Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8154/23.1T8ALM.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
CULPA DO LESADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator):
Em sede de indemnização pela privação de uso de veículo, cabe ao autor responder com diligência e prontidão à proposta da seguradora, sendo para tal suficiente o prazo geral de dez dias. Ao demorar de 293 dias para responder à proposta da seguradora de indemnização por perda total, o autor contribuiu para o agravamento do seu dano de privação de uso, justificando-se a redução da indemnização pela privação de uso pelo período correspondente (cf. Artigo 570º, nº1, do Código Civil).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
BC intentou ação declarativa comum contra AGEAS PORTUGAL COMPANHIA DE SEGUROS S.A., peticionando a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 33.551,27 €, acrescida de juros vencidos e vincendos calculados sobre o capital em divida à taxa supletiva legal aplicável aos créditos das empresas comerciais, a contar desde a data do acidente até integral pagamento.
Alegou, em síntese, ser proprietário do veículo (...) Pick Up D21, que foi interveniente num acidente de viação ocorrido no dia 13/01/2022 e pela produção do qual foi responsável um veículo segurado pela ré. Acrescentou que o seu veículo ficou bastante danificado e impossibilitado de circular, tendo sido sujeito a peritagem que estimou o valor provável de reparação em 7.551,27 €, em consequência do que a sua seguradora considerou a perda total da viatura, por considerar o valor venal em 3.000,00 € (quando este é, na sua perspetiva, bastante superior) e o valor do salvado em 1.300,00 €.
A ré contestou, reconhecendo a celebração de um contrato de seguro com o proprietário do outro veículo interveniente no acidente e a responsabilidade do condutor deste na sua produção. Acrescentou que a regularização do sinistro foi efetuada pela seguradora do autor, ao abrigo da Convenção de Indemnização Direta ao Segurado, razão pela qual todo o processo de avaliação de danos e pagamento de indemnização ao autor foi gerido diretamente por aquela, argumentando que o veículo se encontra em situação de perda total.
Após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedentes os pedidos formulados pelo autor, condenando-se a ré a pagar ao autor:
a) a quantia de 7.551,27 € (sete mil, quinhentos e cinquenta e cinco euros e vinte e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa civil supletiva, contados desde o dia 13/01/2022 até efetivo e integral pagamento;
b) a quantia de 20,00 € (vinte euros) por cada dia decorrido entre o dia 13/01/2022 e 12 (doze) dias contados da data em que a ré proceda ao pagamento ao autor da quantia referida em a), que à data de hoje ascende a 23.660,00 € (vinte e três mil, seiscentos e sessenta euros).
Absolve-se a ré do demais peticionado
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a Ré formulando, no final das suas alegações, as seguintes
CONCLUSÕES:
(…)
C) Vem a douta sentença recorrida fundamentar a atribuição de indemnização a título de privação de uso pelo facto de o Autor ter sido privado da utilização da sua viatura em consequência do sinistro dos autos, situação que é considerada até ao momento;
D) Considera a Ré, ora Recorrente, que a atribuição de montante a título de privação de uso deverá ser aquilatado mediante a efetiva privação de viatura para o lesado, resultando da matéria dada como provada, aliás por confissão do próprio Autor, que nas deslocações para o trabalho – que se trata de uma oficina de reparação de veículos automóveis, propriedade de seu pai e na qual foi realizada a avaliação de danos ao veículo acidentado, o IZ -, após o sinistro dos autos essas deslocações foram realizadas no veículo de sua mãe, de seu pai ou por boleia de seu pai ou amigos;
E) Pelo Autor foi transmitido que nunca foi pedido por si veículo de substituição, quer à Ré, ora Recorrente, quer à N Seguros, S.A., seguradora para onde se encontrava transferida responsabilidade do veículo de que é proprietário, o IZ, e que foi por si escolhida para proceder ao acompanhamento do processo de sinistro, com averiguação e indemnização decorrente do sinistro, para além de nunca por si ter sido alugado veículo para colmatar a falta do veículo IZ, porque sempre se socorreu dos amigos para fazer face às situações de necessidade que teve;
F) Veio o Autor confessar ainda que entre o final do ano de 2022 e o início do ano de 2023 veio a adquirir outro veículo, de marca Peugeot, modelo 206, com ano de matrícula de 1999, cessando a privação de uso de veículo;
G) Resulta das Declarações de Parte prestadas pelo Autor em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, em 20 de Março de 2025, que a impossibilidade de utilização da viatura IZ não criou naquele constrangimentos no seu dia a dia que mereçam, pelo menos na medida do que vem alegado pelo próprio Autor e considerado em sede de Sentença proferida, tutela do Direito;
