pelo legal representante do Réu que terão sido realizadas obras, bem como confirmado pelas testemunhas por si arroladas embora alegadamente realizadas pelos condóminos proprietários das frações do R/C que utilizam os terraços. Todavia, não foi junto qualquer documento que suportasse a realização das obras nem concretamente que obras foram realizadas ou se essas obras resolveram o problema da humidade, pelo que se respondeu negativamente”.
Conforme resulta do exposto, estamos perante factualidade não alegada em nenhum dos articulados juntos aos autos - realização de obras pelos condóminos das frações do rés-do-chão que utilizam os terraços -, logo, perante questão não suscitada nos autos. Ora, se a questão não foi suscitada nos autos, a omissão de pronúncia quanto à mesma não implica a nulidade da sentença, sendo que a referência que a ela é feita em sede de fundamentação da matéria de facto também não traduz qualquer excesso de pronúncia, sendo inconsequente. Diga-se, inclusive, que está este Tribunal convicto que tal referência foi deixada na sentença por lapso no tratamento do respetivo texto.
Aqui chegados, em face do que acima ficou dito, conclui-se que a sentença não enferma das nulidades que lhe são apontadas.
*
- Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Para a impugnação da matéria de facto deve a parte observar os requisitos legais previstos no artigo 640º do CPC, incluindo a formulação de conclusões, pois são estas que delimitam o objeto do recurso.
Preceitua o citado artigo 640º, do CPC:
1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 – O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636º.
Sobre essa norma pronunciou-se, entre outros, o Acórdão do STJ de 30.11.2023, processo 556/21.4T8PNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, referindo que “Como tem sido enunciado pela jurisprudência deste STJ – ver por todos o ac. de 29.10.2015 no processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1 in dgsi.pt – este regime consagra um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. O ónus primário é integrado pela exigência de concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. A), b) e c) do nº1 do citado art.640º, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. O ónus secundário traduz-se na exigência de indicação das exatas passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do nº 2 do mesmo art. 640 tendo por finalidade facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência.
De acordo com esta delimitação entende-se que, não sendo consentida a formulação ao recorrente de um convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, deverá ter-se atenção se as eventuais irregularidades se situam no cumprimento de um ou outro ónus uma vez que a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1 do referido art. 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, enquanto a falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, al. a) terá como sanção a rejeição apenas quando essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo do tribunal de recurso – vd. Abrantes Geraldes in “ Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed. , págs. 169 a 175.”
Por seu lado, a respeito do ónus de alegar e formular conclusões, o art.º 639º, n.º 1, do CPC, determina que “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
É conhecida a divergência jurisprudencial existente a respeito da aplicação do art.º 640º do CPC e da sua conjugação com o art.º 639º, n.º 1, do mesmo diploma.
Face a essa divergência, o STJ, por Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2023 (publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I, de 14.11.2023, com Declaração de Retificação n.º 25/2023), proferido a 17.10.2023, no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, uniformizou a jurisprudência no sentido de que “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.
Nesse Acórdão, a propósito dessa temática, é afirmado, designadamente, o seguinte:
Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso.
Quando aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso, conforme o n.º1, alínea c) do art.º 640, (…).
Em sínteses, decorre do art.º 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.”
Em face do exposto, conclui-se que da conjugação do disposto nos artigos 639º, n.º 1 e 640º do CPC, resulta que o ónus primário a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao Tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto.
Já quanto à alínea a), do n.º 2, do art.º 640º do CPC, a mesma consagra, como vimos, um ónus secundário, cujo cumprimento deverá igualmente ser observado sob pena de rejeição do recurso na parte respetiva, mas que não tem de estar refletido nas conclusões recursivas.
Nesse sentido, entre outros, veja-se o Acórdão do STJ de 12.04.2024, proferido no processo n.º 823/20.4T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se escreveu: “IV- O ónus do artigo 640.º do CPC não exige que todas as especificações referidas no seu n.º 1 constem das conclusões do recurso, sendo de admitir que as exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 deste artigo, em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.
Na presente situação, a Apelante, nas respetivas conclusões, identifica os seguintes pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados: os pontos 38. e 39. do elenco de factos provados, bem como dois factos que pretende ver aditados ao mesmo elenco sob os números 40. e 41. Identifica igualmente, nas conclusões, a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Já no que se refere aos meios de prova que justificam a decisão por si defendida, identifica-os no corpo das alegações, transcrevendo, no que se refere à prova gravada, os segmentos dos depoimentos das testemunhas em que alicerça a sua posição.
Atento o exposto, porque se verificam os pressupostos legalmente exigidos para o efeito, iremos conhecer da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Antes de prosseguirmos, e considerando que no recurso, designadamente na alínea f) das conclusões recursivas, é invocada, com relevo para a questão que agora nos ocupa, a “violação do dever de inquisitório – 411.º do CPC – por parte do douto tribunal”, porquanto “tinha o dever de apurar a verdade material”, cumpre esclarecer que a invocação pela Apelante desse princípio é efetuada de forma inconsequente. De facto, em ponto algum das suas alegações a Apelante identifica as concretas diligências que no seu entender deveriam ter sido realizadas pelo Tribunal a quo ao abrigo desse princípio. Não o fazendo, não pode este Tribunal de recurso sindicar, quanto a tal matéria, a atuação do Tribunal a quo. É que, desde logo, o princípio do inquisitório não concede ao juiz o poder de se substituir às partes, designadamente, colmatando os seus lapsos ou esquecimentos no que respeita ao ónus de indicar os respetivos meios de prova.
Vejamos então cada um dos pontos da matéria de facto impugnada.
Começa a Apelante por impugnar o ponto 38. do elenco de factos provados.
É o seguinte o seu teor:
“38. O Réu intentou outra ação executiva contra a Autora por falta de pagamento de quotizações e que deu origem ao processo n.º (…), no qual a Autora deduziu embargos de executado, que deu origem ao apenso A, e no âmbito do qual, em 24.01.2021 foi proferida a decisão referente a tais embargos (improcedência)”.
Defende a Apelante que a redação desse ponto deverá passar a ser a seguinte:
A Autora pagou coercivamente as quotizações, juros de mora, juros compulsórios, despesas e honorários do Agente de Execução e custas de parte relativamente ao período compreendido entre Abril de 2014 e Dezembro de 2018 no valor de €7.405,00”.
