Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | JOÃO NOVAIS | ||
| Descritores: | CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA VÍCIOS FORMAIS ABUSO DE DIREITO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM INALEGABILIDADE FORMAL SUPRESSIO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/18/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | Sumário: I – Improcede a impugnação da matéria de facto, quando os recorrentes invocam, como prova que imporia a conclusão de que a convicção do tribunal está errada, as suas próprias declarações de parte, mas explicitando a decisão recorrida uma contradição relevante entre as declarações prestadas pelo recorrente e pela recorrente, à qual estes não se referem no recurso, assim como não especificam os documentos que confirmariam essas mesmas declarações. II – A nossa doutrina tem enunciado diferentes categorias nas quais se pode revelar o instituto do abuso de direito, entre as quais se contam o “venire contra factum proprium”, a inalegabilidade formal e o “supressio”. III – A inalegabilidade formal tem por objeto situações em que determinada pessoa não se pode prevalecer da nulidade de um negócio jurídico, causada por vício de forma, por a sua invocação configurar um abuso do direito; confluindo parcialmente com o “venire contra factum proprium”, caracteriza-se por o titular daquele direito, num primeiro momento, conscientemente ter provocado ou tolerado aquele vício formal. Deixando posteriormente de lhe convir a validade do negócio, por razões alheias à originária imperfeição formal, invoca então aquele mesmo vício, pretendendo com isto escapar aos efeitos jurídicos do negócio, implicando esse comportamento uma grosseira violação da confiança e da boa-fé. IV – No caso dos autos, os promitentes compradores, aqui recorrentes, prescindiram expressamente que as assinaturas apostas no contrato-promessa fossem reconhecidas, após terem sido especificamente informados da necessidade de cumprimento dessa formalidade; nesse (único) ato e momento, em que voluntariamente declararam não pretender respeitar a forma legal imposta, criaram na R. a confiança de que não iriam suscitar no futuro a invalidade do acordo com base na preterição daquela formalidade, surgindo assim como abusivo o exercício posterior do direito a suscitar a invalidade do contrato promessa. V – A necessidade, para a verificação de uma situação de abuso do direito, de que a conduta coerente com a manutenção do negócio se mantenha ao longo de um período significativo de tempo, ou assuma uma certa reiteração, não é em princípio exigida na categoria da inalegabilidade formal. Isto porque se estabelece uma relação direta e imediata entre a preterição voluntária da formalidade e o nascimento e consolidação, nesse mesmo momento, de uma situação de confiança e boa-fé pela contraparte na não invocação do vício, de forma suficientemente impressiva, para que se possa considerar que o posterior exercício do direito à invocação da invalidade do contrato surge como abusivo. VI - Já na categoria da supressio, revela-se como essencial o decurso de um período significativo de tempo, associado a um determinado comportamento, que permita a criação, o desenvolvimento, e a consolidação da confiança pela contraparte no cumprimento do contrato, surgindo como abusiva (porque fortemente lesiva da boa-fé) a posterior invocação da preterição de alguma formalidade cuja falta não foi expressamente abordada ou desejada pelo titular do direito no momento da assinatura do contrato. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acórdão da 7ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa I. Relatório 1. Os AA. intentaram ação de declarativa contra a R. pedindo a nulidade do contrato-promessa de compra e venda datado de … , celebrado pelos AA. e pela R., pedindo a condenação da R. a devolver a quantia por eles entregue a título de sinal, ou seja, a pagar a quantia de € 26.000,00 (vinte e seis mil euros), acrescido de juros moratórios vencidos desde …, e vincendos até efetivo e integral pagamento. Realizado julgamento, foi proferida sentença a qual julgou a ação improcedente. 2. Inconformados com a mesma sentença, os AA vieram recorrer da mesma concluindo: “A. O Tribunal a quo andou mal ao decidir como decidiu, tendo incorrendo num evidente erro de julgamento, quer quanto a matéria de facto erradamente dada como provada, quer quanto a aplicação do direito. “i. Da reapreciação da matéria de facto B. Entendem os Recorrentes que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado que “os autores desconheciam a necessidade de reconhecimento presencial de assinaturas apostas no contrato promessa”, e ainda “a ré não os informou de tal formalidade”. C. O Tribunal a quo baseou a sua decisão – apenas – nos depoimentos prestados em sede de audiência, em particular, no depoimento de parte da legal representante da Recorrida. D. Entende-se que o depoimento da legal representante da Recorrida (bem como os demais depoimentos prestados em audiência) não são, de modo algum suficientes para sustentar a matéria de facto considerada provada. E. A legal representante limitou-se a contar a sua versão da história, que não encontra qualquer respaldo na documentação junta aos autos nem na sua própria contestação, tendo o seu depoimento contacto com factos “novos” nunca alegados nos articulados. F. Por seu lado, os Recorrentes prestaram declarações livres, espontâneas e honestas, descrevendo, passo a passo, tudo o que sucedeu e respondendo de forma espontânea, a todas as questões colocadas, correspondendo as suas declarações com a prova documental