H) No momento do sinistro, o veículo do Autor (IZ) não era por si conduzido, encontrando-se emprestado a uma pessoa amiga, conforme decorre das Declarações de Parte prestadas por aquele e resulta da Declaração Amigável de Acidente Automóvel (…) pelo que também desta forma se considera que o veículo IZ não era utilizado pelo Autor com a regularidade e necessidade que aquele alega;
I) Não se encontra, pois, demonstrado um prejuízo material efetivo para o Autor, pelo que considera a Ré, ora Recorrente, não se verificar um dano indemnizável na esfera jurídica do Autor;
J) Considera a ora Recorrente que a atribuição de indemnização ao Autor depende da efetiva demonstração de um dano concreto e efetivo, exigindo-se do lesado provar a situação hipotética em que se encontraria se não fosse o ato ou facto determinante da privação do uso da coisa, isto é, haveria sempre de provar-se qual teria sido a concreta situação de vantagem económica (provento ou não perda) que saiu frustrada, entendimento perfilhado no douto Acórdão proferido no processo que, com o nº. 1247/07.4TJVNF.P1.S1, de 09/03/2010, da 1ª. Secção do Supremo Tribunal de Justiça;
K) Mesmo que não seja este o entendimento perfilhado por V. Exas., o que por mero dever de patrocínio se coloca, o que é certo é que o Autor confessou em sede de Declarações de Parte prestadas na Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 20/03/2025, adquiriu um veículo entre o final do ano de 2022 e o início do ano de 2023, a fim de colmatar a falta da viatura IZ;
L) Ao não ser entendido desta forma, estaremos a colocar o Autor numa situação de enriquecimento sem causa;
M) Resulta das Declarações de Parte prestadas pelo Autor, que foi este quem decidiu que a regularização dos prejuízos resultantes para si em consequência do acidente de viação dos autos dos autos, deveria ser tratada pela seguradora para a qual ele próprio havia transferido a responsabilidade decorrente da circulação do veículo de que é proprietário, o IZ, ou seja, foi este que contactou diretamente a N Seguros, S.A., para o ressarcimento dos danos;
N) Para a comunicação entre as partes, facultou este o seu endereço de email BC@gmail.com para que a seguradora N Seguros, S.A. pudesse comunicar consigo, resultando dos Factos Provados 11 a 13 que desde 3 de Fevereiro de 2022 que aquela seguradora envia comunicações escritas para o endereço eletrónico fornecido pelo Autor, para regularização dos danos decorrentes do sinistro, sendo que apenas em 23 de Novembro de 2022 o Autor comunica com a seguradora N Seguros, S.A., através do endereço eletrónico ABC@gmail.com, diferente daquele que havia identificado previamente e sem que em momento prévio tenha informado de alteração do seu contacto, conforme Facto Provado 15;
O) Assim, de 03/02/2022 a 23/11/2022, o Autor impossibilitou que a normal resolução do processo decorrente do sinistro fosse resolvido, sem que para tanto tenha facultado àquela seguradora qualquer informação relativamente à impossibilidade de acesso ao endereço de email inicialmente facultado por este;
P) Não poderá o Autor beneficiar com o recebimento de uma indemnização a título de privação de uso quando o próprio se colocou nessa situação e permaneceu nela, segundo alega, até ao presente;
Q) Considera a Ré, ora Recorrente, não se encontra demonstrada uma situação de efetivo dano resultante para o Autor e decorrente de uma alegada privação de uso do veículo IZ;
R) Se tal não for considerado, o que por mero dever de patrocínio se coloca, sempre terá de se atender à atribuição de um valor indemnizatório adequado ao prejuízo efetivamente sofrido pelo Autor, assim evitando uma total desproporcionalidade entre o danos existente e a indemnização arbitrada;
S) Neste sentido, vem o Acórdão do Tribunal de Évora referir que: “No âmbito deste instituto procura-se encontrar o valor indemnizatório duma forma equilibrada e razoável, dentro dos elementos que a factualidade dada como provada nos proporciona. Não se pode dar guarida à pretensão do autor, que funciona como que um 'taxímetro' apresentando-se como injustificável que a seguradora deva responder pela totalidade dessa dano, e se nos afigura desfasada da realidade, tendo em conta os valores do motociclo e da reparação” - Acórdão de 2013-11-28 (Processo nº 161/09.3TBGDM.P2.S1);
T) Donde, a sentença proferida deve ser revogada e ser proferida nova decisão que absolva a Ré, ora Recorrente, no pagamento de uma indemnização ao Autor a título de privação de uso ou, se tal não suceder, deverá ser fixado um montante indemnizatório atendendo ao prejuízo efetivamente sofrido pelo Autor.
Termos em que, e nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao recurso e ser alterada a decisão recorrida, substituindo-a por outra, com o que se fará JUSTIÇA.»