Das alegações da Apelante é possível retirar que a mesma entende que tal resulta das declarações de parte prestadas pelo legal representante do Condomínio Réu.
Ouvimos essas declarações.
Pelo legal representante do Condomínio Réu foi declarado que foram intentadas contra a aqui Autora duas ações executivas, em virtude das quais entraram nas contas do condomínio valores que totalizam 7.405,00 € e que permitiram regularizar as quotas em dívida pela Autora até dezembro de 2018.
Ora, percorrido o elenco de factos provados, vemos que dos pontos 17. a 20. já resulta que em 2014 o aqui Réu intentou contra a aqui Autora uma ação executiva, no âmbito da qual logrou recuperar, no ano de 2020, o valor total de 5.412,37 €.
Atenta essa factualidade, e conjugando as declarações de parte acima assinaladas com o auto de penhora extraído da execução identificada no ponto 38., junto com o requerimento de 15.04.2021 (onde é requerida a redução do pedido), do qual resulta que na execução n.º (…) foi penhorado um depósito bancário no valor de 7.071.86 €, podemos concluir que nessa execução o aqui Réu Condomínio logrou recuperar, pelo menos, o valor de 1.992,63 € (7.405,00 € - 5.412,37 €).
Atento o exposto, entendemos ser de alterar a redação do ponto 38. do elenco de factos provados, a qual passa a ser a seguinte:
“38. O Réu intentou outra ação executiva contra a Autora por falta de pagamento de quotizações e que deu origem ao processo n.º (…), no qual a Autora deduziu embargos de executado, que deu origem ao apenso A, e no âmbito do qual, em 24.01.2021 foi proferida a decisão referente a tais embargos (improcedência), sendo que nessa execução o Réu recebeu, pelo menos, a quantia de 1.992,63 €”.
Impugna igualmente a Apelante o ponto 39. do elenco de factos provados.
É o seguinte o seu teor:
39. O recebimento por parte do Réu dos valores referentes ás quotizações de condomínio era essencial para que o mesmo tivesse recursos financeiros para poder realizar as obras referentes aos terraços e infiltrações pretendidas pela Autora”.
Defende a Apelante que a redação desse ponto deverá passar a ser a seguinte:
O recebimento por parte do Réu dos valores referentes às quotizações de condomínio não era essencial para que o mesmo tivesse recursos financeiros para poder realizar as obras referentes aos terraços, até porque as mesmas foram levadas a cabo e suportadas pelos condóminos das frações do R/C, apesar de serem áreas comuns”.
Entende a Apelante que tal resulta do depoimento da testemunha AA (…).
O ponto 39. do elenco de factos provados encontra correspondência na alegação contida no artigo 22º da contestação, ou seja, e contextualizando, nesse ponto apenas está em causa a essencialidade das quotas de condomínio da responsabilidade da Autora para a realização das obras.
Ora, entendemos que a afirmação contida no ponto em causa de que “O recebimento por parte do Réu dos valores referentes ás quotizações de condomínio era essencial para que o mesmo tivesse recursos financeiros para poder realizar as obras referentes aos terraços e infiltrações pretendidas pela Autora” é conclusiva e, como tal, deve ser eliminada da decisão relativa à matéria de facto. Efetivamente, a existência ou inexistência dessa essencialidade constituirá uma conclusão a retirar da demais factualidade considerada como provada.
E nem se diga, como pretende a Apelante, que a inexistência dessa essencialidade resulta da circunstância de as obras terem sido “levadas a cabo e suportadas pelos condóminos das frações do R/C, apesar de serem áreas comuns”, porquanto esse facto, para além de não ter sido alegado em ponto algum dos autos (designadamente, em articulado superveniente), por si só não permite tal conclusão, na medida em que, desde logo, é desconhecido o custo dessas obras, bem como a existência ou inexistência de valores nas contas do Condomínio, designadamente em fundo de reserva, que pudessem ser afetos à realização dessas obras. É que, só no confronto entre esses valores e o valor das quotas devidas pela Autora se poderá retirar qualquer conclusão a tal propósito.
Acresce que do depoimento da testemunha AA (…), que ouvimos, para além de não ser referido, de todo, o custo das obras levadas a cabo pelos condóminos do rés-do-chão, também nada resulta que permita perceber que concretas obras foram por eles realizadas, designadamente, se as mesmas foram aptas à eliminação da origem das infiltrações nas garagens da Autora.
Atento o exposto, decide-se eliminar o ponto 39. do elenco de factos provados.
Pretende ainda a Apelante ver aditado ao elenco de factos provados um novo facto com a seguinte redação:
40. Durante 2010 e 2025 a Ré nunca levou a Assembleia de Condomínio a deliberação sobre a execução das obras de reparação solicitadas pela Autora”.
Defende a Apelante que o facto em causa resulta do depoimento da testemunha BB (…).
Quanto a tal ponto, diremos apenas que o facto em causa não foi alegado em nenhum dos articulados juntos aos autos, não indicando a Apelante qualquer fundamento válido que justifique a sua consideração ao abrigo do disposto no art.º 5º, n.º 2, do CPC. Acresce que a possibilidade de ampliação da matéria de facto ao abrigo da alínea b) desse normativo não foi suscitada em 1ª instância, seja pelas partes, seja oficiosamente, estando precludida a possibilidade de tal suceder em sede de recurso.
Assim sendo, improcede, quanto a tal facto, a presente impugnação.
Por fim, o Apelante pretende ver aditado ao elenco de factos provados um outro novo facto, com a seguinte redação:
41. Com a não reparação dos terraços e dos danos causados nas suas frações, a Autora teve um prejuízo que ascende a cerca de €150.000,00 a título de lucros cessantes”.
Convoca, para o efeito, o depoimento da testemunha CC (…).
Vejamos.
Nos presentes autos foram dados como provados os seguintes factos:
“(…)
4. Desde, pelo menos, o ano de 2010, que se têm vindo a registar infiltrações nas frações da Autora – concretamente as identificadas sob as letras A, C, D, E, F e G, as quais têm proveniência nas partes comuns do edifício, em concreto, nos terraços do prédio que constituem os tetos das garagens, de utilização de duas frações habitacionais situadas do R/C.
(…)
11. O estado das garagens identificadas em 4) acarreta a inutilização das mesmas, e que as mesmas não tenham condições para venda ou para arrendamento das mesmas.
(…)
15. A Autora está impedida de vender ou arrendar as garagens, tendo deixado de promover qualquer dos dois negócios por volta dos anos de 2010/2011.
