Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5340/17.7T9LSB-AT.L1
Relator: ESTER PACHECO DOS SANTOS
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
PROCESSO URGENTE
PRAZO
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1 – Resulta da al. c) do n.º 2 do art. 103.º do CPP, que a regra geral de que “os atos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais”, pode ser afastada por via de um despacho.
2 - A norma abarca os atos de inquérito e de instrução, podendo a natureza urgente ser atribuída a alguns ou a todos eles.
3 – Sendo o propósito o de acautelar o risco de prescrição, não é verdadeiro que a declaração do caráter urgente do inquérito se tivesse limitado a determinados atos processuais, pois que a mesma, para tanto salvaguardar, é necessariamente referente a todos os atos produzidos no inquérito.
4 – A operatividade introduzida por força do despacho do titular da ação penal tem efeito na contagem do prazo para apresentação do requerimento de abertura de instrução, pois que, na inexistência de qualquer decisão que a altere, os autos mantêm a natureza urgente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
1. No Tribunal Central de Instrução Criminal, J6, foi proferido despacho em 28.02.2025, que rejeitou, por extemporâneo, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido AA.
2. Recurso
Inconformado, o arguido interpôs recurso, pugnando pela revogação da decisão recorrida, finalizando a motivação com as conclusões que se transcrevem:
1. O presente recurso tem por objeto o despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Arguido ora Recorrente, proferido pelo Tribunal a quo com fundamento na alegada intempestividade do mesmo, com os seguintes fundamentos: "o prazo de 20 (vinte) dias para requerer a abertura de instrução foi excecionalmente prorrogado em 30 (trinta) dias, por despacho proferido a fls. 9101, com fundamento na excecional complexidade dos autos declarada a fls. 1792 a 1793, tendo tal prazo decorrido ininterruptamente, durante os fins-de-semana, férias e feriados, por forca da natureza urgente atribuída ao processo por despacho proferido a fls. 4454 a 4456. Havendo vários arguidos, a abertura da instrução poderia ser requerida por todos ou por cada um deles até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar, nos termos do artigo 113.°, n.° 4 do Código do Processo Penal, ex vi artigo 287.°, n.° 6 do mesmo diploma legal. O termo do prazo que começou a correr em último lugar - advindo da última notificação da acusação efetuada em 5 de novembro de 2024 (cfr. fls. 9150)-, ocorreu no dia 26 de Dezembro de 2025, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 287.° n.° 1, alínea a) e n.° 6, 103.°, n.° 2, alínea c), 107.°, n.° 6 e 113.°, n.° 14 do Código Processo Penal. Os requerimentos para a abertura de instrução dos arguidos BB (10071 A 10075) e AA (10076 a 10082), tendo sido remetidos ao Tribunal apenas no dia 6 de janeiro, são intempestivos, pelo que devem ser rejeitados, nos termos do artigo 287.°, n.° 4 do Código de Processo Penal.
2. Contudo, entende o Recorrente que o Tribunal a quo andou mal, pois a sua interpretação e aplicação do artigo 103.° n.° 2 al. c) do CPP, viola, entre outros, o disposto no próprio artigo.
3. O Recorrente foi constituído arguido no dia 07 de Julho de 2024, tendo o despacho de fls. 4454 a 4456 sido proferido no dia 21 de Dezembro de 2022.
4. O Arguido nunca foi notificado do despacho de fls. 4454 a 4456 pelo que, desde o seu primeiro contacto com os autos, só obteve conhecimento do aludido despacho quando foi notificado da rejeição do seu requerimento de abertura de instrução, a 6 de Março.
5. Nos termos do artigo 58.°, n.° 2 do Código de Processo Penal: "A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.° que por essa razão passam a caber- lhe" pelo que se impunha que o Recorrente fosse informado do carácter urgente de determinados atos, logo no momento da sua constituição como arguido.
6. Nesse sentido explana o sumário do Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo 175/07.8TASRT-B.C1, de 09.09.2015:, disponível para consulta in www.dgsi.pt.
"O estatuto de arguido compreende um conjunto de regras, de direitos e deveres, que o irão acompanhar durante todo o processo. Esses direitos são, brevitatis causa, os direitos de presença, de audição, ao silêncio, a defensor, de intervenção e à informação."
7. Considerando que a atribuição de caráter urgente implica consequências no exercício do direito de defesa do arguido, este deveria ter sido devidamente informado, logo no seu primeiro contacto com os autos, do despacho de fls. 4454 a 4456.
8. De facto, é precisamente neste primeiro momento - nomeadamente, aquando da sua constituição como arguido em 07.07.2024 - que o arguido deve ser esclarecido sobre as normas que regerão o curso do processo.