*
Contra-alegou propugnando pela improcedência da apelação, mais sustentando que a impugnação da decisão de facto deve ser rejeitada por incumprimento dos ónus do Artigo 640º do Código de Processo Civil.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186; Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, II Vol., p. 131. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito. Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge Leal, 331/21, de 11.6.2024, Leonel Serôdio, 7778/21, de 29.10.2024, Pinto Oliveira, 5295/22, de 13.2.2025, Luís Mendonça, 2620/23. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Impugnação da decisão da matéria de facto (conclusões D), F) e G),K);
ii. Indemnização pela privação de uso.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
A jurisprudência citada neste acórdão sem menção da origem encontra-se publicada em www.dgsi.pt.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1) O autor é proprietário do veículo (...) Pick-Up D21 de matrícula 44-(...)-IZ;
2) No dia 13 de janeiro de 2022, pelas 14:55, ocorreu um acidente que envolveu o veículo referido em 1) e o veículo de matrícula 85-(...)-84, conduzido por DF e propriedade deste;
3) O referido acidente deu-se quando o veículo de matrícula 44-(...)-IZ circulava na Rua … e, ao chegar ao cruzamento desta com a Rua …, foi embatido na sua lateral esquerda pela frente do veículo de matrícula 85-(...)-84, que não parou no referido cruzamento, não respeitando a obrigação de cedência de passagem àquele, que se apresentava pela sua direita;
4) Com a força do embate entre os veículos, o veículo de matrícula 44-(...)-IZ tombou sobre o seu lado direito;
5) À data do descrito acidente, a responsabilidade civil inerente à circulação automóvel do veículo de matrícula 85-(...)-84 havia sido transferida para a ora ré, através de contrato de seguro do ramo automóvel, com a apólice …379;
6) Em consequência do embate descrito em 2) a 4), o veículo de matrícula 44-(...)-IZ ficou com danos, nomeadamente na frente direita e esquerda, nas laterias direita e esquerda e no interior, ficando impossibilitado de circular em segurança;
7) O veículo de matrícula 44-(...)-IZ foi rebocado para uma oficina onde foi sujeito a uma peritagem, na qual se concluiu que o valor provável de reparação dos referidos danos ascenderia a 7,551.27 € (sete mil, quinhentos e cinquenta e um euros e vinte e sete cêntimos) e que a mesma teria a duração de 12 (doze) dias;
8) Na sequência da avaliação dos danos do veículo de matrícula 44-(...)-IZ, foi preenchido um formulário com o título “Boletim de Perda Total”, o qual foi assinado pelo perito avaliador e pelo responsável pela oficina onde ocorreu a avaliação de danos,
9) A ré assumiu a responsabilidade pelo descrito acidente, tendo sido a seguradora do veículo do autor (N Seguros, S.A.) quem tentou regularizar os danos por este sofridos, no âmbito de uma convenção entre seguradoras (Indemnização Direta ao Segurado - IDS);
10) Por essa razão, o processo de avaliação de danos e pagamento de indemnização ao autor foi gerido diretamente ela «N Seguros, S.A.», tendo a avaliação de danos ao veículo de matrícula 44-(...)-IZ sido realizada em oficina escolhida pelo autor;
11) No dia 3 de fevereiro de 2002, a «N Seguros» enviou uma mensagem de correio eletrónico para o endereço BC@gmail.com, com o seguinte teor:

12) No dia 14 de fevereiro de 2022, a «N Seguros» enviou uma mensagem de correio eletrónico para o endereço BC@gmail.com, com o seguinte teor:

13) No dia 29 de junho de 2022, a «N Seguros» enviou uma mensagem de correio eletrónico para o endereço BC@gmail.com, com o seguinte teor:

14) O autor não acedeu nem respondeu às comunicações transcritas em 11) a 13), uma vez que perdeu o acesso ao referido endereço eletrônico;
15) No dia 23 de novembro de 2022, o autor enviou uma mensagem de correio eletrônico para o endereço ...@nseguros.pt, do endereço ABC@gmail.com, com o seguinte teor:
«(…) não aceito o valor por vós proposto, a minha viatura não se encontrava à venda, sendo que necessito da viatura para o uso pessoal, tendo já muitas vezes recorrido e pago a terceiros para realizar trabalho que eu realizaria com a minha viatura, estando a ter custos, eu pretendo a reparação da mesma(…) fiz pesquisa de mercado no qual não consegui ver nenhuma viatura do ano da minha e com sensivelmente a mesma quilometragem, sendo que os valores de mercado de viaturas equivalentes à minha mas com mais anos se situam bem acima do valor por vós proposto.
(…)
BC.»