(…)
35. O valor de mercado atual para arrendamento das garagens na área territorial do prédio em causa nos autos ascende a cerca de € 150,00/mensal”.
Nenhum desses pontos foi impugnado pela Apelante.
O valor global do prejuízo sofrido pela Autora terá de ser encontrado com base nesses factos e delimitado pelo pedido contido na alínea B). Em tais circunstâncias, porque o facto que o Apelante pretende ver aditado se revela conclusivo, improcede quanto ao referido ponto, a presente impugnação.
Aqui chegados, em face de tudo quanto ficou exposto, conclui-se pela parcial procedência da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, à qual se introduzem as seguintes alterações:
- A redação do ponto 38. do elenco de factos provados passa a ser a seguinte:
O Réu intentou outra ação executiva contra a Autora por falta de pagamento de quotizações e que deu origem ao processo n.º (…), no qual a Autora deduziu embargos de executado, que deu origem ao apenso A, e no âmbito do qual, em 24.01.2021 foi proferida a decisão referente a tais embargos (improcedência), sendo que nessa execução o Réu recebeu, pelo menos, a quantia de 1.992,63 €;
- Elimina-se o ponto 39. do elenco de factos provados.
*
- Do direito de indemnização da Autora e da ilegitimidade do seu exercício por abuso de direito.
A Autora intentou a presente ação formulando, no que releva para o presente recurso, os seguintes pedidos:
A) Ser o Réu condenado a proceder às reparações das partes comuns do edifício – terraços – bem como, das frações da Autora, tudo no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado.
B) Cumulativamente, ser condenado no pagamento, a título de indemnização, da quantia mensal de € 900,00 (novecentos euros) que se vier a vencer, desde a citação da presente ação, até efetiva conclusão das obras de reparação das partes comuns e das frações da Autora.
C) Caso não proceda às reparações das partes comuns do edifício, deverá o Réu ser condenado a pagar uma sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no valor de € 100/dia (metade para a Autora e metade para o Estado), acrescido dos juros previstos no n.º 4 daquele preceito legal.
D) Caso não proceda às reparações da fração da Autora, deverá o Réu ser condenado a pagar, às suas expensas, o valor dessas reparações, cuja extensão dos danos e valor serão apurados em sede de liquidação de sentença.
E) Ser a Autora dispensada do pagamento de quotizações ordinárias e extraordinárias vencidas, desde julho de 2020, até efetiva conclusão das obras de reparação” (considerando, quanto a este último pedido, a redução do pedido requerida em 15.04.2021 e admitida por despacho de 31.10.2022).
No que à análise desses pedidos se refere, depois de se transcrever o teor dos artigos 1420º e 1421º do CC, escreveu-se o seguinte na sentença recorrida:
(…)
Resulta que se considera como partes comuns os terraços ou pátios, ainda que de uso exclusivo de algum condómino. Ora, na propriedade horizontal coexistem num mesmo edifício formando um conjunto incindível, os direitos de propriedade exclusiva dos condóminos sobre as respetivas frações autónomas e os seus respetivos direitos sobre as partes comuns, por princípio definidos segundo o regime da compropriedade. Donde que, simultaneamente com o direito de compropriedade sobre as partes comuns de que todos os condóminos são contitulares, cada condómino é proprietário exclusivo da sua própria fração autónoma, sendo, como tal, titular exclusivo de um direito real, de natureza absoluta, o que lhe confere o direito de exigir de qualquer terceiro, seja outro condómino, seja um terceiro ou o próprio conjunto dos condóminos, que se abstenha de atos que perturbem ou diminuam o pleno gozo e fruição da sua fração.
Com efeito, de acordo com o disposto no art. 1305º do Código Civil, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas, sendo que esse direito, enquanto direito real absoluto, é oponível a qualquer terceiro.
De todo o exposto, resulta, face ao estatuído no art. 483º do Código Civil, que a violação desse direito subjetivo pode determinar a obrigação de indemnização, caso se verifiquem os pressupostos da responsabilidade civil.
Do que supra se analisou, inexiste qualquer dúvida no sentido de que os terraços em apreço constituem partes comuns do prédio em causa nos autos, pese embora o seu uso exclusivo por determinados condóminos. Mais se provou que as infiltrações nas garagens elencadas no ponto 4º dos factos provados, pertencentes á Autora, provêm desses terraços, confirmando-se a origem e/ou causa das infiltrações – em partes comuns do edifício.
Retomando a possibilidade de a conduta dos condóminos, quanto ás partes comuns do edifício acarretar a responsabilidade civil dos mesmos perante atos que preencham os pressupostos constantes do art. 483º CC, referencia-se o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.11.2020, processo 981/19.0T8CSC.L1-7, www.dgsi.pt:
I – O condomínio está vinculado ao dever de manter, conservar e reparar as zonas comuns do edifício.
II – Quando o proprietário de uma fração autónoma integrada num prédio constituído em propriedade horizontal pede que o condomínio proceda a obras de reparação dos danos causados na sua fração por infiltrações de água provocadas por falta de conservação e reparação de zona comum ou ao pagamento do custo dessa reparação está em causa uma situação suscetível de gerar responsabilidade civil extracontratual, subsumível ao regime geral dos artigos 483º e seguintes do Código Civil.
III – Atento o dever de vigilância que recai sobre o condomínio quanto às partes comuns do edifício em propriedade horizontal, é aplicável o regime do artigo 493º, n.º 1 do Código Civil, por força do qual “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar” responde pelos danos causados pela coisa, “salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.
IV – Provando-se que o condomínio incumpriu o mencionado dever por omissão negligente do zelo e cuidado que lhe eram exigíveis, não estando demonstrados factos suscetíveis de excluir a sua culpa quanto à falta de conservação e reparação necessárias ou que revelem que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa, fica aquele obrigado a indemnizar o condómino pelos danos que lhe sobrevieram como consequência direta daquela omissão ilícita e culposa”.
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22.03.2022, processo n.º 3421/21.1T8VNG.P1, www.dgsi.pt.
“I – Uma propriedade especial, em que coexistem, num mesmo edifício, propriedades privadas e individualizadas sobre cada uma das frações autónomas e uma compropriedade de certas partes do mesmo edifício, imperativamente definidas como partes comuns.
II – O condomínio tem legalmente um dever de conservação e manutenção das partes comuns, a ser definido em concreto pela Assembleia de Condóminos e executado pelo administrador do condomínio, sendo os respetivos custos suportados pelos condóminos, na medida das respetivas quotas-partes na propriedade horizontal.