junta. G. As testemunhas SM e TO amiga e filho da legal representante da Recorrida mostraram falta de imparcialidade (visível, atá nas palavras escolhidas no seu depoimento, completamente coincidentes com as da legal representante da Recorrida), sendo a sua credibilidade nula. H. A testemunha MC (18) advogada, apresentou-se perante o Tribunal com um discurso que não é minimamente credível, sendo ainda contrário a mais elementares regas de experiência comum, não devendo, pois, o mesmo ser considerado. I. Resultou provado que ambos os Recorrentes desconheciam a exigência do reconhecimento de assinaturas (19), não tendo tal informação sido transmitida pela Recorrida, sociedade que atua a título profissional no mercado de imobiliário 20 J. A Recorrida dedica-se ao ramo imobiliário pelo que recaí a sobre si o dever de informar os Recorrentes sobre as formalidades essenciais prescritas por lei aplicáveis ao contrato promessa. K. Não obstante, a Recorrida não informou os Recorrentes acerca da necessidade de proceder ao reconhecimento presencial de assinaturas, nada tendo referido a esse respeito em todas as comunicações trocadas com os Recorrentes, nem incluiu na minuta do contrato-promessa qualquer cláusula quanto a esta formalidade. L. A única vez que este formalismo foi referido foi apenas no momento da assinatura do contrato-promessa, de forma bastante leviana. 21,22, 23. M. Em suma, da prova produzida resulta que os Recorrentes não sabiam da existência do formalismo, nem, consequentemente, do vício de nulidade por preterição do mesmo. N. Está demonstrada a existência de erro do Tribunal a quo no que respeita a apreciação da prova carreada para os autos, porquanto o Tribunal a quo não valorou corretamente os meios de prova produzidos. O. Termos em que, deve o elenco da matéria de facto constante da decisão recorrida, quanto ao que aqui se discute, i.e., “no ato de assinatura do contrato promessa de compra e venda, e informados de que as assinaturas deveriam ser reconhecidas presencialmente por notário, os autores prescindiram de tal formalidade”, ser alterado, passando a constar da lista de factos não provados. ii. Da errada aplicação do Direito P. O pedido de declaração de nulidade do contrato promessa celebrado entre as partes é plenamente válido e deve ser atendido pelo Tribunal, não consubstanciando qualquer situação o de abuso de direito. Q. O contrato-promessa deve ser declarado nulo nos termos do artigo 410.º, n.º 3 do Co digo Civil, por omissa o do reconhecimento das assinaturas. R. Contrariamente ao entendido pelo Tribunal, não existe qualquer situação de abuso de direito na modalidade de Venire Contra Factum Proprium. S. Porquanto, não agiram os Recorrentes por forma a criar na Recorrida uma expetativa legítima e séria na Recorrida, suficiente para que uma conduta contraditória possa ser configurada como uma situação de abuso de direito. T. Em primeiro lugar, verifica-se que os Recorrentes não tinham qualquer conhecimento deste formalismo, pelo que nunca poderiam ter prescindido do mesmo. U. Mesmo que se considerasse que os Recorrentes tinham conhecimento da formalidade em questão, ainda assim não se pode considerar que os mesmos tenham encetado qualquer comportamento passível de criar na Recorrida uma expetativa legítima e suficientemente séria de garantia quanto a celebração do contrato nos termos acordados. V. A jurisprudência e unânime no sentido de considerar que uma situação passível de gerar uma expetativa legítima na contraparte, terá sempre de ser uma conduta reiterada e prolongada no tempo, da qual resulta inequivocamente uma vontade específica. W. A única ação por parte dos Recorrentes foi a mera assinatura do contrato, sem o reconhecimento das mesmas, não sendo isto suficiente para criar nos promitentes-vendedores uma expetativa legítima e suficientemente seria que possa colocar em causa a arguição da nulidade, considerando um ato abusivo. X. Inclusive, a Recorrida tinha conhecimento de que os Recorrentes estavam com problemas com a compra, tendo ate sido informada de que os Recorrentes propunham resolver o contrato-promessa caso tais questões não fossem ultrapassadas - Cf. Segundo email enviado pelos Recorrentes, datado de 13 de março, junto como doc. 1 com a contestação da Recorrida. Y. Desde a data de celebração do contrato-promessa e a invocação formal da nulidade formal do mesmo pelo mandatário dos Recorrentes, decorreu pouco mais de um mês. Z. Sendo, por isso, impossível sustentar que a Recorrida tinha formado, através de qualquer comportamento levado a cabo ou imputável aos Recorrentes, uma expetativa séria e legítima de que os mesmos não iriam arguir qualquer nulidade ou invalidade no negócio. AA. Considerar que o comportamento dos Recorrentes consubstancia um caso de abuso de direito, e banalizar esta figura, instrumentalizando-a para impedir uma imposição o legal de ordem pública. BB. Do exposto resulta que, nos presentes autos, inexiste qualquer situação de abuso de direito por parte dos Recorrentes, sendo plenamente válido o pedido de declaração de nulidade do contrato-promessa celebrado com a Recorrida, nos termos artigo 410.º, n.º 3 do CC. CC. Em consequência, deve a decisão do Tribunal a quo que absolveu a R. do pedido ser revogada, sendo substituí da por sentença que declare nulo o contrato-celebrado pelas partes e, em consequência, condene a Recorrida a devolver aos Recorrentes o montante pago a título de sinal (EUR 26.000,00), acrescido de juros vencidos e vincendos ate integral pagamento. 