16) No dia 6 de dezembro de 2022, a «N Seguros» enviou uma mensagem de correio eletrónico para o endereço ABC@gmail.com, com o seguinte teor:

17) No dia 19 de dezembro de 2022, a «N Seguros» enviou uma mensagem de correio eletrónico para o endereço ABC@gmail.com, com o seguinte teor:

18) No dia 13 de janeiro de 2023, o autor, por intermédio do seu mandatário, enviou à ré uma mensagem de correio eletrônico, com o seguinte teor:
«(…)
O meu constituinte não concordo com a proposta de regularização efetuada pela sua seguradora NSeguros, razão pela qual estou a interpelar a seguradora responsável pela origem deste sinistro.
O valor da viatura do meu constituinte é muito superior ao apurado pela NSeguros, trata-se de uma (…) D21 de 1997 com somente 80.000 kms.
Venho assim solicitar com a máxima urgência, uma proposta de regularização por parte da Ageas, incluindo a reparação da viatura e a respetiva privação de uso.(…)»
19) No dia 31 de janeiro de 2023, a ré enviou ao autor uma mensagem de correio eletrônico com o seguinte teor:


20) Antes do acidente descrito 2) a 4), a viatura de matrícula 44-(...)-IZ estava em bom estado;
21) O referido veículo é de 1997 e tinha 188.188,00 quilómetros;
22) O autor usava o veículo para se deslocar diariamente, nomeadamente para ir para o seu local de trabalho, ir às compras e realizar atividades lazer;
23) O autor é engenheiro mecânico de profissão e utilizava este veículo na sua atividade profissional, com a mais-valia de possuir caixa aberta e permitir transportar materiais de grandes dimensões;
24) O veículo IZ ainda não foi reparado e encontra-se imobilizado até à presente data;
25) O autor teve de recorrer a veículos de amigos e familiares para suprir as referidas necessidades.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Impugnação da decisão da matéria de facto
A apelante sustenta que se deverá considerar determinada factualidade como provada, nomeadamente que:
§ Por confissão do próprio Autor, nas deslocações para o trabalho, após o sinistro, as deslocações para o trabalho foram realizadas no veículo de sua mãe, de seu pai ou por boleia de seu pai ou amigos (conclusão D));
§ O autor nunca pediu veículo de substituição, quer à Ré, quer à N Seguros, SA ( conclusão E));
§ Entre o final de 2022 e o início de 2023, o autor adquiriu outro veículo, de marca Peugeot, modelo 206, com ano de matrícula de 1999 ( conclusão F)).
No facto provado sob 25 consta que “O autor teve de recorrer a veículos de amigos e familiares para suprir as referidas necessidades.”
Compulsadas a petição inicial e a contestação, nas mesmas não foi alegada a factualidade que a Ré pretende que, agora, seja aditada como provada.
A sessão de julgamento decorreu em 20.3.2025, não resultado da respetiva ata que, na sequência das declarações de parte do autor, por iniciativa da Ré ou do Mmo Juiz a quo, tenha sido consignado que o autor confessou os factos aludidos. A falta da redução a escrito do depoimento de parte e das declarações de parte, nos segmentos em que ocorra confissão, constitui nulidade que ficará sandada se não for oportunamente arguida até ao momento em que termine o ato, no caso, encerramento da audiência final (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2025, 4ª ed., Almedina, pp. 653-654).
Por outro lado, admitindo que tais factos constituam factos complementares, a introdução dos mesmos no processo obedece a requisitos que não se mostram cumpridos.
Com efeito, os factos complementares só podem ser introduzidos no processo no decurso do julgamento em primeira instância, mediante iniciativa da parte ou oficiosamente, sendo que, neste último caso, cabe ao juiz anunciar às partes que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto, sob pena de proferir uma decisão-surpresa (cf. também: Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.2.2025, Orlando Nascimento, 1196/14, 7.2.2017, Pinto de Almeida, 1758/10, de 6.9.2022, Graça Amaral, 3714/15, de 30.11.2022, Barateiro Martins, 23994/16, de 30.5.2023, Jorge Dias, 529/21, de 7.12.2023, Cura Mariano, 2017/11; Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.12.2018, Moreira do Carmo, 2053/14, de 13.9.2022, Moreira do Carmo, 3713/16; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.12.2019, Castelo Branco, 11605/18). Em qualquer dessas circunstâncias, assiste à parte beneficiada pelo facto complementar e à contraparte a faculdade de requererem a produção de novos meios de prova para fazer a prova ou contraprova dos novos factos complementares – cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 32.