9. Assim, a ausência de informação quanto ao carácter urgente do processo desde o momento da constituição como arguido prejudicou irreversivelmente o exercício dos direitos de defesa constitucionalmente consagrados no artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa.
10. E não se advogue pela alegada obrigação do Arguido ou do seu Mandatário em conhecer integralmente o processo.
11. A este propósito, dita a fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n.° 527/11.9PLSNT-A.L1-5, datado de 24.02.2015, disponível para consulta in www.dgsi.pt que: "Como já mencionámos supra, a requerente não foi notificada de tal despacho que classificou o processo como urgente, nem na notificação que lhe foi feita para se constituir assistente se deduz que se trata de processo urgente ou que o prazo concedido corria em férias. E não se argumente que a recorrente é que tinha a obrigação de ir consultar o processo, para se informar da eventual natureza urgente deste. Por essa linha de pensamento, ninguém precisava de ser notificado de qualquer acto processual e passava a colmatar-se a falta dessa notificação com o ónus de a parte ter de consultar o processo sempre que nele tivesse de intervir ou se quisesse estar a par do desenrolar do mesmo, o que atenta contra os mais elementares princípios do processo penal. Consideramos que é, no mínimo- excessivo e desproporcionado fazer recair sobre a requerente o aludido ónus ou exigir-lhe que adivinhasse a qualificação jurídica dos factos denunciados, provisoriamente operada pelo MP, ou ainda que ao processo tinha sido atribuída natureza urgente em consequência daquela subsunção, com a agravante de se estar a cercear, de modo definitivo, um direito essencial da ofendida, impedindo-a, de forma irremediável, de dar continuidade ao procedimento iniciado com a queixa oportunamente apresentada. O tribunal é que tinha o dever de dar conhecimento daquele facto à queixosa, face à relevância do mesmo para o futuro desenrolar do processo, o qual interferia directamente com o exercício dos seus direitos processuais, bem como devia ter alertado a pessoa a notificar de que o prazo concedido corria em férias face à natureza urgente do processo. Tendo a recorrente agido no total desconhecimento, que lhe não é imputável, da decisão proferida no processo que constitui fundamento da rejeição do seu pedido de constituição de assistente, ter-se-á de considerar tempestivo tal pedido".
12. Ainda no âmbito do desconhecimento do despacho de fls. 4454 a 4456, desde logo se descarta a menção, quase despercebida, na notificação do despacho de acusação, do artigo 103.° n.° 2 al. c) do CPP, pois tal considerou-se um simples lapso atendendo que, até ao momento, nunca tinha sido informado do despacho de fls. 4454 a 4456 a conferir carácter de urgências aos presentes autos e, apenas as notificações provenientes do DCIAP, faziam a menção ao artigo 103.° n.° 2 al. c) do CPP, sendo o TCIC completamente omisso no que tange qualquer referência ao carácter de urgência, nas suas notificações.
13. Assim, o Arguido não pode ser prejudicado pelo facto de ter praticado o ato como se se tratasse de um processo sem carácter de urgência, uma vez que, aquando da sua constituição como arguido, deveria ter sido devidamente informado da atribuição de urgência ao processo. Por conseguinte, o requerimento de abertura de instrução deveria ter sido admitido.
14. Acresce que o despacho de fls. 4454 a 4456, que determina a consignação expressa da urgência nos autos e em todos os ofícios, mensagens e demais expediente escrito, FOI REITERADAMENTE INCUMPRIDO PELA SECRETARIA, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO E PELO TRIBUNAL CENTRAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL.
15. O dito despacho estabelece que: "Atenta a factualidade que no decurso da investigação se apurou e considerando a data dos factos e o risco de prescrição do procedimento criminal, determina-se, atenta a urgência, que no presente processo não sejam aplicadas as limitações referidas no artigo 103.° n.° 1 do Código de Processo Penal, ao abrigo do disposto no n.° 2 al. c) desse normativo, devendo consequentemente as diligências prosseguirem durante as férias judiciais que se avizinham. [...] SINALIZE NOS AUTOS O CARÁTER URGENTE ORA ATRIBUÍDO E CONSIGNE DE FORMA CLARA, EM TODOS OS OFÍCIOS, MENSAGENS E DEMAIS EXPEDIENTE ESCRITO, A MENÇÃO DE URGÊNCIA."
16. Deste modo, havia uma obrigação CLARA e EXPRESSA, de consignar nos autos, bem como em todos os atos processuais, comunicações, ofícios e notificações, a menção expressa de urgência.
17. Nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de novembro de 2017, proferido no âmbito do processo n.° 88/16.2PASTS-A.S1 disponível in www.dgsi: "Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial NÃO PODEM, em qualquer caso, PREJUDICAR AS PARTES. Ao erro ou omissão referentes a notificações da secretaria judicial são de equiparar actos equívocos, ou de dúbia interpretação, e que possam afectar negativamente direitos dos seus destinatários, desde que a interpretação lesiva que deles possa ser feita, aferido pelo standard interpretativo do destinatário normal - art. 236.°, n.° 1, do Código Civil - possa ser acolhida. Na dúvida deve entender-se que a parte não pode ser prejudicada por actos praticados pela secretaria judicial, como estatui o art. 157.°, n.° 6, do CPC vigente e preceituava identicamente, o anterior n.° 6 do art. 161.° do CPC. Esta norma constitui emanação do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança e do princípio da transparência e da lealdade processuais, indissociáveis de um processo justo e equitativo."
18. Tal princípio aplica-se subsidiariamente ao processo penal, nos termos do artigo 4.° do Código de Processo Penal, pelo que o Arguido não pode ser prejudicado por atos omissivos da secretaria ou do Tribunal, designadamente pela omissão da menção de urgência nos atos processuais que lhe foram dirigidos.
19. Ora, tal determinação foi ignorada nos múltiplos atos processuais subsequentes, nomeadamente no auto de constituição de arguido, no termo de identidade e residência, na nota de constituição de arguido, na nota de notificação, todos datados de 11 de junho de 2024, com a referência n.° 2147237, bem como em diversos despachos e notificações: o despacho sobre o pedido de alargamento de prazo (ref.ª 9068098), de 25.10.2024, a notificação do mesmo (ref.ª 9074742), de 29.10.2024, os dois despachos referentes à constituição de assistente, por parte da CC, de 12.11.2024 (ref.ª 9088470) e 29.01.2025 (ref.ª 9194936), bem como as respectivas notificações dos mesmos, de 13.11.2024 (ref.ª 9094437) e de 29.01.2025 (ref.ª 9197193), o despacho de abertura de instrução e rejeição de requerimentos de abertura de instrução por extemporaneidade, de 28.02.2025 (ref.ª 9236426), bem como a notificação do mesmo, de 06.03.2025 (ref.ª 9256567), o despacho proferido a 18.03.2025 (ref.ª 9272872) bem como a sua respectiva notificação (ref.ª. 9280187), de 19.03.2025 e o despacho (ref.ª 9302078) de 04.04.2025, bem como a sua respectiva notificação (ref.ª 930458) de 08.04.2025 nÃO CUMPREM O ESTABELECIDO NO DESPACHO DE FLS. 4454 A 4456, ESTANDO AQUELES EM VIOLAÇÃO DESTE, POR NÃO MENCIONAR DE FORMA EXPRESSA, COMO DETERMINADO, “FORMA CLARA, EM TODOS OS OFÍCIOS, MENSAGENS E DEMAIS EXPEDIENTE ESCRITO, A MENÇÃO DE URGÊNCIA."
20. As omissões praticadas pela Secretaria, DCIAP e TCIC comprometem gravemente a adequada preparação da defesa do arguido, violando os seus direitos constitucionais de defesa, consagrados no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
21. Destaca-se, ainda, que o despacho de fls. 4454 a 4456 transitou em julgado, não tendo sido objeto de qualquer impugnação.
22. Com o devido respeito, não é aceitável que um despacho que ordene a menção expressa e clara da atribuição de caráter de urgência na prática de determinados atos, e que a Secretaria, DCIAP e TCIC desrespeitem tal determinação sem que haja quaisquer consequências jurídicas.
23. Salvo melhor entendimento, a falta de notificação ou de informação ao arguido, no momento da sua constituição, sobre o caráter urgente do processo, bem como o incumprimento reiterado das disposições constantes no despacho em questão, deverá resultar na nulidade da constituição do Recorrente como arguido, com as inerentes consequências legais.
24. No que tange a duração do caráter de urgência previsto no despacho de fls. 4454 a 4456, sempre seria de concluir que o carácter urgente atribuído ao processo cessou em 3 de janeiro de 2023, uma vez que o mesmo se reportava, de forma concreta e específica, à realização de atos no período de férias judiciais entre 22 de dezembro de 2022 e 3 de janeiro de 2023, conforme se demonstrará:
25. O Processo Penal não classifica os processos como urgentes ou não urgentes de forma genérica e abstrata, mas apenas permite a atribuição de urgência a atos concretos.
26. Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 509/22.5PAMGR-B.C1, de 11 de outubro de 2023, disponível in www.dgsi.pt: “o CPP não categoriza os processos como urgentes e não urgentes, mas antes se refere apenas a actos que se praticam num regime normal (nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais – artigo 103.º, n.º 1) e num regime excepcional (sem essas limitações – artigo 103.º, n.º 2). Prevê depois, no artigo 104.º/2, que correm em férias judiciais os prazos relativos a processos nos quais devam praticar-se os actos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 2 do artigo 113.º, a saber: (…) c) Os actos de inquérito e de instrução, bem como os debates instrutórios e audiências relativamente aos quais for reconhecida, por despacho de quem a elas presidir, vantagem em que o seu início, prosseguimento ou conclusão ocorra sem aquelas limitações; (…)”
27. Pelo que, não sendo admissível conferir caráter urgente a todo o processo, e resultando do despacho de fls. 4454 a 4456 que tal urgência se reportava apenas às diligências a praticar no período de férias judiciais entre 22 de dezembro de 2022 e 3 de janeiro de 2023, o respetivo caráter urgente terá cessado com o termo desse mesmo período, ou seja, A 3 DE JANEIRO DE 2023.
28. Ainda que, a título meramente académico, se aceitasse que o carácter urgente subsistiria até à cessação do risco de prescrição, tal risco cessou com o termo da fase de inquérito, a 5 de novembro de 2024, data da última notificação da acusação.
29. Se o Tribunal Central de Instrução Criminal pretendesse beneficiar de caráter urgente, deveria tê-lo feito mediante despacho fundamentado, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal, o qual exige o reconhecimento expresso da vantagem da prática de atos fora das limitações legais.
30. É igualmente pertinente a citação do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo n.º 163/14.8TAABT-A.E1, de 22 de junho de 2021, disponivel para consulta in wwww.dgsi.pt onde se afirma que: “no n.º 1 do artigo 103º do CPP, estabelece-se a regra geral sobre o tempo da prática dos atos processuais, qual seja a de que se praticam «nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais.» E no n.º 2 do artigo 103º do CPP, são elencadas as exceções àquela regra geral, prevendo-se casos em que a exceção funciona ope legis – nas alíneas a), b), d), e), f) e h) – e casos em que a exceção funciona ope judicis – nas alíneas c) e g) –. Nesses casos de exceção, os atos processuais podem e devem – trata-se de um poder vinculativo – ser praticados a qualquer momento, sem as limitações previstas no n.º 1 do artigo 103º do CPP, ou seja, podem ser praticados aos fins de semana, feriados e férias e para além das horas de expediente. E de harmonia com o disposto no artigo 104º, n.º 2, do CPP, correm em férias os prazos relativos a processos nos quais devam praticar-se os atos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 2 do artigo 103º do CPP. No que concerne à alínea c) do n.º 2 do artigo 103º do CPP, que se refere aos atos de inquérito e de instrução, aos debates instrutórios e às audiências, estando-se perante uma exceção à regra do n.º 1, que opera ope judicis, tendo de ser decidida por despacho de quem presidir à fase processual, a que se refere(m) o(s) ato(s) processual(ais) a praticar, o critério determinativo para se aferir da «vantagem em que tenham lugar, continuem ou concluam» é, no entender de Paulo Pinto de Albuquerque[3], «o do interesse na aquisição, conservação ou veracidade da prova.» Ainda que se sufrague o entendimento de que, para além da referenciada, poderão existir outras situações passíveis de poder fundamentar o juízo no sentido de existir vantagem em que os atos processuais sejam praticados sem as limitações previstas na regra geral estabelecida no n.º 1 do artigo 103º do CPP – sendo uma dessas situações a que foi considerada no despacho recorrido, qual seja a da aproximação do prazo máximo de prescrição do procedimento criminal e tendo em vista prevenir a sua ocorrência –, afigura-se-nos que os atos processuais relativamente aos quais poderá ser declarada a sua natureza urgente, são aqueles que estão previstos na al. c), do n.º 2 do artigo 103º do CPP, quais sejam, os «actos de inquérito e de instrução», «os debates instrutórios» e as «audiências», sendo que APENAS NOS CASOS EM QUE DEVAM PRATICAR-SE ESSES ATOS DECLARADOS URGENTES, os prazos relativos ao processo a que respeitam, correm em férias, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 104º do CPP. Ora, em relação à exceção prevista na al. c) do n.º 2 do artigo 103º que é a que, no caso, nos importa considerar, nela são contemplados os «actos de inquérito e de instrução», «os debates instrutórios» e as «audiências», sendo o critério determinativo para que funcione a exceção que seja «reconhecida, por despacho de quem a elas presidir, vantagem em que o seu início, prosseguimento ou conclusão ocorra sem aquelas limitações», ou seja, sem as limitações estabelecidas no n.º 1 do artigo 103º do CPP. Como decorre com clareza do preceito legal em análise – al. c) do n.º 2 do artigo 103º do CPP – OS ATOS PROCESSUAIS RELATIVAMENTE AOS QUAIS, POR DECISÃO DE QUEM A ELAS PRESIDIR, PODERÁ SER DECLARADA A SUA NATUREZA URGENTE, SÃO OS ATOS DE INQUÉRITO E DE INSTRUÇÃO, designadamente, os debates instrutórios e as audiências. E como refere Paulo Pinto de Albuquerque, com referência à al. c) do n.º 2 do artigo 103º do CPP, «A declaração de certo acto ou actos como urgentes não se comunica ao processo, pelo que, CONCLUÍDOS OS ACTOS DECLARADOS URGENTES, O PROCESSO OBEDECE AO REGIME NORMAL PARA A PRÁTICA DOS DEMAIS ACTOS.» NAS SITUAÇÕES ABRANGIDAS PELA AL. C) DO N.º 2 DO ARTIGO 103º, «SÓ HÁ ACTOS PROCESSUAIS URGENTES DECLARADOS DE PER SI.»