3.A R., aqui recorrida, respondeu ao recurso, concluindo: (…) II – Sãos as seguintes questões a apreciar: - Impugnação da matéria de facto - Validade do contrato promessa de compra e venda, subscrito pelas partes; - Abuso de direito por parte dos AA, ao invocar a nulidade do contrato promessa por preterição de formalidades que prescindiram de observar no momento da celebração do mesmo contrato. III – Fundamentação de Facto (transcrição parcial da decisão recorrida) (…) II - Factos Provados 1.º A ré é proprietária da fração “C”, correspondente ao … , em Lisboa, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º …, da freguesia de …. 2.º Em …, os autores, na qualidade de promitentes compradores, e a ré, na qualidade de promitente vendedora, celebraram um contrato-promessa (datado de …) com vista à aquisição da fração identificada em 1.º. 3.º -Após a assinatura do referido contrato-promessa, os autores, na qualidade de promitentes- compradores, entregaram à ré, a título de sinal, a quantia de EUR 26.000,00 (vinte seis mil euros). 4.º - As assinaturas dos promitentes compradores e promitente vendedora não foram reconhecidas presencialmente, nem foi certificada a existência de licença de utilização ou de construção. 5.º - No ato da assinatura do contrato promessa de compra e venda, e informados de que as assinaturas deveriam ser reconhecidas presencialmente por notário, os autores prescindiram de tal formalidade. 6.º -Por carta datada de …, dirigida à ré, para a morada da sua sede social, os mandatários dos autores a invocaram formal e expressamente a nulidade do referido contrato-promessa e requereram a devolução da quantia paga a título de sinal. 7.º - Por carta datada de …, a ré informou o autor do agendamento da escritura pública para o dia …, identificando o Cartório Notarial e respetiva morada. (6º factos assentes) 8.º - Por carta datada de …, a ré informou o autor que, não se tendo celebrado o contrato de compra e venda na data agendada, por não comparência dos autores, considerava sem efeito o contrato promessa celebrado e perdido, a seu favor, o sinal entregue. (7º factos assentes) B. Factos não provados Nada mais se provou. Concretamente, não se provou que: i. Foi a ré quem propôs que o contrato promessa fosse assinado no imóvel objeto do mesmo, (art.º 9º); ii. Os autores desconhecessem a necessidade de reconhecimento presencial de assinaturas apostas no contrato promessa; iii. Ou que a ré não os tenha informado de tal formalidade. C. Motivação da decisão de facto (…) De tudo o exposto resulta a séria e firme convicção de que o reconhecimento de assinaturas não se realizou porque os autores o dispensaram, como provado em 5º. III. Do Direito Conforme resulta da prova produzida, entre a ré, na qualidade de promitente vendedora, e os autores, na qualidade de promitentes compradores, foi ajustada a promessa daquela vender e estes comprarem o imóvel identificado em 1.º. Após a assinatura do referido contrato-promessa, os autores entregaram à ré, a título de sinal, a quantia de EUR 26.000,00; (2º). Conforme prevê o nº3 do art.º410º do CC, «No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fração autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respetiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.» Trata-se de norma imperativa, que comina com invalidade o contrato promessa que não respeite a formalidade imposta; no entanto, estamos perante uma nulidade atípica, visto que apenas pode ser declarada se invocada, sendo que a invocação por banda do promitente vendedor apenas é permitida quando a omissão tenha sido culposamente causada pela parte contrária. No caso em apreço, é certo que as assinaturas dos promitentes compradores e promitente vendedora não foram reconhecidas presencialmente, nem foi certificada a existência de licença de utilização ou de construção, (4º). No que respeita à omissão de certificação de existência de licença de utilização, esta decorre necessariamente da omissão de reconhecimento de assinaturas, visto que a lei prevê que a mesma seja realizada pela entidade que procede a tal reconhecimento. Sendo omitida a formalidade ad substanciam de reconhecimento de assinaturas, é notório que o ato se encontra viciado, e tal vício conduz à respetiva nulidade. No entanto, a exigência de tal formalidade «não impede que o promitente vendedor demonstre a existência duma situação de abuso do direito de arguir a nulidade do contrato promessa por inobservância das formalidades legais» (Ac dop TRG de 17.12.2013, p. nº24/12.5TBAVV.G11). Dispõe o art.º334º do CC que «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.»; ou seja, concluindo-se que a parte age em abuso do direito, tal atuação terá como consequência paralisar o efeito de invalidade do ato jurídico. No caso, e como resultou provado, foi a conduta dos autores que levou a que o ato de reconhecimento de assinaturas fosse dispensado pois, quando informados de tal formalidade, prescindiram dela (5º). Face a tal factualidade, há que concluir que, ao virem pretender a declaração de nulidade do negócio, e constranger a ré a restituir o valor do sinal prestado, os autores agem em manifesto abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto adotaram conduta anterior que leva à criação de uma confiança séria e legítima de que a nulidade não irá ser invocada. A pretensão dos autores, manifestada nesta ação, constitui um comportamento contraditório com a vontade manifestada de dispensa da formalidade, quando da assinatura do contrato promessa. Trata-se, portanto, de pretensão abusiva, sendo ilegítimo o exercício do direito de ver declarada a nulidade do contrato promessa, e reclamar a restituição do sinal. Termos em que se conclui pela improcedência do pedido, dele devendo ser absolvida a ré. IV. Decisão Destarte, julga-se improcedente por não provada a presente ação e, em consequência, absolve-se a ré do pedido. (…) IV – Fundamentação de Direito a) Iniciando a apreciação do recurso, recorde-se que a primeira questão que importa resolver, relaciona-se com a impugnação da matéria de facto, pretendendo os AA que o facto não provado ii), “Os autores desconheciam a necessidade de reconhecimento presencial de assinaturas apostas no contrato promessa”, transite para os factos provados. Pretendem ainda os AA. que o mesmo suceda quanto ao facto não provado iii): “Ou que a ré não os tenha informado de tal formalidade”, defendendo que deverá a passar a constar dos factos provados. b) Avaliamos como razoavelmente preenchidos os requisitos de forma prescritos no art.