Não tendo a apelante desencadeado tal mecanismo de ampliação fáctica nem tendo o mesmo sido utilizado oficiosamente pelo tribunal (cf. ata de 20.3.2025), está precludida a ampliação da matéria de facto com tal fundamento em sede de apelação porquanto o conteúdo da decisão seria excessivo por envolver a consideração de factos essenciais complementares ou concretizadores fora das condições previstas no art. 5º (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 860) ou, segundo Alberto dos Reis, ocorreria erro de julgamento por a sentença/acórdão se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp.. 145-146).
Termos em que, sendo desnecessárias outras considerações, se rejeita a impugnação da matéria de facto por visar introduzir, de forma legalmente inadmissível, nova factualidade no processo.
Indemnização pela privação de uso
O tribunal a quo condenou a Ré a pagar ao autor a quantia de vinte euros por cada dia decorrido entre 13.1.2022 e doze dias contados da data e que a Ré proceda ao pagamento da quantia respeitante à reparação do veículo, o que ascendeu a e 23.660.
O tribunal a quo adotou essencialmente a seguinte fundamentação:
«A posição atualmente dominante e seguida pelos tribunais superiores no que concerne à reparação do dano por privação de uso considera que o tal dano tem natureza essencialmente patrimoniais e é indemnizável por si só, por ofender o direito à propriedade do privado, sem que se lhe exija a comprovação de concretos e efetivos prejuízos.
É que ser proprietário de uma coisa confere ao titular o pleno direito de a usar, fruir e dela dispor (cf. artigo 1305.º do Código Civil).
Daí que a impossibilidade de utilizar a coisa constitua por si só um dano que deve ser ressarcido por quem lhe deu causa.
Quanto à concreta definição do montante indemnizatório a atribuir ao lesado, impõe-se normalmente recorrer à equidade (cfr. art. 566.º n.º 3 do Código Civil), na medida em que, regra geral, não é possível determinar em concreto a medida do dano patrimonial imposto ao lesado/privado do uso, nomeadamente quando este não alega nem comprova efetivas despesas com o aluguer de um veículo de substituição (o que não se lhe impunha).
Note-se que se adere ao entendimento jurisprudencial segundo o qual o valor diário da indemnização não pode corresponde ao valor locativo de um veículo similar ao sinistrado quando este não o tenha efetivamente alugado, porquanto tais preços de mercado são naturalmente inflacionados face ao escopo de lucro das empresas que a tal atividade se dedicam e à cobertura dos riscos da mesma (neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 3106/20.6T8VIS.C2, rel. Luís Cravo).
Numa perspetiva comparativa, deve ter-se em conta que a jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a entender adequada e equitativa a fixação de um valor diário de indemnização pela privação do uso de uma viatura automóvel de passageiros de 10,00 € (dez euros).
Contudo, à luz do que vem sendo decidido em alguns arestos, entende-se que este valor deve ser atualizado face à inflação que se vem verificando e agravando, principalmente tendo em conta que aquele vem sendo arbitrado desde 2010.
Conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 318/23.4T8PMS.C1, rel. Moreira do Carmo, há que combater o imobilismo jurisprudencial em tal matéria e atualizar o referido valor de referência para uma quantia próxima do seu dobro (20,00 € diários), em face da evidente desvalorização da moeda ocorrida na última década e em especial nos últimos anos.
Tal reportar-se-á unicamente a um valor de referência, a que se atenderá à luz da obrigação que se impõe ao julgador de ter «em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito» (cfr. art. 8.º n.º 3 do Código Civil).
Importa, ainda assim, efetuar uma análise das concretas circunstâncias verificadas no caso dos autos, uma vez que o recurso à equidade não admite um juízo arbitrário, antes se impondo que, com o fito de alcançar a justiça do caso concreto, o julgador faça apelo aos critérios de razoabilidade, equilíbrio, proporção e adequação às circunstâncias específicas apuradas.
Descendo ao caso em apreço, há nomeadamente que ter em conta que o veículo em causa se trata de uma carrinha de caixa aberta, isto é, um veículo de características especiais e utilidade acrescida para o autor.
Por outro lado, há que ponderar que o referido veículo é de 1997 e tinha já 188.188,00 kms e que o autor logrou recorrer a veículos de familiares e amigos para suprir as suas necessidades.
Ponderadas estas circunstâncias que, respetivamente, agravam e atenuam a gravidade da lesão de privação do uso do veículo em causa, crê-se que o quantitativo diário a fixar neste conspecto deve corresponder a 20,00 € (vinte euros).
O autor ficou privado da utilização do seu veículo automóvel desde a data do sinistro, que ocorreu em 13/01/2022, pelo que a obrigação de indemnização impendente sobre a autora deve ser contada desde essa data.
Por seu turno, o termo da obrigação em causa deve reportar-se à data em que a ré cumpra a sua obrigação, isto é, aquela em que liquide a quantia devida a título de reparação da viatura, acrescida da duração de tal reparação, estimada em 12 dias.»