31. De todo o exposto resulta que, à data da apresentação do requerimento de abertura de instrução, em 6 de janeiro de 2025, não se aplicavam as regras excecionais de contagem de prazo previstas para os atos urgentes, motivo pelo qual deve o requerimento ser considerado tempestivo.
32. No que tange a interpretação do despacho de fls. 4454 a 4456, importa começar por transcrever o seu conteúdo, nomeadamente: “Atenta a factualidade que no decurso da investigação se apurou e considerando a data dos factos e o risco de prescrição do procedimento criminal, determina-se, atenta a urgência, que no presente processo não sejam aplicadas as limitações referidas no artigo 103.º n.º 1 do Código de Processo Penal, ao abrigo do disposto no n.º 2 al. c) desse normativo, DEVENDO CONSEQUENTEMENTE AS DILIGÊNCIAS PROSSEGUIREM DURANTE AS FÉRIAS JUDICIAIS QUE SE AVIZINHAM. Com efeito, atendendo ao risco de prescrição, atribui-se caráter urgente aos presentes autos, nos termos do artigo 103. n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal. Sinalize nos autos o caráter urgente ora atribuído e consigne de forma clara, em todos os ofícios, mensagens e demais expediente escrito, a menção de urgência.”
33. O referido despacho foi proferido no último dia útil anterior ao início das férias judiciais, ou seja, no dia 22 de dezembro de 2022, vigorando o período de férias judiciais entre essa data e 3 de janeiro de 2023.
34. Ora, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, extrai da leitura do despacho em apreço é que foi atribuído caráter urgente apenas às diligências a realizar no decurso das férias judiciais compreendidas entre os dias 22 de dezembro de 2022 e 3 de janeiro de 2023.
35. A este propósito, dita o sumário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no âmbito do processo n.º 035319A, datado de 11.06.2006, disponível para consulta in www.dgsi.pt que: “A sentença judicial, como acto jurídico que é, está sujeita a interpretação, valendo nesse domínio, por força do disposto no art. 295º C. Civil, os critérios de interpretação dos negócios jurídicos. Deve, pois, ser interpretada, nos termos previstos no art. 236º/1 do C. Civil, de acordo com o sentido que dela possa deduzir um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário.”
36. Com o devido respeito, se um despacho atribui carácter urgente apenas “às diligências respeitantes as férias judiciais que se avizinham”, não pode o Tribunal a quo protelar os seus efeitos até à presente data.
37. Pelo que, a decisão recorrida do Tribunal a quo enferma de inconstitucionalidade ao aplicar, de forma genérica, o carácter de urgência previsto no artigo 103.º n.º 2 al. c) do CPP ao processo sub judice.
Veja-se,
38. O Recorrente foi constituído como Arguido em 07 de Julho de 2024, sem que, em momento algum, lhe tenha sido comunicada a existência e o teor do referido despacho, tendo apenas tomado conhecimento do aludido despacho através da notificação da decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução, com fundamento em extemporaneidade, datada de 6 de março de 2025.
39. Paralelamente, o Ministério Público, a secretaria e o Tribunal Central de Instrução Criminal incumpriram de forma reiterada o determinado no despacho de fls. 4454 a 4456.
40. Com efeito, o auto de constituição de arguido, o termo de identidade e residência, a nota de constituição de arguido, a nota de notificação — todos datados de 07.07.2024, com referência n.º 2147237 —, bem como:
o despacho relativo ao pedido de alargamento de prazo (ref.ª 9068098), de 25.10.2024, e respetiva notificação (ref.ª 9074742), de 29.10.2024;
os despachos referentes à constituição de assistente por parte da CC, de 12.11.2024 (ref.ª 9088470) e 29.01.2025 (ref.ª 9194936), e respetivas notificações, de 13.11.2024 (ref.ª 9094437) e 29.01.2025 (ref.ª 9197193);
o despacho de abertura de instrução e de rejeição dos requerimentos de abertura de instrução por extemporaneidade, de 28.02.2025 (ref.ª 9236426), e respetiva notificação de 06.03.2025 (ref.ª 9256567);
o despacho de 18.03.2025 (ref.ª 9272872) e a sua notificação, de 19.03.2025 (ref.ª 9280187);
e ainda o despacho de 04.04.2025 (ref.ª 9302078) e a respetiva notificação de 08.04.2025 (ref.ª 930458),
NAO FIZERAM MENCÃO EXPRESSA AO CARÁTER URGENTE DO PROCESSO, VIOLANDO, DESSE MODO, O QUE FOI EXPRESSAMENTE DETERMINADO NO CITADO DESPACHO — NOMEADAMENTE A OBRIGAÇÃO DE CONSIGNAR, DE FORMA CLARA, “EM TODOS OS OFÍCIOS, MENSAGENS E DEMAIS EXPEDIENTE ESCRITO, A MENCÃO DE URGÊNCIA".