º 640º Cod. Proc. Civil, que permitem a reapreciação dos meios de prova relativamente aos pontos de factos que foram objeto da impugnação. Neste âmbito da impugnação da matéria de facto, recorde-se que o julgamento em primeira instância é efetuado segundo o princípio da imediação, com contacto direto e pessoal entre o julgador e a prova, logo em condições privilegiadas para a sua aferição. Acresce que com a exceção dos casos de prova vinculada, a prova é criticamente avaliada pelo mesmo juiz segundo o princípio da livre convicção (segundo a sua valoração e convicção pessoal), e rege-se por padrões de probabilidade, e não de certeza absoluta. De tudo isto resulta que o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve ser efetuado com cautela e segurança, concluindo pela existência de erro relevante na avaliação da prova relativamente a concretos pontos de facto impugnados. c) Vejamos então se se deteta a existência de erros de julgamento com interferência no resultado da ação. Como já referimos, começam os AA. por colocar em causa o facto não provado II, no qual se nega que “Os autores desconhecessem a necessidade de reconhecimento presencial de assinaturas apostas no contrato promessa”, defendendo os AA., no seu recurso, que esse facto deve transitar para os factos provados. E a prova que imporia que esse facto deveria ter resultado provado, segundo os recorrentes, são as (suas) declarações de parte as quais classificam como “(…) livres, espontâneas e honestas, descrevendo, passo a passo, tudo o que sucedeu e respondendo de forma espontânea, a todas as questões colocadas, correspondendo as suas declarações com a prova documental junta” d) No que se refere às declarações de parte, recorde-se que, nos termos do artigo 466º n.º 3 do Cod. Proc. Civil, o tribunal as aprecia livremente, salvo se as mesmas constituírem confissão. Como se compila e resume no Ac. deste TRL de 26.4.2017, proc. n.º 18591/15 (relator Luís Filipe Sousa), no que tange à função e valoração das declarações de parte existem três teses essenciais: (i) tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos; (ii) tese do princípio de prova e (iii) tese da autossuficiência das declarações de parte (para uma resenha completa destas posições cfr., o artigo disponível online, da autoria do identificado relator daquele acórdão, com o título “Declarações de parte. Uma síntese, Abril de 2017”). e) Em qualquer caso, em sede de recurso, só em circunstâncias muito especiais se poderá retirar das declarações de parte (isoladas, ou seja, não corroboradas por outro meio de prova) a conclusão de que a convicção do tribunal recorrido que as não valorou está errada. No caso, a decisão recorrida desenvolve argumentação no sentido de não ter atribuído credibilidade às declarações dos aqui recorrentes. Assim, como pode ler-se em sede de “Motivação da decisão de facto”, o tribunal considerou que “O autor … prestou declarações, nas quais descreveu o processo tendente à compra. Relatou que após ter sido aceite a proposta feita pelos autores, foi enviada uma minuta de contrato promessa que entenderam não apresentar problemas; foi combinada data e hora para assinatura, no imóvel, e não foram advertidos da necessidade de reconhecimento de assinatura. Admitiu que os autores não tinham conhecimentos sobre o assunto, nem procuraram informação – apesar de ter admitido recurso à internet para procurar minuta de contrato promessa, que afinal era minuta dum contrato de compra e venda, mas nunca pesquisaram sobre as formalidades de tal ato, nem através de uma simples busca no Google sob os termos “contrato promessa de compra e venda”; atitude que não deixa de suscitar alguma perplexidade, até porque com tal pesquisa facilmente acederiam a toda a informação relevante. O declarante demonstrou uma parcialidade notória, mas também uma atitude de inércia e alguma indiferença face a um ato de importância como o de promessa de aquisição de um imóvel, no qual prestariam um sinal de valor considerável. Com efeito, admitiu que não se informou, não deu qualquer importância ao ato de assinatura e, finalmente, que quiseram desistir do negócio porque o banco não financiaria, dada a discrepância de áreas – sendo certo que esta dita discrepância é apenas entre o anúncio e o que consta da matriz, pelo que se entende, como aliás veio a resultar das declarações prestadas pela autora, que o que sucedeu foi que o banco não financiaria o montante que os autores necessitavam para pagar o valor de compra. As declarações prestadas não mereceram credibilidade séria, desde logo quanto à questão de não terem sido informados da necessidade de reconhecimento das assinaturas, ou que tal nunca foi abordado, dado o teor das declarações prestadas pela coautora, que contraditam esta versão, e demais testemunhas”. f) Assim, independentemente