A apelante insurge-se contra o assim decidido, argumentando que:
i. O autor, em sede de declarações de parte, confessou factos dos quais decorre que a impossibilidade de utilização da viatura não lhe criou constrangimentos no seu dia a dia que mereçam a tutela do direito, inexistindo um prejuízo material e efetivo para o autor;
ii. O autor decidiu tratar a regularização dos prejuízos junto da sua seguradora, tendo facultado a este um email para o qual tal seguradora enviou comunicações, sendo que o autor, apenas em 23.11.2023, comunicou a tal seguradora a alteração do seu contacto;
iii. Assim, entre 3.2.2022 e 23.11.2022, o autor impossibilitou a normal resolução do processo decorrente do sinistro;
iv. Existe uma desproporcionalidade entre os danos existentes e a indemnização arbitrada.
Apreciando.
Quanto à argumentação enunciada em i., a mesma prende-se com a alteração da matéria e facto provada, questão já acima analisada e não admitida.
A questão da indemnização pela privação do uso de veículo, na sequência de acidente de viação, tem dado azo a vasta doutrina e jurisprudência, em grande parte compendiadas em Liliana Fernandes Gonçalves, Indemnização do dano de privação do uso de veículo decorrente de acidente de viação, Universidade do Minho, 2014.
Na jurisprudência do STJ existem várias correntes a propósito do âmbito da indemnização por privação do uso de veículo:
(i) Corrente que exige a prova concreta dos prejuízos efetivamente sofridos em consequência da privação do uso (prejuízo concreto);
(ii) Corrente que exige a prova da utilização normal do veículo, bastando-se com isso para determinar os danos, nomeadamente pela equidade (Artigo 566º, nº3, do Código Civil) e
(iii) Ccorrente que exige apenas a mera privação de uso, sem necessidade de demonstração de prejuízos concretos, podendo o dano ser calculado segundo a equidade (Artigo 566º, nº3, do Código Civil; prejuízo abstrato).
Para esta última corrente mais permissiva, mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao veículo, o lesado tem de ser compensado monetariamente pelo período corespondente ao impedimento dos poderes de fruição.
«O direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação do bem. Neste contexto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores da ajustada indemnização» (Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, I Vol. – Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2ª ed., Almedina, 2005, pp. 57 e ss.).
Na jurisprudência mais recente do STJ neste sentido releva o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.9.2021, Oliveria Abreu, 625/18:
III. O dano decorrente da privação do uso veículo constitui dano patrimonial autónomo, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, com violação do respetivo direito de propriedade.
IV. Demonstrado o dano que advém da privação do uso do veículo, na falta de quantificação objetiva, é legítimo o recurso à equidade para fixar a respetiva compensação.
A segunda corrente (ii) exige a singela prova do uso habitual da viatura (cf. Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil, Temas Especiais, UCE, pp. 60-63), colhendo expressão, por exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.6.2021, Cura Mariano, 879/17:
I. Para o reconhecimento de um direito de indemnização pelo dano de privação de uso de um veículo acidentado é suficiente a prova pelo lesado que utilizava habitualmente a viatura na sua vida diária, presumindo-se que, da respetiva privação, derivem danos efetivos.
II. Os prejuízos podem ser de ordem patrimonial (acréscimo de despesas) ou de ordem não patrimonial (incómodos, sacrifícios, etc.) e, não sendo os mesmos concretamente apurados na fase declarativa, deve a respetiva indemnização ser remetida para posterior liquidação, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Em último caso, funcionará um juízo de equidade.
No mesmo sentido, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.7.2023, Aguiar Pereira, 1290/20.
Por nós, temos como mais adequada a corrente mais permissiva porquanto o mero uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária que, a ser suprimida, tem um impacto negativo na esfera do titular do direito. Não se pode negligenciar «(…) a normalidade, a qual revela que as pessoas regularmente utilizam os bens que são social e economicamente vistos como úteis, principalmente aqueles cuja prática judicial tem discutido, como é o exemplo dos veículos automóveis» (Nuno Alexandre Pires Salpico, Cálculo de Danos e Equidade, Almedina, 2023, pp. 266-267). A tese do prejuízo concreto implica uma interpretação restritiva do ius fruendi inerente ao direito de propriedade, sendo certo que se pode possuir um veículo para colecionismo e/ou recreio e não necessariamente para deslocações do dia-a-dia, merecendo também tutela a primeira situação. A essencialidade do uso pode majorar a indemnização mas não é requisito da existência desta.