41. Tal omissão comprometeu gravemente a preparação da defesa do Arguido e, por conseguinte, violou os seus direitos constitucionais de defesa, consagrados no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
42. Acresce que o despacho em questão atribuiu caráter urgente, ao abrigo da alínea c) do n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal, apenas às diligências a realizar durante o período de férias judiciais compreendido entre 22 de dezembro de 2022 e 3 de janeiro de 2023.
43. Não é admissível, nos termos do regime legal vigente, conferir caráter urgente de forma genérica e abstrata à totalidade do processo penal pelo que, a urgência apenas pode ser atribuída a atos processuais concretos, devidamente identificados e justificados.
44. Assim sendo, o caráter urgente determinado pelo despacho em apreço extinguiu-se com o termo do referido período de férias judiciais (03.01.2023) ou, numa perspetiva meramente académica, com a extinção do risco de prescrição do procedimento criminal.
45. Ora, mesmo admitindo esta última hipótese, o eventual risco de prescrição cessou, impreterivelmente, no dia 5 de novembro de 2024, data em que todos os Arguidos e respetivos Mandatários foram notificados da acusação, encerrando-se, nessa data, a fase de inquérito.
46. Destarte, a interpretação e aplicação feitas pelo Tribunal a quo do artigo 103.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal — no sentido de que o caráter urgente atribuído a determinados atos processuais se estende à totalidade do processo — padece de inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais do processo equitativo, da legalidade processual e do direito de defesa, consagrados nos artigos 32.º, n.º 1, e 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
47. Inconstitucionalidade essa que se invoca expressamente, nos termos e efeitos do artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa.
48. Por fim, considera-se, ao abrigo do disposto no artigo 412.º, n.º 2, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal, que a decisão recorrida violou, entre outros, o artigo 103.º, n.º 2, alínea c) do referido diploma, uma vez que o Tribunal a quo aplicou indevidamente o caráter de urgência previsto no despacho de fls. 4454 a 4456, sendo certo que tal caráter era aplicável única e exclusivamente aos atos praticados no período de férias judiciais compreendido entre 22 de dezembro de 2022 e 3 de janeiro de 2023, e não de forma abstrata ao processo em apreço.
(…)
TERMOS EM QUE SE REQUER, A V.ª(S) EX.ª(S), SE DIGNE(M) DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DECIDINDO REVOGAR A DECISÃO QUE REJEITOU O REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO, ORDENANDO-SE A SUA ADMISSÃO POR TEMPESTIVO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS DAÍ DECORRENTES E AINDA, DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 103.º, N.º 2, ALÍNEA C) DO CPP, ADOTADA NO DESPACHO RECORRIDO, NOS TERMOS E EFEITOS DO ARTIGO 204.º DO CPP POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 32.º E 202.º N.º 2 DA CRP.
3. Resposta do Ministério Público
O Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, no sentido de que o mesmo deverá ser julgado improcedente, concluindo nos seguintes termos:
1. AA foi constituído como arguido em 7 de julho de 2024, e interrogado nessa qualidade em 25 de julho de 2024.
2. A partir dessa data, todas as notificações efetuadas pela Secretaria do DCIAP, quer ao arguido quer ao Ilustre Mandatário, foram efetuadas por ofícios contendo a menção:
Carácter URGENTE
Art° 103° n° 2, al. C) do CPP
3. Todos os volumes do inquérito se encontravam com aquela menção expressa na capa, assinalada a vermelho.
4. O Ilustre mandatário consultou os autos antes da dedução da acusação.
5. O arguido AA e o seu Ilustre Mandatário foram notificados da acusação, sendo que os respetivos ofícios continham expressamente a menção ao caráter urgente dos autos referida em 2.
6. A notificação da acusação foi feita com a seguinte informação complementar:
"Os prazos acima indicados são contínuos suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais e iniciam-se a partir do quinto dia posterior à data do depósito na caixa de correio do destinatário, constante do sobrescrito (art.° 113°, n.° 3 do C. P. Penal).