do que escrevemos acima acerca das limitações do tribunal de recurso no sentido de poder sindicar, em termos semelhantes ao tribunal de julgamento, a credibilidade das declarações de parte ou das testemunhas, o certo é que os recorrentes não fazem qualquer referência à circunstância de a decisão recorrida ter considerado que existia uma contradição relevante entre as declarações de parte prestadas pelo recorrente e pela recorrente. Declarações de parte, contraditórias entre si em aspetos essenciais, não podem em princípio ser consideradas “livres, espontâneas e honestas”, como se defende no recurso… g) Mas os recorrentes defendem ainda que as suas declarações de parte são corroboradas por outros elementos juntos aos autos, designadamente “correspondendo as suas declarações com a prova documental junta”. Todavia, não fazem menção a qualquer documento que corrobore o por si afirmado em sede de declarações de parte, pelo que surge como não sustentada aquela afirmação. Mais, ao contrário dos AA., aqui recorrentes, é a decisão recorrida quem sustenta a sua convicção nos documentos juntos aos autos, podendo ler-se, ainda em sede de motivação que (…) da leitura dos email juntos pela ré, dos quais se salienta os das datas de 7.02.2020, 11.02.2020, 12.02.2020, se constata que os autores adiaram a assinatura do contrato promessa, com a justificação de estarem a negociar pré-aprovação de um 2º crédito com outro banco, e a negociar outras questões, sendo que logo em 11.02 lhes foi disponibilizada a caderneta predial, ou seja, conheciam as áreas desde esta data, anterior à assinatura do CPCV. Do email de 13.02.2020 (fls. 39/39vº) resulta cabalmente que foi o autor quem propôs a assinatura no imóvel, porque o pretendia visitar mais uma vez. Do email de 20.02.2020 retira-se que o autor, após assinatura do contrato promessa, revogou ordem de transferência do sinal, para poupar custos associados, e realizou nova transferência, o que demonstra uma leviandade digna de nota, e põe em causa a idoneidade, enquanto negociador, que foi confirmada nas suas declarações, quando admitiu que na data de assinatura do CPCV não tinha comprovativo de pagamento do sinal. Da conduta dos autores ao longo do processo, plasmada na prova documental produzida; falta de credibilidade demonstrada nas declarações prestadas, entende-se não merecer acolhimento a versão dos factos apresentada de que a ré conduziu o processo com vista a omitir a formalidade de reconhecimento de assinaturas, omitindo a informação da sua necessidade”. h) O trecho da motivação da decisão recorrida ainda agora reproduzido, também não merece censura específica por parte dos AA, designadamente não se referindo no seu recurso aos identificados e-mails, de modo a tentar colocar em causa a possibilidade de a decisão recorrida poder retirar, do conteúdo dos mesmos documentos, conclusões no sentido de considerar como não credíveis as declarações de parte daqueles. i) De resto, os recorrentes, em locais esparsos das suas conclusões, defendem que “a legal representante limitou-se a contar a sua versão da história, que não encontra qualquer respaldo na documentação junta aos autos nem na sua própria contestação” (mais numa vez não especificando que documentação seria essa), que “As testemunhas SM e TO (amiga e filho da legal representante da Recorrida) mostraram falta de imparcialidade (visível, atá nas palavras escolhidas no seu depoimento, completamente coincidentes com as da legal representante da Recorrida), sendo a sua credibilidade nula” (mas não indicando que “palavras escolhidas” seriam essas), sendo evidente que também não é pela circunstância de os depoimentos coincidirem, que forçosamente conduz à impossibilidade de os mesmos depoimentos serem avaliados como credíveis. Defendem, ainda no recurso, que a testemunha MC “apresentou-se perante o Tribunal com um discurso que não é minimamente credível, sendo ainda contrário a mais elementares regas de experiência comum, não devendo, pois, o mesmo ser considerado”, mas também não explicando essa afirmação. Não logram assim os recorrentes colocar em causa a convicção do tribunal, no sentido de que deveria ter sido atribuída credibilidade às declarações de parte por eles prestadas em detrimento da restante prova produzida; a impugnação da matéria de facto levada a cabo pelos recorrentes está longe de permitir impor a conclusão de que a convicção do tribunal (plasmada na sua motivação, onde explica, com recurso às declarações de parte da representante da R., de outras testemunhas e dos documentos juntos, porque razão considerou a matéria de facto provada e não provada) está errada, nem por conseguinte deve ser considerado como provado o referido facto não provado II e o facto não provado III. Improcede assim o recurso no que tange à impugnação da matéria de facto. j) A segunda parte do recurso, debruça-se apenas sobre uma questão de direito, defendendo os AA que ainda que resultasse provado que tinham conhecimento da formalidade em questão, ainda assim não se pode considerar que os mesmos tenham encetado qualquer comportamento passível de criar na Recorrida uma expetativa legítima, e suficientemente séria, de garantia quanto a celebração do contrato nos termos acordados, defendendo que uma situação passível de gerar uma expetativa legítima na contraparte terá sempre de ser uma conduta reiterada e prolongada no tempo, da qual resulta inequivocamente uma vontade específica. A decisão recorrida, após constatar que “resulta dos factos provados que as assinaturas dos promitentes compradores e promitente vendedora não foram reconhecidas presencialmente, foi omitida a formalidade ad substanciam de reconhecimento de assinaturas, conduzindo tal vício conduz à respetiva nulidade. Todavia, citando o Ac. do TRG de 17.12.2013, proc. n.