No que tange ao quantitativo, na jurisprudência do próprio STJ encontram-se decisões díspares que fixam tal indemnização em € 25 diários (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.5.2011, João Camilo, 1253/07, Sumários), em € 10 diários ( Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.12.2015, Gabriel Catarino, 1086/12, Sumários), em € 15 (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2024, Barateiro Martins, 1821/21), em € 30 (STJ 13.7.2017, Graça Trigo, 188/14) e mesmo em € 50 diários (aqui, atendeu-se ao valor de aluguer de veículo equivalente; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.2.2025, Afonso Henrique, 743/22). O valor de € 20 foi fixado a este título nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 13.10.2016, Jorge Leal, 716/14 e de 13.4.2023, Cristina Lourenço, 784/23, tratando-se aqui de uma scooter.
O acidente dos autos foi tramitado, extrajudicialmente, ao abrigo da Convenção IDS. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2024, Barateiro Martins, 1821/21:
I – O Protoloco de Indemnização Direta ao Segurado (Protocolo IDS) é uma mera convenção ou acordo subscrito entre seguradoras que “tem como finalidade acelerar a regularização de sinistros automóveis e simplificar os reembolsos entre as signatárias” (cfr. art. 2.º de tal Protocolo), ou seja, é um documento que tão só vincula as seguradoras que o subscreveram, não produzindo quaisquer efeitos sobre a esfera jurídica de terceiros/lesados.
II – O Protocolo IDS significa que a seguradora responsável (que cobre a responsabilidade civil do seu segurado, culpado no sinistro) autoriza a seguradora do lesado a indemnizá-lo, o que esta faz por conta da seguradora responsável, ou seja, embora acionado o Protocolo IDS (isto é, participado o acidente pelo lesado à sua seguradora), continua a seguradora responsável a manter-se vinculada ao dever de regularizar o sinistro dentro dos prazos legais.
III – Assim, encontrando-se o veículo retido na oficina que o reparou, por não haver entendimento entre a seguradora do lesado e tal oficina, a propósito da pretensão desta em ser-lhe pago o aparcamento do veículo, é a seguradora (do culpado no acidente de viação) responsável pela indemnização do dano da privação de uso do veículo.
Daqui decorre que a Ré é a responsável final pela indemnização da privação de uso do veículo, embora o autor tenha tramitado a reclamação junto da sua seguradora, ao abrigo da Convenção IDS.
O acidente ocorreu em 13.1.2022. Logo em 3.2.2022, a seguradora do autor enviou-lhe correio eletrónico com proposta de regularização total como perda total do veículo. Em 14.2.2022, a seguradora voltou a enviar correio eletrónico, solicitando resposta do autor. O autor não acedeu nem respondeu a tais comunicações por ter perdido acesso ao referido endereço eletrónico (facto 14). Apenas em 23.11.2022, o autor comunicou que não aceitava o valor proposto, pretendendo a reclamação da viatura. Ou seja, o autor demorou 293 dias a responder à proposta da seguradora, por facto a si imputável porquanto o mesmo é responsável pelo acesso ao próprio email. Um prazo de dez dias seria normal e suficiente para o autor responder à proposta da seguradora.
Este atraso imputável ao autor deve repecutir-se no cômputo da indemnização a que tem direito pela privação de uso (cf. Artigo 570º, nº1, do Código Civil).
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.2.2023, Fátima Gomes, 2419/20 :
«A indemnização pela privação de uso não deve considerar-se causalmente justificada por todo o período invocado (mais de 800 dias) se o acidente ocorreu em .../05/2018, a ré propôs uma indemnização em Agosto de 2018, que não foi aceite pelo A., e o recorrido só intentou a presente acção judicial para exigir a integral reparação do dano em 03/08/2020, impendendo sobre o A. um dever de evitar o agravamento do dano através de uma atitude proactiva em tempo razoável, como também deve ser razoável a proposta da seguradora (em montante e oportunidade temporal).»
Já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.1.2023, João Trindade, 2395/06 se afirmou:
«A R. seguradora recusou o pagamento da reparação não dando ordem de reparação da mesma e recusou-se a fornecer ou a pagar ao A. o valor diário de um motociclo sucedâneo de substituição. (…) .
Tal posição da responsável não legitima a inércia e total passividade do lesado perante os danos sobretudo nos casos de estes estarem sujeitos a evolução expansiva, como é o do dano da privação de uso de veículo danificado ou inutilizado que vai aumentando com o tempo até à entrega do veículo reparado ou de veículo de substituição ou de disponibilidades monetárias adequadas para a aquisição de outro equivalente (no caso de perda total do veículo); o dano da privação do uso é tipicamente sujeito a agravamento.»