Se tratar de processo urgente, os referidos prazos não se suspendem em férias.
Terminando o prazo em dia que os tribunais estejam encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte." (negrito nosso).
7. O arguido afirma ter percecionado a expressa menção de urgência constante dos ofícios remetidos pela Secretaria do DCIAP, e do ofício que o notificou da acusação e do respetivo prazo para dedução de requerimento de abertura de instrução. Não obstante, referiu ter acreditado tratar-se de lapso.
8. Ora, não se afigura aceitável que se conforme com a possibilidade de tal se dever a lapso, como afirma, uma vez que percecionou, por diversas vezes, nos vários ofícios da Secretaria do DCIAP, a menção ao carácter urgente do processo.
9. O despacho de fls. 4454 a 4456 atribui carácter urgente ao inquérito, atento o risco de prescrição, e não tão-só a alguns atos ou diligências.
10. Os autos mantêm a natureza urgente até decisão que eventualmente a altere.
11. No despacho de acusação não foi feita qualquer referência a uma eventual alteração da natureza urgente dos autos.
12. Considerando a natureza urgente do processo, é jurisprudencialmente pacífico que o prazo para interposição de recurso corre em férias judiciais.
13. A apresentação do requerimento de abertura de instrução é extemporânea.
4. Parecer
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância, no sentido de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), não foi apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art. 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art. 410.º n.º 2 CPP.
No caso concreto, conforme as conclusões da respetiva motivação, está em causa a seguinte questão:
• Da extemporaneidade do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente, que este tem por não verificada.
2. Despacho recorrido (transcrição parcial):
(…)
Notificado da acusação do Ministério Público pessoalmente no dia 21 de outubro de 2024 (cfr. fls. 9001 e 9083) e na pessoa do seu ilustre mandatário no dia 29 de outubro de 2024 (cfr. fls. 9002 e 9372), o arguido AA veio apresentar o seu requerimento de abertura de instrução no dia 6 de janeiro de 2025 (cfr. fls. 10076 a 10082).
Nos termos do artigo 287°, n.° 1 do Código de Processo Penal, a abertura de instrução pode ser requerida pelo arguido no prazo de 20 (vinte) dias a contar da notificação da acusação, podendo tal prazo ser excecionalmente prorrogado, nos termos do artigo 107°, n.° 6 do Código de Processo Penal.
In casu, o prazo de 20 (vinte) dias para requerer a abertura de instrução foi excecionalmente prorrogado em 30 (trinta) dias, por despacho proferido a fls. 9101, com fundamento na excecional complexidade dos autos declarada a fls. 1792 a 1793, tendo tal prazo decorrido ininterruptamente, durante os fins-de-semana, férias e feriados, por força da natureza urgente atribuída ao processo por despacho proferido a fls. 4454 a 4456.
Havendo vários arguidos, a abertura de instrução poderia ser requerida por todos ou por cada um deles até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar, nos termos do artigo 113°, n.° 4 do Código de Processo Penal, ex vi artigo 287°, n.° 6 do mesmo diploma legal.
O termo do prazo que começou a correr em último lugar - advindo da última notificação da acusação efetuada em 5 de novembro de 2024 (cfr. fls. 9150) -, ocorreu no dia 26 de dezembro de 2025, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 287°, n.° 1, alínea a) e n.° 6, 103°, n.° 2, alínea c), 107°, n.° 6 e 113°, n.° 14 do Código de Processo Penal.
Os requerimentos para a abertura de instrução dos arguidos BB (10071 a 10075) e AA (10076 a 10082), tendo sido remetidos ao Tribunal apenas no dia 6 de janeiro de 2025, são intempestivos, pelo que devem ser rejeitados, nos termos do artigo 287°, n.° 3 do Código de Processo Penal.
Face ao exposto, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 287°, n.° 1, alínea a), n.° 3 e n.° 6, 103°, n.° 2, alínea c), 107°, n.° 6 e 113°, n.° 14 do Código de Processo Penal, rejeito, por extemporaneidade, os requerimentos de abertura de instrução apresentados pelos arguidos BB (cfr. fls. 10071 a 10075) e AA (cfr. fls. 10076 a 10082).
Notifique.
3. Despacho do Ministério Público de 21.12.2022 (transcrição parcial):
(…)
Atenta a factualidade que no decurso da investigação se apurou, e considerando a data dos factos e o risco de prescrição do procedimento criminal, determina-se, atenta a urgência, que no presente processo não sejam aplicadas as limitações referidas no art. 103.°, n.° 1 do Código de Processo Penal, ao abrigo do disposto no n.° 2, al. c) desse normativo, devendo consequentemente as diligências prosseguirem durante as férias judiciais que se avizinham.