III – O direito do condómino exigir a reparação dos danos de que enfermam as partes comuns do edifício ancora-se no dever acima referido que impende sobre o condomínio de conservação e manutenção das partes comuns, e pode ser exigido a qualquer momento.
IV – Por outro lado, o direito do mesmo condómino exigir a reparação dos danos surgidos na sua fração e o pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais consequentes dos mesmos vícios das partes comuns visa proteger o seu direito de propriedade e enquadra-se no instituto da responsabilidade extracontratual do condomínio perante os condóminos, nos termos gerais consagrados no art.º 483.º do C Civil.
V – Em qualquer destas situações, é aplicável a presunção de culpa consagrada no art.º 493.º do C Civil, em face do dever de vigilância das partes comuns que impende sobre o condomínio”.
Conforme estipula o art. 483º, n.º 1 CC, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Da leitura deste dispositivo legal, constituem pressupostos:
3. A existência de um facto voluntário do lesante;
ii) A ilicitude do facto;
iii) A imputação do facto ao agente;
iv) A existência de dano;
v) Um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Nos presentes autos, resulta que as infiltrações que acarretam as anomalias verificadas e supra elencadas, nas frações autónomas identificadas no ponto 4) dos factos provados, derivam diretamente do estado dos terraços que constituem parte comum do edifício, e que consubstanciam o teto daquelas garagens.
Por outro lado, resulta que tal impede a normal utilização das mesmas frações, causando danos e prejuízos.
Poderíamos, pois, considerar o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
(…)”.
Não questiona a Apelante, no seu recurso, esse segmento da sentença, o que significa que temos por assente a verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar por parte do Réu Condomínio com fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual, em conformidade com o disposto nos artigos 483º, n.º 1 e 493º, n.º 1, do CC.
Sucede que na sentença recorrida o exercício desse direito foi considerado ilegítimo, porquanto se entendeu que o mesmo configura abuso de direito, na modalidade tu quoque, e, em consequência, foi o Réu absolvido dos pedidos acima assinalados sob as alíneas A), B), C) e D).
A tal propósito, no essencial, é referido o seguinte na sentença recorrida:
(…) não se pode olvidar que, conforme dado como provado: i) a Autora desde o ano de 2010 não contribui com os valores que lhe são devidos em sede de quotizações e outros encargos referentes ao condomínio; b) A Autora é proprietária de 9 frações correspondentes a garagens, num condomínio composto por um total de 12 frações de garagens e 9 de habitação; c) o Réu viu-se obrigado a intentar duas ações executivas para pagamento dos valores em dívida pela Autora no ano de 2014 e 2020, sendo que apenas em 2020 logrou obter o ressarcimento coercivo da primeira ação executiva, no montante de € 5412,37; d) o pagamento pela Autora dos valores que lhe competia liquidar junto do Réu eram essenciais para obter o valor necessário para as obras.
Ora, do teor do art. 1424º CC resulta:
“1. Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum são da responsabilidade dos condóminos proprietários das frações no momento das respetivas deliberações, sendo por estes pagas em proporção do valor das suas frações.
2 – Sem prejuízo do disposto no número anterior, as despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum podem, mediante disposição do regulamento de condomínio, aprovada, sem oposição, por maioria dos condóminos que representem a maioria do valor total do prédio, ficar a cargo dos condóminos em partes iguais ou em proporção à respetiva fruição, desde que devidamente especificadas e justificados os critérios que determinam a sua imputação.
3 – As despesas relativas às partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente algum dos condóminos ficam a cargo dos que delas se servem (…)”.
Releva considerar que as despesas que aqui se encontram contempladas são todas as despesas necessárias à conservação e fruição e não apenas as chamadas «despesas correntes».
Na verdade, o regime das despesas referentes às partes comuns do prédio constituído em propriedade horizontal, além da já referida regra geral prevista no n.º 1, obedece ainda um princípio de «fruidor-pagador», como se pode constatar pela redação dos n.ºs 2, 3 e 4 do art.º 1424.º do Cód. Civil.
A questão que se coloca é se a Autora ao não proceder ao pagamento durante mais de uma década as quotizações, despesas e demais encargos que lhe cabia pagar mais de uma década as quotizações, despesas e demais encargos que lhe cabia pagar como condómino (deixou de proceder ao seu pagamento em 2010 e a presente ação foi intentada no ano de 2020) – sendo proprietária de 9 de 12 frações de garagens, poderia, dentro dos limites da boa fé, exigir a reparação da parte comum e dos estragos verificados nas suas frações, bem como dos demais danos invocados, como sejam lucros cessantes, nos termos peticionados – ou seja, aferir se a Autora não age em abuso de direito.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art. 334º, do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda, manifestamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
(…) não se olvida que a Autora seria titular do direito de obter as reparações necessárias e eventualmente o ressarcimento dos danos verificados (mormente patrimoniais).
Todavia, a Autora, sabendo ser proprietária de 9 frações num total de 12 garagens (sendo que o problema em causa se reportava apenas á zona de garagens, ou seja, afetava quase exclusivamente as suas frações), deixou de contribuir, como lhe competia e era sua obrigação legal, assim dificultando de sobremaneira a possibilidade de o Réu lograr obter o valor necessário para a sua reparação, sem que excedesse as obrigações dos demais condóminos (os quais não seriam na sua maior parte igualmente proprietários de frações correspondentes a garagens), tendo, pois, contribuído a Autora, de forma significativa, para a manutenção da situação. A mesma, durante os 10 anos que mediou o inicio da omissão de pagamento das contribuições legalmente devidas e a data da entrada desta ação nada pagou, comportamento que se mantém até á presente data. Mais resultou que a falta de contribuição da Autora durante tal período de tempo teve um papel crucial na dificuldade de o Réu proceder às necessárias reparações – no que respeita a deter os meios financeiros para o efeito.
(…)
Face ao exposto, verificando-se que a Autora atua em abuso de direito, na modalidade de “tu quoque”, cumpre declarar improcedentes os pedidos identificados nas alíneas A), B), C), D), absolvendo-se o Réu em conformidade.
Por maioria de razão, improcede o pedido identificado sob a alínea E), porquanto, e como frisado, é obrigação da Autora manter o pagamento das prestações referentes ao condomínio nos termos legais, absolvendo-se o Réu em conformidade”.