º º24/12.5TBAVV.G11), conclui que a exigência de tal formalidade «não impede que o promitente vendedor demonstre a existência duma situação de abuso do direito de arguir a nulidade do contrato promessa por inobservância das formalidades legais». E após, o tribunal a quo cita o art.º 334º do Cod. Civil «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito»; acrescentando que “concluindo-se que a parte age em abuso do direito, tal atuação terá como consequência paralisar o efeito de invalidade do ato jurídico. E volvendo ao caso concreto, afere que “como resultou provado, foi a conduta dos autores que levou a que o ato de reconhecimento de assinaturas fosse dispensado pois, quando informados de tal formalidade, prescindiram dela, (5º). Face a tal factualidade, há que concluir que, ao virem pretender a declaração de nulidade do negócio, e constranger a ré a restituir o valor do sinal prestado, os autores agem em manifesto abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto adotaram conduta anterior que leva à criação de uma confiança séria e legítima de que a nulidade não irá ser invocada. A pretensão dos autores, manifestada nesta ação, constitui um comportamento contraditório com a vontade manifestada de dispensa da formalidade, quando da assinatura do contrato promessa. Trata-se, portanto, de pretensão abusiva, sendo ilegítimo o exercício do direito de ver declarada a nulidade do contrato promessa, e reclamar a restituição do sinal. k) Apreciando. Comece por se considerar que no seu estudo referência intitulado “Do abuso do direito: estado das questões e perspetivas”(acessível em www.portal.oa.pt), Menezes Cordeiro escalpeliza as diversas formas com que pode surgir o abuso de direito, enquanto instituto multifacetado; como se lê nesse local, “O abuso do direito apresenta-se, afinal, como uma constelação de situações típicas em que o Direito, por exigência do sistema, entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria como legítima. Compete referir e analisar as situações típicas em causa. Com uma prevenção: não estamos perante uma classificação, mas antes em face de ordenações características. Surgem situações atípicas, ocorrências de sobreposição e ocorrências desfocadas, em relação aos núcleo duros dos diversos tipos. Nada disso retira utilidade à tipificação subsequente. Pelo contrário: devidamente usada, ela opera como um instrumento adequado para a realização do Direito.” l) Passando então a enunciação das diversas situações de abuso de direito que a referida doutrina tenta ordenar e categorizar, enunciam-se: o venire contra factum proprium, a inalegabilidade formal, a suppressio, tu quoque e o desequilíbrio no exercício. Destas sub-categorias, as que mais agora importam, são as 3 primeiras, ou seja o venire contra factum proprium (o qual, doravante, designaremos apenas por “venire”), a inalegabilidade formal, e a suppressio. m) O “venire” postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si, mas diferidas no tempo; só que a primeira — o factum proprium — é contraditada pela segunda — o “venire”. O “venire” sustenta-se no princípio da confiança; destina-se a proteger pessoas que tenham sido levadas - justificadamente - a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas. Menezes Cordeiro, ainda no mesmo estudo, com base doutrina e jurisprudência que cita, defende que a tutela da confiança, apoiada na boa fé, ocorre perante quatro proposições. “1.a Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias; 2.a Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível; 3.a Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada; 4.a A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu. Acrescenta ainda que aquelas proposições concretizadoras do princípio da confiança devem ser entendidas dentro da lógica de um “sistema móvel”, não existindo, entre elas, uma hierarquia, acrescentando que o modelo funciona mesmo na falta de alguma (ou algumas) delas: desde que a intensidade assumida pelas restantes seja tão impressiva que permita, valorativamente, compensar a falha. n) Já quanto à inalegabilidade formal, a mesma tem por objeto situações em que determinada pessoa não possa se prevalecer da nulidade de um negócio jurídico causada por vício de forma. Este instituto não deixa de confluir parcialmente com o venire acima referido; no fundo trata-se de o agente, que num primeiro momento, conscientemente, admitiu ou provocou uma nulidade formal, mantém o negócio (nulo por falta de forma) enquanto o mesmo lhe é vantajoso; deixando de lhe convir a validade do contrato (por razões que nada têm a ver com a original imperfeição formal), invoca então o vício (formal) que o próprio conscientemente aceitou ou provocou, tentando assim escapar aos efeitos jurídicos do negócio que neste segundo momento já lhe surgem como inconvenientes, implicando esse comportamento uma grosseira violação da confiança. Ainda no mesmo estudo, Menezes Cordeiro propõe que no caso da inalegabilidade formal, aos pressupostos da tutela da confiança acima enunciados a propósito do venire, sejam acrescentados três requisitos: 1 ° Devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; não, também, os de terceiros de boa fé; 2.° A situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar; 3.