Com efeito, atendendo ao risco de prescrição, atribui-se caráter urgente aos presentes autos, nos termos do artigo 103°, n° 2,c), do Código de Processo Penal.
*
Sinalize nos autos o carácter urgente ora atribuído, e consigne de forma clara em todos os ofícios, mensagens e demais expediente escrito, a menção de urgência.
(…)
***
3. Apreciando
Em destaque encontra-se a al. c) do n.º 2 do art. 103.º do CPP, de onde resulta que a regra geral do n.º 1 (“Os atos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais”), pode ser afastada por via de um despacho.
A norma abarca os atos de inquérito e de instrução, podendo a natureza urgente ser atribuída a alguns ou a todos eles.
No caso dos autos a natureza urgente foi atribuída pelo Ministério Público, que com isso procurou salvaguardar o risco de prescrição.
Sendo isso que se pretendeu acautelar, não é verdadeiro, ao contrário do pretendido pelo recorrente (cf. conclusão 27), que a declaração do caráter urgente do inquérito se tivesse limitado a determinados atos processuais, pois que a mesma, para tanto salvaguardar, é necessariamente referente a todos os atos produzidos no inquérito.
Assim considerando, cumpre esclarecer se de facto essa operatividade, introduzida por força do despacho do então titular da ação penal, tem efeito na contagem do prazo para apresentação do requerimento de abertura de instrução.
Consideramos que sim, acompanhando nessa matéria a jurisprudência citada pelo Ministério Público em resposta ao recurso, concretamente, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12.10.2021 (Proc. 57/20.8GAOLH.E1, disponível em http://www.dgsi.pt), entendendo também nós que os autos mantêm a natureza urgente até decisão que eventualmente a altere, de onde resulta, na inexistência de qualquer decisão em contrário, que o presente processo tem essa natureza desde a data da declaração do Ministério Público até (pelo menos) o despacho recorrido.
E nem se diga, conforme pretendido pelo recorrente (cf. conclusão 46), que essa interpretação, no sentido de que o caráter urgente se estende à totalidade do processo, padece de inconstitucionalidade, por alegada “violação dos princípios constitucionais do processo equitativo, da legalidade processual e do direito de defesa, consagrados nos artigos 32.º, n.º 1, e 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”, pois que tal não só não tem qualquer sustentação, como não encontra qualquer proporcionalidade naquilo que efetivamente importa acautelar, a saber, o risco de prescrição.
É que o direito de defesa do arguido nunca esteve em causa, ao contrário da contagem dos prazos para abertura de instrução que, com o devido respeito, deveria ter merecido melhor atenção, quer pelo arguido quer pelo seu Ilustre mandatário.
Com efeito, independentemente de não lhe ter sido comunicado o despacho do Ministério Público de 21 de dezembro de 2022, o que se compreende na medida em que o recorrente apenas foi constituído como arguido a 7 de julho de 2024, certo é que este e o seu Ilustre mandatário foram notificados da acusação com menção expressa ao caráter urgente dos autos.
Ora, tendo o arguido, conforme decorre do recurso interposto, percecionado essa menção, bem como as antes já constantes das notificações provenientes do DCIAP (cf. conclusão 12), não vemos como sustentar a interpretação de que tal alusão ao art. 103.º, n.º 2, al. c) do CPP se trataria de um lapso, desde logo no tocante à notificação do despacho de acusação, determinante para a correta contagem do prazo para apresentação do requerimento de abertura de instrução.
Ou seja, independentemente de nem sempre ter sido devidamente cumprido o determinado no despacho do Ministério Público de 21.12.2022, certo é que o recorrente não deixou de percecionar a natureza urgente dos autos, o que ocorreu não apenas por uma vez, por força da notificação da acusação, mas também a propósito das notificações provenientes do DCIAP, que em si já continham essa mesma menção.
Assim sendo, não se nos afigura razoável, mas antes destituída de fundamento, a interpretação de que tal se trataria de um mero lapso.
Finalmente, não se ignora a alegação contida na conclusão 23, de que “a falta de notificação ou de informação ao arguido, no momento da sua constituição, sobre o caráter urgente do processo, bem como o incumprimento reiterado das disposições constantes no despacho em questão, deverá resultar na nulidade da constituição do Recorrente como arguido, com as inerentes consequências legais”.
Porém, não se reconhece nessa alegação qualquer enquadramento que sustente a pretendida nulidade, que, aliás, ficou por identificar pelo próprio recorrente.
Deste modo, improcede também esta questão, impondo-se a total improcedência do recurso, por ser evidente a sem razão do recorrente.
***
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a respetiva taxa de justiça em 4 UC´s.
Notifique.
*
Lisboa, 18 de novembro de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
João Grilo Amaral
Ana Cristina Cardoso