É contra esse entendimento que a Apelante se insurge, defendendo a inexistência de abuso de direito.
Analisemos.
Nos termos do artigo 334º do CC “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como ensina o Prof. Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 7ª ed., pág. 68, o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, às consequências da rígida estrutura das normas legais.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, 4ª ed., Vol. I, pág. 298, “a conceção adotada de abuso de direito é a objetiva. Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites.” Da mesma opinião é o Prof. Castro Mendes, in “Lições de Direito Civil ao 2º ano jurídico de 72/73”, pág. 77, que, depois de se referir aos sentidos subjetivo e objetivo da ideia de abuso de direito, diz: “a teoria objetiva tem sobre a subjetiva a vantagem de evitar o problema da relevância das finalidades psíquicas de loucos ou incapazes. Parece ser esta a aceite pelo art.º 334º do Código Civil na sua parte final que qualifica de ilegítimo o ato pelo qual o titular de um direito o exerce, quando exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico desse direito.
Segundo o legislador, a determinação da legitimidade ou ilegitimidade do exercício do direito, ou seja, da existência ou não de abuso do direito, afere-se a partir de três conceitos: a boa fé, os bons costumes e o fim social ou económico do direito.
A doutrina distingue dois sentidos principais da boa fé. “No primeiro, ela é essencialmente um estado ou situação de espírito que se traduz no convencimento da licitude de certo comportamento ou na ignorância da sua ilicitude, resultando de tal estado consequências favoráveis para o sujeito do comportamento. Neste sentido, a boa fé insere-se nas normas jurídicas como elemento constitutivo da sua previsão, da hipótese. No segundo sentido, já se apresenta como princípio (normativo e/ou geral de direito) de atuação. A boa fé significa agora que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” – Jorge Manuel Coutinho de Abreu, in “Do Abuso do Direito”, pág. 55. “Contudo, dizer-se que a boa fé, neste segundo sentido, exige um comportamento «honesto, correto e leal» é dizer ainda muito pouco, é confirmar o carácter indeterminado, de «norma em branco», desta cláusula geral – o que acontece, aliás, com quase todas as outras… Por isso, a doutrina moderna, sobretudo a alemã, tem elaborado, com base na jurisprudência dos tribunais, uma série de «hipóteses típicas» ou «figuras sintomáticas» concretizadoras da cláusula geral da boa fé. Podemos assim destacar a proibição de venire contra factum proprium, impedindo-se uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior do pretendente; aquilo que os alemães designam por Verwirkung, com que se veta o exercício de um direito subjetivo ou duma pretensão quando o seu titular, por não os ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos (revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal ou intolerável); o abuso da nulidade por vícios formais – é inadmissível a impugnação da validade dum negócio por vício de forma por quem, apesar disso, o cumpre ou aceita o cumprimento realizado pela outra parte; a proibição de o credor recusar a prestação apta a satisfazer o seu interesse, apesar de não estar inteiramente de acordo com as estipulações contratuais (v.g., ligeira ou insignificante ultrapassagem do prazo ou falta de entrega de diminuta importância em dinheiro numa vultosa obrigação pecuniária – cfr. artº 802, nº 2 do Código Civil); a interdição de se invocar a «exceção de não cumprimento do contrato» (artº 428), quando a falta do inadimplente não seja de tal modo grave que justifique a recusa em cumprir da outra parte” ( Idem, ob. Cit., pág. 59 e 60).
Em suma, os conceitos de boa fé e de abuso de direito têm conteúdo e extensão diferentes, sendo que a ideia de abuso de direito pode muitas vezes estar incluída na violação da boa fé. “É o que se dará, em regra, no domínio contratual, onde as partes devem proceder segundo a boa fé: aí, o abuso do direito será frequentemente uma ofensa da boa fé devida” – Prof. Vaz Serra, in “Do Abuso do Direito”, págs. 265-266.
Por bons costumes entende-se um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e corretas aceitam comummente.
O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respetiva atribuição pela lei ao seu titular.
Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade.
Pelo que respeita, porém, ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados (como sucede no poder paternal, no poder tutelar, etc.), a par de outros em que se reconhece maior liberdade de atuação ou decisão ao titular (direitos potestativos, direito de propriedade, dentro de certos limites, etc.)” – Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, pág. 299.
De qualquer forma, o exercício do direito só é abusivo quando o excesso cometido for manifesto. É isso que resulta expressamente do art.º 334º e é também essa a lição de todos os autores e de todas as legislações (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. Cit., pág. 298 a 299).
Na situação em análise, vemos que na sentença recorrida o Tribunal a quo entendeu que o exercício do direito de indemnização por parte da Autora excede os limites impostos pela boa fé, configurando uma situação de abuso de direito na modalidade denominada de “tu quoque”.
Ensina a propósito Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, 1999, pág. 209 que “A ideia básica reside no seguinte: aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo a outrem, o acatamento de consequências daí resultantes: turpitudinem suam allegans non auditur. Caso pretendesse fazê-lo, a sua atuação seria detida pela exceção tu quoque”. Nesta modalidade de abuso de direito é exigido um nexo muito estrito entre a situação violada pelo abusador e aquela de que este se pretende prevalecer. Como se refere no Acórdão do STJ de 20.10.2011, Processo n.º 2018/07.3TBFAR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt, “a fórmula tu quoque traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído; está em jogo um vetor axiológico intuitivo, expresso em brocardos como ”turpitudinem suam allegans non auditur” (ninguém, alegando a sua própria torpeza, deve ser ouvido) ou “equity must come with clean hands””.
Os elementos de que dispomos não nos permitem acompanhar a sentença recorrida.