° O investimento de confiança deve ser sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via. o) Por último (para o que importa nestes autos, e por razões que melhor se perceberão infra), faça-se ainda referência à categoria da suppressio (supressão), a qual abrange manifestações típicas de “abuso do direito”, nas quais uma posição jurídica que não tenha sido exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por de outro modo se contrariar a boa fé. p) Volvendo ao caso em apreciação, e como acima se referiu, a decisão recorrida considerou que a atuação dos AA. se enquadrava numa situação de abuso de direito, na modalidade do “venire”,, uma vez que foram os próprios AA quem determinaram que o ato de reconhecimento de assinaturas fosse dispensado; quando informados da necessidade de observância de tal formalidade, prescindiram dela, considerando que a conduta anterior assumida dos AA/promitentes compradores criou uma confiança séria e legítima de que a nulidade não irá ser invocada; a pretensão dos AA, manifestada nesta ação, constituirá um comportamento contraditório com a vontade manifestada de dispensa da formalidade, quando da assinatura do contrato promessa. Não é descabido enquadrar a conduta dos AA. no venire, ao menos na sua formulação mais ampla (recorde-se a citação supra, onde Menezes Cordeiro explica que a categorização das situações que permitem configurar uma situação de abuso de direito não implica a inexistência de situações atípicas, ou de sobreposição de institutos). Ainda assim, aceitando que a situação em causa possa configurar o venire, parece-nos preferível enquadrar a situação dos autos na categoria da inalegabilidade formal, por permitir acomodar de forma mais próxima o circunstancialismo factual dos autos (repetindo que o venire e a inalegabilidade são figuras muito próximas, que parcialmente se sobrepõem); recorde-se neste campo, que o que está em causa é um vício formal do negócio - a falta de reconhecimento das assinaturas apostas no contrato promessa – tendo esse vício sido suscitado posteriormente pelos AA./promitentes compradores. q) No caso, a atitude essencial dos AA/Recorrentes que teria criado a confiança por parte da R., aqui recorrida, no cumprimento do contrato, ou melhor, na não invocação da inobservância de um procedimento legal, consubstancia-se no facto provado n.º 5: “No ato da assinatura do contrato promessa de compra e venda, e informados de que as assinaturas deveriam ser reconhecidas presencialmente por notário, os autores prescindiram de tal formalidade”. Daqui resulta que os AA. sabiam que a validade do contrato promessa dependia do cumprimento daquela formalidade; todavia, optaram por dispensar o seu cumprimento; ou seja, admitiram que o contrato padecesse de uma nulidade formal, mantendo voluntariamente o negócio com um vício formal, enquanto o mesmo lhes foi proveitoso (tanto que, como resulta dos factos provados, foram trocados vários e-mails entre as partes, nos quais nunca foi sequer aflorada a questão de as assinaturas não terem sido reconhecidas). Mas a partir do momento que constataram que não iriam cumprir o mesmo contrato (por motivos completamente alheios à celebração do contrato e ao cumprimento das formalidades legalmente impostas), suscitaram a sua nulidade (invocando a preterição da formalidade de que tinham conhecimento, mas que optaram por prescindir do seu cumprimento) de modo a conseguirem libertar-se dos efeitos derivados do incumprimento do contrato. r) Ao prescindirem expressamente que as assinaturas apostas no contrato fossem reconhecidas (após terem sido especificamente informados da necessidade de cumprimento dessa formalidade), nesse único ato os AA. criaram na R. a confiança de que não iriam suscitar no futuro a invalidade do acordo com base na preterição da mesma formalidade; neste caso, estabelece-se uma relação direta e imediata entre o comportamento dos AA. (declaração proferida no momento da assinatura do contrato no sentido de que dispensavam certa formalidade legal), e o nascimento, nesse mesmo momento, de uma situação de confiança pela contra-parte, de forma suficientemente impressiva para que se possa considerar que os AA. utilizaram abusivamente o direito à invocação da invalidade do contrato com base num vício formal que os próprios criaram ou toleraram; a atuação dos AA nessas circunstâncias, surge como manifestamente violadora do princípio da boa fé, colocando em causa a confiança anterior, que voluntariamente criaram, ao preterirem o cumprimento da formalidade que posteriormente invocaram. s) No seu recurso, os AA. defendem que não ocorreu qualquer comportamento passível de criar na R. uma expetativa legítima, e suficientemente séria, de garantia quanto à celebração do contrato nos termos acordados, defendendo que uma situação passível de gerar uma expetativa legítima na contraparte, terá sempre de ser uma conduta reiterada e prolongada no tempo, da qual resulta inequivocamente uma vontade específica. E no caso, contata-se que tendo o contrato promessa sido assinado em 19-2-2020, a invocação da nulidade do contrato ocorreu em 26-3-2020, ou seja, apenas pouco mais de 1 mês após a assinatura do contrato promessa. Ora, como já resultará do que ainda agora escrevemos, a necessidade de a conduta exigida assumir uma certa reiteração e duração no tempo, não é em princípio exigida na categoria da inalegabilidade do vício formal, uma vez que esse vício terá sido criado ou assumidamente tolerado pela parte que o invoca. Aquela reiteração e duração, defendida pelos recorrentes com base na jurisprudência que citam, é sim relevante nas situações em que o abuso de direito se caracteriza por uma supressão (suppressio), e/ou em outras situações configuradoras do venire. Como adiantámos supra, para haver abuso de direito na categoria da suppressio mostra-se necessário o decurso de um período significativo de tempo (variável, de acordo com as circunstâncias do caso concreto), desde que sejam apuradas circunstâncias objetivas e concretas que justifiquem a expectativa, legítima e fundada, por parte daquele em relação ao qual o direito é exercido, de que o respetivo titular não mais o exerceria – cfr. Ac do TRG de 20-02-2020, proc. n.