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.1.2023, Domingos Fernandes, 2173/23, considerou-se que:
«A atitude passiva do lesado que, perante um dano em evolução expansiva e cuja medida indemnizatória espera ser contabilizada em função do tempo (como é o caso de parqueamento do veículo em garagem) permanece inerte aguardando o termo final da espera para depois reclamar a indemnização, é contrária à razoabilidade e à boa fé e não pode ser tutelada pelo Direito.»
Nos termos do Art. 762º, nº2 do Código Civil, «No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.» A boa fé constitui uma cláusula geral que carece da mediação concretizadora do juiz . "(...) este deverá partir das exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam as expectativas dos sujeitos jurídicos." A. COSTA, Direito das Obrigações, 5ª ed., p. 94. Na formulação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.91, Fernando Fabião, BMJ nº 412, p. 459 e ss., agir de boa fé no contexto do Art. 762º do Código Civil é agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesse da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.
A mediação concretizadora da boa fé não pode alhear-se do dado adquirido da ciência jurídica segundo o qual a relação jurídica obrigacional alberga, no seu seio, uma pluralidade de elementos autonomizáveis com utilidade para a captação do seu regime.
Assim, a relação jurídica obrigacional incorpora, em primeira linha, deveres principais ou primários de prestação por via de cuja realização se pretende alcançar o fim determinante da constituição do vínculo obrigacional. Concomitantemente com os deveres de prestar, a relação obrigacional contém outra série de deveres essenciais ao seu correcto processamento, normalmente classificados como deveres laterais e que se fundamentam precisamente no princípio da boa fé. Esse deveres são nomeadamente de três ordens: de esclarecimento, de protecção e de lealdade. «Os deveres de lealdade obrigam as partes a, na pendência contratual, absterem-se de comportamentos que possam falsear o objectivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações por elas consignado» (M. CORDEIRO, Da boa fé no direito civil, I Vol., pp.. 605 e 606 ).
Decorre desta jurisprudência, a que aderimos, sob a égide do princípio da boa fé na vertente do dever lateral de lealdade, que incumbia ao autor responder com diligência e prontidão à proposta da seguradora, sendo para tal suficiente o prazo geral de dez dias. Ao demorar de 293 dias para responder à proposta da seguradora de indemnização por perda total, o autor contribuiu para o agravamento do seu dano de privação de uso, justificando-se a redução da indemnização pela privação de uso pelo período correspondente à demora injustifica de 283 dias.
No que tange ao valor diário da indemnização pela privação de uso, afigura-se-nos que o valor fixado pelo tribunal a quo de € 20 deverá ser reduzido.
Em primeiro lugar, à data do acidente, o veículo tinha já, pelo menos, 24 anos de idade, o que faz presumir que o seu desempenho está mais limitado em função da vetustez, sendo maiores os custos com a manutenção.
Em segundo lugar, o autor logrou suprir as suas necessidades de deslocação, recorrendo a veículos de amigos e familiares (25) . Não ficou demonstrado que a particularidade do veículo sinistrado (caixa aberta que permite transportar materiais de grandes dimensões) fosse de utilização imprescincível ou assídua para o autor, bem como que lhe causado desvantagens relevantes a privação de tal funcionalidade. Aliás, não se apuraram sequer as características dos veículos que o autor utilizou no período da privação, de modo que se desconhece se tais veículos tinham, ou não, a mesma funcionalidade.
Assim, o valor da indemnização deverá ser reduzido para € 15 por dia.
Custas
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em:
a) Julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, altera-se o dispositivo b) da sentença impugnada nestes termos: condena-se a ré a pagar ao autor a quantia de quinze euros por cada dia decorrido entre 13.1.2022 e doze dias contados da data em que a ré proceda ao pagamento ao autor da quantia referida em a), abatendo-se duzentos e oitenta e três dias a esse número total de dias;
b) No mais, julga-se a apelação improcedente por não provada.
Custas pela apelante e pelo apelado, na vertente de custas de parte, na proporção de 3/4 e 1/4, respetivamente (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 18.11.2025
Luís Filipe Sousa
Carlos Oliveira
Rute Sabino Lopes
________________________________________________
1. BB, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., ..., p. 186; FFF e GGG, Manual de Processo Civil, II Vol., p. 131.
2. BB, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de ........2015, HHH, 353/13, de ........2015, III, 677/12, de ........2016, JJJ, 156/12, de ........2016, KKK, 861/13, de ........2017, LLL, 1519/15, de ........2018, MMM, 3788/14, de ........2021, NNN, 214/18, de ........2022, VV, 125/20, de ........2023, NNN, 26881/15, de ........2023, OOO, 1864/21, de ........2023, XX, 331/21, de ........2024, PPP, 7778/21, de ........2024, QQQ, 5295/22, de ........2025, RRR, 2620/23. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de ........2014, SSS, 971/12).