É verdade que de acordo com a factualidade provada a Autora deixou de pagar voluntariamente as quotas mensais de condomínio desde novembro de 2010. No entanto, esse facto, por si só, não nos permite concluir que o pagamento dessas quotas era essencial para se obter o valor necessário para a realização das obras peticionadas nos presentes autos e, acima de tudo, que essas obras só não se realizaram porque a Autora não procedeu ao pagamento das referidas quotas. Desde logo, é desconhecido o valor total das obras em causa, tendo-se apenas apurado que o valor estimado para a reparação das garagens afetadas pelas infiltrações provenientes das partes comuns do edifício ascende a quantia não inferior a € 11.713,00, acrescido de IVA á taxa legal. É igualmente desconhecida a situação económica do Condomínio Réu, designadamente, a existência ou inexistência de valores em fundo de reserva que possam ser afetos à realização dessas obras e, existindo, se os mesmos são ou não suficientes para a sua realização. Acresce a inexistência de elementos que nos permitam valorar o impacto das quotas de condomínio devidas pela Autora nas contas do Condomínio Réu, tendo em conta que para além das 9 frações da Autora, destinadas a garagens, existem mais 3 frações destinadas a garagens e 9 a habitações, desconhecendo-se o valor das respetivas quotas. E nem se diga “que o problema em causa se reportava apenas á zona de garagens” e que “afetava quase exclusivamente” as frações da Autora, pois se os danos se verificam nas garagens da Autora, a origem dos mesmos está nas partes comuns do edifício, inexistindo motivos – ressalvando a possibilidade de acordo em contrário – para onerar em maior medida os condóminos proprietários das frações destinadas a garagens.
Saliente-se ainda que se a Autora deixou de pagar voluntariamente as quotas mensais de condomínio desde novembro de 2010 - sendo que entretanto foram instauradas duas ações executivas para recuperação de valores em dívida, tendo já sido recuperado, pelo menos, o valor de 7.405,00 € -, também se provou que as infiltrações que afetam as suas garagens ocorrem desde pelo menos 2010. E desde data não apurada mas que se situa por volta do ano de 2010/2011 que a Autora informou o Réu da necessidade de reparação desse problema. Depois, em conversações com o Réu, em 02 de fevereiro de 2012 a Autora apresentou um orçamento para o efeito, sendo que a reparação do terraço, àquela data, ascendia a € 5.600,00, acrescido de IVA a 23%. Esse orçamento não veio a ser aceite pelo Réu. Acresce que da factualidade provada nada resulta que permita afirmar que o Réu, desde então, alguma vez tenha diligenciado por si pela obtenção de orçamentos para a realização da obra e que tenha submetido a questão à assembleia de condóminos, ou seja, que o Réu alguma vez tenha desencadeado qualquer ação que demonstre a sua intenção de realizar as obras peticionadas pela Autora.
Neste enquadramento, temos por seguro não ser possível afirmar que as obras cuja realização é peticionada nos autos só não se realizaram porque a Autora não pagou as quotas de condomínio da sua responsabilidade.
Assim sendo, entendemos que os elementos de que dispomos não nos permitem afirmar que a Autora atua em abuso de direito ao exercer o direito de indemnização que lhe é conferido pelos artigos 483º, n.º 1 e 493º, n.º 1, do CC.
Assente a legitimidade do exercício desse direito pela Autora, incumbe ao Réu a reparação dos danos sofridos pela Autora, nos termos previstos nos artigos 562º e ss. do CC.
No que a esses danos se refere, resultou provado que desde pelo menos o ano de 2010 que se têm vindo a registar infiltrações nas frações da Autora identificadas sob as letras A, C, D, E, F e G, as quais são provenientes dos terraços do prédio que constituem os tetos das garagens, de utilização de duas frações habitacionais situadas do R/C. As infiltrações têm origem no sistema de impermeabilização da cobertura das garagens, o qual não está a responder às solicitações para que foi construído, deixando passar água para o interior das mesmas. Em razão dessas infiltrações, as garagens a que correspondem as frações acima assinaladas encontram-se com humidades, manchas, escorrências, bolores, fissuras e odores, verificando-se corrosão de armaduras já expostas, corrosão interior de armaduras com descasques e betão a ser cuspido, bem como portões enferrujados. Para reparar as referidas garagens é necessário: efetuar o levantamento de todo o revestimento cerâmico do pavimento dos terraços, efetuar o levantamento do sistema de impermeabilização (se existir), aplicar novo sistema de impermeabilização e aplicar novo revestimento cerâmico no pavimento dos terraços. Para a reparação das garagens serão necessários trabalhos variados, plasmados no relatório pericial de fls. 148 e ss., concretamente nos pontos 9), 10), 12), 13), 15), 16), 18), 19)21), 22), estimando-se que essa reparação ascenda a quantia não inferior a € 11.713,00, acrescida de IVA á taxa legal.
Perante tal factualidade, atento o peticionado em A), impõe-se a condenação do Réu a reparar os referidos terraços (apenas no caso de tais obras não terem entretanto sido realizadas na pendência da ação, hipótese que se equaciona face ao teor das alíneas i), s), jj) e ss) das conclusões recursivas), bem como as garagens da Autora a que correspondem as frações A, C, D, E, F e G, para o que se reputa adequado o prazo de 60 dias. Efetivamente, o prazo de 10 dias indicado pela Autora revela-se curto, na medida em que não basta executar a obra, é também necessário encontrar quem a execute, sem esquecer os imprevistos associados a eventuais condições meteorológicas adversas, as quais poderão atrasar a execução da obra relativa aos terraços.
Quanto ao peticionado em D), pensado para o caso de o Réu não proceder, nesse prazo, à execução da obra de reparação das garagens da Autora, situação em que a Autora pretende a sua condenação no pagamento do valor dessas reparações, a apurar em sede de liquidação de sentença, cumpre ter presente que a lei prevê um regime específico para essas situações. Efetivamente, a condenação do Réu na execução das referidas reparações traduz-se numa condenação em prestação de facto positivo fungível, prevendo a lei, para os casos de incumprimento de obrigações dessa natureza, nos art.ºs 868º e ss. do CPC, o recurso à execução para prestação de facto. De acordo com esse regime, optando o exequente pela prestação do facto por outrem, há lugar à avaliação do custo da prestação, à realização da quantia apurada e ao pagamento do crédito apurado a favor do exequente.
Atento o exposto, inexistindo fundamento para afastar esse regime, ao qual a Autora pode recorrer, improcede o referido pedido.
Resultou igualmente provado que o estado das referidas garagens acarreta a inutilização das mesmas, fazendo com que não tenham condições para venda ou arrendamento, tendo a Autora deixado de promover qualquer dos dois negócios por volta dos anos de 2010/2011. Mais se provou que o valor de mercado atual para arrendamento das garagens na área territorial do prédio em causa nos autos ascende a cerca de € 150,00 mensais.
Em causa está o dano da privação do uso das referidas garagens.
Na impossibilidade de determinar o valor exato desse dano, iremos recorrer, em obediência ao disposto no art.º 566º, n.º 3, do CC, a critérios de equidade.