º 1335/19.4T8VNF-A.G1 (Moreira Dias). Caso o direito, exercido tardiamente após o decurso de um período significativo de tempo, se consubstancie na invocação de um vício formal, não deixaremos de estar perante uma inalegabilidade formal, lato sensu; mas a característica típica, relevante para a consideração do abuso de direito na categoria da suppressio, não é a consideração de que o direito abusivamente exercido se efetiva mediante a invocação de um vício de forma, mas sim a verificação concreta de um conjunto de circunstâncias que permita concluir que o titular do direito criou, ao longo do já assinalado decurso significativo do tempo, a forte impressão de que não iria destruir o negócio. Seria, por exemplo, uma situação em que a questão da necessidade legal de as assinaturas serem reconhecidas não ter sido suscitada nem abordada no momento da assinatura do contrato promessa, decorrendo um significativo período de tempo até à invocação desse vício formal, durante o qual o titular do direito assumiu um comportamento que permitiu que fosse sendo criada e mantida, na outra parte, a confiança de que o contrato seria cumprido. Por exemplo: ocorrendo o reforço do sinal, a utilização efetiva do imóvel objeto da promessa de venda ainda antes da celebração da escritura, ou o envio de elucidativas e coerentes comunicações ao promitente-vendedor, assentes todas elas na pressuposição - para os promitentes compradores - da intocada validade do contrato promessa, procurando inclusive tirar dele proveito pessoal, etc. – abordando estas e outras situações similares de abuso de direito na categoria de supressio, ainda que em alguns casos qualificadas como venire, cfr. Ac. do TRG de 17/12/2013, Ac. do S.T.J. 15/05/2007, proc. n.º 07A1180, Ac. do TRP de 2022-09-29, Processo nº 1039/20.5T8PVZ.P1, ou ainda Ac. do S.T.J. de 26-10-2022, (Processo 5261/20.6T8BRG.G1.S1VI. Nesses casos, sim; revela-se como essencial o decurso de um período significativo de tempo, associado a um determinado comportamento, que permitiu a criação, o crescimento, e a consolidação da confiança no cumprimento do contrato, surgindo como abusiva (porque surpreendente, e fortemente lesiva da boa-fé) a posterior invocação da preterição de alguma formalidade, cuja falta de verificação não foi expressamente abordada pelas partes no momento da assinatura do contrato . t) Não é esse o nosso caso; aqui - repete-se – a questão da necessidade do reconhecimento das assinaturas foi abordada no momento da celebração do contrato, tendo sido os promitentes compradores, aqui recorrentes, quem prescindiram expressamente do cumprimento daquela formalidade legal, assim produzindo e sedimentando, nesse único ato, a confiança de que não iriam suscitar, no futuro ainda que próximo, a invalidade do acordo com base na preterição de uma formalidade legal, relativamente à qual tinham pleno conhecimento da necessidade da sua observância, e que voluntariamente optaram por desprezar. u) Concluímos assim que a conduta dos AA ao prescindirem voluntariamente e conscientemente da observância das formalidades exigidas para a celebração do contrato (após terem sido expressamente e informados da necessidade da sua observância), criou a confiança na outra parte de aquele vício de forma não seria suscitada por aqueles posteriormente. Surge como abusiva, porquanto configuradora de um manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé (art.º 334º do Cod. Civil), a conduta dos AA. os quais após criarem daquela forma aquela confiança, suscitaram a invalidade do contrato com base no incumprimento de uma formalidade que declararam não querer observar, pretendendo obter a nulidade do contrato num momento em que - por razões totalmente estranhas à imperfeição formal - já não lhes interessava o negócio, tentando assim abusivamente escapar aos seus efeitos jurídicos, que em determinado momento passaram a surgir como desvantajosos. Constata-se ainda que no caso se mostram reunidos os requisitos elencados em n), último parágrafo, dos quais a citada doutrina faz depender a verificação da inalegabilidade: estão apenas os interesses das partes envolvidas, a situação de confiança é censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar, e o investimento de confiança é sensível. v) A falta de reconhecimento presencial das assinaturas num contrato-promessa imposta pelo art. 410º, nº 3, do Código Civil, determina a nulidade do contrato a qual pode ser sempre invocada, a todo o tempo, pelo promitente que promete adquirir o direito. A possibilidade da sua invocação apenas pode ser impedida (ou melhor, a impossibilidade de os seus efeitos se produzirem) nos casos em que a mesma corresponda a abuso de direito, no caso com fundamento na categoria da inalegabilidade formal. É assim totalmente improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida. V - Dispositivo Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a absolvição da R. do pedido formulado pelos AA., no sentido de aquela ser condenada a devolver a quantia de 26.000,00 € (vinte e seis mil euros) que aqueles lhe entregaram a título de sinal. Custas pelos AA./recorrentes. Lisboa, 18 de novembro de 2025 João Novais Diogo Ravara Carlos Oliveira |