Conforme defende a Autora, entendemos que o valor locativo dessas garagens no mercado de arrendamento, tendo em atenção que o arrendamento foi precisamente um dos negócios que a Autora tentou promover, deve ser considerado na fixação da indemnização em causa. Atento o exposto, considerando que da factualidade provada resulta que o valor locativo de uma garagem na área onde se localiza o prédio em causa nos autos ascende a cerca de 150,00 € mensais (valor ao qual sempre haveria que descontar os respetivos encargos tributários), revela-se adequado atender ao valor de 100,00 € mensais por garagem invocado pela Autora na petição. No entanto, importa ter presente que os elementos de que dispomos não nos permitem afirmar com a necessária certeza que a Autora conseguiria, sempre, arrendar todas as 6 garagens ao mesmo tempo, sendo que já se nos afigura plausível que o conseguisse fazer relativamente a 3 delas. Nesse sentido, é possível concluir que o dano sofrido pela Autora com a privação do uso das suas garagens ascende ao montante mensal de 300,00 €.
Encontrado o valor desse dano, cumpre ponderar o contributo da própria Autora para a sua gravidade. É que a Autora tem conhecimento dos danos nas suas garagens e da respetiva causa desde 2010 mas só intentou a presente ação em setembro de 2024, o que significa que aguardou 10 anos para o fazer. Dúvidas não temos de que essa inércia, por um tão longo período de tempo, contribuiu para a contínua degradação das suas garagens provocada pelas contínuas infiltrações.
Neste enquadramento, por força do disposto no art.º 570º, n.º 1, do CC, entendemos ser de reduzir para 1/3 o valor da indemnização a atribuir à Autora a tal título.
Assim, o prejuízo sofrido pela Autora ascende ao valor de 100,00 € mensais.
Atento o exposto, considerando o peticionado em B), deverá o Réu ser condenado a pagar à Autora a quantia mensal de 100,00 €, por cada mês decorrido desde a citação do Réu até à conclusão das obras de reparação dos terraços (caso ainda não tenham sido realizadas) e das garagens.
*
- Da sanção pecuniária compulsória.
Peticiona a Autora, sob a alínea C), conforme já acima referimos, a condenação do Réu no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na realização das obras de reparação dos terraços.
Determina o art.º 829-A, n.º 1, do CC, que “Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso”.
Resulta do citado normativo que a sanção pecuniária compulsória não foi consagrada como mecanismo coercitivo de aplicação geral, mas limitada às obrigações de “non facere” e de “facere” cujo cumprimento requeira a intervenção insubstituível do devedor, com exceção das que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas. Nas palavras de Calvão da Silva, in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 1987, pág. 450, “(…) o legislador confinou a sanção pecuniária compulsória às obrigações de carácter pessoal – obrigações de carácter intuitos personae cuja realização requer a intervenção do próprio devedor, insubstituível por outrem – fazendo dela um processo subsidiário, aplicável onde a execução específica não tenha lugar”.
Saliente-se que a sanção pecuniária compulsória não tem natureza indemnizatória, “sendo independente da existência e da extensão do dano resultante do não cumprimento pontual e do desrespeito ou do não respeito no tempo devido da condenação principal que reforça”, tal como refere Calvão da Silva, Ob. Cit., pág. 410.
Aliás, porque é um mecanismo coercitivo independente da indemnização, compreende-se que o produto da sanção pecuniária compulsória reverta em partes iguais para o Estado e para o credor, consoante resulta do n.º 3 do art.º 829-A do CC.
Ora, na situação em apreço, a obrigação de proceder à realização de obras de reparação dos terraços não constitui, seguramente, uma prestação de facto infungível, muito menos exige especiais qualidades científicas ou artísticas por parte do Réu.
Atento o exposto, conclui-se pela improcedência do pedido de condenação do Réu no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.
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- Da exceção de não pagamento.
Peticiona a Autora, sob a alínea E), a dispensa do pagamento de quotizações ordinárias e extraordinárias vencidas, desde julho de 2020, até efetiva conclusão das obras de reparação das partes comuns e das suas frações.
Invoca para o efeito a exceção de não pagamento.
A exceção de não cumprimento encontra-se prevista no art.º 428 do CC, o qual, no seu n.º 1, estipula que “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
A exceção de não cumprimento pressupõe assim a existência de um contrato bilateral com prestações correspetivas ou correlativas, isto é, interdependentes, em que uma é o motivo determinante da outra. Por via da referida exceção de não cumprimento do contrato qualquer uma das partes de uma relação sinalagmática pode recusar o cumprimento da sua prestação enquanto a contraparte não cumprir a sua.
A circunstância de o nosso ordenamento civilista disciplinar o instituto em apreço no âmbito dos contratos, o seu campo de eleição, “não significa que não se possa ir mais além, aproveitando todas as suas potencialidades, tanto no campo civilístico como noutros domínios jurídicos, em face das realidades sociais e económicas contemporâneas. Tenha-se presente, de resto, que o sinalagmatismo que está na base da exceptio diz mais propriamente respeito às obrigações com essa característica de reciprocidade do que aos contratos de onde derivam”- cfr. Almeida Costa, in RLJ, ano 119, pág. 143.
Ou seja, não obstante a sua inserção sistemática no regime dos contratos, este instituto é aplicável às obrigações em geral, desde que verificados os respetivos pressupostos e mesmo nos casos em que, por força da lei, se cria entre as partes uma relação análoga à proveniente do contrato bilateral – neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª ed., pág. 407

Na situação em apreço, a Autora pretende paralisar o direito do Réu às quotas de condomínio, invocando para o efeito o incumprimento por parte do Réu da obrigação de executar obras nas partes comuns do edifício aptas a eliminar as infiltrações que afetam as suas frações, bem os danos causados nessas frações pelas referidas infiltrações.
Pese embora a natureza de obrigação propter rem da prestação a cargo da Autora, a verdade é que ela não perde o carácter obrigacional, pelo que, nessa perspetiva, entendemos que pode aqui ser invocada a exceção de não cumprimento. As obrigações reais são verdadeiras relações obrigacionais, fazem parte do conteúdo do jus in re, mas este é suscetível de englobar momentos obrigacionais. Trata-se “de um conceito menos puro ou menos linear do que o de obrigação (…) Estruturalmente, é de verdadeiras obrigações que se trata, ou seja, de vínculos jurídicos em virtude dos quais uma pessoa, na qualidade de titular de um direito real, fica adstrita a realizar uma prestação em benefício de outra” – cfr. Manuel Henrique Mesquita, in “Obrigações Reais e Ónus Reais”, Coleção Teses, pág. 102 a 103.
Resta-nos então analisar se os deveres em consideração estão ou não sinalagmaticamente unidos.
Desde já se adianta que entendemos que sim.
A exceção de não cumprimento aparece fundamentalmente como um afloramento de um princípio de boa-fé, segundo o qual quem viola uma obrigação não pode, sem abuso, exigir o cumprimento de uma outra que, em relação àquela, está em nexo de reciprocidade. E aqui parece-nos que o sinalagma dimana da funcionalidade e da reciprocidade das obrigações em causa. De facto, a obrigação da Autora de contribuir para as despesas de conservação e fruição das partes comuns do edifício na proporção do valor das suas frações, prevista no art.º 1424º, n.º 1, do CC, contrapõe-se à obrigação imposta ao Condomínio Réu de zelar pela conservação e fruição das mesmas partes comuns, a concretizar através da intervenção dos órgãos próprios do condomínio, em conformidade com o disposto no art.º 1436º, f), do CC.
Esclareça-se que a obrigação de cada condómino quanto ao pagamento das respetivas quotizações é uma obrigação conjunta e não solidária. O condomínio, nas relações internas, e no que a tal matéria e refere, não atua como credor mas antes como cobrador das receitas necessárias à realização das despesas nas partes comuns que a lei impõe a seu cargo.
Acresce que a obrigação de reparação, a cargo de todos os condóminos, das partes comuns do edifício, é uma obrigação sem prazo, até porque para a realização das obras é necessário que exista dinheiro no fundo de reserva ou proveniente de quotas extraordinárias, dinheiro esse que vem precisamente dos condóminos, em razão das permilagens, cujo pagamento a lei impõe e sem o qual não é possível realizar qualquer obra em partes comuns. Essa interdependência das duas obrigações evidencia o sinalagma funcional e a inexistência de prazos diferentes para o seu cumprimento, tal como exigido pelo art.º 428º do CC.
Assim, se o Condomínio Réu pode exigir à Autora o pagamento das quotas de condomínio, ou seja, a sua comparticipação nas despesas do condomínio, também a Autora lhe pode exigir a realização das obras necessárias à eliminação das infiltrações que afetam as suas frações e a reparação dos danos nelas causados. Tais prestações são impostas por força da própria lei, numa situação análoga à proveniente do contrato bilateral. O sinalagma funcional reside no facto da contribuição para as despesas do condomínio ter em vista a conservação das partes comuns.
Na situação dos autos, no que se refere às quotas de condomínio vencidas até à data em que foi proposta a ação, a factualidade provada não nos permite concluir que ao deixar de pagar essas quotas a Autora pretendeu usar da faculdade conferida pelo citado art.º 428º, n.º 1, do CPC, muito menos que de forma expressa ou implícita tenha feito chegar essa pretensão ao conhecimento do Réu. Veja-se que apenas resultou provado que a Autora deixou de pagar voluntariamente as quotas mensais de condomínio desde Novembro de 2010.
Apenas na petição inicial na origem da presente ação a Autora invoca a exceção de não cumprimento, sendo que só com a citação, em 12.10.2020, o Réu tomou conhecimento desse facto.
Atento o exposto, considerando o peticionado pela Autora sob a alínea E), na parcial procedência da invocada exceção de não cumprimento, vai a Autora dispensada do pagamento das quotizações ordinárias e extraordinárias vencidas após 12.10.2020 até efetiva conclusão das obras de reparação.
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Aqui chegados, conclui-se pela parcial procedência do recurso e, em consequência:
a) Revoga-se a sentença recorrida no que à absolvição do Réu dos pedidos identificados sob as alíneas A), B) e E) se refere, decidindo-se:
- Para o caso de tais obras não terem sido realizadas na pendência da ação, condenar o Réu a proceder à reparação das partes comuns do edifício (terraços), no prazo de 60 dias após o trânsito em julgado da presente decisão;
- Condenar o Réu a proceder à reparação das frações da Autora identificadas pelas letras A, C, D, E, F e G, no prazo de 60 dias após o trânsito em julgado da presente decisão;
- Condenar o Réu no pagamento à Autora, a título de indemnização, da quantia mensal de 100,00 € por cada mês decorrido desde a citação do Réu até à conclusão das obras de reparação dos terraços (caso ainda não tenham sido realizadas) e das frações da Autora identificadas pelas letras A, C, D, E, F e G; e,
- Dispensar a Autora, ao abrigo da exceção de não pagamento, do pagamento ao Réu das quotizações ordinárias e extraordinárias de condomínio vencidas após a citação do Réu até efetiva conclusão das obras de reparação.
b) Confirma-se a sentença recorrida no que se refere à absolvição do Réu dos pedidos contidos nas alíneas C) e D).
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem o coletivo desta 2.ª Secção Cível abaixo identificados em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência:
a) Revoga-se a sentença recorrida no que à absolvição do Réu dos pedidos identificados sob as alíneas A), B) e E) se refere, decidindo-se:
- Para o caso de tais obras não terem sido realizadas na pendência da ação, condenar o Réu a proceder à reparação das partes comuns do edifício (terraços), no prazo de 60 dias após o trânsito em julgado da presente decisão;
- Condenar o Réu a proceder à reparação das frações da Autora identificadas pelas letras A, C, D, E, F e G, no prazo de 60 dias após o trânsito em julgado da presente decisão;
- Condenar o Réu no pagamento à Autora, a título de indemnização, da quantia mensal de 100,00 € por cada mês decorrido desde a citação do Réu até à conclusão das obras de reparação dos terraços (caso ainda não tenham sido realizadas) e das frações da Autora identificadas pelas letras A, C, D, E, F e G; e,
- Dispensar a Autora, ao abrigo da exceção de não pagamento, do pagamento ao Réu das quotizações ordinárias e extraordinárias de condomínio vencidas após a citação do Réu até efetiva conclusão das obras de reparação.
b) Confirma-se a sentença recorrida no que se refere à absolvição do Réu dos pedidos contidos nas alíneas C) e D).
Custas pela Autora e pelo Réu na proporção dos respetivos decaimentos, os quais se fixam, respetivamente, em 40% e 60%.
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 20.11.2025
Susana Mesquita Gonçalves
António Moreira (em substituição legal do 1º Adjunto)
Pedro Martins